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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo abr,/./jun. 2020

 

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Em torno da pandemia: factos, perceções e conjeturas1

 

About the pandemic: facts, perceptions, and conjectures

 

Sobre la pandemia: hechos, percepciones y conjeturas

 

Autour de la pandémie : faits, perceptions et conjectures

 

 

João Carlos GraçaI; Rita Gomes CorreiaII

IProfessor do Instituto Superior de Economia e Gestão, Universidade de Lisboa (ISEG-UL). Investigador do Centro de Investigação em Sociologia Econômica e das Organizações, Universidade de Lisboa (Socius/CSG-UL)
IIPesquisadora do Centro de Investigação em Sociologia Econômica e das Organizações, Universidade de Lisboa (Socius/CSG-UL)

Correspondência

 

 


RESUMO

A pandemia da covid interpelou diretamente as nossas sociedades de múltiplas formas, desde aspetos atinentes à confiança social na ciência até à possível hiperpolitização dela, passando pelas prioridades assignadas ao funcionamento dos sistemas económicos e às formas da sua regulação. Sendo o nosso ambiente cultural marcado por evidentes traços de sinofobia, a experiência civilizacional de longo prazo da China é confrontada com a das sociedades ocidentais. As frequentes reclamações de maior intervenção económica estatal e de cooperação social entrecruzam-se com diversos outros problemas, designadamente as desigualdades sociais. O caso sueco foi também objeto de consideração, ficando expressa uma visão cética quanto ao seu valor enquanto modelo médico. São, enfim, destacadas várias complexidades e incertezas da situação presente.

Palavras-chave: confiança social na ciência, sinofobia, cooperação social e história de longo prazo, intervenção económica estatal, caso sueco, incertezas e complexidades


ABSTRACT

The covid pandemic has directly tested our societies in multiple ways, ranging from aspects regarding social trust in science to its possible over-politicization, through the priorities assigned to the functioning of economic systems and their regulation. Given that our cultural environment is marked by obvious traits of Sinophobia, China's long-term civilizational experience is confronted with that of Western societies. Nowadays frequent claims of bigger state economic intervention and increased social cooperation intersect with various other problems, namely social inequalities. The Swedish case was also the subject of consideration, with a skeptical view being expressed regarding its worth as a medical model. Finally, several complexities and uncertainties of the present situation are highlighted.

Keywords: social trust in science, sinophobia, social cooperation and long term history, state economic intervention, Swedish case, uncertainties and complexities


RESUMEN

La pandemia de la covid afectó a nuestras sociedades de diversas formas, desde aspectos relativos a la confianza social en la ciencia hasta la posible super-politización de la misma, pasando por las prioridades del funcionamiento de los sistemas económicos y sus formas de regulación. Tomando en cuenta los evidentes rasgos de sinofobia en nuestro ambiente cultural, la experiencia civilizadora a largo plazo de China se confronta con la de las sociedades occidentales. Las frecuentes quejas de una mayor intervención económica estatal y de cooperación social se cruzan con diversos otros problemas, especialmente las desigualdades sociales. El caso sueco fue también objeto de consideración, revelando una visión escéptica en relación a su valor como modelo médico. Se destacan varias complejidades y dudas de la presente situación.

Palabras clave: confianza social en la ciencia, sinofobia, cooperación social e historia a largo plazo, intervención económica estatal, caso sueco, dudas y complejidades


RÉSUMÉ

La pandémie du covid a interpellé directement nos sociétés de façons multiples, dès les aspects touchant la confiance sociale dans la science, jusqu'à sa possible hyperpolitisation, tout en passant par les priorités assignées au fonctionnement des systèmes économiques et aux formes de sa régulation. Comme notre environnement culturel est marqué par des traits de sinophobie évidents, l'expérience civilisationnelle de longue durée de la Chine est confrontée à celle des sociétés occidentales. Les fréquentes demandes d'une plus grande intervention économiques de la part de l'Etat et d'une coopération sociale, aussi bien que d'autres problèmes divers s'entrecroisent. Le cas suédois a été lui aussi objet d'une analyse, et il en reste un point de vue sceptique concernant sa valeur en tant que modèle médical. Enfin, on met en évidence plusieurs incertitudes et complexités de la situation actuelle.

Mots-clés : confiance sociale dans la science, sinophobie, coopération sociale et histoire de longue durée, intervention économique étatique, cas suédois, incertitudes et complexités


 

 

Comecemos pela apresentação dumas quantas impressões, anotadas à maneira dum diário da covid. Em princípios de abril, cumprindo o confinamento, registava um de nós o "ambiente de completa confusão" nas redes sociais. Tropeçava-se aí em quase tudo: desde negacionistas radicais ("É só mais uma gripe") até, no extremo oposto, apocalípticos descompensados: quer em variedade assumidamente religiosa, quer em versão oficialmente "ecológica" (a merecida vingança da Mãe Natureza...). As origens do vírus também eram objeto de furiosos "debates": desde a ideia de mutação aleatória normal até alegadas culpas de laboratórios envolvidos em guerra biológica, algum acidente tendo ocorrido, etc. Essa última versão tinha, de resto, sido reforçada pela intervenção pública do Nobel de Medicina francês Luc Montagnier. Pelo meio, era também percetível muito zunzum a respeito das previsões (talvez "performativas"?), das supostas maquinações e das ligações financeiras de Bill Gates, designadamente os seus interesses no negócio das vacinas. Tudo isso convivia com variedades de discurso desbragadamente sinófobo: Sopa de Wuhan, título dum livro de académicos famosos (Agamben, Badiou, Zizek.) e com uma capa cheia de desenhos de morcegos (Agamben et al., 2020). Seria verdadeiramente necessário apostar na leitura do livro, ou o essencial ficava desde logo "dito"? Essa miscelânea de ideias coabitava entretanto com teses vincadamente "complotistas", um grupo destas mapeável politicamente à esquerda, o outro à direita: basicamente, de um lado a ideia de que "querem introduzir o estado de sítio permanente" e do outro a convicção de que "o totalitarismo chinês triunfa, sim, mas matando milhões de pessoas", etc.

Era quase inevitável ocorrer-nos, nesse contexto, a analogia da evolução e divulgação das ideias ao processo de dispersão (com mutações) dos vírus. Trata-se duma sugestão de R. Dawkins, exposta em "Vírus da mente" (1991). Por momentos, isso causava-nos um estremeção - os vírus proliferavam quer na realidade, em sentido estrito, quer metaforicamente, na noosfera - e convidava-nos a pensar que era melhor nós próprios ganharmos distância relativamente às redes sociais.

 

Hiperpolitização e confiança social na ciência

Com mais ou menos distanciamento, porém, é imperativo notar alguns traços muito importantes, ao longo desses meses, no enquadramento político das narrativas. A hiperpolitização foi ela própria, precisamente, um dos elementos caracterizadores da conjuntura. Mas há, quanto a isso, elementos adicionais a registar. É porventura justo dizer que a tendência para politizar os debates durante décadas partiu predominantemente da esquerda. Assim, é decerto um importante sinal dos tempos que, em contexto covid, essa tendência tenha sido detetável sobretudo do lado da direita. Veja-se a notória zanga de Trump com a Organização Mundial da Saúde (OMS), culminando na saída norte-americana. É verdade que havia precedentes, como a retirada dos EUA da Unesco no tempo de Reagan, alegando ser aquela uma organização demasiado "esquerdizante". E tudo isso pode também ser inserido numa tradição específicamente norte-americana de inclinação para o jogo duro, a crueza da troca de favores assumida (lobbying), a facilidade do recurso às armas pelos cidadãos, a "política da canhoneira" nas relações externas, etc. Em todo o caso, parece inegável ter-se chegado mais recentemente, a respeito da covid, a uma sobrecarga de impudência e de hiperpolitização. No limite, é claro, corre-se o risco de não sobrar margem para a arbitragem dos conflitos com apelo ao conhecimento. Vejam-se, quanto a isso, as súplicas de T. Ghebreyesus, o diretor-geral da OMS, para que não se hiperpolitizasse a luta contra o coronavirus (uma luta "de todos nós"), as quais foram diretamente contrariadas ou recebidas em silêncio, consumado na efetiva saída dos EUA .

Esta afigurou-se, assim, uma boa ocasião para reabrir dossiers anteriores, porventura mal arquivados. Se os meios dirigentes dos EUA têm, mesmo quanto às ciências biológicas, uma atitude tão facilmente manipuladora, e dada a estreita imbricação da intelligence com a academia naquele país (Saunders, 2013), até onde poderá ter ido o nível de falsificações e de vieses deliberadamente induzidos ao longo dos tempos nas ciências sociais? Reciprocamente, nos EUA têm ainda hoje uma significativa expressão pública movimentos vários de oposição às vacinas, os quais não obtêm noutras partes qualquer eco significativo, o mesmo sendo válido para a importância arreigada de ideias criacionistas, há muito alhures erradicadas da paisagem intelectual. E também quanto a isso podemos conjeturar com base em teses de pendor "culturalista" (a importância do legado calvinista ou pilgrim...), mas devendo pelo menos caldear essa linha de estudo com a consideração de que de facto, até décadas relativamente próximas, uma parte da população norte-americana, ou pelo menos da população dos "Greater usa", como lhes chama D. Immerwahr (2019), designadamente a população de territórios como Porto Rico, Filipinas e Guam, foi objeto de experiências biológicas, oficialmente acolhidas adentro da roupagem da medicina, mas na verdade muito para além daquilo que qualquer deontologia médica poderia autorizar.

Sem que isso constitua uma justificação plena, trata-se dum facto que deve ser ponderado quando se pensa na relevância dos movimentos antivacina norte-americanos, bem como na estranha profusão da ideia de que a covid é um mero embuste. Tanto mais que a abordagem pública da covid veio inegavelmente tingida, em vários países (eua incluídos), de evidentes traços de "ne-cropolítica", como lhe chamou A. Mbembe (2016), os idosos tendo dessa feita sido estigmatizados como um subgrupo "marcado para morrer" (Di Lascio, 2020). Embora isso seja evidentemente mais verdadeiro para uns países do que para outros, deve reconhecer-se que o ambiente geral não foi realmente o mais propiciador duma atitude de confiança pública nas "verdades médicas" oficiais. Pelo contrário, a desconfiança relativamente à medicina oficial adquiriu dimensões tão significativas que, pelo menos nos EUA , "acreditar na covid" ou não acreditar se tornou uma simples questão privada de des/crença, os psicólogos sociais E. Aronson e C. Tavris (2020) tendo nesse contexto produzido um interessante artigo acerca do papel da dissonância cognitiva na pandemia. Independentemente do interesse e do valor genuínos da pesquisa de Aronson e Tavris, reconheça-se que se atingiu à escala social um ponto muito perigoso quando um tema tão importante, acerca do qual deveria haver condições prévias para construir consensos amplíssimos, se torna matéria de especulação gratuita e descontrolada, quanto à qual (de forma tipicamente "pós-moderna") se pode desistir do apuramento da verdade objetiva, cada opinião, da mais informada à mais analfabeta e preconceituosa, passando a valer o mesmo que as demais, em ambiente de "relativismo epistémico" absolutizado.2

 

Sinofobia

Todavia, nenhum traço terá sido tão importante para caracterizar a paisagem mental dos EUA e demais "países ocidentais" como a declarada sinofobia. Isso está bem patente, por exemplo, nas denúncias, por parte de altos responsáveis da União Europeia (ue), da chamada "diplomacia da máscara" com que a China estaria a tentar promover a sua imagem, ou a redimir-se das suas supostas culpas no iniciar do processo (The Conversation, 2020). Do mesmo modo, a China persistiria em esconder informação médica relevante, relativa ao início da pandemia da covid, ao passo que as benevolentes democracias ocidentais, lideradas pela "nação indispensável", continuariam a insistir (infelizmente em vão) na realização duma "investigação independente" relativa às culpas de Beijing quanto à mencionada pandemia.

Desnecessário dizê-lo, análoga "missão internacional" destinada a investigar os laboratórios dos próprios EUA , onde há muito se investiga sobre armas biológicas, esteve sempre fora do horizonte. E assim, em face do caráter vincadamente assimétrico da sugestão, a China obviamente recusou tais ideias. E como a "nuclear" China não é o Iraque, não podendo contra ela ser usadas "provas" como as que Colin Powell em tempos forneceu à Organização das Nações Unidas (onu) a respeito das "armas de destruição massiva" iraquianas, a negativa prevaleceu. O assunto demorou entretanto a perder importância, os media ocidentais afincando-se a manter acesa mais essa "fogueira pandémica" de desconfiança, suspeição e ódio.

Até muito recentemente, importantes meios ocidentais (em estreita simbiose academia-jornalismo-intelligence) têm insistido nessa atitude de sistemática desconfiança pública quanto à OMS e mesmo de arrogante preleção desta, acusando-a de não ser suficientemente sinófoba e indicando-lhe um roteiro do que ela devia fazer, decerto por analogia com o que as missões da ONU ao Iraque fizeram no período pré-2003. É, entre inúmeros outros, o caso do artigo de J. Cohen (2020). Importa entretanto sublinhar, quanto a isso, que vários indícios mais recentes sugerem que o Sars-CoV-2 já circulava de facto em diversos países antes dos primeiros diagnósticos oficiais, Wuhan não sendo assim a sua origem (Lemos, 2020). Pelo seu lado, as autoridades chinesas fizeram circular um vídeo que se tornou bastante popular, Once upon a virus (Shelton & Zhao, 2020), onde expuseram a sua versão quanto às incongruências da posição oficial dos EUA .

Já num registo diverso, de forma não diretamente política, mas apenas difusa e "culturalmente" sinófoba, é também de referir uma enorme literatura aparecida nesses meses, da qual o livro já mencionado de Agamben e outros (2020) pode ser considerado exemplar. Conforme assinalado por A. P. Perrota (2020), desde o início da pandemia

diferentes meios de comunicação reportaram o aumento de discriminação aos chineses, associando seus hábitos à culpa pelo surto de covid-19. A "cultura", ou mais especificamente, os modos tidos como inadequados de coexistência entre humanos e animais assumem um papel importante na consideração sobre os fatores que causam a transmissão de doenças zoonóticas. E, desse modo, os chineses, de uma maneira generalizada, personificam práticas e valores entendidos como culpados pela situação causada pelo novo coronavírus.

Essa associação do vírus à China, seja ao regime político, seja mais amplamente ainda à cultura, de tão repetida em praticamente todos os meios nas sociedades ocidentais (o "vírus chinês", como Trump insiste em designá-lo, supostamente causador da kung flu), tornou-se entretanto inegavelmente uma ideia suscetível de ingressar, nas referidas sociedades, no grupo das chamadas "verdades autoevidentes", precisamente por isso difíceis de interpelar e questionar. É o que acontece por exemplo com S. Hanafi (2020): "Como sabemos", escreve ele apelando diretamente à cumplicidade do leitor, "este vírus foi transmitido de animais não domesticados (tais como civetas, pangolins e morcegos) a seres humanos através do consumo desses animais na China". "Serão realmente tão saborosos assim?", pergunta-se e pergunta-nos de imediato, em jovial cumplicidade. E remata, evidenciando uma significativa cultura sociológica: "Bourdieu consideraria isso um sinal de distinção, indicando o montante significativo de objetos desnecessários e luxuosos que nós, as classes média e média-baixa, consumimos".

 

A longa duração histórica

A importância da China em toda a "estória" da covid permite, em todo o caso, produzir considerações socio-históricas mais serenas e bem mais sérias. Algures em Guns, germs and steel, cogitando sobre trajetórias civilizacionais de muito longo prazo, J. Diamond (1997/2005) discute a questão do porquê do início da modernidade e da Revolução Industrial na Europa, e não na China, argumentando que em essência o triunfo histórico dos europeus seria correlativo do seu policentrismo político (versus a centralização chinesa). A unidade política da China, alega, tornava-a mais atreita às consequências nefastas duma qualquer decisão errada. Exemplo apresentado por Diamond: a China podia perfeitamente ter sido a iniciadora dos Descobrimentos; e de resto foi-o nalguma medida, com as expedições do célebre almirante Zheng He no século XV; mas uma má decisão política ditada por obscuras intrigas cortesãs fê-la interromper esse empreendimento, tendo-a assim precipitado na "má" trajetória histórica.

Tais decisões, continua Diamond, ocorreram também na história da Europa. Todavia, o policentrismo de certo modo conferia uma imunidade cultural de grupo aos europeus quanto às correspondentes consequências nefastas: se um país não tomasse a decisão "correta", outro decerto fá-lo-ia. Por outro lado, a mera evolução "espontânea" (mais ou menos cegamente darwiniana) tenderia a recompensar esse último e puniria o primeiro. A proximidade geográfica dessas diversas unidades políticas, entretanto, obrigava a que todos fossem mantidos na linha, os dispositivos seletivos apurando sistematicamente os "mais aptos" e levando assim a que, no conjunto, a Europa viesse a sobressair em termos civilizacionais ao resto do globo.

O argumento de Diamond, admitamo-lo, fica aqui exposto de forma muito simplificada. Ele reconhece também que nos casos de outras civilizações o policentrismo político foi igualmente a regra, sem que todavia esses benéficos efeitos evolutivos se tivessem feito sentir. A tendência de Diamond quanto a isso consiste em atribuir esses insucessos predominantemente à geografia (maior ou menor extensão das "latitudes felizes", como escreve, versus latitudes infelizes), e não à biologia ou à cultura. Diamond não é um autor racista ou sequer vincadamente "culturalista", ao contrário do que sucede com tantas outras celebridades académicas.

Damos connosco a pensar nisso e a meditar que no "torneio evolutivo" de Diamond bastava que uma unidade política tomasse a decisão "correta" (na "tabela de verdade" das operações lógicas, portanto, o correspondente à disjunção inclusiva), a evolução subsequente sendo predominantemente guiada por um princípio competitivo, não cooperativo. As unidades supostamente lutam entre si e, se uma tiver um bom desempenho, é recompensada; depois as outras imitam-na; e isso leva a que toda a "turma" dessa civilização saia vencedora, sem que tenha de haver verdadeira concertação entre as várias polities. A "mão invisível" da competição conduz assim a carruagem da história coletiva para a melhor trajetória...

Podemos conjeturar agora sobre um outro cenário macro-histórico possível, por contraste com o esquema de Diamond: e se for necessário, para que uma civilização tenha um bom desempenho, que todas as unidades tomem a decisão "correta"? Ou seja, se na "tabela de verdade" das operações lógicas estivermos perante o correspondente à conjunção? Noutros termos: e se for o desempenho pior a forçar o nivelamento da "turma", em vez de (como na hipótese de Diamond) se tratar do desempenho melhor? E se, por outro lado, a trajetória evolutiva for, por aumento da componente propriamente humana (isto é, a componente "reflexiva"), determinada menos pelos princípios duma seleção darwiniana "cega" e mais por uma lógica de cooperação, a fortuna tendendo agora a proteger não os mais audazes, mas os mais cooperantes, e sobretudo os mais conscientemente cooperantes? E se, enfim, os dirigentes chineses tiverem, no recente episódio da covid-19, pura e simplesmente tomado a decisão "certa" ao confinarem em larga escala, enquanto os euro-ocidentais foram, pela própria lógica do seu torneio, levados a alinhar não propriamente pelo mais eficaz, mas pelo mais intensamente determinado pelo curto prazo, nomeadamente pondo (como se compreende cada vez mais claramente) as decisões ditas "económicas" à frente dos imperativos relativos à vida, como se viu e vê no sistemático apressar do fim dos confinamentos?

A isso, a essa pressão coletiva irresistível, designam alguns autores como "capitalismo". Não é, sublinhemo-lo, que todos os dirigentes ocidentais tenham procedido dessa maneira. Todavia, a mesma lógica do "torneio" que Diamond postulava ter beneficiado a Europa no seu conjunto pode perfeitamente agora determinar o apuramento não do mais apto, mas sistematicamente do mais ganancioso e mais imediatista, levando a que as "más" tendências políticas (mais competitivas, mais economicamente determinadas pelo curto prazo: mais "capitalistas") expulsem sistematicamente as "boas" tendências, tornando em definitivo impossível a cooperação e a "ação coletiva".

Mudando os parâmetros, mudarão as consequências que globalmente podemos retirar, aceitando todavia o fundamental do esquema de raciocínio de Diamond? Poderá assim o episódio da covid induzir uma inflexão histórica decisiva, agora a favor não apenas da China, mas também da centralização política, duma maior reflexividade e duma menor "tirania do curto prazo"? A covid determinará assim um refazer radical não apenas do panorama geopolítico, mas também da forma como as sociedades humanas estão organizadas para sobreviver?

 

Portas da perceção?

Nesse sentido, poderiamos mesmo ser tentados a postular que, conforme escrevia A. Roy (2020), esta pandemia pode bem ser vista, por dura que seja, como "um portal" e uma fonte de revelação e de autoaprendizagem coletiva. A dita autoaprendizagem coletiva, entretanto, deverá ser presidida acima de tudo pela noção de que "estamos tão seguros quanto o menos seguro de entre nós", como argumenta A. Abreu (2020).3 Em suma, há que garantir sempre que "ninguém é deixado para trás", cada um e todos devem poder sentir, quanto à covid, que "you'll never walk alone", conforme o famosíssimo hino do Liverpool Football Club; mas resultando isso duma forma de organização social que objetivamente garanta os mínimos a todos, sem exceção.

E essa forma de organização social impõe, evidentemente, níveis muito elevados de intervenção estatal, como está bem patente hoje em dia mais ou menos em todo o lado, com a medicina pública, por exemplo, a substituir sistematicamente a medicina privada onde esta pura e simplesmente deixa de operar por falta do incentivo do lucro. Bem mais amplamente, a referida intervenção económica estatal tem melhor ou pior garantido, precisamente através do aumento da despesa pública, a manutenção dos fluxos económicos e de níveis aceitáveis de emprego e de rendimentos. A forma como isso é feito, porém, está muito longe de ser neutra. A título de exemplo, uma coisa é gastar dinheiros públicos a "resgatar" bancos em colapso, salvaguardando acima de tudo os interesses dos acionistas; outra coisa bem diversa é manter escolas e hospitais públicos em funcionamento, cobrando quase nada aos respetivos utentes, porque é a despesa pública direta que paga a professores, médicos ou enfermeiros.

Alguns setores económicos, entretanto, parecem destinados a ser duradouramente afetados pela pandemia, como é o caso da aviação comercial e do turismo. A mobilidade física das pessoas vai previsivelmente reduzir-se de forma consistente nos próximos anos. Quanto a alguns aspetos, aliás, com inegáveis efeitos benéficos colaterais: menos poluição, por exemplo; e para países como Portugal também menor défice externo energético. Reportando-nos ainda ao caso português, sublinhe-se que a excessiva dependência do turismo e serviços correlativos (imobiliário), com o mais recente colapso desses ramos, ameaça fazer descarrilar de novo uma trajetória socioeconómica que se apresenta nada favorável já desde a criação do euro, o que restringiu significativamente a capacidade das autoridades públicas de determinar os destinos do país, que passaram a ser fixados "a montante", pelas restrições impostas em âmbito "europeu" (Graça & Correia, 2019; Mamede et al., 2020; Mamede & Silva, 2020).

O contexto global é, por outro lado, de óbvia inclinação para a redução das "cadeias produtivas", quer para reduzir custos (e riscos) de transportes, quer porque a desconfiança e a hostilidade tendem a aumentar nas interações dos diversos agentes económicos. Também nisso a pandemia da covid trouxe um rápido agravamento do ambiente. Mesmo nas simples relações supostamente "intrafamiliares", dos EUA com os países da sua orla, ou no interior da UE, o egoísmo cego imperou não raras vezes, em determinada altura os europeus acotovelando-se uns aos outros - por exemplo, a respeito da aquisição de ventiladores e de máscaras -, as tropas dos EUA desviando para o respetivo território encomendas destinadas a "aliados" seus, a Alemanha impedindo pelo seu lado saídas desses materiais para outros países da UE e, em geral, cada país sendo deixado à sua sorte (Toma lá, dá cá, 2020), a "União Europeia" aparecendo só depois de volvido o pior momento e revelando-se, mesmo então, através das pavorosas declarações públicas do "alto representante" Josep Borrell (Guillot, 2020), preocupada menos em resolver os problemas do que em evitar a pretensa ameaça da "diplomacia da máscara" empreendida por chineses, russos e cubanos...

 

As economias nacionais e a intervenção estatal: o regresso do reprimido?

Afigura-se, assim, bastante compreensível que nesse ambiente se tenham crescentemente ouvido vozes a favor da proteção da economia nacional e da produção nacional; que se tenha argumentado pela necessidade duma nova industrialização tecnologicamente requalificada, permitindo depender menos do turismo e correlativos; que tenha aumentado o repúdio público por práticas de fuga de capitais para paraísos fiscais (os países europeus competem nessa matéria, induzindo-se reciprocamente à descida do imposto sobre o rendimento das empresas); etc.

Trata-se de matérias que impõem um esforço de clarificação. Quanto a alguns aspetos, é decerto boa ideia reduzir a extensão de cadeias produtivas demasiado longas. De facto, é absurdo que Portugal, por exemplo, esteja dependente do exterior para o fornecimento de coisas tão elementares como máscaras ou mesmo ventiladores. É também inegável que em consumos alimentares se pode facilmente proceder a uma substituição de importações que deixe o país simultaneamente mais seguro num ambiente internacional volátil e com um défice comercial (agroalimentar) menor. Enfim, países como Portugal devem ponderar a dependência do turismo para o equilíbrio das suas contas externas. Em alternativa, afigura-se recomendável maior autarcia e uma reindustrialização com requalificação tecnológica. Mas tudo isso parece supor um Estado interveniente, com uma política industrial bem mais ativa; e também uma rotura com os constrangimentos impostos pela tratadística europeia.

Outra coisa é, porém, desistir de todo da cooperação internacional e mesmo mundial, em diversas instâncias em que a interdependência das economias e a estabilidade do comércio são garantes de vantagens recíprocas, verdadeiramente benéficas para o conjunto da humanidade. Um assunto é procurar produzir internamente mais bens alimentares, máscaras ou ventiladores; outro bem diverso é abdicar do upgrade para a tecnologia G5 nas telecomunicações e hostilizar a China através da Huawei, rejeitando por parti pris ideológico ou seguidismo geostratégico a adesão à "Nova Rota da Seda", sem que isso beneficie os interesses do país no que quer que seja.

Ainda quanto à intervenção económica estatal, para além de inegavelmente ter constituído a primeira linha de sustentação da "fábrica social" através dos sistemas de saúde pública, deve notar-se que ela se tem revelado mais amplamente necessária também a respeito de transportes públicos. Um estudo de A. Marino et al. (2020) chamou já a atenção para a importância dos movimentos pendulares no contágio da covid na Grande São Paulo. Pelo seu lado, V. Ferreira (2020), a propósito do caso da Grande Lisboa, referiu também esse aspeto, o qual, em conjunto com condições domiciliárias frágeis (habitações sobrelotadas), tem sido mencionado como um dos aspetos que levam o problema sanitário a não atingir toda a sociedade por igual, jogando contra quem já ocupava posições sociais menos favorecidas, não se podendo permitir, por precariedade laboral, o "luxo" de qualquer recusa em comparecer todos os dias ao local de trabalho, com ou sem covid. Se pensarmos também, por exemplo, num país como o Chile, onde o furor das privatizações levou à quase destruição do próprio conceito de "transportes públicos" (as empresas existentes, usadas pelas "classes baixas", funcionando de forma muito deficiente e desregulamentada), e meditarmos sobre a rapidez e a ferocidade que a pandemia adquiriu nesse país, obteremos de novo a confirmação de que é, também quanto a isso, necessária uma maior intervenção estatal, seja em prol duma maior coordenação dos esforços, seja em nome dum propósito de "desmercadorização" que retire da esfera mercantil várias necessidades básicas dos grupos sociais desfavorecidos. Mais amplamente ainda, é dum combate geral às desigualdades que parece tratar-se necessariamente, de forma a garantir a tal proteção dos menos protegidos, a "segurança do menos seguro" a que lucidamente se referia A. Abreu (2020), segurança sem a qual a pandemia tenderá uma e outra vez a reacender-se, quiçá a entrar em descontrolo.

De facto, a intervenção económica estatal direta afigura-se imprescindível a mais de um título. Apesar de autores como S. Matthewman e K. Huppatz (2020) terem destacado a recente emergência de múltiplas formas de autoajuda e de organização espontânea da "sociedade civil", predominantemente de inclinação igualitária, parece-nos evidente que mesmo tais formas de autoajuda espontânea só serão viáveis a prazo se forem apoiadas e tuteladas pelos poderes públicos. Por um lado, o Estado é sempre o apoio "de última instância", ainda que não esteja diretamente presente no dia a dia. Por outro lado, só os poderes públicos estão em condições de garantir que tais organizações, mesmo que espontâneas: a) mantêm os traços igualitários iniciais, não evoluindo sub-repticiamente para formas de patronagem encapotada, ou de aproveitamento por privados, visando agendas pecuniárias travestidas de "solidariedade social"; b) não adquirem tão-pouco características de "vigilantismo" avesso a outsiders e, nesse sentido, propenso à violência e fator de erosão da cidadania e da confiança ou "capital social" mais geral. A garantia das missões que até o "liberalismo clássico" reconhece ao Estado, designadamente o monopólio da legislação e do recurso à violência, sugere assim a conveniência da ampliação do âmbito das referidas missões, particularmente no que respeite a imperativos de saúde pública.

Essa conclusão pela necessidade de reforço da intervenção estatal sai, enfim, reforçada por vários traços de "capitalismo racial", como lhe chama W. Pirtle (2020), assumidos pela presente crise. Em vários países a maior precariedade epidemiológica dos grupos mais pobres foi notória. Todavia, quando essas linhas de clivagem distinguindo grupos mais favorecidos e mais desfavorecidos se sobrepõem a divisórias percebidas como étnicas e/ou "raciais", tais oposições tornam-se ainda mais agudas e mais conflituais, como ilustrado pelos vários motins (contra a brutalidade policial, mas sendo o racismo e a covid frequentemente trazidos à colação) ocorridos desde maio nos EUA . Genericamente, pode dizer-se, lá onde a intervenção económica estatal tem sido mais evitada, em nome dos propósitos declarados de "deixar os mercados funcionar" e de "libertar a sociedade civil", os mercados acabam, na ausência do Estado, por entrar mais facilmente em falência; as solidariedades espontâneas da sociedade civil são enfraquecidas; e as clivagens sociais são acentuadas até ao simples colapso generalizado.

 

Singularidades do caso sueco

Nas discussões suscitadas pela covid ganhou importância significativa a discussão do chamado "modelo sueco" de abordagem ao problema, assente nas ideias propugnadas por Johan Giesecke. Houve suspeitas de que se trataria aqui dum verdadeiro live and let die confiado na "imunidade de grupo". Mas várias fontes retorquiram que não; que a estratégia sueca teria sido caluniada e deturpada quanto à sua lógica e objetivos. De facto, responderam, inspirados pelas práticas de diversos regimes asiáticos "autoritários" (China, Coreia do Sul e Singapura, por sua vez baseados na experiência de variedades anteriores, mas diferentes, de coronavirus), os países europeus optaram primeiro por um rigoroso confinamento, muito por pressão dos media, mas sem grande racionalidade ou cientificidade. Todavia, a verdade é que, tarde ou cedo, se tornou necessário pensar também numa estratégia de saída do confinamento. E foi nesse sentido que se sugeriu que a experiência sueca, longe de configurar leviandade, poderia dar lições aos demais. Ter-se-ia nesse país procurado compatibilizar três objetivos: proteger os grupos de risco, evitar o colapso do sistema de saúde e minimizar os custos socioeconómicos. Os responsáveis repetiram que a imunidade de grupo seria um produto lateral benéfico dessa estratégia, não o seu principal objetivo. Mas não teria sido negligenciada a importância da pandemia. De resto, alguns dos desmentidos desses mitos teriam ocorrido também em conferência de imprensa da própria OMS (PBS NewsHour, 2020), onde se considerou a experiência sueca como digna de muita atenção.

Pois bem, nesse contexto, intervindo não como epidemiologistas mas como socioeconomistas, acrescentamos todavia que o que o próprio Giesecke disse abertamente foi que ficaremos protegidos dessa maleita quando obtivermos a tal "imunidade de grupo" e só mesmo então. Noutros termos, a referida imunidade não é um mero produto lateral benéfico, mas o elemento essencial da estratégia sueca, pelo menos até à possível invenção duma vacina. Ainda nessa senda de argumentos, aquilo que os poderes públicos fizerem em matéria de lockdowns será lesivo, devendo eles, em alternativa: a) recomendar às pessoas que lavem as mãos (em sentido estrito) frequentemente; b) recomendar-lhes que mantenham o célebre "distanciamento social"; c) confiar que as pessoas não são tolas, tendendo por si a compreender facilmente o que é melhor para elas, pelo que o Estado não deve ser demasiado intrometido, devendo antes fazer pouco mais do que "lavar as mãos" (em sentido figurado). É o que o próprio Giesecke, não um seu detrator, diz no vídeo inserto no artigo de P. Henningsen (2020).

A estratégia que Giesecke aponta está aparentemente radicada na forma mentis da economics do chamado "agente racional": devemos deixar as pessoas proceder em defesa dos seus interesses, sendo que elas agirão assim globalmente bem. O que os poderes públicos fizerem tenderá a contar muito pouco; e será mais facilmente lesivo do que benéfico. Ora bem, toda essa linha argumentativa tem uma longuíssima tradição na história das ideias, e faz soar demasiadas "campainhas de analogia" para não ficarmos com a impressão de que defrontamos aquilo a que pensamos poder chamar uma "epidemiologia neoliberal", confiada na informação do "agente racional" e apelando a que os poderes públicos se contenham e se abstenham, em vez de intervirem demasiado: laissez faire, laissez contaminer, digamos... até porque, no fim, supostamente vai tudo dar mais ou menos ao mesmo.

Dito isso, justifica-se perguntar: vai mesmo? A verdade é que na Suécia, com uma população muito próxima da portuguesa, ocorreu até ao presente cerca de 1.3 vezes o número de infetados e 3.1 vezes o número de mortos de Portugal. Reconheça-se que não é animador. Todavia, é verdade, também houve decerto menos problemas a convencer as pessoas a sair do lockdown. A economia e a política, admitamo-lo, bem ou mal parecem estar omnipresentes, nisso da epidemiologia. Entretanto, também se deve admitir que o assunto covid pode mesmo ir ainda só no começo. Se não for descoberta uma vacina eficaz e no outono houver uma segunda vaga que mate significativamente mais gente em Portugal do que na Suécia, ficará tudo mais ou menos igual, e Johan Giesecke poderá, portanto, considerar-se vindicado. Talvez seja pois melhor reconhecer um prudente ignoramus et ignorabimus; pelo menos para já.

Tudo parece, assim, recomendar cautela e provisório agnosticismo. Tudo. ou quase tudo. Consideremos por um momento a preciosa informação adicional contida no vídeo da conferência de imprensa da OMS (PBS NewsHour, 2020). Alguns aspetos podem facilmente ser retidos da intervenção de M. Ryan (minuto 41) e das subsequentes: a) uma evidente preocupação de ser "diplomático", evitando o confronto com as autoridades suecas; b) o propósito de desmentir publicamente que o "modelo sueco" consista em não fazer nada; c) como corolário: deixar que os suecos corrijam a sua má entrada, permitindo-lhes todavia "salvar a face", assim evitando mais desavenças desnecessárias e genericamente danosas, desde logo para a própria OMS, já sob o fogo dos EUA ; d) em todo o caso, o grande desapontamento que sem dúvida constitui o "modelo sueco" original, inegavelmente confiado na "imunidade de grupo" como variável causal (e não apenas como efeito benéfico secundário), dado que os resultados apontam para níveis de imunidade muito mais baixos do que os inicialmente esperados (cf. também Estudo indica que imunidade ao coronavirus é temporária, 2020; Mercouris, 2020; Noli, 2020).

 

Incertezas e complexidades

Enfim, e agora como conclusão nossa: as pressões anti-lockdown são fortíssimas; a pandemia demonstra que vivemos num mundo duma enorme "intensidade capitalística", no qual a pressão pro-business produz um viés cognitivo global, as sociedades sendo induzidas: ou à ideia enfática de que "temos mesmo de fazer aquilo que se impõe", porque dulce et decorum est pro GDP mori, como escreve sarcasticamente A. Karlin (2020); ou pelo menos a uma perceção de risco individual falsamente reduzida, sendo depois assacada às pessoas a responsabilidade pelo que possa correr mal, dado que "cada um" é que deve proceder "racionalmente", manter o distanciamento social mesmo sem os poderes públicos o ordenarem, etc. Quanto a esse último grupo de ideias, pode e deve retorquir-se que tal individualismo metodológico é intrinsecamente inadequado à compreensão dum problema como a pandemia, na qual os aspetos holísticos são irredutíveis à escala individual. Quanto ao primeiro, deve contrapor-se que a metáfora militar não faz aqui muito sentido. Na guerra pode, é certo (e independentemente de juízos morais), sacrificar-se quem está "na frente" em prol da defesa da "retaguarda": o trade-off pode ser repugnante, mas faz sentido. Na pandemia, porém, é absurdo raciocinar nos termos dum trade-off entre vidas e economia, pela simples razão de que, se muitas vidas forem ceifadas, isso acabará por ser péssimo mesmo do ponto de vista económico (Carter, 2020). Noutros termos, quanto mais se perder "na frente", pior será também inevitavelmente "na retaguarda".

Se de um lado parece haver assim boas razões para desconfiar do verdadeiro caráter das pulsões convidando ao relaxamento dos controlos, por outro lado também é verdade que um coro de vozes (de novo, politicamente mapeáveis quer à esquerda quer à direita): nos vem alertar para a eventualidade de queda numa excessiva crispação controladora (Castro, 2020); nos indica que vulnerabilidades e resiliências psicossociais são em boa verdade aspetos a aferir quer face à pandemia em sentido estrito, quer face às condições de apoio médico, quer enfim relativamente ao próprio confinamento prolongado, ele mesmo fator doutras disfunções (Sadati et al., 2020); nos sugere, enfim, que a crise vai muito para além da covid, remetendo para a necessidade de interpelar vários traços definidores do chamado "antropoceno", ou pelo menos do "capitaloceno", tais como a poluição e o aquecimento global (Hanafi, 2020).

Todavia, sem negar a relevância de tais indagações de longo fôlego, parece-nos mais conveniente manter o nosso foco no assunto estrito da covid, desde logo porque se trata dum tema onde o excesso de informação pode facilmente desembocar no equivalente a desinformação; até porque esta, em sentido estrito, também abunda, por vezes propagada mesmo por fontes oficiais (Brennen et al., 2020). Para evitarmos aquele sentimento "de fracasso, de falência, de frustração e de decepção como momentos centrais da cultura emotiva e moral atual, profundamente envergonhada e ressentida em relação aos seus horizontes de projetos perdidos", como escreve R. B. Barbosa (2020), somos pois obrigados a manter a consciência do nosso propósito de análise, visando estudar um problema central que, embora decerto intimamente entrosado com vários outros (conforme destacado), continua a corresponder ao escopo da crise da covid.

Mais diretamente reconduzíveis à discussão da crise pandémica se nos afiguram entretanto as cogitações de F. G. Alcalá (2020), o qual, apoiado em K. Lynch (2008), argumenta que na análise sociológica da cidade moderna podemos sentenciar pela incapacidade de naquela se permanecer longamente em casa, dado que todas as atividades ocorrem ali no exterior, só se regressando a casa

para suprir as necessidades de descanso e alimentação ou para voltar de novo à rua com roupa lavada. A cidade que nunca dorme é favorável à vida social frenética. Voltar a casa era só uma necessidade ou um mero acidente duma vida social limitada.

Trata-se de aspetos a merecer uma atenção cuidada no presente, dada sobretudo a importância que, melhor ou pior, em oposição a essa inclinação cultural de fundo os confinamentos adquiriram, enquanto barreira colocada ao contágio do vírus; mas também em virtude das óbvias dificuldades em garantir aqueles, seja por pressão das necessidades económicas imediatas, pequenez das habitações ou por outro motivo.

Com um pendor apenas parcialmente coincidente, mas visando de forma mais circunscrita o problema da excessiva densidade populacional e da exiguidade das habitações em várias zonas urbanas e suburbanas onde a pandemia mais se tem propagado, G. Cotella e E. Brovarone (2020) procuraram pelo seu lado apresentar e discutir, nesse âmbito, "um grupo de argumentos a favor duma revisão dos modelos de urbanização existentes, rumo a alternativas que mudem o foco da dimensão urbana para as interações e sinergias potenciais que essa última pode estabelecer com o resto do território". A referida discussão teria o propósito central de

levar os fazedores de políticas nacionais e regionais a virar a sua atenção de novo para a valorização das relações urbano-rurais, a ser prosseguida através da melhoria progressiva das condições de vida das áreas rurais, tendo em vista o aprimoramento da resiliência do sistema como um todo.

Por último, fica outrossim uma nota relativa aos aspetos da crise mais estritamente etiquetáveis no âmbito da psicologia e da psiquiatria. Antes de mais, deve sublinhar-se que, como observam F. Ornell et al. (2020), "durante as epidemias, o número de pessoas cuja saúde mental é afetada tende a ser maior do que o número de pessoas afetadas pela infeção". As razões para isso são evidentemente múltiplas, importando notar que, conforme sublinhado por E. Vieta et al. (2020), "o confinamento é uma fonte de stress e ansiedade e certos pacientes podem descompensar". Todavia, as origens de possível perturbação são em boa verdade múltiplas, indo desde o burnout frequente nos profissionais de saúde, conforme destacado por P. Afonso e L. Figueira (2020), passando por patologias várias suscetíveis de serem causadas ou desencadeadas pelo próprio confinamento (alcoolismo, stress pós-traumático ou depressão), chegando até ao conjunto de dificuldades correlativas ao medo generalizado na saída daquele, podendo vir a desembocar em níveis anormais de ansiedade e stress crónico, naturalmente de acordo com condições muito variáveis, seja quanto à resiliência psicológica de cada um, seja quanto a circunstâncias "objetivas", tais como eventuais situações de desemprego, pobreza e outras.

 

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Correspondência:
João Carlos Graça
Instituto Superior de Economia e Gestão
Rua do Quelhas, 6
1200-781 Lisboa, Portugal
jgraca@iseg.ulisboa.pt

Rita Gomes Correia
Centro de Investigação em Sociologia Econômica e das Organizações
Rua Miguel Lupi, 20, Edifício Bento Jesus Caraça, gab. 203
1249-078 Lisboa, Portugal
ritagomescorreia@yahoo.com

Recebido em 22/7/2020
Aceito em 22/9/2020

 

 

1 Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), no âmbito do Projeto uidb/04521/2020.
2 Num sentido em boa medida oposto à linha de cogitação de Aronson e Tavris, veja-se o interessante texto de J. Spritzler (2020), o qual logo em princípios de abril defendia convictamente que, em nome de ideais igualitários e através dum esforço crítico genuinamente independente, se podia aferir pelo perigo real representado pela epidemia e pelo dever universal de respeito pelas restrições socialmente impostas como barreira à propagação do vírus, vendo nesse respeito pelas normas uma expressão eminente de conduta cooperativo-igualitária. Analogamente para D. Johnstone (2020).
3 De forma em boa medida análoga, mas mais dramática, R. Urie (2020) escrevia em "The neoliberal plague": "Para os que não estão familiarizados com A peste, de Albert Camus, vidas muito diversas são nessa obra reunidas durante uma praga que varre uma cidade argelina. Hoje em dia, através do surgimento dum vírus letal e altamente transmissível (coronavírus), nós, os povos do Ocidente, temos a oportunidade de reconsiderar o que significamos uns para os outros. A lição existencial é que através do pavor e da angústia podemos escolher viver, com as responsabilidades que essa escolha implica, ou simplesmente desaparecer".

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