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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo abr,/./jun. 2020

 

PANDEMIA

 

O potencial traumático da pandemia de covid-19

 

The trauma potential from covid-19 pandemic

 

El potencial traumático de la pandemia de covid-19

 

Le potentiel traumatique de la pandémie du covid-19

 

 

Elias M. da Rocha BarrosI; Alberto M. da Rocha Barros NetoII; Elizabeth L. da Rocha BarrosIII

IMembro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
IIMembro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)
IIIMembro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

Os autores discutem o potencial traumático desta pandemia, indicando que nem todos os afetados por ela se traumatizarão. A seguir comentam como a experiência da pandemia poderá assumir várias formas simbólicas de acordo com o nível de ansiedade e medo que provocar em cada indivíduo, que será capaz ou não de mobilizar sua capacidade de representação simbólica para integrar em seu psiquismo a experiência dos diversos medos estimulados. São dados exemplos clínicos de algumas dessas expressões simbólicas.

Palavras-chave: pandemia, trauma, processo traumático, forma, simbolismo, transmutação de forma simbólica


ABSTRACT

The authors discuss the traumatic potential of this pandemic, showing that not everyone affected by it will be traumatized. After that, they comment on how the experience of the pandemic can take different symbolic forms according to the level of anxiety and fear that it may bring to each individual who will be able or not to mobilize their capacity for symbolic representation to integrate the experience of the different fears brought to their psyche. Three clinical examples of some of these symbolic expressions are given.

Key words: pandemic, trauma, traumatic process, form, symbolism, symbolic form transition


RESUMEN

Los autores discuten el potencial traumático de esta pandemia, indicando que no todos los afectados por ella quedarán traumatizados. Hacen referencia a cómo la experiencia de la pandemia puede asumir diferentes formas simbólicas según el nivel de ansiedad y miedo que puede causar en cada individuo y que podrá o no movilizar su capacidad de representación simbólica para integrar la experiencia de lo diferente en su psique. Se dan ejemplos clínicos de algunas de esas expresiones simbólicas.

Palabras clave: pandemia, trauma, proceso traumático, forma, simbolismo, transmutación de forma simbólica


RÉSUMÉ

Les auteurs discutent du potentiel traumatique de cette pandémie, ce qui indique que ni tous ceux qui sont atteints ne resteront traumatisés. Ensuite ils commentent comment la pandémie pourra assumer plusieurs formes symboliques selon le niveau d'anxiété et de peur qu'elle provoque chez chaque individu, lequel sera capable, ou non, de mobiliser sa capacité de représentation symbolique pour intégrer dans son psychisme l'expérience des craintes stimulées. On donne des exemples cliniques de quelques-unes de ces expressions symboliques.

Mots-clés : pandémie, trauma, processus traumatique, forme, symbolisme, transmutation de forme symbolique


 

 

Em 1984, o explorador brasileiro Amyr Klink aventurou-se na travessia a remo do Atlântico Sul, da Namíbia à Bahia. Foram 100 dias entre céu e mar, como relatou em seu célebre livro sobre a empreitada (Klink, 1985/2005). Hoje em dia, o minúsculo e apertado barco que o navegador utilizou na ocasião está descansando no quintal da casa dele em Paraty. Em meio a esta centena de dias de quarentena por conta da pandemia de covid-19, Klink resolveu testar como seria passar uma noite no barco. Quem conta o que sucedeu é o jornalista e escritor Michel Laub, num instigante artigo para o jornal Valor Econômico:

"Quase fiquei louco lá dentro", diz Amyr, que desceu do barco em menos de seis horas. Não por claustrofobia ou solidão, problemas que ele evidentemente não tem, e sim pela angústia de estar "parado", conceito familiar a todos os que atravessamos estes também cem dias em que o mundo deixou de ter novidades -ou, pior, nos sufoca com um excesso de notícias trágicas cujo conjunto causa um efeito de anestesia, ou então uma ansiedade tão difusa que não encontramos chão para enfrentá-la. (2020, p. 30)

O que aconteceu em termos psicanalíticos? Como é que o velho e conhecido barco de repente se tornou um ambiente tão insuportável? A única coisa que podemos fazer aqui é especular, é claro. Mas como seria uma descrição psicanalítica dos possíveis processos em jogo? Podemos aventurar a hipótese de que ocorreu uma transposição simbólica entre os 100 dias em 1984 e os 100 dias em 2020. Permitam-nos descrever mais detalhadamente nossa suposição.

Na aventura da década de 1980, o espaço claustrofóbico do barco era transfigurado pela vitalidade da arriscada peripécia. Escreve Laub:

Na travessia de 1984 ... os eventos que se sucederam - tempestades, perrengues com equipamentos, sprays de baleia, arco-íris de lua - apontavam para um sentido narrativo no tempo e no espaço. . "Eu sentia que estava construindo uma obra, indo para algum lugar, e essa sensação é muito gratificante" [diz Amyr Klink]. (2020, p. 30)

Assim, o espaço enxuto e com potencial ansiogênico do minúsculo barco era interpretado simbolicamente pela mente de Klink como signo de vitalidade, movimento e criatividade (obra em construção). Poderíamos imaginar que o psiquismo de Klink apagava os estreitos e claustrofóbicos contornos da embarcação, ressignificando-os como, quem sabe, uma segunda pele do navegante. Amyr estava em sintonia com aquele minúsculo receptáculo. As paredes do barco estavam lá como uma armadura amistosa para protegê-lo.

Já em 2020, a base simbólica de apreensão do mesmo espaço é inteiramente outra. Agora a angústia da pandemia contamina por inteiro aquilo que é provavelmente uma querida relíquia de uma grande aventura. O barco deixa de ser uma lembrança calorosa para se tornar a representação plástica do enclausuramento imposto pela covid-19. O que era uma armadura protetora converte-se em túmulo vivo. As dimensões da embarcação perdem todo o seu colorido vivaz e se acinzentam com os ecos de paralisia e confinamento que nos rondam nesta pandemia.

É curioso notar como dois outros elementos são reinterpretados quando ocorre deslocamento de uma base simbólica estruturada em torno de vitalidade-criatividade para uma base simbólica estruturada em torno de paralisia-mortificação. Em primeiro lugar, há a questão dos contratempos e perrengues. Em 1984, Amyr Klink enfrentou tubarões, tormentas, correntes marítimas e outras situações de risco. Porém essas eram vivenciadas como desafios a serem superados. Klink devia saber que estava correndo perigos muito reais, mas talvez houvesse algo de mentalmente digerível neles. As ameaças da pandemia, por seu turno, são experimentadas como acachapantes e indigestas. As paredes do barco não são fortes o suficiente para impedir a infiltração da toxicidade da atmosfera imposta pela covid-19, e Amyr quase enlouquece lá dentro.

Em segundo lugar, há a questão da solidão. Durante os 100 dias de 1984, não havia trégua - é bastante difícil encontrar alguém com quem conversar no meio do Atlântico Sul! Mas podemos supor que Klink iniciara um diálogo interno, aguçando os sentidos de observação e tomando as notas que culminariam no livro Cem dias entre céu e mar, caracterizado estilisticamente por um tom amigável e íntimo. Em meio à travessia, ele já estaria em diálogo com seu futuro leitor, que lhe fazia uma espécie de companhia.

Já o retrato dos 100 dias em 2020 é bem diferente. Supomos que Klink se encontre quarentenado com sua família, num contexto em que picos de solidão podem ser desfeitos com alguma facilidade, ao menos em sua superficialidade material (o suporte da família está à mão, amigos estão disponíveis pelo celular ou pela internet). Quem sabe se Amyr Klink não foi invadido por uma insidiosa e serpenteante solidão naquelas seis horas de tentativa de retorno ao barco? Uma solidão tingida pela tinta da melancolia (como diz Machado de Assis), muito à espreita nesta quarentena? A verdadeira e factual solidão da navegação, por mais difícil que fosse, foi sustentável para a mente de Amyr Klink, tanto é que ele atravessou os 100 dias sem enlouquecer. Mas a "falsa" ou fantasmagórica solidão da quarentena - resolvível quase instantaneamente mediante um chamado a seus entes queridos - assumiu uma concretude simbólica horripilante; por pouco ele não enlouqueceu em apenas seis horas.

Essas são puras e precárias especulações, é claro. Seria inaceitável tomá-las ao pé da letra, como se estivéssemos de fato analisando Amyr Klink numa psicanálise selvagem. São reflexões tecidas a partir da ótima crônica de Michel Laub. Mas acreditamos que essas observações sobre o nosso Amyr Klink ficcional podem ser ilustrativas dos tipos de processo inconsciente presentes na experiência de um mundo regido pelo vírus Sars-CoV-2.

Do ponto de vista sociológico, uma pandemia com as dimensões da atual é um dos acontecimentos traumáticos coletivos que são catalizadores de profundas mudanças na humanidade, ao lado das guerras, das revoluções, das grandes recessões econômicas e das graves crises ambientais (em que há um esgotamento de recursos naturais, por exemplo). Nessas situações, perdemos o que Kaës (2013) chamou de garantidores metapsíquicos usuais, a saber, as estruturas emocionais de enquadramento inconscientes, histórica e culturalmente determinadas, que regulam os processos da vida social.

Na perspectiva social, o trauma é fruto de uma vivência catastrófica coletiva, que desorganiza os sistemas de significação base da identidade cultural dos indivíduos. Em tempos de catástrofe, a vida quotidiana e a dignidade dos homens são ameaçadas em proporções nunca pensadas. No trauma social, o nunca antes pensado torna-se efetivamente impensável coletivamente, produzindo "o 'sem forma' que se espalha pela mente, criando ... distúrbios" (Nosek, 2017, p. 47).

No fragmento citado, Nosek se refere aos traumas e distúrbios na mente individual que seriam atuados posteriormente nas relações transferenciais, mas sua afirmação se ajusta também à representação dos processos sociais que se expressam por meio de comportamentos sociais incoerentes e confusos. Em casos extremos, produz-se anomia.

Em consequência dessa desorganização de sentido, os indivíduos são ameaçados de perda de identidade, fruto de uma desintegração do ego que, por sua vez, gera um sentimento de solidão.

Com a pandemia, o traumático social se impôs para a díade analista-analisando e a confrontou com a vivência de um evento absolutamente desconhecido, cujas consequências estão sendo forjadas para os anos vindouros.

É necessário enfatizar a diferença entre um trauma sociocultural e aquele de caráter individual. A palavra trauma é em si fugidia, pois se aplica tanto à injúria propriamente dita quanto a suas consequências, englobando suas manifestações agudas e as de longo prazo. Este artigo focará o trauma como processo, e não como evento único traumatizante.

Um trauma é comparável a um tumor que se alastra pelo aparelho psíquico, que destrói vínculos e tende a criar novos elos malignos entre sentimentos disformes, equivalentes às metástases, pelas diversas camadas da mente. Talvez tenhamos observado algo nessa linha com relação a nosso Amyr Klink.

O tumor - no caso, o trauma causado pela pandemia, com sua força desorganizadora - também se alastra pela tessitura sociocultural, criando associações malignas que dificultam a compreensão do que acontece, interferindo em todas as relações sociais, sejam familiares ou institucionais. Na falta de uma representação assimilável, e diante da destruição dos mecanismos de compreensão, o evento catastrófico torna-se presa fácil das ideologias.

Na medida em que não temos uma representação mental clara da pandemia, de sua causa, transmissão e tratamento, ficamos sujeitos a crenças irracionais, que respondem mais à ideologia do que à ciência.

Partindo da ideia de que a pandemia de fato produziu um trauma sociocultural, este artigo vai abordar principalmente os aspectos indutores de processos traumáticos individuais.

Uma situação, por mais catastrófica que seja, não será necessariamente traumática para todos os indivíduos no mesmo grau e da mesma maneira. Assim, coloca-se desde o início a necessidade de estarmos muito atentos à especificidade com que cada um de nossos pacientes está reagindo a este momento. Todos os pacientes foram afetados pelos acontecimentos, mas não traumatizados pela pandemia. Uma parte desses pacientes que não foram traumatizados poderá sê-lo mais adiante por suas consequências.

Parece-nos haver uma concordância em afirmar que a emoção mais imediata no momento é o medo, e talvez até seja a mais saudável, já que o medo pode nos propiciar um contato maior com a real natureza da realidade que nos ameaça. Contudo, o medo não pode se transformar numa visão de mundo e num convite para renunciarmos a nossa liberdade mental. O medo nos põe em contato com nossa extrema vulnerabilidade, fragilidade, finitude, e necessita ser metabolizado em suas diversas manifestações para ser mais bem integrado em nosso ego.

A vivência desses sentimentos fragilizadores convoca, no mundo interno dos pacientes, o que costumamos chamar de assembleia interna geral de todos os medos. E, diante da convocação deles, quando todos os terrores comparecem juntos com sua agenda individual, o paciente pode se paralisar, se congelar em sua capacidade de sentir, pensar e representar. É aquilo que gera a perda do metabolismo perpétuo de autoconstrução (Viñar, 2004).

Nesse processo permanente de autoconstrução via atribuição de significado às experiências emocionais, sentindo medo em face da ameaça de sofrimento e morte, de perda de entes queridos, o indivíduo vive essas emoções como algo indigesto, atemporal, não metabolizável.

Metabolizar, nesse caso, é elaborar (equivalente a digerir mentalmente) e filtrar os significados que contribuirão para o crescimento e serão integrados de forma articulada à vida mental como estruturas estruturantes dialéticas essenciais para a geração de pensamento reflexivo. Ao mesmo tempo que esse processo atua sobre o significado dos afetos, ele atribui valências móveis aos sentimentos e emoções. Esses sentimentos se confrontam todo o tempo com obstáculos dinâmicos no que tange a sentir, lembrar, compreender e até perceber. O processo de construção e reconstrução da experiência vivida é contínuo e engloba diversas dimensões, como passado e presente, intensidades, significados que variam conforme o contexto etc.

O medo pode se associar a outros terrores paranoides, de modo que o paciente, no caso, passa a temer por sua integridade mental e por sua unidade egoica. E começa a se sentir muito só, consumido por uma solidão avassaladora.

Os indivíduos mais sadios psiquicamente vivem a ameaça, às vezes de modo intenso, mas não se traumatizam; ficam apenas com medo, muito medo, mas se organizam emocionalmente para enfrentá-lo. Traumas podem ser desencadeados por eventos isolados em meio aos muitos possíveis durante uma pandemia, mas o centro de nossa reflexão psicanalítica se concentra no espaço de transição existente entre as causas geradoras do trauma como injúria e suas consequências.

É importante investigar como o trauma se mantém operando como uma estrutura viva que interfere na capacidade de elaboração do dano ou da dor psíquica. Temos visto pacientes cujo processo traumático foi desencadeado pelo sentimento de proximidade da morte, pelo medo da perda súbita de um ente querido e/ou de status econômico, ou ainda pela ameaça de sofrimentos físicos indizíveis, como a fantasia de morte por sufocação quando sozinhos.

Dominique Scarfone (2017) descreve acuradamente esse processo. Ele acredita que o processo traumático funciona como um rasgo no tecido mental que interfere na continuidade (e, portanto, na contextualização e historicidade) da tessitura psíquica. Mas também nos adverte que não se trata apenas de um termo descritivo, e sim de um processo de ruptura permanentemente ativo, que dá início a vários processos de desorganização dentro do aparato psíquico. Essa desorganização controla o nível de ansiedade tolerável, porém afeta a capacidade de representação mental.

Aqui é importante mencionar o termo introduzido por Howard Levine (2012, 2014) para nos darmos conta do prejuízo (mental) causado por essa força desorganizadora. Levine chama de imperativo representacional o processo contínuo de regulação da ansiedade e o faz para indicar o papel essencial que o processo de elaboração psíquica exerce na regulação emocional e na homeostasia.

Podemos descrever alguns desses processos mediante vinhetas clínicas. Trata-se de atendimentos que transcorreram online, por meio do aplicativo Zoom, durante o atual isolamento social. Gostaríamos de apresentar três casos de fantasias associadas às ameaças impostas pela presença do novo coronavírus, entre uma miríade de possibilidades. Acreditamos que, ao escolher tais relatos, o fizemos a título puramente de ilustração, sem pretender que essas fantasias sejam as únicas possíveis nem as mais representativas desta situação de exacerbação da realidade.

Vamos individualizar os três casos.

Caso A. O paciente é tomado por um profundo sentimento de catástrofe, associado a uma sensação de que o tempo parou de fluir e a vida se encontra em estado de pausa e suspensão. "A vida [durante a pandemia] está em stand-by", nos diz. Isso engendra uma experiência inefável de ansiedade extrema. O sentimento era de uma perda insuportável de anos de vida, sendo esta irreparável diante da velhice que se aproximava. A paralisia do tempo tendia a gerar na mente uma inércia, que por sua vez tornava o paciente uma vítima passiva de seu sofrimento inexorável. Em suas palavras: "Ninguém pode fazer nada para minorar meu sofrimento porque este é o maior possível a que um ser humano pode se sujeitar".

Neste caso, o analista se vê em face de uma situação dolorosa superior a qualquer capacidade humana de ajuda, diante da qual só poderia se sentir incapacitado. Trata-se de um sofrimento onipotente, que gera internamente um sentimento de superioridade. De vítima passiva aleatória, o paciente transforma-se num ativo torturador do observador de seu sofrimento masoquista.

Refugiado nessa posição, seu self necessitado, com fome de alívio e de alimento para apaziguar seu desespero, fica encapsulado. Na consciência, esse modo mental de lidar com o sofrimento produz um sentimento de infantilidade e de vulnerabilidade. Casos assim nos remetem à descrição magistral das organizações narcísicas destrutivas feita por Herbert Rosenfeld em 1987.

Caso B. Nesta situação, o paciente vive as ameaças produzidas pela pandemia e o consequente isolamento compulsório de maneira diferente do paciente anterior. O medo que se avizinha do pânico de morrer é dominante diante da realidade da pandemia. Trata-se de um analisando já comumente perseguido por fantasias de morrer e uma angústia de morte terrível. Esse medo toma diversas formas: ora o paciente se sente prestes a ter um enfarte, um AVC ou um câncer, ora a sofrer uma violência e ser assassinado na rua. Cada um desses medos assumia vestimentas com algum contorno de realidade, mas em nenhuma ocasião sua vida estivera realmente em perigo.

Com o advento e o aprofundamento da pandemia, a ameaça de morte tornou-se mais palpável e tendia a confrontar o paciente com a questão da finitude. Nessa condição, o analista tentou mostrar-lhe que ele se prevenia da morte não vivendo. Seu tempo e seu espaço mental eram de tal forma ocupados pelo medo que não tinha possibilidade de viver e, assim, enfrentar as ameaças presentes no dia a dia de todos os seres humanos. O medo da morte paralisava e mortificava a própria vida, traduzindo-se num não viver permanente. O medo da morte era um modus vivendi, uma visão de mundo e uma espécie de metafísica. Interpretar o impacto psíquico da pandemia para este paciente ajudou-o a tomar consciência justamente desse caráter metafísico, dessa gramática profunda, que a angústia de morte impunha a seu psiquismo.

Caso C. O paciente estava em pânico com a pandemia, muito preocupado com o risco onipresente de ser contaminado. "Todo mundo vai pegar isso!'", afirmava. Morava nas proximidades de um hospital. Portanto, sentia que o vírus estaria rondando seu bairro, espraiando-se pelas ruas, irradiando-se desse polo infeccioso. Ao examinar seus sonhos e suas narrativas, o analista passou a conversar com ele sobre uma fantasia inconsciente de porosidade extrema, em que todo agente nocivo contaminador poderia atingir o núcleo de seu self. Essa mesma fantasia de porosidade se manifestava em outros registros. Por exemplo, já haviam aparecido na análise fantasias de poder ser contaminado com a loucura alheia. Um parente que teve de ficar em sua casa por um tempo, por conta de uma crise depressiva severa, assustava-o terrivelmente. Era como se ele pudesse ser infectado pela depressão. Em outro momento, mal podia conversar ao telefone com um amigo que tivera uma crise de pânico. Novamente era atravessado pela sensação de que a ansiedade do amigo era transmissível a ele.

A experiência infantil primitiva parecia ser constituída por objetos cuidadores que foram internalizados como fracos e hostis à vida, representando, sobretudo, uma falta de esperança na capacidade de manter um self integrado, que pode aprender com a experiência e assim amadurecer.

Esses três casos são apresentados de maneira sintética. São meros exemplos de como a pandemia afetou o universo inconsciente desses pacientes. É curioso notar, entretanto, que fantasias inconscientes semelhantes apareceram também nos outros pacientes atendidos.

Cada um deles descreve fantasias inconscientes com relação à ameaça de morte em suas apreensões singulares. Ficamos com a impressão de que o isolamento exacerbou um sentimento de contaminação, vivido pelos objetos internos, com os elementos tóxicos da vida de cada um de nossos pacientes. Elementos masoquistas e narcísicos se fizeram presentes.

B apresentava claramente um dinamismo sugestivo de uma organização narcísica destrutiva. Essa configuração se organiza em torno da fantasia inconsciente de um refúgio na contemplação inerte de seu sofrimento, fantasia proveniente de uma parte do self que assistia à outra consumir-se em dor contínua e cujo único propósito parecia ser o de derrotar todo e qualquer objeto do qual dependesse para se alimentar de vida.

Outro elemento comum a todos esses casos é a dolorosa experiência de solidão. Esta é vivida através da fantasia inconsciente de estar submetido a uma parte má e onipotente do self, que impera na mente por estar encapsulada e assim protegida de ser transformada pela experiência.

O exame dessa situação traumática sociocultural enquanto gatilho potencial de processos traumáticos individuais nos permite algumas reflexões sobre os processos traumáticos em si mesmos. O traumatizado é caracterizado pela inércia; torna-se relativamente ou totalmente incapaz de metabolizar suas fantasias inconscientes evocadas por situações reais. A capacidade de cada um de representar simbolicamente os sentimentos associados às ameaças externas e internas fica paralisada, gerando um sentimento de inércia e de ser uma vítima passiva de uma situação injusta.

É interessante detalhar tal processo. Cada um desses indivíduos vive e representa internamente a ameaça não como uma situação que tem começo, meio e fim, como algo em movimento, mas como um acontecimento estático e atemporal. Cada um deles encapsula a ameaça num tipo de fantasia inconsciente baseada num aspecto destacado da situação que estamos vivendo, isolando-a de um contexto histórico.

No caso A, o paciente ficava imóvel numa situação de contemplação de um tempo congelado, que gera um sentimento de perda irreparável e evoca uma vivência de estar morto em vida. Há uma forte cisão entre o self que estaria em comunicação com algum objeto bom, capaz de alimentá-lo com esperança, e outra parte, hostil a essa possibilidade. Se tivesse esperança, estaria em contato emocional com aquilo que teme perder e deseja que sobreviva à ameaça com seus filhos e netos. O morto não ama e, portanto, nada perde.

O aprofundamento da análise, baseado na vivência de outros momentos, mostraria que esse estado de catalepsia o protegia de dores muito maiores. A é dominado por uma força que o impulsiona para o sofrimento e ali o emprisiona. Essa dor é acompanhada por uma excitação e assume o caráter de uma agitação euforizante mantida encapsulada. Nos raros momentos em que a dor estava presente em sonhos ou relatos, ela era disparada por memórias de situações de injúria e de ressentimentos vividos como corpos estranhos incrustrados no self, como um tumor, e por isso mantidos isolados do resto da personalidade. O afeto vinculado a essas situações era o de uma grande decepção com seus objetos internos e despertava sentimentos assassinos, associados a uma necessidade de lavar a honra ofendida. O paciente era tomado por um desejo de represália dirigido a todos a sua volta e estava permanentemente irritado. Seu ego não era capaz de lidar com esse excesso de rancor.

Nessas três situações clínicas, podemos ver como a vivência emocional da situação traumatizante afeta a constituição dos símbolos em seu próprio nascedouro. A simbologia produzida é pobre e abarca apenas parte do sentido da experiência emocional a ser metabolizada. Essa limitação afeta a capacidade de elaboração através da reflexão e, em consequência, limita sua integração à vida. Das três situações mencionadas, o caso A era aquele mais traumatizado.

No caso B, o paciente se protegia de fantasias inconscientes ligadas à morte, que ficava romantizada como um estado de ausência de conflitos e dor. Tornava-se convidativa, um estado a ser desejado, altamente erotizado, que ao mesmo tempo o assustava. Sua vida então resultava de um compromisso entre o desejo de morrer para se proteger do medo de se matar e certa consciência de que a morte também era algo destrutivo, que o cortaria dos relacionamentos vivos que tanto apreciava. Essa ligação com os aspectos mais vivos de seu self era a única zona de esperança de uma mudança, de uma saída desse labirinto de sofrimento.

Já no caso C havia uma fantasia inconsciente de porosidade do self. Seu tecido emocional havia sido irreparavelmente esburacado em algum momento da vida. Nessa altura da análise não era claro como nem por que isso acontecera. Em alguns breves momentos, essa fantasia inconsciente mostrava-se em sonhos e parecia ser fruto de um intenso sentimento de incompletude gerado por uma rivalidade maligna para com um irmão mais velho. A incompletu-de doía e se transformava em muitas situações de demanda compulsiva pela atenção dos pais, sempre seguidas por um inexorável desapontamento.

Nos três casos, pode-se ver a presença da mencionada assembleia geral de todos os medos, convocada a partir do medo real de morte, sofrimento e isolamento despertado ou aguçado pela atual pandemia.

A ameaça de morte e sofrimento evocada pela presença da pandemia tem um caráter agudo para todos os pacientes. As fantasias inconscientes que subjazem a suas vivências mais íntimas aparecem na maneira como se relacionam com o analista na transferência e com os acontecimentos da vida. Havia algo comum nas dificuldades de compreender e integrar os sonhos e narrativas que colocavam cada um desses pacientes em contato com expressões simbólicas dessas situações.

A função do analista, entre muitas outras, é a de ajudar interpretativamente o paciente a internalizar ou reconstruir a confiança num objeto interno continente, capaz de transformar a ameaça de morte em algo pensável. Somente através desse processo os pacientes podem chegar a sentir alguma esperança de superar as ameaças atemporais, as bicadas da vida, e de ter acesso a uma vida desfrutável, que indicaria que a situação catastrófica teria um começo, um meio e um fim. Estamos aqui falando da árdua construção de resiliência mental para o enfrentamento do traumático. Isso só é possível se as fantasias inconscientes associadas às perdas potenciais forem examinadas e elaboradas. A angústia presente nas situações aludidas não vinha acompanhada da ansiedade necessária, em sua forma simbólica, para permitir uma mediação no que poderíamos considerar o conflito entre o princípio do prazer (erotização do sofrimento) e o da realidade. Dessa maneira, o símbolo não exercia seu papel de mediador entre a realidade interna e a externa.

Acreditamos ser verdade igualmente para pacientes e analistas que quem souber sofrer, quem souber digerir este momento doloroso, quem for capaz de sentir a tristeza e a dor e criar uma intimidade com seus sentimentos de medo e de solidariedade, por exemplo, serão aqueles que sairão melhor desta crise. Para superá-la, seremos forçados a desenvolver uma plasticidade de sentimentos. Não exageramos ao dizer que antes desta pandemia parecia que éramos encorajados a vivenciar nossos sentimentos (vigentes no mundo na época pré-pandemia) numa lógica emotiva excitada do ou/ou: ou tristeza ou alegria. Num clima de excitação predomina a cisão. Diante da ameaça, a resposta sadia se basearia na contextualização promotora da integração do ego, que levaria os pacientes a vivenciar tanto a alegria, sempre que presente, quanto a tristeza diante do desmonte de certa realidade vivida até aqui. Ou seja, duas lógicas simultâneas passariam a atuar. Diríamos então que a lógica do ou/ou seria substituída pela mais sadia lógica do e-também: alegria e tristeza.

Uma observação constante sobre a mudança do mundo depois desta pandemia é a ideia esperançosa de que sairemos dela com mais compaixão, humildade e solidariedade, com uma maior noção da importância do coletivo, com mais confiança na ciência e na racionalidade, pois destas dependemos para nossa sobrevivência. Será que isso ocorrerá? Como enxergar a verdade deste momento, não ficar na paranoia de encontrar um culpado, seja a China, seja o vizinho, não se fechar numa hiperindividualização ou em nosso narcisismo serão temas com os quais a psicanálise poderá colaborar no nível da sociedade e no interior de cada um de nós. Precisamos recuperar nossa capacidade de sonhar, nossa imaginação e nossa liberdade mental.

As mudanças ao longo dos anos na maneira como definimos tanto o trauma quanto os seus efeitos são sutis, mas de grandes consequências clínicas e teóricas. Nos últimos anos, nossa compreensão sobre o funcionamento dos processos de simbolização e um foco mais direcionado ao processo psíquico de transformação das experiências e de seus significados imprimiram uma nova visão sobre como captamos a presença de um trauma e como este é descrito e tratado. Essa mudança de perspectiva altera também o que esperamos serem os objetivos de uma análise.

Na série de livros do Harry Potter há uma curiosa criatura: um boggart (um bicho-papão, na tradução para o português). É um bicho sem forma própria, que assume as feições daquilo que mais assusta quem se atreve a se aproximar dele. O feitiço para neutralizar a ação aterrorizante desse monstrengo é riddikulus, que reduz o assustador a algo patético, ridículo, lidável. Ao longo deste trabalho, sugerimos que há algo de boggart nesta pandemia. O caráter amorfo, vago, sem forma, inaudito da experiência com a covid-19 permite que a vivência dela se infiltre pelo inconsciente das pessoas e assuma os contornos dos objetos mais persecutórios disponíveis - isto é, ganhe forma simbólica - para cada psiquismo individual. A possibilidade de combater a instauração de um processo traumático dessa estirpe vai depender da capacidade de cada pessoa em converter a fantasia aterradora em algo assimilável.

 

Referências

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Correspondência:
Elias M. da Rocha Barros
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Recebido em 23/7/2020
Aceito em 10/8/2020

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