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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2020

 

RESENHAS

 

Primeiro Encontro Psicanalítico de Paraty: diálogos com a cidade

 

 

Mariangela Relvas

Membro didata e docente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ)

Correspondência

 

 

Organizadores: Tiago Julio Bonfada, Daniela Bormann, Carlos Eduardo Teixeira de Souza, Silvana Torres e Aguida Nozari
Editora: Sesc Paraty, 2019, 199 p.
Resenhado por: Mariangela Relvas

 

 

 

O Primeiro Encontro Psicanalítico de Paraty originou-se do projeto de um grupo de membros da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), sob a iniciativa do médico e psicanalista, naquela cidade, Tiago Bonfada, com o intuito de difundir, em linguagem compreensível, o conhecimento psicanalítico no contexto psicossocial da comunidade paratiense, por meio de representantes da diversificada cultura local, composta de quilombolas, indígenas guaranis, caiçaras e demais paratienses.

A oportunidade de os assuntos serem abordados de forma dialógica possibilitou a escuta das experiências sociais locais, dando voz aos cidadãos, nas suas especificidades e singularidades. A partir de uma ambientação histórica, cultural e conceitual psicanalítica, proporcionou um espaço de troca inédito sobre temas como escravidão e liberdade, exclusão e inclusão, preservação e destruição, criatividade e repetição, coexistência e intolerância, nativo e estrangeiro, chegadas e partidas, e por último o que poderia representar a transmissão de um "legado" com base nessas contribuições.

Promovido pelo Sesc Cultural, com o apoio da SPRJ, no ano de 2018, todo o conteúdo apresentado, debatido e discutido foi transcrito com notável fidelidade e publicado na XVII Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2019, em edição distinguida. São ao todo nove capítulos, os quais incluem textos, letras de música, poesias, ilustrações do evento e fotos belíssimas do cotidiano da cidade pelas lentes do fotógrafo Giancarlo Mecarelli.

O volume se inicia pela trilogia instaurada com o texto "Um breve histórico da cidade", de Diuner Mello, sócio fundador do Instituto Histórico e Artístico de Paraty e da Fundação Paraty Cultural. O autor faz ponderações que contribuem para ambientar o leitor e alicerçar as várias dimensões exploradas. Em debate continuado, Silvana Torres, psicóloga em formação na SPRJ, apresenta um "Breve histórico da psicanálise", no qual explicita as condições socioeconómicas e culturais que favoreceram o surgimento da área, configuradas num texto consistente. A moldura contextual recebe uma costura conclusiva com "Descoberta da brasilidade em Paraty", da lavra de Ronaldo Victer, médico e psicanalista da SPRJ, que expõe o paralelismo entre algumas questões da psicanálise e a instalação dos alicerces da cidade de Paraty, que guardou a essência da brasilidade na sua história, no povoamento do seu território e no seu desenvolvimento económico e cultural.

"Escravidão versus liberdade" inaugura a aproximação dos diálogos de Paraty com as temáticas centrais. Nesse sentido, Ronaldo dos Santos, representante do quilombo Campinho da Independência de Paraty e da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), desvela a atemporalidade do racismo contemporâneo ao apresentar sua luta em prol do fortalecimento da identidade da população quilombola, da recuperação da autoestima e do desenvolvimento e da sustentabilidade do território conquistado. Eloá Silva de Moraes, assistente social do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) de Paraty, trabalhadora da rede pública municipal e integrante do coletivo de Mulheres Pretas de Paraty, fala sobre "Saúde mental e relações étnico-raciais". Traz dados de sua pesquisa no Caps de Paraty, analisa o impacto da situação da saúde mental na população negra e nas relações étnico-raciais, e apresenta ainda um testemunho pessoal sobre as dificuldades e os desafios ao enfrentar o racismo institucional que incide nas mais diferentes dimensões das instituições e organizações pesquisadas. Leticia Neves, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ), em "Reflexões sobre escravidão versus liberdade", aporta a contribuição da psicanálise ao tema ao discorrer sobre a necessidade do ser humano de criar um espaço intersubjetivo de pertencimento e reconhecimento, que seja conquistado como um lugar de resgate da condição humana roubada pela escravidão.

O debate seguinte, sobre "Exclusão versus inclusão", tem inicio com Januária Pralon Moreira, paratiense, psicóloga da saúde mental do município. Ela expõe a violência do trauma da exclusão do racismo, ao relatar a trajetória de sua vida familiar e pessoal e descrever um cenário caótico, que inclui os crescentes episódios de violência na cidade, decorrentes da falta de politicas públicas e sociais, o que contrasta com o fato de Paraty ter tido o seu centro histórico proclamado patrimônio mundial em 2019, pelo Comitê da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A seguir, Cynthia Ladvocat, psicanalista da SPRJ, em "Exclusão e inclusão, do abandono à adoção", analisa o sofrimento provocado pela marginalização, que compromete as comunidades quilombolas, os indigenas e a população carente. Ao mesmo tempo, explicita as contribuições da psicanálise sobre a necessidade de entender essas situações traumáticas, que comprometem as gerações de adolescentes e crianças em risco. O tema recebe um fecho com Márcia Câmara, também psicanalista da SPRJ, que propõe uma discussão sobre os conceitos de exclusão e inclusão social e sobre a necessidade de que essa questão seja também analisada do ponto de vista do direito da cidadania.

No capítulo "Preservação versus destruição", surgem as reflexões de dois indígenas. Leonardo Gabriel Benites trata da sua aldeia e das consequências da destruição das matas e das florestas. Flávia Ara da Silva fala sobre a relação sagrada com a mata, a importância da história dos indígenas guaranis, os ensinamentos dos caciques, a preservação do artesanato, da língua e do direito à saúde. Em continuidade, Carlos Felipe de Andrade Abirached, advogado em política e gestão ambiental e analista do Instituto Chico Mendes de Conservação de Biodiversidade, discorre acerca de como a cidade é um exemplo da dualidade preservação vs. destruição, a qual remete à crise civi-lizatória e às disputas sobre o uso do território do município. Fala da diversidade étnica singular de Paraty e destaca a importância das manifestações culturais, das festas religiosas tradicionais, do centro histórico (com sua arquitetura colonial), da rica gastronomia e das paisagens da cidade. Aponta os efeitos deletérios do turismo e o direito dos moradores a uma cidade digna, à mobilidade, ao saneamento e à conservação ambiental. Dentro do mesmo tema, Daniela Bormann Vieira, psicanalista da SPRJ, aborda do ponto de vista psicanalítico a questão da destrutividade humana. Faz referência aos instintos de vida e morte, ao conflito entre a preservação da natureza e das culturas e a destruição causada pelo desenvolvimento econômico. Destaca a necessidade de abrir espaço ao diálogo e a uma expressão mais amorosa com a vida, que possibilite a transformação, a integração e o desenvolvimento da capacidade de pensar.

No eixo de discussão sobre "Criatividade versus repetição", Marcos Caetano Ribas, diretor teatral e idealizador do Teatro Espaço em Paraty, mostra de que maneira sua vida e sua arte foram pautadas por seus desejos e ideais. Fala sobre o trabalho do artista para produzir sua arte, as fontes da criatividade e a capacidade criadora da repetição. Por último, dá um depoimento sobre seu trajeto profissional e de vida, em busca da liberdade e da capacidade de criar. Maria Eliana Mello, psicanalista da SPRJ, faz um contraponto à apresentação anterior ao trazer contribuições da psicanálise em relação às forças psíquicas necessárias e contrárias ao trabalho de criação. Argumenta que a repetição pode ser prazerosa, mas também pode ser a causa da dor ou do horror, fato denominado por Freud de uma força demoníaca. Essa é uma força que caminha em oposição à criatividade e à mudança psíquica. Nesse caso, Tânatos, travestido de Eros, rouba a possibilidade de o sujeito ter sua própria existência. A linha dialógica recebe caráter integrativo em "Sobre o viver criativo", de Vera Lúcia Benchimol, psicanalista da SPRJ. Ela destaca no texto de Marcos Ribas a capacidade de o ser humano viver de acordo com os próprios valores e talentos, de forma criativa. Assinala que estar presente, sentir-se real e em sintonia com o mundo da realidade compartilhada é algo que representa uma conquista. Desenvolve esse tema com contribuições da psicanálise e da sua experiência de prática clínica.

No diálogo "Coexistencia versus intolerância", Luís Perequê, caiçara, compositor e cantor, traz algumas de suas composições musicais que exaltam a natureza e a contrapõe aos malefícios do progresso, tendo como cenário a cidade e a população de Paraty. Sobre a sua poesia, os psicanalistas da SPRJ Débora Regina Unikowski e José Henrique Cunha Figueiredo fazem alguns comentários. Débora aborda as distintas formas de que se reveste a intolerância e a necessidade de reconhecimento do outro como alguém separado e diferente. Destaca as contribuições de Freud como um homem amante da natureza, dos homens e da arte. Refere-se às pulsões de vida e de morte, ao amor e ao ódio, à ambivalência e ao desamparo do ser humano. Já José Henrique comenta algumas passagens da poesia de Perequê, analisando a riqueza simbólica da narrativa, das vivências e dos sentimentos.

A proposta de discussão sobre "Estrangeiro versus nativo" inclui o texto de uma teleconferência realizada com os italianos Paolo Bucci e Fausta Romana em debate com Carlos Eduardo Teixeira de Souza, psicólogo em formação na SPRJ. Paolo Bucci discorre sobre várias questões do ponto de vista psicanalítico e antropológico, como a necessidade de considerar a presença da diversidade e do diferente enquanto condição fundamental para os processos vitais, individuais, culturais e sociais. Carlos Eduardo, em contraponto, fala do estrangeiro como um lugar subjetivo, daquilo que nos habita e nos ameaça e do caminho onde o estranho possa ter acesso à fala, e não ao sintoma.

No capítulo que trata de "Chegadas e partidas", aparece o relato de Gibrail Rameck Júnior, caiçara, navegador e idealizador do Projeto Instituto Náutico de Paraty. Ele conta sua história e a de sua família na cidade, e suas experiências e aventuras como navegador em um veleiro. Tânia Leão Pedroso, psicanalista da SPRJ, comenta o texto de Gibrail sob o ponto de vista psicanalítico e relaciona o ofício do psicanalista ao de um navegador de mares interiores, no qual as chegadas e partidas se dão rumo à desconhecida viagem para dentro de si mesmo. O curador do evento, Tiago Julio Bonfada, médico residente na cidade de Paraty e psicanalista da SPRJ, fala das motivações que fizeram dessa cidade um palco de discussão de ideias das mais diferentes fontes, ao mesmo tempo que traça paralelos entre as necessidades e competências exigidas de um velejador durante a navegação e os recursos exigidos pelo difícil percurso da vida e do processo psicanalítico.

No último capítulo, intitulado "O legado", enfatiza-se a necessidade de ouvir o outro em sua complexidade por meio de diálogos vivos e capazes de gerar transformações. Assinala-se ainda a importância de tudo que foi vivenciado nesse encontro, em que jovens psicanalistas organizaram e fizeram acontecer um evento que representou a abertura de um canal de comunicação livre para o intercâmbio de trocas afetivas, que puderam ser repensadas sob o olhar da psicanálise. Por fim, cabe ressaltar que o livro propõe, sobretudo, uma maior difusão do conhecimento psicanalítico mediante reflexões sobre a sua intersecção com a comunidade e a cultura.

 

 

Correspondência:
Mariangela Relvas Pinto
Rua Voluntários da Pátria, 450/210
22270-010 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: 21 2530-4020 | 21 98213-1606
mariangelarelvas@gmail.com

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