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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo abr,/./jun. 2020

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Olhares negros nos importam: o paradigma Virgínia Leone Bicudo

 

Black perspective matters - the Virgínia Leone Bicudo paradigm

 

Miradas negras nos importan - el Paradigma Virgínia Leone Bicudo

 

Les regards noirs comptent - le paradigme Virginie Leone Bicudo

 

 

Paola Amendoeira

Membro associado da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBSB). Membro do subcomitê da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) junto à Organização das Nações Unidas (ONU) e do intercomitê da IPA para racismo e preconceito

Correspondência

 

 


RESUMO

História, memória, esquecimento e tempo. Temos em Virgínia Leone Bicudo um paradigma importante. É preciso conversar sobre trauma, sobre racismo e sobre a experiência e a vivência do pai da psicanálise. Virgínia rompe com o pacto patológico e social demonstrando pioneiramente a percepção inconteste da existência de uma discriminação específica, fundada no preconceito de cor.

Palavras-chave: racismo, preconceito de cor, memória, tempo, trauma


ABSTRACT

History, memory, forgetfulness, and time. We have in Virgínia Leone Bicudo an important paradigm. It is necessary to talk about trauma, about racism, and about the background and experiences of the father of Psychoanalysis. Virgínia breaks with the pathological and social pact by pioneering the undisputed perception of the existence of one specific discrimination based on a prejudice of color. It would be very interesting to bring all these readings together with Grada Quilomba, Achile Mbembe, Neusa Santos, Djamila, Akotirene, Lélia Gonzalez, Isildinha, Silvio Almeida, and many others and bring them together in an in-depth study in intersection with psychoanalysis.

Keywords: racism, color prejudice, memory, time, trauma


RESUMEN

Historia, memoria, olvido y tiempo. Tenemos en Virgínia Leone Bicudo un paradigma importante. Es necesario hablar de trauma, de racismo y de la experiencia y vivencia del padre del Psicoanálisis. Virgínia rompe con el pacto patológico y social al ser pionera en la percepción indiscutible de la existencia de una discriminación específica, basada en un prejuicio de color. Sería muy interesante juntar todas estas lecturas con Grada Quilomba, Achile Mbembe, Neusa Santos, Djamil, Akotirene, Lélia González, Isildinha, Silvio Almeida y muchos otros y unirlas en un estudio en profundidad y en intersección con el psicoanálisis.

Palabras clave: racismo, prejuicio de color, memoria, tiempo, trauma


RÉSUMÉ

L'histoire, la mémoire, l'oubli et le temps. Nous avons chez Virginie Leone Bicudo un paradigme important. Il est nécessaire de parler de trauma, de racisme, de l'expérience et du vécu du père de la psychanalyse. Virginie rompt le pacte pathologique et social tout en démontrant, en pionnière, la perception incontestée de l'existence d'une discrimination spécifique, fondée sur un préjugé de couleur. Il serait très intéressant de rapprocher toutes ces lectures de Grada Quilomba, Achile Mbembe, Neusa Santos, Djamila, Akotirene, Lélia Gonzalez, Isildinha, Silvio Almeida et bien d'autres, et les réunir dans une étude approfondie et liée à la psychanalyse.

Mots-clés : racisme, préjugé de couleur, mémoire, temps, trauma


 

 

Contar uma história é criar a narrativa de um tempo.
Não há história da memória sem história do esquecimento.
Para lembrar há que esquecer.
Enquanto memória, o passado tem futuro?
Memória como experiência do tempo.
É um engano pensar que o futuro não tem passado ou que o passado não tem futuro (Amendoeira, 2016).

Mas se a cultura atual vem paulatinamente eliminando o suporte para a memória, Virgínia Leone Bicudo surge como a semente que eclode enquanto revelação potente e vigorosa, apontando um sol para a psicanálise. Temos em Virgínia Leone Bicudo um paradigma importante. E, por favor, antes que achem exagero, espero a companhia de vocês nestes caminhos que têm um quê de crônica de novidades, mas que vão lá atrás no tempo.

Para isso, vamos precisar conversar sobre trauma, sobre racismo e sobre o pai da psicanálise. Freud era um judeu que se dizia ateu, mas que nunca negou suas origens. Ele conheceu bem, por experiência vivida e sofrida, a discriminação, o preconceito, a humilhação, a subalternização operada pelo ódio racial.

Todos conhecemos o mal-estar de Freud a respeito da falta de reação de seu pai à humilhação que sofrera na rua por ser judeu. Como fazia com frequência, Freud fala de si mesmo para demonstrar a importância da experiência emocional infantil nas formações e deformações dos sonhos:

Na realidade, eu vinha seguindo as pegadas de Aníbal. Como ele, estava destinado a não ver Roma. ... Mas Aníbal, com quem eu viera a assemelhar-me nesse sentido, fora o herói predileto de meus últimos dias escolares. Como tantos meninos daquela idade, nas Guerras Púnicas, simpatizara não com os romanos, mas com os cartagineses. E quando no curso superior comecei a compreender pela primeira vez o que significava pertencer a uma raça estrangeira, e os sentimentos antissemitas entre os outros rapazes me advertiram de que eu devia assumir uma posição definida, a figura do general semita elevou-se ainda mais em meu conceito. Para minha mente jovem, Aníbal e Roma simbolizavam o conflito entre a tenacidade dos judeus e a organização da Igreja católica. E a importância crescente dos efeitos do movimento antissemita sobre nossa vida emocional ajudou a fixar as ideias e sentimentos daqueles primeiros dias. Assim, o desejo de ir a Roma tornara-se, em minha vida onírica, o manto e o símbolo de grande número de outros ardentes desejos. Sua concretização iria ser perseguida com toda a perseverança e unidade de espírito do cartaginês, embora sua realização se afigurasse, no momento, tão pouco favorecida pelo destino como o foi o desejo de toda a vida de Aníbal de entrar em Roma. (1900/1972, p. 208)

E continua:

Nesse ponto, fui novamente confrontado com o evento de minha juventude cuja força ainda era demonstrada em todas essas emoções e em todos esses sonhos. Eu devia ter 10 ou 12 anos quando meu pai começou a me levar com ele em suas caminhadas e a me revelar, em suas conversas, seus pontos de vista sobre as coisas do mundo em que vivemos. Foi assim que, numa dessas ocasiões, ele me contou uma história para me mostrar quão melhores eram as coisas então do que tinham sido nos seus dias. "Quando eu era jovem", disse ele, "fui dar um passeio num sábado pelas ruas da cidade onde você nasceu; estava bem vestido e usava um novo gorro de pele. Um cristão dirigiu-se a mim e, de um só golpe, atirou meu gorro na lama e gritou: 'Judeu! saia da calçada!'" - "E o que fez o senhor?", perguntei-lhe. "Desci da calçada e apanhei meu gorro", foi sua resposta mansa. Isso me pareceu uma conduta pouco heroica por parte do homem grande e forte que segurava o garotinho pela mão. Contrastei essa situação com outra que se ajustava melhor aos meus sentimentos: a cena em que o pai de Aníbal, Amílcar Barca, fez seu filho jurar perante o altar da casa que se vingaria dos romanos. Desde essa época Aníbal ocupava um lugar em minhas fantasias. (p. 209)

São nessas experiências de intimidade entre pais e filhos que os "ensinamentos" familiares, geracionais e transgeracionais, vão sendo transmitidos de geração a geração. Freud está relatando sua vivência racial sendo internalizada e passando a mobiliar e colorir seu mundo interno. De todo modo, essa experiência abalou a imagem que tinha do pai, e ele foi tomado por fantasias de vingança, através da representação de Aníbal, que revelam sua forte identificação com a minoria, com a exclusão e com o não pertencimento, desde muito cedo na sua vida emocional.

Stoute (2020) retoma essa passagem e nos lembra que Aníbal, tido como um dos maiores estrategistas militares da história, era sobretudo um semita africano.

Agora podemos acrescentar, à coragem e à inteligência, a cor como elemento significativo dessa composição. Por meio dessas fantasias, Freud pôde criar um contorno para a raiva e as ansiedades que emergiram. Era forte a necessidade de encontrar um modelo que o ajudasse a lidar com os sentimentos de injustiça e humilhação mobilizados pelo racismo, já que não pôde encontrar em seu pai um exemplo.

Essa passagem mostra como não foi possível a Freud compreender e abarcar na sua teoria metapsicológica e psicodinâmica o impacto do trauma racial e a importância do vértice raça na constituição da identidade.

Vindo de onde veio, e tendo vivido tudo que viveu, é inquietante observar o quanto não foi possível para Freud incluir nas suas pesquisas a respeito das manifestações incomuns, anormais ou patológicas da mente a influência e o impacto da opressão, do contexto social, histórico e cultural.

Para Freud levar em conta as relações raciais, seria preciso enfrentar a realidade de reconhecer a importância da consciência do lugar de onde se fala, e a partir daí considerar que o lugar de onde se fala determina o campo de visão e o raio de ação. Foram necessários muitos anos até avançarmos ao ponto de a ideia de vértice poder ser pensada e conceituada psicanaliticamente por Bion.

Até então não tinha sido possível qualificar, reconhecer e investigar a cultura patriarcal, vitoriana, burguesa, eurocêntrica, heteronormativa e branca como promotora de um estado de funcionamento mental que, por meio do tipo de comunicação mais arcaico que temos, a identificação projetiva maciça, se livra de suas partes sentidas como sujas, feias, deformadas, indesejáveis e assustadoras, para dentro do psiquismo de um outro, que sem alternativa se vê invadido por essas projeções, até que se vê e se sente transformado nas próprias projeções do branco.

Somente após ter conseguido, numa intrincada negociação, sair às pressas de uma Áustria tomada pelos nazistas, e já vivendo em Londres, Freud pôde iniciar um percurso derradeiro e imperativo na segunda e última parte de Moisés e o monoteísmo. É dessa necessidade despertada pela experiência do exílio, desse lugar estrangeiro e deslocado de suas raízes, que se dá uma abertura interna para pensar e pesquisar a arqueologia da sua história e a história da sua identidade. Era essa a hora da virada, para integrar uma peça importante, a qual, ausente, criava uma lacuna intransponível. O que seria da teoria freudiana se ele tivesse podido analisar seu trauma racial, o racismo operando internamente e a marca do judaísmo no seu modo de ser e ver o mundo?

Não deu tempo...

Em setembro de 1939, cansado, desesperançado, com dores profundas no corpo e na alma, Freud se vai e deixa, entre tantos outros, esse vetor apontado, o terreno aberto.

No entanto, a sensação é que vivemos um longo inverno.

E enfim parece ter chegado o tempo em que poderemos conversar sobre racismo. Porque precisar, já precisamos há muito, desde sempre. A conversa, porém, é realmente difícil. Costumo dizer que se trata de um terreno minado, no qual cada mina tem um potencial nuclear, mas que, de todo modo, necessita ser olhado, visto, reconhecido e enfrentado.

Jurema Werneck, mulher, negra, lésbica, nascida no morro, médica e a maior representante da Anistia Internacional no Brasil, quando perguntada sobre o que representava a morte de Marielle Franco, respondeu: "Você consegue imaginar o quanto custou para a favela produzir essa mulher? Quanta gente precisou se mobilizar para ela ser o que era? Quanta energia foi interrompida com esse atentado? Foi o morro quem gerou essa mulher brilhante" (Werneck, 2018).

Virgínia Leone Bicudo, mulher, negra, educadora sanitária, socióloga, psicanalista e visitadora psiquiátrica. Ela foi, possivelmente, a primeira mulher brasileira a deitar no divã de um psicanalista da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), a fim de iniciar seu processo de tratamento. Com isso, foi também a primeira pessoa não médica a completar o treinamento e a se tornar uma psicanalista da ipa no Brasil, pioneira da psicanálise brasileira e fundadora da Sociedade de Psicanálise de Brasília, entre tantas outras realizações.

Como socióloga, ela é hoje reconhecida mundialmente por seu trabalho desbravador, tendo sido responsável pela primeira produção acadêmica brasileira sobre relações raciais no Brasil. Se em 1940 a diferença de cor ainda não era considerada uma base da desigualdade social, e a inclusão da reflexão sobre as diferenças sexuais estava longe da agenda, Virgínia mostrava-se uma mulher corajosa ao suscitar discussões impensáveis para o Brasil daquele tempo.

Para sustentar a fantasia social da época a respeito do paraíso racial brasileiro, a amnésia era recurso obrigatório e, com ela, o apagamento e o silenciamento. Virgínia rompe com o pacto patológico e social demonstrando pioneiramente a percepção inconteste da existência de uma discriminação específica, fundada num preconceito de cor, que se somava a várias outras categorias discriminatórias, promovendo intenso sofrimento psíquico.

Quanto tempo foi preciso para a cultura brasileira produzir essa mulher? E quanto tempo mais para podermos compreender, assimilar e valorizar a riqueza da sua e de tantas e tantas outras existências?

1945 foi o ano em que Virgínia, já formada psicanalista e socióloga, apresentou sua dissertação de mestrado: Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Da apresentação até o lançamento do estudo em livro (2010), foram necessários 65 anos, que impediram Virgínia de integrar internamente o testemunho e o reconhecimento da importância fundamental da sua contribuição/realização para a compreensão da trama emocional envolvida nas relações raciais.

Ela, psicanalista, socióloga e preta, esmiuçou e explorou o modo como as intersecções dos eixos de cor, classe social e gênero estavam envolvidas no sofrimento preto. Seu trabalho não apenas removeu a experiência e o sofrimento preto da marginalização e da patologização; acima de tudo, descortinou a responsabilidade crucial da branquitude como fator fundamental na promoção, manutenção e perpetuação do racismo. "Fomos, pois, conduzidos a formular hipóteses sobre as imposições sociais decorrentes da estrutura social, o que equivale a dizer que também procuramos nas atitudes de pretos e mulatos o reflexo da atitude dos brancos" (Bicudo, 2010, p. 157).

Em 1950, a convite da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), desenvolve um trabalho cujo objetivo era demonstrar os sentimentos e os mecanismos psíquicos de defesa manifestos nas atitudes relacionadas à cor entre alunos de escolas públicas em São Paulo. Esse trabalho representa a profusão de intersecções que Virgínia - e a negritude -atravessava, seja ao fazer cruzar a sociologia, a antropologia, a psicologia social e a psicanálise, seja ao procurar nos diversos cruzamentos de cor, gênero, raça e nacionalidade as particularidades e especificidades das atitudes raciais e das identificações cruzadas que as patrocinam.

Em 1951, Frantz Fanon, psiquiatra, negro e uma verdadeira lenda histórica, é impedido de defender sua dissertação de mestrado, publicada no ano seguinte em forma de livro com o título Pele negra, máscaras brancas (Davids, 2011).

Lembramos que Fanon, logo no início de seu texto, define seu trabalho como uma investigação das atitudes raciais. Ele vai demonstrar como "é totalmente indesejável, em um contexto colonial, ser preto, e, inversamente, como é sedutora uma identificação alienante com o branco. ... Na verdade a colonização da mente de outra pessoa" (Davids, 2011, p. 108).1 Ele procura fundir as culturas ocidentais e africanas, e vai além. Tentando um aprofundamento da compreensão da dinâmica racial, a partir do ponto de vista psicanalítico, Fanon reflete sobre até que ponto a leitura da formação das neuroses com base no eixo edípico é algo próprio a uma determinada cultura. Ele vai propor que a psicanálise avance e se abra para a importância de desenvolver uma teoria que envolva as categorias raciais como uma dimensão atuante no inconsciente.

Em 2011, 60 anos depois da obra de Fanon, Fakhry Davids, psicanalista filiado à iPA, com trabalho em Londres e referência no tema, afirma que ser preto num mundo branco é uma agonia. Considera que o racismo não deve ser abordado como uma área de psicanálise aplicada, mas como área própria para uma investigação clínica adequada. Para isso, Davids acredita que o trabalho pode permanecer dentro de princípios psicanalíticos. Argumenta que o racismo interno é uma característica universal e permanente da mente humana - como ele a chama, uma construção paranoica, nós-eles, envolvendo o si mesmo e o outro racial. O autor defende a necessidade de um relato psicanalítico que atenda à divisão raça/classe da forma como a teoria do complexo de Édipo atende à divisão de gênero.

No Brasil, Guerreiro Ramos e Virgínia Bicudo estão no mesmo campo conceitual das atitudes raciais que Frantz Fanon desenvolve e aprofunda poucos anos depois. Em 2013, Janaína Damaceno apresenta sua tese Os segredos de Virgínia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955), sob a orientação do professor Kabengele Munanga, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo (usp). Compartilho de seu interesse, tantas vezes expresso em suas falas, em aproximar as leituras mencionadas às de Grada Kilomba, Achille Mbembe, Neusa Santos Souza, Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Lélia Gonzalez, Isildinha Baptista Nogueira, Silvio Almeida e tantos outros autores e intelectuais que pensam o racismo, a fim de empreender um estudo aprofundado e em intersecção com a psicanálise.

Faço agora um breve mapeamento, fruto de um desbravamento pessoal desse território, indicando as publicações que, para este trabalho, considero as mais significativas. São publicações que nos permitem levantar o véu do apagamento, do silenciamento e do esquecimento.

• 1981: "Mulher negra, essa quilombola", de Lélia Gonzalez, mulher, negra, intelectual, política, professora e antropóloga brasileira, uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado brasileiro.

• 1983: Tornar-se negro, de Neusa Santos Souza, mulher, negra, psiquiatra e psicanalista, precursora do debate contemporâneo e psicanalítico sobre o racismo.

• 1998: Significações do corpo negro, de Isildinha Baptista Nogueira.

• 2002: "Branqueamento e branquitude no Brasil" e Pactos narcísicos no racismo, de Maria Aparecida Silva Bento.

• 2012: Entre o encardido, o branco, e o branquíssimo, de Lia Vainer Schucman, mulher, branca, doutora em psicologia social pela USP.

Quantos anos foram necessários para que nós, os brancos, conseguíssemos falar da nossa branquitude?

Quanto tempo mais será necessário até que possamos olhar para Virgínia e pensar a psicanálise e as relações sociais e raciais?

Quando poderemos, enfim, criar um espaço de reflexão sobre se de fato estamos sensíveis à diferença ou se continuamos bloqueados internamente, aproximando-nos da diferença apenas para aplacarmos uma consciência de culpa que insiste em aflorar?

Para nos mostrarmos modernos, antropofágicos?

Mas será que estamos realmente abertos?

Uma coisa é o que é dito. outra o que é experimentado... Outra ainda é a coisa contada. e outra o que é vivido.

É necessário poder levar em conta as raízes psíquicas inconscientes que patrocinam as práticas racistas para poder entrar em contato com a dor profunda e o dano que elas infligem a todos os envolvidos, perpetuando e mantendo essa dinâmica social. A principal força que opera no racismo encontra-se no nível inconsciente, de modo que é nosso terreno, e nossa responsabilidade, nos dedicarmos a compreender a amplitude desse estado mental.

Uma pergunta que volta com frequência é por que Virgínia abandonou, ao menos aparentemente, a investigação a respeito das relações raciais. Eu me pergunto se ela, como analista, supervisora ou professora, levava em conta a categoria raça para compreender as dinâmicas transferenciais e contratrans-ferenciais com seus pacientes, supervisionandos e alunos.

Freud reconheceu a importância de as mulheres se tornarem psicanalistas para a melhor compreensão da sexualidade feminina. Com isso, ele mostrava o quanto a psicanálise se enriquece e se amplia quando se abre à diversidade, e que esse convívio impõe um estado de disponibilidade interna à diferença, por meio da experiência emocional desse encontro como algo vital à psicanálise.

Por isso Virgínia é semente.

Por que foram necessários tantos anos para que essa semente eclodisse em nosso solo, mostrando todo o seu vigor e magnitude?

A partir de agora, pensar psicanaliticamente a complexa dinâmica psíquica inconsciente que sustenta, mantém e perpetua o racismo e a desuma-nização de vidas é urgente. Isso porque a homogeneização e a massificação não parecem um modelo adequado e favorável ao bom desenvolvimento da humanidade.

Pelo contrário, o incremento da capacidade para tolerar frustração só pode ser experimentado por meio do encontro com o outro. É nesse território que se pode exercitar, e melhor trabalhar, o convívio e a aprendizagem, mediante as experiências vividas, o respeito, a consideração e o reconhecimento de outros modos de existência que não os nossos.

Nesse contexto, Virgínia é a semente para uma psicanálise que se pretende plural e respeitadora das diferenças. Quem sabe o quanto poderemos avançar a partir daí?

28 de julho de 2020: 84 anos de psicanálise no Brasil. Nossos colegas Wania Cidade e Ignácio Paim nos questionam sobre a participação de pretos e pretas em nossas instituições. Qual é a cor da psicanálise que queremos? O que podemos fazer para incrementar nossa paleta de cores até o ponto em que seja possível ver em nosso grupo um retrato mais realístico do Brasil que nós somos?

 

Referências

Amendoeira, P. (2016). Língua. Jornal Associação Livre, 7,24-25. https://bit.ly/3mT8Luy        [ Links ]

Bicudo, V. L. (2010). Atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Sociologia e Política.         [ Links ]

Damaceno, J. (2013). Os segredos de Virgínia: estudos de atitudes raciais em São Paulo (1945-1955). Tese de doutorado, Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Davids, M. F. (2011). Internal racism: a psychoanalytic approach to race and difference. Palgrave Macmillan.         [ Links ]

Freud, S. (1972). A interpretação de sonhos (J. Salomão, Trad., Vol. 4). Imago. (Trabalho original publicado em 1900)        [ Links ]

Stoute, B. J. (2020). Is black rage the mitigating force that will save us? [Texto não publicado]         [ Links ].

Werneck, J. (2018, 14 de abril). Jurema Werneck: a voz da resistência [Entrevista com Adriana Ferreira Silva]. Geledés. https://bit.ly/32nJ5i2        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Paola Amendoeira
Edifício Victoria Office Tower
Saus quadra 4, bloco A, sala 1127
70070-938 Brasília, DF
Tel.: 61 3323-4327
paolamendoeira@gmail.com

Recebido em 3/11/2020
Aceito em 9/11/2020

 

 

1 "How utterly undesirable, in a colonial context, it is to be black, and, controversely, how seductive an alienating white identification is. ... In effect colonizing another person's mind."

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