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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo Apr./June 2020

 

DIÁLOGO

 

A pandemia de coronavírus e seus significados

 

The coronavirus pandemic and its meanings

 

La pandemia del virus corona y sus significados

 

La pandémie du coronavirus et ses significations

 

 

Michael RustinI; Tradução Paulo Sérgio de Souza Jr

IProfessor de sociologia na Universidade de East London. Professor visitante na Clínica Tavistock. Membro associado da Sociedade Britânica de Psicanálise. Autor de livros como The good society and the inner world [A boa sociedade e o mundo interior] (1991), Reason and unreason [Razão e desrazão] (2001), Reading Klein [Lendo Klein] (com Margaret Rustin, 2017) e Researching the unconscious [Pesquisando o inconsciente] (2019). Editor de Soundings, a Journal of Politics and Culture [Ressonâncias, um Periódico de Política e Cultura]

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo examina os significados da pandemia de coronavírus de uma perspectiva sociopolítica e psicanalítica. Ele propõe que o conceito de desenvolvimento combinado e desigual é relevante para a compreensão dos acontecimentos atuais. Isso porque, na gênese de uma nova doença, a pandemia reuniu circunstâncias em que a interface entre a sociedade e o mundo natural está desregulada, e também em que as formas modernas de comunicação permitiram a disseminação da doença em todo o mundo com uma rapidez sem precedentes. Várias linhas de divisão social são expostas pela crise, pois as classes sociais, as populações étnicas, os grupos etários, as mulheres e os homens, as nações e as regiões estão sendo prejudicados de maneiras diferentes. Prioridades contrastantes, de origem ideológica, são reveladas na resposta que os governos estão dando ao vírus, no compromisso que estão tendo com a preservação de vidas em comparação com outros interesses materiais. Na segunda parte do artigo são exploradas as dimensões psicossociais da crise. Uma perspectiva psicanalítica enfoca as ansiedades como geradas pelo transtorno e pelos riscos extremos impostos pela crise. Sugere-se que estas sejam não apenas conscientes, mas também inconscientes, dando origem a tipos destrutivos de clivagem e negação psicológicas e perturbando a tomada de decisão reflexiva. Argumenta-se que a perda de estruturas mentais e sociais continentes está tendo efeitos prejudiciais agora, e que a sua restauração pode ser o pré-requisito de resoluções construtivas para uma crise social generalizada.

Palavras-chave: psicanálise, pandemia, crise psicossocial, clivagem, negação


ABSTRACT

This article examines the meanings of the Coronavirus Pandemic from a perspective which is both socio-political and psychoanalytic. It suggests that the concept of "combined and uneven development" is relevant to understanding the events which are now taking place. This is because the pandemic has brought together the genesis of a new disease in conditions where the interface between society and the natural world is unregulated, but also where modern forms of communication have enabled an unprecedentedly rapid spread of the disease to take place, across the entire globe. Multiple lines of social division are being exposed by the crisis, as social classes, ethnic populations, age groups, women and men, nations and regions are differentially harmed. Contrasting priorities, ideological in origin, are being revealed in governments' response to the virus, in the commitment they give to the preservation of lives compared with other material interests. In a second part of the article, psycho-social dimensions of the crisis are explored. A psychoanalytical perspective focuses on anxieties as these are generated by the extreme disruption and risks posed by the crisis. It is suggested that these are not only conscious but also unconscious, giving rise to destructive kinds of psychological splitting and denial, and disrupting capacities for reflective decision-making. It is argued that a loss of "containing" mental and social structures is now having damaging effects, and that their repair may be the precondition for constructive resolutions of a general social crisis.

Keywords: psychoanalysis, pandemic, psychosocial crisis, cleavage, denial


RESUMEN

Este artículo examina los significados de la pandemia del virus corona de una perspectiva sociopolítica y psicoanalítica. Propone que el concepto de "desarrollo combinado y desigual" es relevante para la comprensión de los acontecimientos de ahora. Eso porque, en el génesis de una nueva enfermedad, la pandemia reunió circunstancias en que la interface entre a sociedad y el mundo natural se desregularon, y también en que las formas modernas de comunicación permitieron la diseminación de la enfermedad en todo el mundo con una rapidez sin precedentes. Varias líneas de división social son expuestas por la crisis, pues las clases sociales, las poblaciones étnicas, las naciones y las regiones están siendo perjudicadas de maneras diferentes. Prioridades contrastantes, de origen ideológica, son reveladas en la respuesta que los gobiernos están dando al virus, en el compromiso que ellos están teniendo con la preservación de vidas en comparación con otros intereses materiales. En una segunda parte del articulo son exploradas las dimensiones psicosociales de la crisis. Una perspectiva psicoanalítica enfoca las ansiedades como siendo generadas por el trastorno y por los riesgos extremos impuestos por la crisis. Se sugiere que estas sean no apenas conscientes, sino también inconscientes, dando origen a tipos destructivos de fragmentación y negación psicológicos y perturbando las capacidades de tomada de decisión reflexiva. Se argumenta que la pérdida de estructuras mentales y sociales "continentes" está teniendo efectos perjudiciales ahora, y que su restauración puede ser el prerrequisito de resoluciones constructivas para una crisis social generalizada.

Palabras-claves: psicoanálisis, pandemia, crisis psicosocial, clivaje, negación


RÉSUMÉ

Cet article examine les significations de la pandémie du coronavirus d'un point de vue sociopolitique et psychanalytique. Il propose que le concept de « développement inégal et combiné » soit essentiel pour la compréhension des évènements actuels. Tout cela parce que, dans la genèse d'une maladie neuve, la pandémie a réuni des circonstances où l'interface entre la société et le monde naturel est déréglée, mais aussi où les formes modernes de communication ont permis la dissémination de la maladie par tout dans le monde à une vitesse qui n'a pas de précédents. Plusieurs lignes de division sociale sont exposées par la crise, car les classes sociales, les populations ethniques, les nations et les religions subissent maintenant des dommages de différentes manières. On révèle des priorités contrastantes, d'origine idéologique, dans la réponse que les gouvernements donnent au virus, dans l'engagement assumé par rapport à la préservation de vies, si on les compare à d'autres intérêts matériaux. Dans la seconde partie de l'article on explore les dimensions psychosociales de la crise. Une perspective psychanalytique est axée sur les anxiétés considérées comme étant générées par le bouleversement et par les risques extrêmes imposés par la crise. On suggère qu'elles soient non seulement conscientes, mais aussi inconscients, entraînant des types destructifs de clivage et de dénis psychologiques et gênant les capacités de la prise de décision réflexive. L'argument employé, c'est que la perte de structures mentales et sociales « continentes » présente maintenant des effets préjudiciels, et que sa restauration peut être le prérequis de résolutions constructives contre une crise sociale généralisée.

Mots-clés : psychanalyse, pandémie, crise psychosociale, clivage, déni


 

 

A RBP é um periódico dedicado à psicanálise, mas a explicação das causas e consequências da pandemia - da qual, no momento em que escrevo, o Brasil parece estar sofrendo mais que todo o mundo - tem muitos aspectos que não são apreendidos da melhor maneira pelas explicações psicanalíticas. Antes de refletir sobre como um paradigma psicanalítico pode se engajar com essa tragédia em andamento, gostaria de esboçar uma compreensão das dimensões sociais e políticas mais amplas da pandemia.

Surpreendentemente, um modelo teórico que ilumina a situação atual é aquele apresentado por Leon Trotsky em sua explicação dos atributos distintivos da Revolução Bolchevique de 1917, na História da Revolução Russa (1930/1932). Esse modelo era a sua teoria do desenvolvimento combinado e desigual. Seu argumento era o de que aquilo que tornara a revolução possível havia sido a presença, naquela que era essencialmente uma sociedade russa atrasada, de alguns setores excepcionalmente "modernos" e desenvolvidos. Entre eles, um capitalismo industrial florescente, uma classe trabalhadora organizada e uma intelligentsia avançada, da qual os bolcheviques e outros comunistas, socialistas e anarquistas constituíam um elemento. Mas o que condenou a revolução a extremas dificuldades, e por fim, dadas as escolhas que foram feitas, à distorção e ao fracasso, foi o fato de que esse segmento "moderno" existia no interior de um sistema que consistia, principalmente, em meios de produção agrícola semifeudais (a servidão só havia sido abolida em 1861), um campesinato analfabeto, religiosidade e superstição, e uma forma autocrática e brutal de governo exercida pelo Estado czarista. Quando publicada, ainda em 1930, essa análise foi premonitória no que diz respeito à situação que os revolucionários teriam pela frente e que levou à derrota final do seu projeto de modernização. Justin Rosenberg (2013), professor de relações internacionais da Universidade de Sussex, revisitou recentemente esse modelo teórico - com o nome invertido de desenvolvimento desigual e combinado - para explicar os desenvolvimentos geopolíticos contemporâneos.

Como é que esse modelo teórico de mudança pode ser útil para explicar uma crise tão diferente de uma revolução social como a atual pandemia global? A explicação reside na conjunção dos efeitos de alguns aspectos altamente avançados e outros "incipientes" e atrasados do desenvolvimento social e econômico, que são, cada um deles, relevantes para estes fenômenos bastante diversos entre si: uma revolução e uma pandemia. É bem provável que o vírus tenha tido as suas origens biológicas em mercados de alimentos na China, nos quais o comércio de animais vivos - capturados na natureza e abatidos sem higiene preventiva no local de venda - estava combinado com muitas outras formas de comércio de animais domésticos e outros gêneros alimentícios. Foi possível, nessas condições (do mesmo modo que em epidemias anteriores, como a sars), que um vírus saltasse de uma espécie para outra, talvez tendo animais selvagens, como morcegos, na qualidade de vetores intermediários. Esse é o elemento "pré-moderno" da situação, que provavelmente teve muitos precedentes na mutação de doenças.

Sobreposta a esse contato próximo, nos mercados de alimentos, entre os órgãos e doenças de espécies de animais selvagens e os seus comerciantes humanos - o que descrevemos como uma forma de comércio pré-moder-na -, está a velocidade excepcional de transmissão dessa doença, devida ao rápido fluxo de seres humanos no mundo todo, que se dá no ambiente de comunicação altamente moderno. Isso foi descrito por um sociólogo da globalização como espaço de fluxos, um conceito desenvolvido no interior da elaboração da teoria da globalização por vários estudiosos (por exemplo: Beck, 1999/2000; Castells, 1996, 1997, 1998; Giddens, 1991; Harvey, 1989; Massey, 2002; Urry, 2007) em décadas recentes. Muitos traços que compõem a globalização foram previstos nesse modelo, incluindo o aumento do comércio global, os fluxos vastos e quase instantâneos de capital financeiro e o papel central da tecnologia da informação entre os seus traços gerativos. E, como subprodutos negativos ou "retroalimentações" dela, a emergência de resistências "fundamentalistas" à modernização, os grandes fluxos de refugiados e até o terrorismo global. Verificou-se que outra consequência dessa situação de super e de subdesenvolvimento combinados foi a exposição de toda a população mundial, no espaço de apenas seis meses, a um vírus, o Sars-CoV-2, que os sistemas sociais e de saúde têm sido, até o presente momento, em sua maioria incapazes de suprimir. Antes do vírus causador da covid-19 houve outros, como o hiv, o Sars-Cov e o Ebola, que foram parcamente contidos e com os quais foram aprendidas lições insuficientes. É claro que pragas sempre afligiram a humanidade, como a gripe espanhola, que matou milhões após a Primeira Guerra Mundial. O que é singular nesta é o alcance e a velocidade excepcionais de sua transmissão. Pode-se dizer que é uma sorte o fato de ela não ser ainda mais letal em seus efeitos.

Existem outros aspectos do desenvolvimento desigual que são relevantes para a pandemia além do que mencionei. O impacto exercido por ela está revelando grandes diferenças na vulnerabilidade das populações ao vírus e na capacidade que os sistemas sociais têm de contê-lo. Essas diferenças se dão, em parte, em função da riqueza material relativa, como sempre foi o caso com a incidência de epidemias. Isolar-se ou fugir para um relativo isolamento é muito mais viável para grupos sociais privilegiados - era comum, nas cidades da Europa renascentista, as elites se refugiarem dessa maneira em zonas rurais afastadas - do que para os pobres, em particular para aqueles que vivem em extrema pobreza. Essas diferenças também são uma consequência da qualidade e da quantidade de recursos investidos nos sistemas públicos de saúde (disponibilidade de médicos, leitos hospitalares, unidades de testagem e rastreio, dados confiáveis etc.). Mas os níveis de riqueza material - renda per capita média - não são, de modo algum, a única causa significativa de variação nos danos causados pelo vírus. Parece que as diferenças nas ideologias e estruturas de poder subjacentes aos sistemas sociais também desempenham um papel crítico na definição dos seus efeitos.

É impressionante, por exemplo, que as nações europeias tenham, em sua maioria, atingido resultados muito melhores do que os obtidos pelos Estados Unidos na administração da covid-19. Na Europa Ocidental, no entanto, o Reino Unido (exceto a Escócia, que tem um sistema de saúde público autônomo) teve um desempenho visivelmente pior do que os seus equivalentes europeus, depois de um período em que a Espanha e partes da Itália foram dominadas pelo primeiro impacto do vírus. A China e outras nações do sudeste da Ásia foram substancialmente mais capazes de tomar atitudes para conter seus efeitos do que a maioria das outras áreas do mundo. Um estado como Kerala, no sul da Índia, que já possuía um sistema de saúde pública eficaz - devido ao seu histórico de governos regionais e municipais comunistas -, atingiu resultados melhores do que a maioria das regiões da Índia. Os leitores da revista não precisarão ser lembrados do desastre que está ocorrendo agora no Brasil, onde a negação das responsabilidades de um governo com a saúde pública - aliás, a negação da realidade da própria doença - conjuga-se às desigualdades de condição já de longa data, facilitando a propagação epidêmica da doença.

Parece que as diferenças nos sistemas sociais quanto aos fundamentos e às crenças morais, em particular nos grupos dominantes, são decisivas para determinar a resposta das sociedades ao impacto do vírus. É evidente que em algumas sociedades o valor atribuído ao resguardo de vidas, de todas as vidas, supera todos os outros objetivos, de modo que elas se dispuseram a sacrificar ou adiar outros objetivos a fim de que esse propósito de preservação da vida fosse alcançado em primeiro lugar. Mas em outras sociedades, ou entre as suas elites dominantes, não foi bem esse o caso. Algumas sociedades e seus governos parecem estar dispostos a tolerar a incidência do contágio e a mortalidade pelo vírus - concebido, supostamente, como um fato da natureza - em um grau que outras não estão. Muitas sociedades acreditam que podem eliminar completamente o vírus, pelo menos para todos os fins práticos, ao passo que outras se mostram preparadas para tolerar as taxas de contágio na casa das dezenas de milhares a fim de que a vida econômica prossiga ou seja retomada sem entraves. Outra explicação para essa diferença reside no fato de que algumas sociedades têm disponibilidade e capacidade para compensar os danos econômicos causados aos indivíduos, quando os mercados são refreados, por meio de medidas coletivas de indenização ou da criação de empregos, enquanto outras veem isso como ideologicamente repugnante. Uma diferença decisiva entre esses sistemas normativos parece residir no valor que eles atribuem à liberdade dos indivíduos, seja qual for o custo que o seu exercício possa representar para outros indivíduos, em comparação com o valor que atribuem à saúde e ao bem-estar de todas as pessoas, aos quais eles sustentam que, eventualmente, a liberdade de alguns indivíduos precisa estar subordinada. Tais diferenças nos conceitos fundamentais de solidariedade social também são reveladas em outras áreas da vida social. De que outra forma podemos explicar por que os Estados Unidos toleram uma perda anual tão alta de vidas por meio do uso de armas de fogo em comparação com nações igualmente ricas na Europa ("List of countries by firearm-related death rate", 2020)? A comparação é ainda pior no que diz respeito às mortes causadas pela polícia (Picheta & Pettersson, 2020).

Essas diferenças nas concepções de solidariedade social e moral não são mapeadas de maneira simples em um espectro político de esquerda e direita, embora, com certeza, às vezes coincidam. Algumas nações asiáticas que estão longe de ser socialistas - como Taiwan, Japão e Coreia do Sul - adotaram posições de proteção social em sua resposta ao coronavírus, e é claro que a China, que é governada por um partido comunista, tem uma economia substancialmente capitalista. No entanto, tais práticas dependem da vontade de subordinar as economias de mercado a um interesse público determinado pelo governo.

Muitos tipos específicos de fratura social emergiram nessas sociedades que se mostraram carentes de compromisso com a proteção e o bem-estar universais em resposta ao vírus. É surpreendente que os ônus especificamente pesados que foram infligidos a alguns setores da população não tenham sido previstos. No Reino Unido, duas subpopulações específicas revelaram-se especialmente vulneráveis ao vírus: a população idosa e enferma de casas de repouso, onde a incidência de contágio e morte foi muito alta - algumas estimativas dizem que foram 20 mil das 45 mil mortes no início de julho; e as populações de minorias étnicas e negras, que também foram afetadas em números desproporcionais. É preciso recorrer a explicações em termos de processos inconscientes de negação (de realidades sociais e necessidades das pessoas) e de projeção (de vulnerabilidades e atribuições de valor) para interpretar adequadamente esses fenômenos, que foram profundamente discriminatórios em seus efeitos. Como é que o Serviço Nacional de Saúde (NHS) da Grã-Bretanha poderia despachar pacientes idosos de hospitais para lares residenciais (a fim de liberar camas para pacientes com coronavírus) sem primeiro testá-los e sem garantir que as casas de repouso estivessem protegidas contra o contágio? Mas isso foi feito, e outros serviços públicos de saúde (por exemplo, na Suécia) também o fizeram. Essas decisões certamente surgiram de uma crença implícita de que pessoas idosas têm um valor menor do que quem é jovem ou está na meia-idade. A diferença na valorização dos seres humanos tem sido institucionalizada há tempos na separação, na Inglaterra e no País de Gales, entre o sistema de "assistência social" para idosos e enfermos e o NHS, em termos de financiamento e organização. A saúde é um serviço público universal e relativamente bem financiado; a "assistência social", não.

O fato de o vírus ter impactado de maneira tão diferente e pior os membros de comunidades negras e minorias étnicas (BAME)1 foi outra fonte de surpresa inicial, principalmente porque se percebeu que isso era mais evidente entre os funcionários do NHS que estavam trabalhando com pacientes com coronavirus. O trabalho heroico da equipe do Serviço Nacional de Saúde durante a crise foi bastante retratado, dando origem a um rito semanal de aplausos públicos para eles nas ruas britânicas. Nesses relatos ficou evidente o quão desproporcional foi o número de médico(a)s, enfermeiro(a)s e profissionais da saúde pertencentes a minorias étnicas que adoeceram ou vieram a falecer. "Por que será?" foi algo que se questionou, e consultas públicas foram realizadas para descobrir o motivo. Essa situação cruzou-se com questões de violência policial contra negros que se tornaram notícia mundial, após o assassinato de George Floyd, em 25 de maio, em Minneapolis. Portanto, o impacto da pandemia nas minorias étnicas vinculou-se à campanha mais ampla do Black Lives Matter [Vidas Negras Importam], dando origem a uma avivada e intensa conscientização da discriminação e da desigualdade étnica (racismo institucional é uma de suas descrições) na Grã-Bretanha e, é claro, também nos eua. Mais crimes racializados ocorreram no Reino Unido à medida que essa crise se desenvolvia. Provavelmente motivado pela raça, o assassinato de duas irmãs britânicas, filhas de mãe nigeriana, em um parque londrino perto de onde moro, foi seguido pela circulação nas redes sociais de fotografias (selfies) com as duas mulheres assassinadas, tiradas por dois membros da polícia metropolitana para deleite próprio, ao que parece. Esse acontecimento foi profundamente chocante até mesmo para as autoridades policiais, sendo quase tão ofensivo quanto uma agressão física.

Ficou evidente, nos eua, na Grã-Bretanha e em outros países, que existem grupos racistas brancos que agora se organizaram em reação aos movimentos por justiça étnica e reparação. Manifestações e campanhas contra a injustiça racial estão sendo agora frequentemente enfrentadas com con-tramanifestações, dando origem a importantes questões de ordem pública. O populismo nacionalista conservador de Trump, nos Estados Unidos, e de Bolsonaro, no Brasil, tem esse tipo de militância violenta embutida em suas bases de apoio. O governo de Boris Johnson, na Grã-Bretanha, restringe-se à punição dos vigorosos protestos de grupos étnicos minoritários e seus aliados (por exemplo, a derrubada de estátuas de ex-proprietários de escravos, como no porto de Bristol) enquanto ameaças à ordem pública, ao passo que reconhece a ofensividade contra as comunidades minoritárias, em particular, dessas celebrações da escravidão. Mas diferentes formas de agitação pública estão se unindo e se sobrepondo umas às outras - por exemplo, a antipatia ao racismo, à polícia como seu reconhecido instrumento e aos toques de recolher virtuais do confinamento devido à covid-19 -, dando origem a encontros turbulentos, e às vezes violentos, nas ruas e até mesmo em algumas praias.

Um segundo conceito teórico importante da tradição marxista que é útil para compreender essa situação global é o de conjuntura, de Antonio Gramsci, e seu desenvolvimento moderno por Stuart Hall (Hall et al., 1978/2013) e outros escritores contemporâneos (Hall & Massey, 2010). A ideia de conjuntura denota aquelas circunstâncias historicamente específicas nas quais diferentes contradições e contendas no interior de uma ordem social tornam-se inesperadamente justapostas ou sobrepostas umas às outras, às vezes dando origem a situações de grande incerteza e imprevisibilidade. Em situações como essas, as guerras de posição, que Gramsci caracterizou como o estado normal relativamente estático das relações entre os blocos sociais conflitantes, podem criar condições para mudanças mais repentinas por meio de guerras de movimento, a partir das quais é possível ter como resultado rápidas mudanças na distribuição de poder. Isso pode acontecer por meio da mobilização de grandes movimentos de protesto e da "junção" - através do que Laclau & Mouffe (1985) descreveram como a construção discursiva de equivalencias simbólicas entre campos de significação - de diferentes níveis e entidades de ação social. O momento de protesto radical de 1968 vem sendo frequentemente reconhecido como uma conjuntura desse tipo, embora ali as esperanças políticas da esquerda tenham sido derrotadas. Os seus resultados culturais, no entanto, tiveram uma história diferente e mais bem-sucedida.

A pandemia atual equivale a uma conjuntura na maneira como revela e justapõe, simultaneamente, variedades de conflito - por exemplo, as divisões e desigualdades reveladas pela crise, bem como os modos contrastantes de administrá-la, ou não administrá-la, de forma eficaz. Desse ponto de vista, comparem a resposta da China ou da Alemanha à pandemia com a resposta do Brasil ou dos eua. Existem outras dimensões cruciais da crise que precisam ser acrescentadas às que já foram mencionadas. A mais importante delas é a crise econômica em que a pandemia está mergulhando o mundo inteiro, que será pelo menos tão profunda quanto a da Grande Depressão da década de 1930 e a crise financeira de 2007-2008. Essa crise levantará a questão, para os governos, de como é que os seus efeitos econômicos e sociais devem ser respondidos.

Precisamos lembrar, nesse contexto, que os precedentes estão longe de ser encorajadores. A crise da década de 1930 não foi resolvida até várias nações entrarem em colapso no fascismo e, depois, uma guerra mundial excepcionalmente destrutiva colocar um fim nesses regimes fascistas. Foi a guerra, e os preparativos para ela, e não o New Deal de Roosevelt - esse último, exemplar -, que pôs fim à Grande Depressão. E muito embora, após 2007-2008, algumas medidas de estabilidade econômica tenham sido restabelecidas, em boa parte graças à resiliência da economia chinesa, e alguns passos moderadamente positivos tenham sido dados pelo governo Obama nos eua, alcançou-se pouco mais que uma estabilização parcial. Em vez do ajuste econômico inclusivo e redistributivo das economias capitalistas que era necessário para evitar futuras crises - e que, na época, eu acreditava erroneamente que os governos instituiriam no interesse de seus sistemas -, houve uma reversão para a economia da austeridade, com um período de contração e estagnação que viu o crescimento do populismo radical de direita em muitas nações, principalmente nos eua, no Reino Unido e no Brasil (creio que foi a regressão da economia global que acabou tornando insustentável a situação do governo de centro-esquerda brasileiro que sucedeu o governo Lula). Outro fator crucial em tudo isso é a dificuldade que os países "brancos" anteriormente dominantes e as suas elites estão tendo em se ajustar ao seu relativo declínio diante da ascensão da China e de outras nações emergentes. Esse declínio - que envolve um desafio à "supremacia branca", demonstrações de impotência em guerras e intervenções fracassadas (Afeganistão, Líbia, Síria etc.) e incapacidade de melhorar os padrões de vida, mesmo de sua própria população majoritária - está sendo traumático. Essa situação dá origem àquilo que os psicanalistas podem chamar de negações maníacas da realidade, e de rejeição da racionalidade e da própria verdade, na política dos Estados Unidos e de nações moldadas por estruturas de sentimento2 semelhantes. Esses repetidos esperneamentos do governo dos Estados Unidos (a saída de acordos globais que antigamente serviam para garantir sua hegemonia, a interrupção do comércio e de relações econômicas regulares através do uso quase indiscriminado de sanções, as declarações selvagens e incontinentes do presidente) não são a demonstração de autonomia e força que pretendem ser, mas sim respostas selvagens aos traumas do declínio e do fracasso. Poderíamos acrescentar a esse quadro um problema que se apresenta ao mundo e que é ainda mais profundo e grave que a pandemia, o das mudanças climáticas. Nesse contexto, seria imprudente estar indevidamente esperançoso quanto às perspectivas de solução benigna para os problemas trazidos pela pandemia. No entanto, há alguns elementos mais positivos para serem vistos na situação, em que ainda existe capacidade de ação racional e construtiva. Pode-se notar, por exemplo, que alguns anos atrás os problemas do aquecimento global e das mudanças climáticas eram pouco reconhecidos, ao passo que agora pelo menos está ocorrendo alguma ação substancial para evitar suas consequências.

 

Aspectos psicológicos da crise

Até agora, neste artigo, discuti principalmente os aspectos da crise atual cuja explicação está no domínio das estruturas e dos processos sociais, e não nas esferas que podem ser de interesse específico dos psicanalistas. A razão para isso é a minha convicção de que as principais explicações desta crise devem ser buscadas na dinâmica das sociedades, e não prioritariamente na disposição psicológica dos agentes individuais. Os medos, as ansiedades e as atuações individuais de sujeitos em situações como a atual, embora inteiramente reais, são amplamente moldados pelo ambiente social em que são constituídos. São as diferenças entre as sociedades que causam e explicam mais completamente o que acontece com os indivíduos dentro delas, em vez de ser o caso de as diferenças entre os indivíduos causarem e explicarem mais completamente o que acontece com as sociedades. As disposições e a personalidade de figuras como Trump, Bolsonaro e Johnson têm, obviamente, consequências significativas para as suas sociedades - e para todos nós. Não obstante, os seus atributos e tipos de ação característicos são mais bem compreendidos como efeitos de seu meio social do que como causa. Freud - e outros, como Adorno (1951/1978), que desenvolveu uma análise do fascismo - via os líderes como produzidos pelas necessidades sociopsicológicas e pela transferência coletiva dos seus sectários, e não como a causa principal do comportamento destes.

Entretanto, deve-se perguntar o que uma perspectiva psicanalítica acrescenta à nossa compreensão de uma crise e de uma conjuntura como as atuais? Acaso existe uma concepção dos processos mentais inconscientes -enquanto estados coletivos da mente - que traga luz e precise ser incorporada à estrutura de uma análise sociopolítica? Eis aí o problema mais amplo de como alguém pode promover uma integração teórica de entendimentos psicanalíticos e sociológicos, tópico que discuti em outra ocasião (Rustin, 2016).

Acredito que o conceito psicanalítico mais valioso na compreensão da crise atual é a ideia bioniana de contenção (Bion, 1970/1975) e o que advém da sua presença ou da sua ausência, da sua força ou da sua fraqueza. O que a crise atual, com as suas dimensões que se sobrepõem e se cruzam, está provocando é o colapso de muitas estruturas contidas, bem como dos hábitos da mente e das capacidades que delas dependem. Na visão psicanalítica, aquilo que é contido por estruturas continentes são as ansiedades, tanto as reconhecidas quanto as não reconhecidas, tanto as conscientes quanto as inconscientes - que não são exatamente a mesma coisa. O que muito frequentemente surge quando falta contenção são defesas extremas contra a ansiedade, como a clivagem e a negação; a projeção, nos outros, de ameaças temidas e de males; e uma reversão para os estados da mente paranoico-esquizoide e narcísico. Melanie Klein e Wilfred Bion acreditavam, ambos, que a capacidade de reflexão e de pensamento, bem como a de comportar na mente a consciência das disposições tanto para amar quanto para odiar, tinha as suas condições prévias no desenvolvimento emocional e mental das pessoas. Klein pensava isso como a conquista de capacidades depressivas ou da posição depressiva (Rustin & Rustin, 2017; Segal, 1973/1988). Bion, por sua vez, pensava isso como a presença de uma relação segura entre continente e conteúdo. Tais experiências de contenção ocorrem, em primeira instância, nos meses e anos iniciais de vida, no contexto do núcleo familiar. Isto é, em um relacionamento entre bebê e mãe, mas também entre mãe e pai, pai e bebê, e entre membros de um grupo familiar maior, incluindo irmãos. Essa é a localização primária, ou a incubadora, da capacidade de estabelecer e manter relacionamentos, que, uma vez estabelecidos, geralmente se estendem, além da esfera da família, para um ambiente mais amplo de comunidades e locais de trabalho. E também para o estabelecimento de relações que têm tanto uma dimensão interna quanto uma dimensão externa, com outros tipos de objeto, que podem ter significados simbólicos e emocionais - como ofícios, lugares, formas de arte ou de ciência, bens culturais ou sociais. As primeiras experiências de contenção são os microcenários no interior dos quais as capacidades para a vida em sociedade são desenvolvidas e possibilitadas.

Microconfigurações como essas dependem, para a sua existência, de contextos ambientais mais amplos de segurança e bem-estar. Em sociedades que funcionam bem, muitas vezes elas podem ser dadas como certas, em maior ou menor grau, como contextos suficientemente bons para as vidas serem vividas e para o desenvolvimento pessoal ocorrer, e até mesmo para embarcar em aventuras pelo desconhecido. O que acontece quando múltiplas crises graves como as do presente ocorrem é que contextos adjacentes como esses, ou condições de existência como essas, tornam-se profundamente ameaçados e perturbados. Em relação à covid-19, vemos a confiança nos outros - e também nos governos - sendo carcomida à medida que os perigos e os riscos para os indivíduos e as famílias vão aumentando. Agora estamos vendo muitos governos preocupados com o fato de que as reservas de confiança pública e a aquiescência das quais os meios práticos de contenção dessa doença dependem (por exemplo: quarentenas, uso de máscaras, distanciamento social, vacinação, precaução em espaços públicos) sejam carcomidas se as pessoas perderem a confiança na capacidade e nas ações governamentais. Essa quebra de confiança já está ocorrendo em muitos lugares, e por razões compreensíveis.

Outro nível de perturbação acontece quando determinados grupos sociais (por exemplo, pessoas de cor) passam a acreditar que a sociedade em que vivem - e, especialmente, mantendo o poder no interior dela - os negligencia, os maltrata e até mesmo os brutaliza. Ansiedades adicionais surgem quando a segurança material básica fica em perigo (por exemplo, por meio da recessão econômica e do desemprego). Outros tipos de ameaça são experimentados no nível da identidade cultural, quando se sente que o valor simbólico de toda a comunidade imaginada (Anderson, 1991) de um grupo é colocado em risco (por exemplo, quando se é menosprezado pelos outros ou quando há uma perceptível tomada de poder e de privilégios pelos concorrentes). O livro de Arlie Hochschild Strangers in their own land [Estranhos em sua própria terra] (2016) mostrou as origens do ressentimento dos eleitores republicanos no sul dos Estados Unidos, ao sentirem que haviam sido excluídos das oportunidades do sonho americano com a oferta de privilégios a grupos rivais na sociedade - que, na cabeça deles, localizam-se principalmente nas cidades do norte. Fintan O'Toole (2018) descreveu o núcleo emocional da campanha do Brexit, na Inglaterra, como uma combinação de onipotência triunfalista, vi-timização masoquista e autocomiseração. O ressentimento contra os outros, vistos como estando em ascensão, e a construção de animosidade em relação a esses grupos são um dos principais recursos de nacionalistas e populistas como Trump para sustentar, muitas vezes por meios demagógicos, as suas bases de apoio político.

A crise do desenvolvimento combinado e desigual que caracterizei revelou e intensificou muitos tipos de desigualdade estrutural no interior das nações e entre elas. Essa crise está gerando demandas compreensíveis e, de fato, justificáveis de reparação. Há quem, nessa situação, se veja assumindo posições altamente radicais, e até mesmo utópicas, ao afirmar o que deve ser feito agora. Há quem acredite que o sistema social inteiro deva ser desmantelado e iniciado de novo, por mais difícil que seja dar um significado viável para essa ideia. O que sabemos, no entanto, é que as demandas feitas à sociedade por aqueles que não têm reconhecimento e poder são suscetíveis de provocar demandas e reações contrárias de quem atualmente os possui. Redistribuições e regulações de poder e privilégios para atender reivindicações substancialmente opostas e concorrentes são em geral difíceis de alcançar. Os conflitos decorrentes de lutas como essas podem dar origem ao risco da violência organizada e do colapso social, como bem vimos no passado. Estratégias para a reforma e a reparação de desigualdades e injustiças precisam, a meu ver, levar em conta a probabilidade de contrarreações como essas e encontrar maneiras de limitar a sua gravidade e a sua destrutividade.

Estou inclinado a crer que, na atual crise, a restauração de uma medida de governo continente - que possa começar a enfrentar e resolver problemas imediatamente críticos, como aqueles causados pelo coronavirus e pelo aquecimento global - é um pré-requisito para promover as muitas mudanças fundamentais que a condição geral de desenvolvimento combinado e desigual torna desejável e necessária.

No entanto, deve-se notar que uma preocupação com os estados de contenção não é a única preocupação psicanalítica com a condição social que alguém pode ter. Em uma astuta observação a respeito dos escritos de Freud, o sociólogo Zygmunt Bauman (2009) ressaltou que as principais ansiedades que preocupam uma sociedade estão sujeitas a mudanças, mesmo entre épocas sociais. A principal preocupação de Freud, escreveu Bauman, era com a excessiva repressão dos desejos e com as restrições impostas, no tempo dele, ao pensamento e à ação, especialmente na esfera sexual. Isso foi anterior aos efeitos libertadores de seu próprio ensino nesse clima cultural.3 A repressão excessiva também era uma preocupação de Melanie Klein, como bem vemos no enfoque dado por ela aos efeitos destrutivos que um superego perseguidor causa na personalidade. Mas, nos tempos modernos, na visão de Bauman, o pêndulo oscilou para a direção oposta, de modo que agora surge uma ansiedade social dominante em relação àquilo que se acredita ser liberdades excessivas de expressão e atuação sexuais.

Assim, vemos grandes ansiedades com relação à segurança sexual das crianças, talvez justificadas - nesta era de pornografia digital, com uma cultura sexual abusiva por ela promovida -, e, mais tarde na vida, ansiedades intensificadas com relação à natureza das iniciativas sexuais, dado o enfraquecimento das inibições precoces e das propriedades sociais. Quando é que elas devem ser experimentadas como agressivas ou abusivas, e quando é que devem ser reconhecidas como aberturas e aproximações sem as quais os relacionamentos sexuais dificilmente poderiam acontecer? (É claro que elas podem ser tanto uma coisa quanto a outra.) Em uma esfera mais ampla, o escopo adicional de expressão e comunicação possibilitado pela expansão das redes sociais parece justificar ansiedades com base na difusão das agressões verbais quase indiscriminadas através de "trollagens", das quais a "tweetagem" incessante - e, muitas vezes, abusiva - do presidente Trump é um exemplo notório. Na Grã-Bretanha, neste momento, estão ocorrendo intensos conflitos a respeito de quem tem o direito de definir as identidades sexuais, em particular aquelas caracterizadas como trans e que envolvem decisões de alteração da identidade sexual designada no nascimento. Pode-se acreditar que, no momento, alguns movimentos na direção de regular tais tipos irrestritos de rede social sejam desejáveis, e até mesmo urgentes. É nesse clima cultural que acredito que um enfoque psicana-lítico na extremidade continente do espectro entre liberdade e controle tenha relevância. As épocas diferem, e o que é psicanaliticamente indicado como desejável e apropriado para tempos como este também pode diferir.

Algumas pessoas com poder, como as da gestão Trump, estão tentando interromper os processos de globalização e seus instrumentos e, assim, conservar as vantagens que acreditam já possuir. A minha opinião é que a solução para esses problemas não reside em deter os processos de globalização, mas sim em torná-los universais e abrangentes em sua extensão, visando a uma forma de desenvolvimento combinado e uniforme, em vez de desigual - em outro trabalho, concebi isso como uma modernização progressiva (Rustin, 2019).

Isso significa imaginar uma ordem mundial na qual, por exemplo:

• os objetivos de uma boa saúde pública e os meios para garantir isso tornam-se universais;

• a detenção do aquecimento global torna-se uma tarefa humana comum;

• os problemas do fluxo incontrolável de refugiados de países empobrecidos e devastados pela guerra são tratados não construindo barreiras e "belos muros", mas permitindo que as questões da pobreza e da desordem sejam enfrentadas nas regiões de onde os refugiados vêm;

• metas de desenvolvimento econômico são estabelecidas para o mundo inteiro, e não apenas para nações individuais.

É claro que apenas governos competentes e bem alicerçados, trabalhando em conjunto, poderiam, em cooperação com outros agentes sociais, econômicos e culturais, promover um processo tão benigno. Pode parecer uma perspectiva impossível, embora não necessariamente, quando se vê o que a Europa realizou nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial, ou o que os chineses vêm fazendo com relação à pobreza e aos padrões de vida dentro das suas fronteiras nacionais.

É claro que esses objetivos não estão muito longe daqueles que foram aventados por várias agências internacionais e por teóricos visionários do desenvolvimento e do florescimento humano - como Martha Nussbaum e Amartya Sen (1993) -, e que foram incorporados no índice de desenvolvimento humano e nos relatórios anuais das Nações Unidas.

E, afinal, existem outras alternativas para a catástrofe global?

 

Referências

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Correspondência:
Michael Rustin
m.j.rustin@uel.ac.uk

Recebido em 27/7/2020
Aceito em 5/8/2020

 

 

1 NT: sigla utilizada no Reino Unido para agregar negros, asiáticos e minorias étnicas.
2 O termo é de Raymond Williams (1977) e refere-se às mentalidades coletivas que são geradas em diferentes configurações de relação entre classes sociais.
3 Ernest Gellner, que antes (1985) havia sido um crítico severo de Freud, escreveu em um segundo momento (1995) a respeito da grande dívida que a sociedade tinha com Freud, pelo efeito que os seus escritos tiveram na diminuição da repressão social e por ter, assim, possibilitado experiências mais amplas de prazer e gozo.

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