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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo abr,/./jun. 2020

 

PROJETOS E PESQUISAS

 

Diálogos entre psicanálise e comunidades tradicionais

 

Dialogues between psychoanalysis and traditional communities

 

Diálogos entre psicoanálisis y comunidades tradicionales

 

Dialogues entre la psychanalyse et les communautés traditionnelles

 

 

Tiago Julio Bonfada

Médico clínico geral. Membro efetivo e docente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ)

Correspondência

 

 


RESUMO

O autor pretende compartilhar sua experiência como psicanalista morador de Paraty (RJ), seu contato com as comunidades tradicionais existentes na cidade e como o conhecimento dessas comunidades transformou seu olhar sobre o adoecimento humano e ampliou seu conhecimento psicanalítico.

Palavras-chave: comunidades tradicionais, transmissão psíquica, sustentabilidade, psicanálise social


ABSTRACT

The author intends to share his experience as a psychoanalyst living in the city of Paraty, his contacts with the local traditional communities and how the knowledge of these communities transformed his view of human illness as well as increased his psychoanalytical knowledge.

Keywords: traditional communities, psychic transmission, sustainability, social psychoanalysis


RESUMEN

El autor pretende compartir su experiencia como psicoanalista residente de Paraty, sus contactos con las comunidades tradicionales existentes en la ciudad y cómo el conocimiento de esas comunidades transformó su mirada sobre el padecimiento humano así también amplió su conocimiento psicoanalítico.

Palabras clave: comunidades tradicionales, transmisión psíquica, sustentabilidad, psicoanálisis social


RÉSUMÉ

L'auteur a l'intention de partager son expérience en tant que psychanalyste habitant à Paraty, ses contacts avec les communautés traditionnelles qui existent dans cette ville et comment le fait de connaître ces communautés a modifié son regard concernant la souffrance humaine, aussi bien qui a élargi ses connaissances psychanalytiques.

Mots-clés : communautés traditionnelles, transmission psychique, développement durable, psychanalyse sociale


 

 

No desenvolvimento da humanidade como um todo, do mesmo modo que nos indivíduos, só o amor atua como fator civilizador, no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo.
SIGMUND FREUD

Ouvindo não a mim, mas ao logos, é sábio concordar ser tudo-um.
HERÁCLITO

É dessa afetação pelos outros que pode sair uma outra compreensão sobre a vida na Terra.
AILTON KRENAK

 

Introdução

No início de 2018, comecei, com alguns colegas psicanalistas, a construção do i Encontro Psicanalítico de Paraty: Diálogos com a Cidade, para o qual foram convidadas diversas lideranças comunitárias (quilombolas, ameríndios, caiçaras, estrangeiros e demais cidadãos de Paraty) para falarem de assuntos relacionados a temas complexos e difíceis que permeavam a realidade social da região, associando, em seguida, a fala de psicanalistas que agregaram seus conhecimentos para a ampliação do entendimento sobre os temas selecionados. Desse modo, foram inaugurados os diálogos entre o conhecimento social desses diversos grupos e o conhecimento psicanalítico.

Paraty é uma cidade ímpar no cenário brasileiro, tendo em vista sua composição multiétnica, que conta com representantes históricos que mantiveram uma luta permanente na preservação da cultura ancestral, dos seus modos de vida e da rica história local, que guarda as marcas dos diversos períodos de decadência e isolamento físico que sofreu nos últimos séculos. Portanto, possui uma memória social que desenvolveu hábitos, valores, crenças e costumes que a constituem e a representam, associando-se firmemente à identidade do Brasil e do brasileiro. A história do país passa por ela, que tão bem preserva sua riqueza na múltipla e abundante fauna e flora. Em função dessas características, em 2018, recebeu da Unesco o título de Cidade Criativa da Gastronomia e, em 2019, o de Patrimônio Mundial da Humanidade, na categoria mista de Cultura e Biodiversidade.

A relevância desses diálogos está na inclusão indissociável do indivíduo na idílica paisagem cultural e natural, objetivando a preservação de maneira a contribuir para o fortalecimento das manifestações dos povos e comunidades tradicionais que, no coração da cidade, encontram muitas dificuldades para se manterem coesas e estruturadas, devido aos inúmeros fatores que forçam sua desintegração. Entende-se a psicanálise como ferramenta que pode vir ao auxílio do reconhecimento identitário, justamente por ser rotina do psicanalista lidar com, e pensar, toda dificuldade que surge do psiquismo humano, seja em caráter individual, seja grupal.

Como desdobramento, foi produzido o livro Primeiro Encontro Psicanalítico de Paraty: diálogos com a cidade (Bonfada et al., 2019), lançado na programação do Sesc na xvi Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). O evento se repetiu em 2019, e no ano seguinte foi transformado em uma versão online, com novo nome: Diálogos Psicanalíticos com Paraty: Em Tempos de Pandemia. Após cada evento, senti a necessidade de buscar saber mais sobre a natureza desses grupos, e este trabalho é fruto desses estudos.

Seguindo as palavras de Tanis: "cabe a nós, como analistas e cidadãos, refletir e trabalhar na possibilidade de estabelecer parcerias com a comunidade para conhecer suas demandas e necessidades e os modos pelos quais a psicanálise poderá contribuir no resgate da cidadania" (2009, p. 27).

 

Sobre as comunidades tradicionais

Para entendermos mais sobre as comunidades tradicionais, faz-se necessário compreender alguns conceitos historicamente desenvolvidos.

O livro Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) com povos tradicionais, produzido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2019), tornou-se fonte riquíssima de conhecimento, pois realiza um amplo estudo histórico contextualizado das comunidades tradicionais, e, neste momento, farei uso extensivo de algumas descrições encontradas nesse livro.

Existe uma Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNDPCT), que é a definição jurídico-normativa de quem são os povos e comunidades tradicionais. Essa política representa as lutas dos agentes sociais pelo direito ao território, acesso e uso dos recursos naturais e direitos sociais básicos, e foi construída no decorrer de um longo processo que continua acontecendo.

O Brasil importou o conceito de parque nacional dos norte-americanos, que em 1872 criaram o primeiro parque nacional com vistas à preservação daquele país, chamado Yellowstone. Esse modelo desenvolveu legislações sobre áreas protegidas, porém não considerava as pessoas que nelas habitavam; ao contrário, buscava-se a retirada dos moradores desses locais, pois se entendia que a presença humana era uma ameaça à conservação da biodiversidade. Desde a criação, em 1948, da União Internacional para Conservação da Natureza (UICN) até 1967, quando ocorre a criação do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) - que desenvolve o Plano do Sistema de Unidades de Conservação do Brasil (1979) e o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) -, as áreas de proteção desconsideravam plenamente a existência de moradores, resultando em sua sumária expulsão.

Em 1975, surge a ideia de áreas protegidas que poderia ocasionar o reassentamento ou expulsão dos povos nativos/indígenas dos "territórios tradicionalmente ocupados". Somente em 1982 há uma mudança de paradigma da conservação: deve-se proteger as áreas naturais das pessoas, para protegê-las para as pessoas. Em 1989, é criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Só então, na Rio-92, há o reconhecimento: dos povos nativos/indígenas, comunidades locais e "povos móveis"; de suas culturas e direitos ao território e ao uso de recursos naturais; do seu papel e seus conhecimentos para a manutenção da biodiversidade; de sua participação equitativa e até autonomia na gestão ambiental das áreas protegidas.

No ano de 2000, com a Lei n.º 9.985, são definidas as populações tradicionais. Em 2002, a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (cnpct) - Decreto n.º 10.408/2004 - trata de mudar "populações" para "comunidades". No artigo 3.º do Decreto n.º 6.040/2007, são expressas três definições jurídico-normativas que apontam para a proteção e valorização das culturas populares, indígenas, afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional e que constituem o patrimônio cultural brasileiro. São elas:

I - povos e comunidades tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;

II - territórios tradicionais: os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária ... [entendendo-se que essa territorialidade pode ser urbana ou rural, temporária ou permanente, onde o grupo social se reproduz cultural, econômica e socialmente];

III - desenvolvimento sustentável: o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras.

Percebe-se o vínculo entre essas populações e o conceito de desenvolvimento sustentável, tão almejado na atualidade.

Algumas das características das comunidades tradicionais são: pequena produção mercantil; utilização de tecnologias simples e de baixo impacto ecológico; complexo domínio cognitivo do ambiente; modo de produção que pode ser híbrido (envolvendo trabalho assalariado) e não necessariamente voltado ao lucro como meta única e final; unidade produtiva familiar; relações comunais - costumam haver práticas de troca e intercâmbio intra e intercomunitários; ajuda mútua, solidariedade e organização sociopolítica.

Na configuração das comunidades tradicionais, as práticas produtivas, festividades, celebrações e tradições que ocorrem no coração dos grupos familiares possuem grande importância para as atividades econômicas, sociais e culturais, sendo transmitidas de geração a geração, constituindo-se na estrutura social, na memória coletiva e nas formas de viver em determinado território.

Compreender que essas experiências históricas, territoriais e comunitárias dos povos e comunidades tradicionais contribuem para o manejo da vida e estão presentes nas dimensões materiais, simbólicas e do sagrado/espiritual, possibilitando contato com diversos entendimentos e relações sobre o humano e seu meio, permite pensar que a ligação que essas comunidades têm com a natureza vai de graus de dependência até a simbiose. Essas comunidades possuem um sistema próprio de conhecimentos que as orienta sobre como estar no mundo, sobre a vida, a morte, o destino, enfim, sobre a cosmologia. Tal perspectiva abre novas possibilidades de entendimento a respeito de nossa condição humana, desde a ontogênese à epistemologia, pois traz a marca de um caminho percorrido coletivamente, permeado pela relação entre a espiritualidade e a interdependência de todos os seres e o meio.

Seriam essas pluralidades epistemológicas o lugar em que poderiamos encontrar novas respostas aos desafios contemporâneos socioambientais, de convivência, de respeito e de valorização das diferenças e da diversidade?

Para Gallo, "a definição mesmo do que é sustentável e saudável também só é possível em situação a partir do diálogo horizontal entre sujeitos, suas experiências e interesses, da ecologia de saberes" (2019, p. 36), e esse conceito se torna possível a partir da escuta empática desses povos.

Por estarem em um movimento diametralmente oposto aos projetos de desenvolvimento e progresso econômico vigentes, essas comunidades enfrentam questões complexas para a manutenção de sua sobrevivência e de seu modo de vida e para a defesa de seus territórios. Em Paraty, não poderia ser diferente: são recorrentes as disputas de território entre especuladores financeiros que visam em sua maioria ao turismo predatório e as comunidades tradicionais aqui remanescentes. O video Vento contra evidencia muito bem essa luta histórica dos caiçaras pelo direito de permanecer em seu território (Mattoso, 2016).

As comunidades tradicionais atravessam "um longo processo de invisibilização, epistemicidio e expropriação dos territórios pelos quais passaram e continuam passando em âmbito global, latino-americano e brasileiro" (CFP, 2019, p. 36). Grande parte dessas dificuldades traduz-se em sofrimento psiquico que, em muitos casos, transforma-se em psicopatologias individuais, coletivas e transgeracionais. Para Berry, "a necessidade de ser reconhecido por um ser humano, de ser distinguido em sua singularidade pode ser mais essencial do que a necessidade de amor" (1991, p. 18).

Para entendermos melhor a trajetória desses povos, precisamos nos lembrar de que seus antepassados, além de terem sido submetidos a condições escravas e visto o exterminio de fração importante dos povos indigenas, tiveram que lidar com a usurpação das riquezas minerais e vegetais de seu território. Soma-se a essas questões a intensa repressão e a destruição de seus símbolos, seu modo de vida e sua cultura, que ocorreram - e ocorrem - de forma violenta e traumática.

Outro conceito importante nessa colcha de retalhos é o de violência estrutural, que, segundo Minayo e Souza (1998, p. 8, citados por CFP, 2019, p. 46), seria um tipo de "violência gerada por estruturas organizadas e institucionalizadas, naturalizada e oculta em estruturas sociais, que se expressa na injustiça e na exploração e que conduz à opressão dos individuos". Essa violência oculta - que poderiamos também denominar inconsciente - encontrare presente nas relações políticas, domésticas, na conformação dos territórios e nas diferentes formas de discriminação; também está nos processos de migração maciça, industrialização, exploração econômica dos territórios e na organização social das cidades, expressando-se como "a colonização do pensamento dos povos colonizados, a imposição de valores e costumes, e a discriminação contra a religião e espiritualidade dos povos" (CFP, 2019, p. 46).

O racismo e o etnicismo frutos desse modelo civilizatório agem colocando os povos não brancos no lugar histórico de atraso, de pré-modernidade, de incapacidade intelectual e inferioridade fisica e psíquica (CFP, 2019). Como apontado por Galeano: "Bacon, De Maistre, Montesquieu, Hume e Bodin negaram-se a reconhecer 'homens degradados' do novo mundo como seus semelhantes. Hegel falou da impotência fisica e espiritual da América e que os indígenas tinham perecido ao receber o sopro da Europa" (2020, p. 68) - seria diferente na atualidade? Além de a diversidade contida nos saberes e na memória desses povos e comunidades ser considerada inferior, a violência e deslegitimação de suas práticas religiosas e espirituais resultam nesse epistemicidio.

Por outro lado, Gallo observa que o "grau de inserção ou de exclusão social pode ser entendido como determinante tanto do processo saúde-doença quanto da sustentabilidade ambiental e tem impacto significativo sobre a equidade social" (2019, p. 34). Neste momento, fica evidente que, para melhorar nossos indices sociais, faz-se urgente incluirmos esses "novos" conhecimentos oriundos das comunidades tradicionais, que pouco chegam aos meios acadêmicos e cientificos, valorizando dessa forma nosso patrimônio cultural brasileiro vivo.

 

Sobre o conhecimento psicanalítico

Qual seria a compreensão psicanalítica dos movimentos sociais, especificamente no caso das comunidades tradicionais?

Para entendermos psicanaliticamente o significado dos traumas vivenciados por essas comunidades e o valor de sua cultura viva, procurarei compreender como funcionam as transmissões psíquicas grupais e individuais entre gerações.

Em Psicologia de grupo e a análise do ego, Freud associa os processos de identificação - "a mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa" (1921/1996, p. 115) - aos laços mútuos existentes no sentimento de pertencimento a um grupo-comunidade. Aponta que "mesmo a mente grupal é capaz de gênio criativo no campo da inteligência, como é demonstrado, acima de tudo, pela própria linguagem, bem como pelo folclore, pelas canções populares e outros fatos semelhantes" (1921/1996, p. 94), de forma que podemos dizer que para Freud os processos de transmissão entre as gerações sustentam valores, crenças e diversos saberes que asseguram a continuidade grupal e cultural como a tradição.

Estudos da relação mãe-bebê e do grupo familiar ressaltam que essas vivências fazem parte das fundações do psiquismo humano, sendo o amor e devoção materna e familiar o ativador e organizador desse psiquismo, e estando sua falta associada a situações de angústias potencialmente desestruturantes e até catastróficas.

Segundo Kaës, "o sujeito se define cada vez mais no espaço intersubjetivo, mais precisamente no espaço e tempo do geracional, do familiar e do grupal" (1998, p. 180), de forma que esses processos de transmissão demandam um importante trabalho psíquico para sua manutenção, do qual "participam mecanismos de identificação junto a uma série de projeções-introjeções. Sua problemática atravessa e opera sobre o recalque e a culpa, envolvendo diversas categorias de interdição" (Correa, 2003, p. 36). Assim, as vivências e experiências ocorridas em gerações passadas contribuem de forma significativa para essa construção do psiquismo, tanto de sua subjetividade quanto de sua conflitiva pessoal.

Os conceitos de cripta e fantasma introduzidos por Abraham e Torok (1995) apontam para alguma vivência vergonhosa e/ou indizível que fica sepultada no psiquismo do sujeito, tendo efeitos associados a um segredo inconfessável, com o qual o sujeito é obrigado a lidar. Mantêm-se intactos e conservados longe da consciência; em termos tópicos, não seria nem inconsciente dinâmico nem ego, por isso a ideia de serem enterrados ou encravados entre os dois.

As criptas poderão transformar-se em fantasmas familiares, o que dependerá "da intensidade, da malignidade e da resiliência familiar" (Trachtenberg, 2017, p. 79), de modo que "o sujeito fantasma é, portanto, prisioneiro de outro sujeito, o sujeito cripta [e, assim,] nada pode ser abolido completamente; algo aparecerá em gerações seguintes, como enigma ou como algo impensado" (2017, p. 81). Haveria a possibilidade de pensarmos esses conceitos em níveis sociais? Estaríamos aqui encontrando as bases familiares para o conceito de violência estrutural anteriormente exposto?

As lacunas no ego provocadas a partir do fantasma se assemelham a uma chaga aberta que o sujeito procura camuflar. O fantasma tem como característica ser inconsciente sem nunca ter sido consciente, e seria fruto de uma transmissão inconsciente dos pais para os filhos, associado a uma ferida ou catástrofe narcísica. Nessa hipótese, segundo Correa, "fica evidente que, na cripta, existe um trabalho psíquico vinculado à pulsão de morte, postulada por Freud na segunda teoria das pulsões" (2003, p. 38).

Esses traumatismos (luto, vergonha, violência social) que permanecem sem elaboração psíquica constituem

uma verdadeira pré-história para as gerações seguintes, pela qual estão compulsoriamente atravessadas. As gerações futuras têm que lidar com uma experiência traumática que não é própria, mas sim dos pais, de quem dependem psiquicamente. Serão possíveis prisioneiros de sua pré-história. Serão as gerações fantasma. (Trachtenberg, 2017, p. 81)

Temos a impressão de que o processo de transmissão psíquica geracional, bem como todo conflito psíquico, demanda um trabalho psíquico constante, tanto de elaboração quanto de transformação. O vínculo social pode servir de suporte na busca desse processo de subjetivação e na procura de sentido, desde que esses indivíduos possam encontrar espaços para expressão e compreensão desses fenômenos, pois esses aspectos da transmissão psíquica entre as gerações trazem a marca da desorganização do espaço intrapsíquico e intersubjetivo.

Para Correa, o espaço psíquico do grupo familiar (intersubjetivo) é o local que possibilita a transmissão psíquica entre as gerações através de diversas modalidades. Segundo ele, "este espaço é delimitado por um envoltório de essência genealógica que se processa em contínua evolução, podendo ser modificado pelos acontecimentos internos ao grupo, pelas diversas crises vitais e acontecimentos tais como nascimentos, separações, mortes etc." (2003, p. 39).

Assim, podemos pensar na repercussão intragrupal das inúmeras atrocidades que esses povos e sua ancestralidade viveram e ainda vivem. A abolição da escravatura tem apenas 132 anos, isto é, quatro a seis gerações passadas. Em termos de transmissão psíquica, é muito pouco tempo. Todas as crianças são atravessadas pela cultura familiar e ancestral, que asseguram a continuidade geracional e a identidade familiar, "às vezes, ao custo de sua integridade psíquica e até mesmo somática, já que estes enunciados poderão contradizer suas próprias percepções internas e externas" (Correa, 2003, p. 41).

A dificuldade ou impedimento aos processos de simbolização podem estar associados a questões individuais ou coletivas: quando não se encontram lugares de compreensão ou de acolhimento para o indizível ou inominável que habita nas entranhas do sujeito ou do grupo. Tanto o silêncio quanto a ruptura dos vínculos grupais favorecem a compulsão à repetição e podem produzir defesas específicas - por exemplo, cisão, negação e identificação projetiva - na tentativa de manter um mínimo de homeostase emocional.

Para Correa, quando além da violência intrapsíquica superpõe-se outra violência, de nível social, isto é, quando a realidade traumática é denegada pela sociedade, seja a partir do contexto grupal comunitário, seja a partir de suas instituições, os mecanismos de defesa podem tornar-se ainda mais graves. "[A] falta do reconhecimento do traumatismo real produz uma violência enlouquecedora" (2003, p. 43).

Porém, não é transmitido apenas aquilo que é negativo. Kaës salienta que também é transmitido "aquilo que assegura e garante as continuidades narcísicas, a manutenção dos vínculos intersubjetivos, a conservação das formas e dos processos de conservação e complexidade da vida: ideais, mecanismos de defesa, identificações, pensamentos de certezas, dúvidas" (1998, p. 183). É a resiliência que responde à capacidade das comunidades tradicionais de suportarem, durante séculos, as múltiplas dificuldades já abordadas. Semelhantemente às vicissitudes do recalque, que tendem a ganhar força no inconsciente para retornar sob forma de sintomas, atos falhos e lapsos, as pessoas e grupos rechaçados pela sociedade podem encontrar força para permanecerem fiéis a sua cultura, independentemente da censura que os atravessa.

Por isso a importância da construção de espaços onde essas pessoas possam se fortalecer e se organizar, por exemplo como ocorre no Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba (FCT), movimento organizado das e pelas comunidades indígenas, quilombolas e caiçaras, iniciado em 2007; e no Observatório de Territórios Saudáveis e Sustentáveis da Bocaina (OTSS), instituição vinculada à Fiocruz, "uma das mais bem-sucedidas experiências de articulação e coprodução de conhecimento entre a academia e movimentos sociais" (Lima, 2019, p. 9).

Apesar de que "nem a família, nem a nação, nem a religião, nem a língua, asseguram ao sujeito o sentimento interior de sua identidade ... uma origem é sempre procurada, para enraizar a identidade" (Berry, 1991, pp. 14 e 19), de forma que, quando temos condições de compreender nosso passado, abre-se a possibilidade de uma melhor integração de diferentes partes de nós mesmos, valorizando-se por vezes partes rejeitadas ou desconhecidas até então, ou simplesmente deixando-se para trás aquilo que carregamos mas que não nos faz mais sentido. Podemos, então, descobrir nossa própria originalidade, liberando-nos, assim, do mito familiar que nos saturava com esta ou aquela característica predeterminada.

 

Questões

Estávamos no II Encontro Psicanalítico, em 2019, quando Ivanildes Kerexu, representante da comunidade indígena Guaranimbe, localizada no bairro de Paraty-Mirim, trouxe a cosmovisão de seu povo, que não entende este mundo dividido em diferentes países, isto é, desconhece as fronteiras que o "homem branco" criou. Para eles, existe um só mundo, fruto do deus Nhanderu. Durante sua exposição, sobre "Mitos, Crenças e Tabus", sua neta de aproximadamente 2 anos, que estava presente na plateia, subiu ao palco e sentou-se muito comodamente em seu colo. Ivanildes prontamente a acolheu. Então, começou a brincar de jogar um papelzinho para a avó, que logo lhe devolvia. Essa cena tornou-se singular: em um momento de trocas entre adultos, a avó não deixou de trocar com a neta, fato que em hipótese alguma ocorreria em outro cenário no qual não houvesse indígenas.

Nessa comunidade, o grupo todo trabalha junto e as crianças participam de forma muito ativa do dia a dia - e todos os adultos são responsáveis pelo cuidado das crianças. Estão sempre juntos. Numa de suas falas, Ivanildes relata que o homem branco não entende muito bem isso e, às vezes, ataca os indígenas como irresponsáveis com suas crianças, mas para eles é natural e importante que elas estejam sempre presentes, pois é assim que aprendem sua cultura ancestral e se desenvolvem. Esse rompimento com o universo de fronteiras traz, através de sua dança, arte, religião, música, a sensação de pertencimento: a um ritmo, a um movimento, a um grupo. Rocha bem explicita: "É impossível a manutenção de nossa identidade quando não nos sentimos pertencentes a um grupo e visíveis para os outros" (2009, p. 171).

Como psicanalistas, sabemos que o rompimento precoce do vínculo mãe-bebê produz na criança precondições para a desestruturação psíquica. Fiquei pensando nos custos psíquicos da terceirização - presente em nossa cultura - da maternagem e da paternagem. O que os conhecimentos dessas comunidades, que preservam de maneira muito viva seus costumes, hábitos, crenças, especialmente no cuidado e entendimento da vida em comunidade, têm a nos ensinar?

A psicanálise possui consistência teórica (fruto de sua prática) suficiente para apontar caminhos sustentáveis, ligados a pulsões de vida a serem seguidos; e caminhos insustentáveis, que levarão ao adoecimento. A transmissão do conhecimento psicanalítico em eventos, rádio, televisão, mídias, mesmo que não vinculado ao tratamento psicanalítico clássico, pode ser transformadora. Qual o compromisso ético do conhecimento psicanalítico se este fica restrito aos consultórios? Para onde estamos caminhando, e qual a nossa contribuição para a construção - ou desconstrução - do mundo em que vivemos?

Entender o sujeito humano de forma individual, sem considerar o meio em que habita, é uma forma de reducionismo do tratamento psicanalítico. Por isso, faz-se necessário que o sujeito possa responsabilizar-se por seus desejos, suas escolhas, seu corpo, e também pelo território em que habita. Todos esses aspectos merecem cuidado. Somos responsáveis pela realidade em que vivemos; responsáveis também pela construção dessa realidade, seja em nível micro, seja macro.

Assim como a psicanálise resiste a inúmeros ataques desde sua fundação, haja vista ser uma de suas características abalar os pilares sobre os quais a sociedade está alicerçada, por demonstrar o quanto o sujeito abre mão de suas pulsões instintuais para poder viver em sociedade, a ponto de adoecer por isso, as comunidades tradicionais também resistem, enfrentando a lógica do sistema que tende a preconceber seus modos de vida particulares como atrasados, impróprios ou até transgressores. Dessa forma, acabam sendo alvo da projeção do mal-estar que o modelo civilizatório dominante não consegue suportar, como se esse modelo dominante funcionasse na posição esquizo-paranoide, pois projeta para fora aquilo que é sentido como mau e, por isso, ataca aquilo que não compreende.

Quando decidimos fazer esses encontros enfrentamos diversos desafios, inclusive o de ter que lidar com nossa própria exposição fora da proteção do consultório, de sermos questionados sobre nossos próprios limites. Percebi, também, resistências oriundas dos psicanalistas que estiveram presentes, dada a estranheza e novidade daquilo que a comunidade estava dizendo. Se existem espaços psíquicos não localizáveis no inconsciente recalcado, nem no ego -esses territórios encravados fruto da transmissão psíquica -, poderiamos nós, psicanalistas, sermos reprodutores de uma cultura "higienista"? Para Kaës, que tem vasta experiência com grupos e instituições,

[o] que está reprimido ou renegado nos psicanalistas se transmite e se representa no grupo dos participantes e o organiza simetricamente: o que não é analisado e permanece reprimido, ou renegado, é objeto de uma aliança inconsciente para que os sujeitos de um vínculo garantam nada saber sobre seus próprios desejos. (1998, p. 185)

Quando uma sociedade apresenta capacidade de resiliência social, através de espaços que permitam a visibilidade e o reconhecimento dos seus integrantes, abre-se a possibilidade de elaboração desse traumático não elaborado. Segundo Montagna,

[a] cidade nos permite reconhecer-nos a nós mesmos quando ela nos exibe por reflexo nossa existência para ela. Quando a imagem do sujeito deveria aparecer e não se mostra, quando não há devolução de humanidade, vive-se a ausência de si.

Vive-se o vazio de não se ter a própria existência reconhecida. É o sujeito invisível na cidade. (2009, p. 162)

Os encontros ocorridos em Paraty acabaram sendo lugar de expressão, em diversos momentos, de reclamações, irritações, mal-estares, enfim, desamparos, que, por mais desconfortáveis e desagradáveis que fossem, foram acolhidos pelos psicanalistas presentes.

O lugar do analista, essa "profissão impossível", encontra-se no limite do tecido social, podendo ter contato com os mais diversos segmentos sociais, inseridos na contemporaneidade com todas as tecnologias e seus frutos, com todas as variações possíveis do humano, e traz consigo compromissos éticos e responsáveis por recompor esses laços sociais, bem como aqueles aspectos simbólicos perdidos, rompidos, atacados ou interditados. Para que isso seja possível, penso que precisamos nos colocar no centro das conflitividades, sobretudo naquilo que impede o reconhecimento das diferenças, de forma a produzirmos conhecimento e transformações a partir daí. Nossa bússola é poder encontrar sinais da expressão da destrutividade, seja em caráter individual, seja familiar, seja social - e trazê-los à tona.

Momentos como este que estamos vivendo, de crise e doença globalizada, são propensos a tornar mais explícitas nossas tendências, tanto destrutivas quanto construtivas, justamente por demonstrar nosso desamparo e medo diante do desconhecido. Na busca de compreensão do universo que habitamos, partimos do narcisismo para o altruísmo, da individualidade para a coletividade, conforme rompemos com nossa arrogância. Se o amadurecimento do ser humano está associado a uma ampliação de sua consciência sobre si mesmo, sobre o outro, sobre os animais, sobre o planeta, de que forma situações traumáticas podem facilitar ou impossibilitar essa transformação? Penso que uma das respostas advém da psicanálise, que através da conscientização dos nossos limites, dores e desconfortos proporciona uma ligação mais estreita com a vida.

O diálogo entre diversos saberes e práticas, oriundos de diversas fontes, pode contribuir na construção de um melhor entendimento sobre o momento que estamos vivendo. Freud nos ensinou que a psicanálise deflorou a terceira ferida narcísica no ser humano. Para onde apontaria a quarta ferida?

"A função da análise é elaborar, arranjar uma passagem entre o familiar e o estranho para permitir ao ego integrá-los" (Berry, 1991, p. 32). Portanto, estar consciente desses espaços psíquicos não pensados e transmitidos de forma geracional permite-nos encontrar caminhos para sua expressão e elaboração. Percebemos que determinados aspectos da configuração subjetiva do sujeito estão associados ao contexto sociocultural-histórico. A contextualização dos grupos sociais permite-nos compreender com maior amplitude as causas e processos etiológicos que podem estar afetando o sujeito, sem necessariamente enquadrá-lo neste ou naquele formato por pertencer a esta ou àquela comunidade.

 

Referências

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Correspondência:
Tiago Julio Bonfada
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Recebido em 3/11/2020
Aceito em 9/11/2020

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