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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2020

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Mais uma vez, por que a guerra?1

 

Again: why war?

 

Una vez más: ¿por qué la guerra?

 

Encore une fois: pourquoi la guerre ?

 

 

Daniela Boianovsky

Psicanalista. Membro do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBSB). Psicóloga graduada pela Universidade de Brasília (UNB)

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir da correspondência entre Einstein e Freud, publicada com o título "Por que a guerra?", e em especial da leitura de textos que estão na gênese da carta-resposta freudiana, neste trabalho sugerimos a hipótese de que o primeiro desafio de nosso psiquismo seja o de ir além de um princípio no ódio, que seria fundado na experiência de desamparo trazida pelo nascimento, e reproduzido em experiências futuras de castração. A capacidade de lidar com a falta, com a insatisfação dos próprios impulsos, será determinante na estruturação do psiquismo, na elaboração da castração e inscrição da interdição edípica, assim como no reconhecimento da alteridade e da lei. A recusa da realidade da castração poderá levar ao cenário de atuação do ódio, da intolerância às diferenças, do predomínio da pulsão de morte, tão presente nos dias atuais. Sob o eco da angústia de Freud, concluímos com o convite de ouvir o adoecimento de nossa sociedade e, quem sabe, através do fortalecimento da pulsão de vida e de seu potencial integrador, criar alternativas ao labirinto de ódio e morte a que nossa destrutividade nos levou.

Palavras-chave: pulsão, castração, impulsos destrutivos, triangulação edípica, perversidade


ABSTRACT

From the correspondence between Einstein and Freud, published under the title "Why War?" (Einstein and Freud, 1933), this paper suggests the hypothesis that our psyche's first challenge is to go beyond a principle in hatred, which would be based on the experience of helplessness brought up by birth, and reproduced in future experiences of castration. The capability for dealing with failure, with one's own impulses' dissatisfaction, will be decisive in structuring the psyche, in elaborating castration and inscription in oedipal interdiction, as well as in recognizing alterity and law. The refusal of castration reality can lead us to scenarios of hatred, intolerance of differences, and to the predominance of death drive so present today. I conclude, under the echo of Freud's anguish, by inviting us to pay attention to the sickening of our society and, perhaps, by strengthening the motor for life and its integrative potential, to create alternatives to the maze of hatred and death that our destructiveness has led us to.

Keywords: drive, castration, destructive impulses, oedipal triangle, perversity


RESUMEN

A partir de la correspondencia entre Einstein y Freud, publicada con el título "[Por qué la guerra?" (Freud, 1933 [1932], en especial de la lectura de textos que están en la génesis de la carta-respuesta freudiana, este trabajo sugiere la hipótesis de que el primer desafío de nuestro psiquismo sea el de ir más allá de un principio en el odio, que sería fundado en la experiencia de desamparo traída por el nacimiento, y reproducido en experiencias futuras de castración. La capacidad de lidiar con la falta, con la insatisfacción de los propios impulsos, será determinante en la estructuración del psiquismo, en la elaboración de la castración e inscripción en la interdicción edípica, en el reconocimiento de la alteridad y de la ley. El rechazo de la realidad de la castración puede llevarnos al escenario de actuación del odio, de la intolerancia a las diferencias, del predominio de la pulsión de muerte, tan presente en los días actuales. Concluyo, bajo el eco de la angustia de Freud, con la invitación para que podamos oír la enfermedad de nuestra sociedad y, quizás, a través del fortalecimiento de la pulsión de vida y de su potencial integrador, crear alternativas al laberinto de odio y muerte a que nuestra destructividad nos llevó.

Palabras clave: pulsión, castración, impulsos destructivos, triangulación edípica, perversidad


RÉSUMÉ

À l'appui de la correspondance entre Einstein et Freud, publiée sous le titre « Pourquoi la Guerre ? » (Freud, 1933), notamment de la lecture de textes faisant partie de la genèse de la lettre réponse freudienne, cet article suggère l'hypothèse que le premier défi de notre psychisme soit celui d'aller au-delà d'un principe de haine, qui serait fondé sur l'expérience de délaissement apportée par la naissance et reproduite dans des expériences futures de castration. La capacité de faire face au manque, au mécontentement de ses propres impulsions, sera déterminante lors de la structuration de la psyché, de l'élaboration de la castration et de son inscription dans l'interdiction œdipienne, ainsi que lors de la reconnaissance de l'altérité et de la loi. Le refus de la réalité de la castration pourra nous conduire à une situation d'action de la haine, de l'intolérance face aux différences, de la prédominance de la pulsion de mort, si présent de nos jours. Je conclus, sous l'écho de l'angoisse de Freud, par une invitation à entendre les maladies de notre société et, peut-être, au moyen d'un renforcement de la pulsion de vie et de son potentiel d'intégration, à créer des alternatives au labyrinthe de haine et de mort où notre destructivité nous a conduits.

Mots-clés : pulsion, castration, impulsions destructives, triangulation œdipienne, perversité


 

 

Em 1932, Einstein aceita o convite da Liga das Nações para que elegesse alguém com quem fizesse um intercâmbio em assunto de sua escolha. Diante da iminente eclosão da Segunda Guerra Mundial, opta por convocar Freud a refletir sobre o tema, gerando a correspondência publicada com o título "Por que a guerra?" (Einstein & Freud, 1933/1969). Em 30 de julho daquele mesmo ano, lança então a pergunta que é porta-voz da angústia e da esperança de boa parte do planeta naquele momento: "Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça da guerra?".

Em sua inquietação sagaz, compartilha sua inconformidade com o fato de que uma "pequena súcia" seja capaz de convencer uma imensa maioria a se submeter aos horrores da guerra, muitas vezes com entusiasmo extremado, o que só poderia ser explicado, sugere Einstein, pela existência de um "desejo de ódio e destruição" que "o homem encerra dentro de si" (p. 243). A carta é um desabafo, e também um pedido para que Freud, "um especialista na ciência dos instintos humanos" (p. 243), não somente esclareça os fatores que nos levam às guerras, mas também aponte caminhos para novos métodos de ação - um desafio espinhoso, que continua a nos mobilizar.

Ao ler a resposta de Freud à carta de Einstein, minha sensação era de estar diante da ponta de um iceberg, da ponta de um fio que nos conduziria às entranhas do desamparo humano e de suas manifestações. O mergulho naquela carta, e em alguns dos textos que representam a sua gênese, estimulou-me a navegar pelas águas geladas de nosso desamparo. Pensar nos bastidores da guerra levou-me a sonhar a trama do ódio e de nossos impulsos destrutivos, suscitando algumas reflexões, que tentarei compartilhar a seguir.

Ao nascer, nos defrontamos com o caos. Não é difícil imaginar - como Freud sugere em Além do princípio do prazer (1920/1969a), onde apresenta o constructo da pulsão de morte - que nosso primeiro impulso diante dessa infinidade de estímulos seja o de buscar restabelecer o equilíbrio anterior, num retorno radical que poderia ir até o estado inorgânico, inanimado, livre do desprazer que nos impõe toda essa excitação, ainda sem nome, da primeira respiração, da fome, do frio, do corte com a vida intrauterina, que paradoxalmente é vivida como um temor de aniquilação; e supor ainda que nosso self, sem aparato psíquico para discriminar dentro e fora, tente se livrar dessa ameaça através de uma agressividade que deverá ser expelida e que acionará o motor de uma pulsão em busca de satisfação, de eliminação dessa tensão. Assim, sob o impacto dessa pulsão primeira de retorno ao estado anterior, e portanto provocados por ela, reagimos com a força de Eros, que, além de nos livrar da autodestruição, nos impulsiona a respirar, a "procurar" o alimento que aos poucos será associado ao objeto que nos acolhe e nos apazigua daquele desamparo. No prazer resultante dessa satisfação funda-se a nossa sexualidade, núcleo das pulsões de vida, que perpetuarão a busca pelo objeto para cumprir sua meta de satisfação. A pulsão de morte, por outro lado, ao tentar dissolver o estado de coisas que nos inscreveu naquela desordem, será disruptiva e desagregadora.

Nosso impasse se inicia: nascemos para a morte e para a vida, no caldo -e do caldo - das pulsões que, amalgamadas a maior parte do tempo, e em proporções variáveis, nos inscrevem no desejo de unir e destruir, e unir novamente, no embate constante entre a morte e Eros, síntese da luta pela sobrevivência do indivíduo e da espécie humana. Nosso primeiro registro é o do desamparo, e nele experimentamos o que, mais à frente, poderá ser traduzido como uma experiência de ódio. Talvez possamos pensar que o desafio primeiro de nosso psiquismo seja o de ir além de um princípio no ódio, o de ser capaz de conter e elaborar, no decorrer de nossa vida, o ódio que o desamparo dessa separação nos causou.

Essa separação, fundante, será ressignificada como uma primeira vivência de castração quando, da constatação da diferença anatômica entre os sexos, também vivida sob a luz das perdas anteriores (Paim Filho, 2018), nos depararmos com a falta, com a alteridade, com a ameaça da perda, o que nos inscreverá no complexo de castração propriamente dito e na subsequente interdição do desejo edípico incestuoso e parricida - momento de estruturação de nosso psiquismo e de nossa inscrição na lei. À repressão do desejo e à formação da instância superegoica, segue-se o ego submerso no conflito, dividido entre desejo e proibição, fonte de sofrimento que poderá levá-lo a fazer uso de defesas predominantemente neuróticas ou psicóticas. A depender do jogo econômico entre essas forças, uma terceira via, a da clivagem, poderá surgir, em que "as incoerências, excentricidades e loucuras dos homens apareceriam sob uma luz semelhante às suas perversões sexuais, através de cuja aceitação poupam a si próprios repressões" (Freud, 1924/1969d, p. 193). Em "A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade" (1923/1969e), Freud nos mostra o terreno para essa clivagem, quando descreve a renegação das crianças diante da realidade da ausência do pênis na mulher.

Podemos observar ainda que, a depender do espaço interno que somos capazes de desenvolver para assumir e conter o ódio proveniente da falta e do desamparo, seremos mais ou menos suscetíveis a expeli-lo em sua ira destrutiva em direção ao objeto externo ou a internalizá-lo de forma autodestrutiva - opções que nos colocam sob o predomínio da pulsão de morte -, ou a integrá-lo, a serviço da pulsão de vida, fazendo da frustração fonte impulsiona-dora de nossa criatividade e produtora de novos caminhos para a realização de nossos desejos. Vida e morte, amor e ódio - dirigidos ao mesmo objeto quando aquele que frustra é o mesmo que nutre - são forças em permanente embate no complexo jogo entre as pulsões.

Em O mal-estar na civilização (1930/1969c), Freud aponta que, em troca da proteção da comunidade, o indivíduo renunciou à liberdade de seus impulsos agressivos e destrutivos e submeteu-se às regras estabelecidas pela própria civilização, que passaram a ajustar os seus relacionamentos. Mandamentos do tipo "Amarás o próximo como a ti mesmo" ou "Não matarás" são formulados como uma formação psíquica reativa, que visa justamente controlar o poderoso desejo oposto. É somente nesse texto de 1930 que Freud confere à pulsão de morte o status de pulsão de destruição autônoma, originária do ser humano. Afirma que os homens

são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. (p. 133)

Essas e outras tantas cenas de horror que testemunhamos na história da civilização parecem nos trazer o transbordamento das arestas autônomas da indomável pulsão de morte em sua pressão constante por extravasamento e satisfação. Creio ser possível pensar ainda que, a essa destrutividade, combina-se uma atuação de extrema perversidade, uma recusa à realidade da castração, que nos é revelada por um psiquismo incapaz de lidar com a alteridade e com a insatisfação de seus impulsos, de efetuar uma elaboração de sua própria vulnerabilidade, de sua condição inicial - e última - de desamparo, que lhe permita ir além de um princípio no ódio.

Talvez não tenhamos como compreender a dimensão de nossa crueldade, mas sabemos que recorremos a defesas onipotentes perseguindo o domínio sobre o outro e sobre nós mesmos. A eleição de um inimigo externo cumpre a múltipla tarefa de escoar o nosso ódio mortal e de nos livrar da necessidade de elaborar nossos intoleráveis conteúdos internos - uma elaboração que sabemos interminável (Freud, 1937/1969b) -, nossa impotência diante da noção de nossa própria morte, nossas incertezas sobre o propósito de nossa vida, nossa angustiante incompletude, oferecendo-nos assim alguma inteligibilidade sobre um mundo que nos parece tão hostil. Desumanizamos o outro - e a nós mesmos - para que nosso extravasamento não nos leve a um insuportável sentimento de culpa, ao luto ou à necessidade de reparação. Travamos uma guerra fora por não poder elaborá-la em nosso próprio mundo interno.

Em "Reflexões para os tempos de guerra e morte", ao se debruçar sobre o afrouxamento dos laços morais e éticos, sobre a perda da capacidade crítica até mesmo entre os mais dotados, Freud pergunta-se: quais seriam os motivos pelos quais, na coletividade, entre uma nação e outra, os indivíduos tendem a "desprezar-se, odiar-se e detestar-se mutuamente"? Afirma então que, diante de um grande número de pessoas, as conquistas morais individuais seriam obliteradas, e só restariam "as atitudes mentais mais primitivas, mais antigas e mais toscas" (1915/1969g, pp. 325-326). Mais tarde, ao estudar a psicologia das massas (Freud, 1921/1969f), aponta o psiquismo do grupo: afrouxamento das repressões, em que os instintos cruéis, brutais e destrutivos, antes adormecidos, são despertados para encontrar uma livre gratificação; prejuízo da verificação da realidade, que agora sucumbe à promessa de realização - o que importa, para o grupo, são as ilusões; anseio de seus componentes por um líder em que possam projetar esse ideal de ego, agora libertário. Não obstante os grupos poderem se unir para destruir e odiar, observa ainda que eles são mantidos pelo poder de Eros. O indivíduo é fortemente contagiado, sugestionado a engrossar suas fileiras para não perder seu amor e sua proteção, revelando-se assim o intrincado jogo do amalgamento entre Eros e Tânatos, entre as pulsões de vida e de morte.

Na situação descrita, podemos ver que esse jogo é travado no campo narcísico: defesas onipotentes buscam alterar a realidade frustrante causadora de ódio e inveja - a marca da castração fere e é renegada, a triangulação edípica é bombardeada, interdições são desfeitas, e a destrutividade empunha suas armas e declara o império da pulsão de morte. Clivagem e cisão estarão presentes no indivíduo e no seu grupo. Um líder perverso será escolhido em meio a uma horda que perdeu sua capacidade crítica. A solução de compromisso, que promoveu a renúncia à satisfação pulsional em troca de proteção e aquisição cultural, é atacada. Valores civilizatórios são ameaçados.

Em "Breve ensaio sobre a mentira", Cassorla nos chama a atenção para os conluios que envolvem o mentiroso e sua vítima desejante de fraudar o contato com a realidade. Lembra-nos de como mentiras (narcísicas e perversas), somadas ao crescente recrudescimento de todo tipo de preconceito, "têm sido usadas em profusão para convencer e recrutar pessoas, que passam a apoiar grupos terroristas, racistas, homofóbicos etc.", num ataque a "tudo aquilo que abale o fanatismo narcísico" (2018, p. 86) - um quadro que nos faz pensar não somente na Europa de Einstein e Freud, e que continua a nos assombrar.

Temos um repertório de guerras em nosso país, algumas registradas nos livros de história, outras contadas, por exemplo, pela dor da violência e morte que ecoa em nossas ruas e que vitima, principalmente, negros e pobres. Creio que podemos pensar também em um novo campo bélico que vem se constituindo no ambiente virtual das chamadas redes sociais. Grupos ali são formados com as características já mencionadas, mas com o agravante de um cenário que é ainda mais permissivo à expressão e realização dos aspectos primitivos e perversos da mente, onde o ataque à triangulação edípica é potencializado pela falta da mediação de um terceiro, pela ausência do olhar do outro; onde a supressão do tempo e do espaço impossibilita o exercício do pensamento. Mentiras perversas se multiplicam, ataca-se a alteridade, criam-se realidades paralelas que confundem e manipulam uma população desejosa por essa narrativa ilusória. Institui-se uma terra sem lei, sem interdição, onde, sob a supremacia da recusa à castração, reinam a onipotência, os impulsos destrutivos, a pulsão de morte. O campo virtual transborda e se soma à realidade já tão marcada pela intolerância às diferenças e pelas manifestações de ódio. Lideranças perversas convidam e autorizam a população a contracenar com a atuação de seus impulsos mais obscenos e primitivos. O país está cindido. Culpados são apontados e demonizados por aqueles que, mais do que adversários, os consideram inimigos. Vivemos uma crise civilizatória sem precedentes.

De volta à correspondência que iniciou este trabalho, Freud, em sua carta-resposta, ressalta que, diante da força de nossos impulsos destrutivos, cabe-nos fortalecer o seu antagonista, a pulsão de vida, fazendo com que a autopreservação e o amor (Eros) sejam capazes de integrar a pulsão de morte, transformando-a em agressão promotora de vida, ou seja, naquele sopro que nos instiga a encher os pulmões de ar, que nos tira da inércia e desafia nossa capacidade criativa.

Em algum tempo futuro, pergunta-se ele ao concluir a carta, seríamos capazes de juntar nossas aquisições culturais ao medo da destruição e pôr um término à ameaça de guerra?

No conto "A terceira margem do rio", Guimarães Rosa nos traz uma bela e melancólica imagem no personagem que, sem maiores explicações, resolve executar "a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais", num eterno deslizar, em que "não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim" (1962/1981, pp. 28-29) -imagem que nos leva a navegar pelas águas da pulsão de morte, pelo abandono e desamparo em que o ódio se fez melancolia, pela impossibilidade de estabelecer qualquer vínculo, pelo desejo de se deixar conduzir rumo ao nada, ao inorgânico, ao inanimado (Boianovsky, 2002). Amós Oz, escritor e pacifista israelense, em palestra proferida na manhã seguinte aos ataques terroristas sofridos por Paris em 2015, propõe que cada um de nós seja uma península, "em parte conectado com a terra firme da família, da sociedade, da tradição, da ideologia etc. - e em parte voltado para os elementos, sozinho e em silêncio profundo" (2016, p. 32). Penso ser essa uma metáfora que nos convida a mergulhar em nossa própria subjetividade e, portanto, no reconhecimento da existência do outro; a deslizar nas águas turbulentas da experiência emocional de nossa incompletude e de nossa ambivalência; a emergir com a força criativa que brotou da integração das pulsões, na pulsão de vida que vincula terra firme e liberdade.

À pergunta sobre se seremos capazes, algum dia, de nos livrarmos da ameaça de guerra, não temos resposta, por mais que possamos imaginá-la negativa. Mas, diante da batalha entre Eros e Tânatos, podemos construir margens para atracar nosso barco, muitas vezes à deriva: "margens-penínsu-las", onde seja possível, para além do uso de defesas bélicas e maníacas, lidar com o mal-estar de nossa condição humana. E assim como Freud, que aprendeu e muito nos ensinou através da observação e elaboração do que se passava além das paredes do seu consultório, acredito que também possamos nos imaginar como "psicanalistas-penínsulas", ampliando a escuta de nossa clínica para as dores que latejam em nossa sociedade adoecida, a fim de, quem sabe, participar da produção de novos caminhos e alternativas ao nosso labirinto de ódio, intolerância e morte.

 

Referências

Boianovsky, D. (2002). Pulsão de morte: a terceira margem do rio? Alter: Jornal de Estudos Psicanalíticos, 21(1),47-52.         [ Links ]

Cassorla, R. M. S. (2018). Breve ensaio sobre a mentira. Revista Brasileira de Psicanálise, 52(2),81-96.         [ Links ]

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Paim Filho, I. A. (2018). Complexo de castração em tempos de novas configurações. Revista Brasileira de Psicanálise, 52(2),97-112.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Daniela Boianovsky
SMDB conjunto 10, lote 4, casa d, Lago Sul
71680-100 Brasília, DF
Tel.: 61 99964-0270
danielaboianovsky@gmail.com

Recebido em 18/3/2019
Aceito em 21/5/2019

 

 

1 Artigo desenvolvido a partir do texto apresentado no evento Um Olhar para Fragmentos da Escravidão, promovido pela Diretoria Científica da Sociedade de Psicanálise de Brasília (sPBsb) em 29 de junho de 2018, em que fui convidada a discutir a correspondência entre Einstein e Freud, "Por que a Guerra?" Uma versão reduzida deste texto foi apresentada no XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em Belo Horizonte (MG), de 19 a 22 de junho de 2019.

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