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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2020

 

RESENHAS

 

A psicanálise no Brasil antes e depois de Lacan: posições do psicanalista nessa história

 

 

Daniel Hamer Roizman

Psicólogo. Mestre em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, núcleo São Paulo. Membro associado da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)

Correspondência

 

 

Autor: Leandro dos Santos
Editora: Zagodoni, 2019, 151 p.
Resenhado por: Daniel Hamer Roizman

 

 

 

Traçando um minucioso percurso histórico de como se deu o processo de implementação da psicanálise no Brasil, Leandro dos Santos nos convoca a uma reflexão que perpassa ditames éticos, econômicos, sociais e políticos. Trata-se de seu pós-doutorado realizado no núcleo de Psicanálise e Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É na rica e intrínseca articulação entre as posições do psicanalista, do historiador e do próprio Leandro na condição de analisando que o livro pode ser considerado sob três aspectos interdependentes.

O primeiro diz respeito à guinada subjetiva que Leandro fez ao se tornar psicanalista e a como isso mudou sua posição no laço social brasileiro. Seu livro é um implícito testemunho de como alguém de origem simples pode se afirmar enquanto sujeito de desejo, vindo a obter representatividade no meio acadêmico e clínico. Na experiência dele, esse câmbio de posição só foi possível devido à disseminação do ensino de Jacques Lacan, cuja centralidade de pensamento aparece como alternativa de "esquerda", diante do modelo das Sociedades ligadas à Associação Psicanalítica Internacional (ipa), marcadamente alicerçadas no paradigma médico e, por esse motivo, tendencialmente simpatizantes de uma posição elitista de "direita".

O segundo corresponde ao seu papel de historiador que trouxe à tona importantes e decisivos acontecimentos que marcaram o lugar da psicanálise no Brasil. Retomando a frase de Edmund Burke "Um povo que não conhece sua história está condenado a repeti-la", o autor apresenta fragmentos da correspondência entre os primeiros brasileiros interessados em psicanálise e o próprio Freud, a vinda dos primeiros analistas "formadores" para o Brasil, a disseminação da psicanálise na mídia e nos centros de saúde, e também um obscuro e longo capítulo de complacência e/ou obediência das sociedades de psicanálise com o regime militar, em que se destaca o caso Amilcar Lobo, na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (sprj) e na Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ).

Já o terceiro aspecto se refere ao questionamento ético relativo à posição dos psicanalistas acerca dos regimes políticos vigentes, sua relação com o dinheiro e o poder, além de suas filiações e tentativas de imitação do modelo europeu de exercer a psicanálise. São retomados os polêmicos pontos da análise didática, que teria como efeito o monopólio e a jurisdição acerca de quem pode ser analista, a expulsão de psicanalistas que se projetavam publicamente como opositores do regime militar brasileiro, os altos preços cobrados, a rigidez de ideias e do modelo de formação, entre outros fatores tidos como sectários. Em suma, trata-se de uma crítica às sociedades psicanalíticas principalmente no período do regime militar, e ao que eventualmente persiste nelas de conservadorismo e psicologismo.

Essa tentativa de imitação do modelo de formação das sociedades psicanalíticas europeias impediu a disseminação da psicanálise no Brasil. Ou seja, em vez de atuar na contramão da disparidade social brasileira e permitir o acesso de variados setores da população à análise, os grupos locais filiados à IPA reduplicaram essa disparidade cultural e econômica. Grosso modo, epistemologicamente alicerçado na biologia, o kleinismo (paradigma principal das primeiras sociedades psicanalíticas no Brasil) fez uma curiosa ancoragem com o psicologismo. Disseminou a ideia de que o funcionamento e o padecimento psíquicos decorreriam de processos internos herdados e/ou intrínsecos a cada ser humano e, por essa razão, seriam relativamente independentes das questões socioculturais e econômicas. Foi esse posicionamento ético-teórico que logo fez barreira ao pensamento lacaniano, cujo acento estava em situar o inconsciente como estrutura sociossimbólica, constituída na intersecção do sujeito com a cultura e a sociedade.

É nesse caminho que Leandro nos aponta ser inevitável que a psicanálise seja social e política. Na medida em que está inserida no laço social, ela deve ser lida a partir dele. Dizer-se apolítico já é em si uma forma de política. Nesse sentido, cada país ou campo cultural têm sua própria forma de psicanálise e, por esse motivo, coube ao autor apontar o ponto de guinada de uma tendência psicanalítica conservadora para outra de caráter mais democrático, intimamente atravessada pelo campo sociopolítico em sua estruturação teórico-clínica.

Lacan foi justamente aquele que foi impedido de exercer a psicanálise didática ao ser acusado de ter muitos pacientes e quebrar um dos "tabus fundamentais" - o tempo fixo das sessões. A partir dessa negativa de ser reconhecido como mantenedor de uma prática psicanalítica, ele passou a desenvolver um pensamento dialógico com a filosofia, a sociologia, a literatura, a matemática, a lógica, a religião, a antropologia e a linguística.

Foi também como exilados que muitos argentinos foram acolhidos inicialmente pelo Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo. Os primeiros lacanianos no Brasil foram ou esses argentinos perseguidos pela ditadura de seu país, ou brasileiros que haviam se conectado de alguma forma com o ensino de Lacan no exterior. O Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, criado em 1975 por Magno Machado Dias e Betty Milan, foi o primeiro grupo lacaniano formalizado em solo tupiniquim. Dessa maneira, a proliferação do ensino de Lacan no Brasil se iniciou nos anos 1970, desenvolvendo-se a partir dos anos 1980 e o início dos anos 1990.

Quer dizer, a implementação das ideias de Lacan esteve ligada ao processo de redemocratização, e com isso se disseminou nos meios intelectuais e acadêmicos. O grande empurrão desse novo ensino foi o fato de a análise didática e a formação cara e rígida darem lugar ao delicado e controverso aforismo de Lacan "O analista se autoriza por si mesmo". No entanto, longe de ser uma panaceia salvadora dos "pobres e oprimidos", o paradigma lacaniano também incorreu em outro tipo de segregação - a intelectual. Foi precisamente devido ao hermetismo e ao rebuscamento teórico de seu ensino que ele não pôde atingir pessoas de menor capital cultural.

Introduzida pelo filósofo Pierre Bourdieu, a noção de capital cultural diz respeito ao lastro cultural que cada grupo ou indivíduo adquire com sua bagagem de estudos e aprendizados. Isto é, trata-se da consideração da existência de uma "envergadura erudita" maior ou menor, que atravessa a todos de forma a limitar ou auxiliar o alcance da incorporação de saberes e conhecimentos. Na realidade brasileira há uma tendência de polarização do menor capital cultural com o menor capital econômico, e vice-versa.

Por essa razão, Leandro denuncia o choque do ensino de Lacan com a realidade brasileira. Marcada por uma linguagem de difícil acesso, com muitas referências e traduções incompletas e tendenciosas, essa nova perspectiva se populariza a partir de seus comentadores, mas sobretudo pela sustentação da psicanálise enquanto posição ética diante do desejo, e não como conjunto de regras e ditames técnicos e burocráticos.

Leandro é bastante assertivo nesse ponto. O processo de implementação da psicanálise no Brasil foi facilitado pela escola de Lacan, mas está longe do ideal. Notemos que até hoje a psicanálise é muito mais acessível na Argentina que no Brasil. Isso se deve à melhor escolarização e à menor disparidade de renda e cultura dos hermanos, o que permite uma maior homogeneização da incidência do campo psicanalítico.

Segundo o autor, é importante destacar que, para a emancipação das classes menos favorecidas no Brasil, os psicanalistas devem procurar democratizar e expandir a psicanálise. Reproduzir a clássica divisão de classes é contra a psicanálise, já que hierarquizar as relações acaba por alienar o sujeito a polos fálicos antagônicos à ideia de libertação dos sintomas. Sendo a psicanálise também sintomática, ela deve procurar se desprender e dialogar com os sintomas sociais vigentes.

Por esse motivo, a proposta do livro não é denunciar uma psicanálise conservadora no intuito de reivindicar uma aprovação ou manifestar uma lamúria por não pertencer a ela, senão incitar a todos - lacanianos ou não - a comprometer-se com as questões de fragilidade e violência social que assolam o Brasil. Isso tem por implicação uma clínica aberta a todas as singularidades, poderes aquisitivos e grupos culturais, em antagonismo com uma clínica especular de "rico para rico", ou de "médico para médico".

Lembrando que quem faz política são as pessoas, tanto uma posição freudiana quanto uma posição kleiniana, winnicottiana, bioniana ou lacaniana podem gerar efeitos de mestria. Devemos nos ater ao que há de humano na sede de poder, prestígio e dinheiro, uma vez que ninguém está garantido de não resvalar para o gozo narcísico. Apesar de dolorosa e traumática, a mensagem do autor é construtiva e lúdica, já que propõe a união dos psicanalistas em prol da ascensão da psicanálise em suas múltiplas formas de expressão.

 

 

Correspondência:
Daniel Hamer Roizman
Rua Sergipe, 441, conj. 141
01243-001 São Paulo, SP
Tel.: 11 2667-3448 | 11 99629-2262
danielhamer@me.com

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