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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo abr,/./jun. 2020

 

OUTRAS PALAVRAS

 

Terça-feira de manhã: lugares para a psicanálise na formação psiquiátrica1

 

Tuesday morning

 

Martes por la mañana

 

Mardi matin

 

 

Pedro Colli Badino de Souza Leite

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor trabalha na introdução clínica e teórica da psicanálise a médicos-residentes em psiquiatria, durante o estágio destes em psicoterapia. Através de uma vinheta clínica, o tema da obrigatoriedade de tal contato é ampliado e, então, discutido à luz do documento oficial do Ministério da Educação que regulamenta os requisitos mínimos para a formação de psiquiatras no Brasil.

Palavras-chave: psicanálise, psiquiatria, psicoterapia, formação, obrigatoriedade


ABSTRACT

the article's author works as a supervisor of medical residents in psychiatry, in their obligatory psychotherapy internship. Through a clinical case, the subject of obligatoriness is developed, and then discussed in the light of the official document of the Education Ministry which regulates the minimum requirements for medical training in Brazil.

Keywords: psychoanalysis, psychiatry, psychotherapy, training, graduation, obligatoriness


RESUMEN

el autor de este artículo trabaja como supervisor de médicos pasantes en psiquiatría en su curso obligatorio de psicoterapia. A través de una viñeta clínica, el tema de la obligatoriedad es ampliado y discutido a la luz del documento oficial del Ministerio de Educación, que regula los requisitos mínimos para la formación de los psiquiatras en Brasil.

Palabras clave: psicoanálisis, psiquiatría, psicoterapia, formación, obligatoriedad


RÉSUMÉ

L'auteur travaille dans les cours d'introduction à la clinique et à la théorie de la psychanalyse pour des médecins résidents en psychiatrie, pendant leur stage en psychothérapie. Au moyen d'une vignette clinique, on élargit le sujet de l'exigence de cet enseignement et, alors, on le discute à la lumière du document officiel du Ministère de l'Éducation qui définit les réquisits minimaux pour la formation des psychiatres au Brésil.

Mots-clés : psychanalyse, psychiatrie, psychothérapie, formation, exigence


 

 

Oferta de demanda, demanda de oferta

É provável que um psicanalista já tenha se encontrado na posição de atender algum paciente que não queria estar ali. São pessoas que se veem obrigadas a passar ao menos uma hora de sua vida conosco. As crianças, os adolescentes e os adultos chegam submetidos à dependência física e/ou emocional de suas figuras parentais. Há diversas apresentações clínicas, que variam de acordo com o maior ou menor grau de introjeção destas por aqueles. No melhor dos casos, o paciente consegue criar oposição e dizer textualmente "Só estou aqui porque minha mãe mandou" ou qualquer outra versão desse tipo de ideia. Nas situações mais difíceis, o próprio paciente ainda não sabe que está submetido à autoridade de certa figura.

As dificuldades metapsicológicas não tardam, uma vez que o jogo de identificações seguramente nos influencia. Podemos nos observar agindo de maneira autoritária, reforçando a prescrição anunciada, ou então construindo Pedro Colli Badino de Souza Leite junto ao paciente uma aliança rebelde contra tais personagens detentores do poder. A fluidez do processo primário pode ser ainda mais caleidoscópica. Há situações nas quais percebemos que o mesmo paciente que chega por submissão pode se identificar com sua figura de autoridade, passando a nos empurrar o papel da passividade, docilidade e obediência. Seja como for, um psicanalista trabalha de forma a entrar e sair desses papéis, privilegiando o âmbito psíquico sobre o âmbito motor (Agieren) (Freud, 1914/2010a).

Ao mesmo tempo que tudo isso acontece, há ainda uma tarefa que merece grande parte de nossa atenção. Enquanto o campo transferencial-contratransferencial vai se costurando, um analista buscará criar condições para que uma demanda especificamente psicanalítica possa se revelar em meio ao prosaico daquela conversa arranjada. Isso porque é curioso o fato, atestado muitas vezes pela experiência clínica, de que a recusa verbal por aquele encontro não coincide com a ausência da necessidade de - e mesmo do desejo por - tal trabalho.

Sobre essa situação, me ocorre a lembrança das sessões com um adolescente que me impuseram tais condições. Os pais estavam preocupados com seu isolamento familiar e social, e também com seu desinteresse escolar. Ele, por sua vez, não parecia estar preocupado com nada, literalmente. Desde a sua chegada, anunciara que não estava ali por vontade própria, e tolerava minha presença por conta de uma intrincada rede de negociações com os pais, a qual lhe oferecia algum acréscimo de liberdade física e material. As primeiras sessões se passaram praticamente em silêncio, e minhas investidas eram recusadas com desprezo. Fiquei surpreso quando, depois de algumas semanas, consultei os pais sobre a situação. Fiz contato para sugerir a interrupção dos encontros e, antes que eu pudesse ter a palavra, eles me agradeceram: achavam que o filho estava diferente. Ainda bem que não tive tempo de expor meus argumentos - recuei e voltei ao trabalho. Então, a dinâmica das sessões foi se transformando vagarosamente. Ele começou a atacar os elementos concretos de meu consultório: sujava as paredes com seus tênis desajeitados, arrancava os botões da poltrona, rasgava as folhas da minha querida planta. Dessa forma, minha ação durante suas horas foi se resumindo a pedir que ele não fizesse o que fazia. "Por favor, não suje a parede", "Por favor, não arranque outro botão", "Por favor, deixe meu bambu em paz" - tudo isso naquele tom sereno, de formação reativa, contendo minha raiva. E fomos assim, até que um dia a ferida narcísica doeu demais, e eu disse:

- Olha, não sei o que você vem fazer aqui. Você não quer falar sobre nada, me trata com esse ar de desprezo e superioridade, e além disso fica estragando meu consultório. Tem certeza de que você quer levar isso adiante?

Então, algo que eu nunca poderia imaginar aconteceu. Como se estivesse dentro de uma fantasia, ele abriu o zíper e alguém veio lá de dentro para falar comigo. Em um tom completamente diferente, ele disse:

- Cara, você conhece o Trump?

- Sim.

- Então, ele é um escroto, uma criança mimada.

- Sim.

- E daí tem o Congresso americano, que não pode deixar ele fazer o que quiser. Meu pai disse que os Estados Unidos têm uma democracia sólida, e que eles conseguem suportar um mau presidente. Eu sei que eu sou difícil, mas acho que me faz bem quando você fica me podando.

[Silêncio estupefato.]

Em seguida, ele veste novamente a fantasia, fecha o zíper, e a dinâmica continua. Com o tempo, as agressões vão ficando menos concretas; se transformam em dormir durante a sessão, jogar jogos no celular e sair antes do horário combinado. No fim de cada sessão, ele queria saber se poderia sair antes do minuto final ou se estava em cárcere privado. Começou a fazer seus testes. Aos poucos, o paciente percebeu que o acordo do horário servia a nós dois, ou seja, representava um princípio a ser respeitado por ambos. Quando ele se deu conta de que o tempo não era um instrumento de domínio de um sobre o outro, conviver com Mr. Trump foi se tornando um pouco mais suportável.

Assim, não devemos identificar a superfície de recusa ou de desprezo com a ausência de demanda pelo trabalho psicanalítico. Da mesma forma, mas pelo avesso, não deveríamos acreditar que tal demanda existe pelo simples fato de que pacientes podem afirmá-la verbalmente. A presença ou a ausência da inclinação por análise precisa ser constatada ao longo do convívio clínico, sempre em um segundo momento esclarecedor. Aqui temos o conceito freudiano de Nachtraglichkeit (Laplanche & Pontalis, 1967/2001). Quando eu me esqueci dessa ideia, confuso devido ao sentimento de raiva emergido dentro do campo transferencial-contratransferencial, os pais desse adolescente puderam refrescar minha memória.

Sobre tal necessidade enunciada pelo paciente, há dois elementos que merecem nossa atenção. O primeiro é sobre a sua qualidade, e o segundo é sobre o seu momento de origem.

A qualidade. O paciente parece formular seu pedido como a necessidade de uma vivência afetiva específica junto a mim: se eu o podo, isso lhe traz algum benefício. Arrisquemos uma tradução possível para a nossa linguagem. Ele diz que é importante que seu eu ideal seja castrado, que sua onipotência narcísica encontre limites, para que ele possa se inscrever dentro de um congresso, de uma democracia, de uma civilização balizada pelo ideal do eu. Do ponto de vista estético, esse momento aparenta estar mais próximo da atividade psicanalítica de dar à luz alguma experiência mental do que do trabalho clássico de trazer à luz algum elemento psíquico recalcado. O que é psicanálise: viver ou saber? Não quero me estender sobre esse ponto, porque ele nos levaria longe demais da linha de argumentação a ser priorizada. No entanto, acho oportuno formular a questão quanto a se viver e saber são dois conjuntos de fenômenos distintos ou se podem ser dois ângulos de um mesmo fenômeno. Em outras palavras, mesmo na compulsão à repetição mais monótona, nas atuações mais extremas, nos limites do polo motor de nosso aparelho psíquico - poderia existir ali alguma ambição de saber, de investigar? É possível comparar a repetição do que é traumático a um cientista que falha em inúmeros experimentos na bancada de seu laboratório? Dentro dessa discussão, que lugar ocupam nossos atos analíticos, intervenções de natureza paradoxal? Estamos criando novas marcas ou abrindo espaço para que certos elementos mentais ganhem representação simbólica? Ou os dois? Bem, são perguntas para alguma outra ocasião. No momento, sugiro que consideremos a necessidade de ser podado como uma necessidade analítica - seja a de viver uma experiência significativa junto a mim, seja a de saber sobre si, seja um pouco de cada uma das duas.

O momento de origem. Desde o início dos sintomas no quotidiano desse paciente até o ponto no qual ele me diz textualmente que lhe faz bem ser podado, onde no tempo estaria a gênese dessa necessidade? Alguns podem argumentar que ela está ali desde o início, surge com o sintoma e apenas se revela quando ele enuncia seu pedido. Outros, por sua vez, podem argumentar que ela se constitui apenas no instante em que o adolescente termina de dizer a frase da poda. Um terceiro grupo ainda poderia defender a ideia de que a necessidade analítica se forma em algum tempo entre esses dois, e que ela é revelada a partir do diálogo sobre o presidente norte-americano. Olhando o material clínico com cuidado, penso que não há como decidir por nenhuma das três possibilidades com segurança. Rastrear o momento dessa gênese talvez não seja uma tarefa possível. Mesmo assim, acho que podemos fazer ao menos uma afirmação fundamental. Não se pode excluir a possibilidade de que as sessões tenham realizado algum papel na constituição e na revelação dessa necessidade do paciente. Desse modo, se essa afirmação estiver correta, isso nos leva a dizer que em psicanálise a oferta pode induzir a demanda, o que tem uma implicação direta na técnica. Observando a clínica desse ponto de vista, há um bom argumento para, em alguns casos, obrigar crianças, adolescentes e adultos a ir até um psicanalista.

Tal conclusão provavelmente não provocará grande surpresa, pois, como dito antes, esse tipo de situação clínica não parece ser raro. Além disso, dinâmicas nas quais a oferta induz a demanda são bem conhecidas em nossa cultura. É fato que, em relação ao paladar, as crianças devem ser estimuladas a comer todos os tipos de alimento, até que seu gosto pessoal possa se singularizar. Para aqueles que recusam essa analogia por ser demasiadamente sensorial, há também o exemplo das escolas e universidades. Suponho ser uma característica universal do ensino acadêmico o fato de que crianças, adolescentes e adultos não detêm o controle total sobre o seu currículo. Deve-se experimentar de tudo um pouco para que, com o passar do tempo, cada um possa rechaçar e escolher temas dentro da maior amplitude de opções possível. E para além do sensorio e do intelectual, resta ainda o argumento afetivo, porque são conhecidos os casos nos quais o amor pode surgir dentro dos polêmicos casamentos arranjados.

 

Um abismo na legislação

Daremos agora três saltos de uma só vez: do consultório ao hospital, da clínica à formação, e da psicanálise à psiquiatria. Passaremos a analisar os requisitos mínimos para a formação de médicos psiquiatras no Brasil, conforme regulamentado pelo Ministério da Educação (mec). O interesse aqui é investigar a relação entre a psicanálise e esse programa ao qual todo psiquiatra em formação em nosso país deve se submeter.

O MEC promove tal regulamentação através de um documento que pode ser encontrado no portal do próprio ministério, a Resolução cnrm n.º 2 (2006). Quando examinamos o currículo mínimo exigido para a formação de psiquiatras em nosso país, podemos verificar que os termos psicanálise ou psicodinâmica não são citados. Em busca de algum representante da terminologia psicanalítica, também não encontramos inconsciente, pulsão (instinto, tampouco), Édipo, transferência ou contratransferência. A palavra mais próxima do nosso campo de saber teórico-clínico é psicossexual, que ocorre uma vez no texto. Cito a passagem: "O residente demonstrará conhecimento do crescimento e do desenvolvimento humano, incluindo os desenvolvimentos biológico, cognitivo e psicossexual normais, bem como os fatores socioculturais, econômicos, étnicos, sexuais, religiosos/espirituais e familiares". O grifo é de minha parte, justamente para realçar o termo que nos faz lembrar da pulsão sexual, conceito-alicerce do edifício psicanalítico, apresentado por Freud em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/2010b). No entanto, o vocábulo está posicionado ao lado da ideia de desenvolvimentos biológico e cognitivo normais, o que favorece certa leitura desenvolvimentista, linear e piagetiana da Sexualtrieb. Qual o efeito de leitura que a construção dessa frase produz? Talvez seja este: por um lado, a cognição evoluiria em quatro estágios - sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal -, um sucedendo o outro, com as progressões indicando desenvolvimento normal, e as fixações ou regressões equivalendo a patologias; por outro lado, a pulsão sexual evoluiria tal qual na sua própria sequência - fase oral, fase anal, fase fálica e fase genital -, ou então escalaria os degraus de desenvolvimento ao longo de sua relação com um objeto - autoerotismo, narcisismo e libido objetal. Qualquer que seja o caso, a leitura do parágrafo citado parece favorecer a tese de que os desenvolvimentos biológico, cognitivo e psicossexual compartilham as mesmas premissas. Curiosamente, o próprio texto freudiano parece dar certa margem para tal interpretação, e não é difícil encontrar colegas que pensam esse conceito dessa maneira. Entretanto, nada poderia estar mais distante de constatações clínicas a partir do viés psicanalítico, em que encontramos certa viscosidade da pulsão sexual, fluindo e se fixando ao longo dos dois eixos mencionados, sempre organizada de alguma forma pelo complexo edípico.

Desse modo, mesmo que o termo psicossexual seja mencionado no regulamento em questão, o potencial desse conceito nuclear é bastante abafado, para dizer o mínimo.

Por outro lado, se a psicanálise fica silenciada ou abafada, a palavra psicoterapia ocorre algumas vezes no texto oficial. Nele, encontramos dois itens que descrevem as competências a serem alcançadas por um médico-residente em psiquiatria ao longo de seu percurso:

5. O residente demonstrará habilidade para conduzir uma série de terapias individuais, bem como terapias de grupo e família, usando para tanto modelos aceitos que sejam baseados em evidência, além de integrar essas psicoterapias ao tratamento de modelo múltiplo, incluindo intervenções biológicas e socioculturais.

12. O residente demonstrará conhecimento das terapias psicossociais. Esse conhecimento inclui o seguinte:

- Todas as formas de psicoterapia (grupo, individual, familiar, comportamental e prática).

- Tratamento das disfunções de transtornos específicos.

- Relacionamento médico-paciente.

- Outras modalidades psicoterapêuticas.

O item 5 diz que os residentes devem saber "conduzir uma série de terapias individuais, bem como terapias de grupo e família, usando para tanto modelos aceitos que sejam baseados em evidência". É curioso o fato de que uma primeira leitura dessa expressão, "baseados em evidência", parece excluir o campo da psicanálise. Nós, psicanalistas, lemos o parágrafo e tendemos a nos perceber fora do grupo que foi ali delimitado. Isso se dá porque há atualmente uma falácia muito comum no campo psi. O colega Rogério Lerner a explicita no artigo "Trabajo de investigación con psicoanálisis en escala grupal: basamento en evidencias y consecuencias políticas":

Entre as diversas dificuldades que o trabalho com psicanálise tem que enfrentar atualmente, há a ideia de que o trabalho clínico não está baseado em evidências, ao passo que o trabalho clínico de outras linhas, sim, está. Em que consiste essa ideia? ... Mas alguém pode se perguntar: a afirmação de que o trabalho psicanalítico não é baseado em evidências se baseia ela mesma em evidências? (2018, p. 45)

Ao longo do texto, o autor argumenta que a origem dessa ideia está na medicina e no surgimento de um método de investigação científica chamado ensaio clínico. Trata-se de um método de alto poder estatístico para medir o efeito e a segurança de medicações em grandes grupos de pacientes. Além disso, esse método conta com a simpatia política e econômica da indústria farmacêutica, pois é através desses estudos que novas drogas são legitimadas cientificamente para serem então comercializadas. Assim, os ensaios clínicos geram novas informações, que são celebradas pela comunidade médica com o selo de qualidade "baseado em evidências". Com o crescimento e a disseminação desse método de pesquisa, certa dinâmica fálica parece ter se infiltrado no mundo científico. Pouco a pouco, os demais métodos de investigação passaram a responder pelo estado castrado-desvalorizado-não-baseado-em-evidência. Esse é o lugar atual da psicanálise, que desde o seu nascimento utiliza o método de estudo de casos para gerar conhecimento. A partir do referencial metapsicológico, buscamos levar cada análise que acompanhamos até o ponto mais distante possível, e esse aprofundamento de cada caso nos provê inúmeras evidências. Algumas delas nos ajudarão com outros casos, enquanto outras não poderão ser generalizadas. Usamos um método que, sim, produz evidências, e que se alimenta delas para refinar a prática clínica, a construção de conceitos e a formação de novos analistas.

No entanto, toda essa discussão não aparenta estar contida na expressão "modelos aceitos baseados em evidência" do item 5. Dessa forma, usarei a suposição de que os legisladores não levaram em conta a falicidade dos ensaios clínicos ao deliberar quanto a que práticas um residente deve saber conduzir. Com base nessa suposição, a psicanálise também não encontra espaço nesse item.

Passando ao item 12, aquele que lista os tipos de psicoterapia sobre os quais um residente deve demonstrar conhecimento. Aqui, sim, a apreensão da vida inconsciente tem espaço garantido. Não de forma nominal - psicanálise -, mas ao menos por generalização. Um residente "demonstrará conhecimento" de "todas as formas de psicoterapia" e de "outras modalidades psicoterapêuticas". É desse modo que a diretriz faz uma clara distinção entre demonstrar conhecimento e habilidade para conduzir. Alguém pode demonstrar conhecimento sobre botânica, mas não saber como conduzir o plantio de uma árvore - mexer com a terra, proteger as sementes, usar técnicas de poda para favorecer o crescimento etc. Um médico pode demonstrar conhecimento sobre o protocolo para dar más notícias a um paciente, mas não saber como conduzir a situação na qual precisará dizer a um ser humano que alguém de sua família morreu no hospital. Pois bem, é esse o abismo que existe entre os itens 5 e 12.

A partir desse hiato em relação ao lugar da psicanálise na formação psiquiátrica oficial, é possível especular sobre os efeitos quotidianos desse tipo de currículo. Por exemplo, imaginemos um residente durante um momento de avaliação formal, quando é arguido sobre as tópicas psicanalíticas. Se quiser ter bons resultados, ele responderá: consciente, pré-consciente e inconsciente; e depois: ego, id e superego (mesmo levando em conta que Freud nunca tenha falado em primeira ou segunda tópica). Em seguida, ao ser solicitado sobre o conceito de contratransferência, ele se apoiará na leitura que fez do Vocabulário da psicanálise, de Laplanche e Pontalis, e escreverá sua resposta: contratransferência é o "conjunto das reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e, mais particularmente, à transferência deste" (1967/2001, p. 102). Ele entrega sua prova e recebe uma boa nota, pois demonstrou ter conhecimento sobre nosso campo.

Mas será ele capaz de perceber e nomear as paixões que sente por seus pacientes? E como se conduzir com tais percepções experimentadas no corpo, à flor da pele, no calor da prática clínica?

 

Obrigação curricular, obrigação de provocar

Seria uma surpresa, a esta altura do artigo, a informação de que diversos centros de formação não se nivelam ao mínimo exigido pelo MEC? Apesar dos itens 5 e 12 da diretriz, a psicanálise está, sim, incluída na prática clínica de algumas instituições.

Na cidade de São Paulo, o contato com a psicanálise faz parte do currículo obrigatório de três dos principais centros de formação de psiquiatras -a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, e a Escola Paulista de Medicina. O programa de pós-graduação em psiquiatria das três instituições exige não apenas que os residentes demonstrem conhecimento sobre o tema, mas também que saibam conduzir psicoterapias a partir de supervisões de orientação psicanalítica. O mesmo não se passa em todos os centros de formação nacionais, mas esse tipo de estrutura curricular se repete em diversos hospitais-escola do país.

Investigaremos agora o que significa a obrigatoriedade da experiência analítica no contexto da formação dos médicos-residentes. Para isso, sugiro separá-los em três grupos distintos, dois deles ocupando polos opostos e o terceiro localizado na zona intermediária. Peço ao leitor que tolere a artificialidade desse agrupamento para que a exposição possa se beneficiar de uma clareza que não encontramos na complexidade do dia a dia. Sugiro que os três grupos não sejam percebidos como separados de forma radical, mas sim se sobrepondo em zonas de ambiguidade. Além disso, deve-se levar em conta que essa classificação só pode ser realizada a posteriori, ao final dos três anos de contato com os residentes em nossos grupos de seminários e supervisão. Somente assim obtemos uma medida um pouco mais justa da trajetória percorrida por cada um.

No primeiro grupo encontramos pessoas muito distintas, mas que podem ser reunidas por demonstrarem um traço em comum ao longo do tempo: o predomínio de uma pressão interna por saber sobre a vida inconsciente. Tal pressão é importante para a clínica e a teorização da psicanálise, e parece já ter sido trabalhada por diversos autores sob nomes diferentes. Epistemofilia (no caso em que o inconsciente é o objeto de curiosidade), desejo de análise, construção/introjeção do objeto de funções analíticas, vínculo +K, amor à verdade etc. É o mesmo traço que empurrou Freud na direção dos sonhos, dos lapsos, dos sintomas neuróticos, de sua autoanálise e da fundação de nosso campo de conhecimento. São sujeitos inclinados a procurar um analista em algum momento da vida, e cujo comportamento de frequentar um consultório, deitar-se em um divã e falar livremente coincide com a instalação do processo analítico. Para evitar idealizações de qualquer tipo, quero deixar claro que são pessoas que seguramente manifestam resistência e cujos sistemas de defesa atuam de modo constante. No entanto, sublinho a ideia de que, diante dos conflitos intrapsíquico e intersubjetivo, a pressão por saber tende a predominar ao longo do tempo. Nesse primeiro grupo, a obrigatoriedade do estágio clínico de orientação psicanalítica pode ser relativizada. Isso se dá porque tais sujeitos transmitem a impressão de que optariam por essa experiência em um ou outro momento, mesmo que isso não lhes fosse imposto por uma instituição. Aliás, não são raros os casos nos quais o residente diz que buscou a especialização em psiquiatria justamente por coincidir com a prática no campo psicanalítico. E não surpreende o fato de que muitos desses residentes procurem por formação psicoterápica e/ou psicanalítica ao longo ou ao término da formação psiquiátrica. Nesses casos, a discussão sobre a obrigatoriedade aparenta ser menos importante do que a discussão sobre como alguém se autoriza a atender. Ou seja, a obrigatoriedade do estágio poderia encobrir conflitos sobre as responsabilidades envolvidas no desejo de ser psicoterapeuta ou psicanalista? É uma questão que aproxima esses fenômenos à seara da formação psicanalítica.

Passando para o polo oposto, no segundo grupo encontramos os residentes nos quais o predomínio é exercido pelas forças contrárias. São sujeitos em que a resistência e as defesas sobrepujam a pressão por conhecer os aspectos inconscientes de si ou de seus pacientes. Mais uma vez, é preciso destacar que essa observação se limita ao período em que acompanhamos os médicos-residentes durante sua pós-graduação, e que certamente existem momentos de insight e elaboração valiosos. No entanto, o olhar com alguma distância revela que o aspecto defensivo prevalece ao longo dessa janela de observação. São pessoas que por vezes até procuram um analista, mas essa procura não é suficiente para instalar a situação analítica, e a neurose de transferência permanece obstruída in statu nascendi. Aqui, a obrigatoriedade dos seminários, dos atendimentos e das supervisões se faz sentir. Se por um lado a prática de orientação psicanalítica pode recrutar o desejo de saber sobre o inconsciente, por outro lado sua obrigatoriedade pode produzir o efeito contrário, tornando a resistência ainda mais vigorosa. No melhor dos casos, o residente consegue criar oposição e dizer textualmente "Só estou aqui porque meu currículo mandou" ou qualquer outra versão desse tipo de ideia. Ele explicita sua discordância com o estágio, tolera o estudo teórico, mas solicita que não seja exposto ao campo clínico. Nesses casos, a resistência e as defesas podem ser abordadas de forma mais sincera, e o debate pode acrescentar a ambos os lados. Nas situações mais difíceis, o próprio residente ainda não sabe que está submetido à autoridade de certa figura. A cena se torna mais complexa quando o residente aceita o estágio, mas usa o espaço de seminários e especialmente de supervisão como ponto de firme resistência. Em um trabalho intitulado "'Demanda de supervisão' e resistência à análise", Nathalie Zaltzman descreve um impasse semelhante:

Trata-se, neste caso particular, de uma grande resistência à psicanálise transformada em demanda de supervisão. Evidentemente, a resistência à análise não é de imediato aparente, senão a supervisão não teria sido empreendida. ... Percebe-se que o analista em supervisão justamente teoriza muito e muito pouco informa de sua prática. Ele fabrica uma colcha de retalhos de reflexões, de empréstimos fragmentários de teorias não apreendidas em seu conjunto, com uma tonalidade de sedução-reivindicação em que a trama da análise identificada como fio condutor da supervisão é difusa, alusiva, muito acessória, em que o vínculo com as referências teóricas pensadas obedece à lógica das associações do analista mais do que ao material do paciente. . Esse caso particular da clínica da supervisão racionalizada como uma urgência de teorização é uma forma muito disfarçada e sobretudo muito dificilmente acessível de demanda terapêutica. (1992, pp. 59-60)

Se mais ao início deste artigo havíamos constatado que, no campo psicanalítico, a oferta pode induzir a demanda, aqui passamos a afirmar o contrário. A oferta de atendimento clínico e a supervisão podem servir como resistência à psicanálise. E é assim que nos deparamos com o seguinte cenário: em um primeiro momento, a busca por supervisão indica pressão por saber; já no momento seguinte, a mesma busca indica pressão por não saber. Que estética caleidoscópica demonstra a resistência, não?

Como é de esperar, passaremos agora para a zona mais ambígua, o terceiro grupo de médicos-residentes, que têm sua identidade formada por não haver predomínio do primeiro nem do segundo conjunto de forças. Levando em conta as experiências dos últimos anos no hospital, esse grupo repetidamente se mostra o maior em termos numéricos. Ou seja, a maior parte dos médicos-residentes com quem convivemos não se coloca de forma passional em relação à psicanálise, mas dispõe de alguma permeabilidade a ela. São sujeitos que podem ou não procurar pelo divã, e que podem ou não instalar o processo analítico em suas sessões. Na maior parte das vezes, observa-se que tudo isso acontece e desacontece ao longo do tempo. Nesses casos, a obrigatoriedade do estágio por vezes alimenta o desejo de saber sobre a vida inconsciente, por vezes o desestimula, alternadamente. Quero enfatizar aqui o aspecto fluido e sem preponderância da balança. Se no decorrer dos três anos um desses lados se manifestar com mais intensidade, o sujeito passará a fazer parte de um dos dois grupos anteriores. Ao final desse tempo de observação, são pessoas que não estão inclinadas a se tornar psicanalistas, mas que ao mesmo tempo não se incomodam o suficiente com as rupturas que a psicanálise pode provocar.

Delineados os três grupos, gostaria de encerrar este trabalho com a circunscrição de um campo de pesquisa: os efeitos analíticos que ocorrem fora do contexto de um processo psicanalítico nos psiquiatras em formação. Por definição, esse campo exclui a priori os residentes que pertencem ao primeiro grupo. Nestes casos, a situação analítica se instala, o trabalho ganha corpo, e testemunhamos os efeitos mais robustos de nosso ofício clínico. Observamos psiquiatras que se beneficiarão dos diversos efeitos de sua análise, e alguns se tornarão psicanalistas ao longo de sua trajetória. As questões levantadas por esse grupo já vêm sendo examinadas pela nossa comunidade e pelos nossos institutos de formação há décadas.

Por outro lado, no segundo e no terceiro grupo, encontramos os médicos-residentes nos quais esse processo não irá ocorrer. Mesmo assim, o convívio com tais pessoas nos permite afirmar que os seminários e supervisões podem produzir efeitos analíticos - rupturas de campo que acontecem de forma menos sistemática, mais pontual. Penso que esse é um campo de pesquisa rico e pouco explorado, cujos resultados podem trazer impacto significativo sobre como compreendemos a clínica e a formação no campo da psiquiatria e da psicanálise.

Pela restrição de espaço, citarei apenas duas observações que se repetem ao longo do tempo dentro desse recorte de investigação. Elas tratam da tomada de consciência, por parte dos residentes do segundo e do terceiro grupo, de certas características da vida mental inconsciente no contexto de sua clínica.

A primeira se refere ao caráter alucinatório das manifestações transferenciais-contratransferenciais. Por exemplo, quando um residente, ao atender um paciente em psicoterapia, consegue se identificar e se desidentificar de certo objeto, e pensar sobre tal dinâmica. Não é raro observarmos que, a partir de uma experiência como essa, algo sobre sua capacidade de percepção muda. O residente começa a reconhecer a existência de deformações da instância Cs-Pcp por forças inconscientes/pulsionais, o que faz com que confie de maneira menos absoluta nos seus sentidos. Esse tipo de ganho analítico tem a capacidade de instabilizar a onipotência positivista que encontramos com frequência no campo da formação médica.

A segunda trata do absurdo descoberto por Freud, a existência de satisfação sexual nos mais graves sintomas psiquiátricos. Quando um médico consegue se deparar com esse fato, quando começa a vislumbrar a diferença entre demanda e desejo (Lacan, 1966/2001), algo é abalado. O furor curandi se revela mais uma das versões do eu ideal, e cada médico se vê diante de questões éticas profundas sobre o seu ofício.

Por fim, faço minhas as palavras de uma colega residente que ainda não sei situar em nenhum dos três grupos descritos. Sobre a obrigatoriedade do contato com a psicanálise durante a formação psiquiátrica, ela diz: "Não acho que devemos ser obrigados a gostar de psicanálise, mas acho que vocês [psicanalistas] têm a obrigação de nos provocar com o que sabem".

 

Referências

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Freud, S. (2010b). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 6, pp. 13-172). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1905)        [ Links ]

Lacan, J. (2001). O lugar da psicanálise na medicina. Revista Opção Lacaniana, 32,8-14. (Trabalho original publicado em 1966)        [ Links ]

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Zaltzman, N. (1992). "Demanda de supervisão" e resistência à análise. In C. Stein, M. Mannoni, J.-P Valabrega, N. Zaltzman, J.-F Rabain, T. Bokanowski, V. Smirnoff, A. De Mijolla, J. Cournut, J. Ascher & M. Masson, A supervisão na psicanálise (E. B. P. Leite, Trad., pp. 55-64). Escuta.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Pedro Colli Badino de Souza Leite
Alameda Hungria, 169
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Recebido em 14/6/2020
Aceito em 17/8/2020

 

 

1 Agradecimentos aos colegas psicoterapeutas e psicanalistas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (usp), pela interlocução, e a todos os médicos-residentes, pelo que me ensinam durante o convívio.

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