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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo Apr./June 2020

 

RESENHAS

 

Melanie Klein: autobiografia comentada

 

 

Luís Claudio Figueiredo

Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ)

Correspondência

 

 

Organizador: Alexandre Socha
Editora: Blucher, 2019, 219 p.
Resenhado por: Luís Claudio Figueiredo

 

 

Autobiografia, memórias, confissões: o que Melanie Klein realizou em sua escrita de si?

Sabemos que as escritas de si podem ser realizadas como uma assumida autobiografia,1 como memórias2 e como confissões,3 sem que esses gêneros literários possam ser diferenciados com total e indiscutível nitidez. Embora o material deixado por Melanie Klein, e até há pouco inédito, nos seja apresentado como uma autobiografia, sua leitura me pareceu corroborar a ideia de uma inevitável confusão entre os gêneros. O que sabemos, com certeza, é que não é um diário, mas um texto cujas várias partes iam sendo escritas a partir das suas recordações, quase todas de episódios bem antigos.

Muitas vezes, pareceu-me dotado de um valor sobretudo memorialístico, ainda que ela estivesse, em geral, no centro do palco; outras vezes, pareceu-me uma confissão do que julga terem sido seus "pecados" e também suas ambições, realizações e méritos; e há, inegavelmente, uma tentativa de contar ou reconstruir alguns trechos da sua trajetória, desde os ancestrais até os descendentes, no âmbito da família e no âmbito da comunidade psicanalítica. Essa dimensão mais estritamente autobiográfica e historiográfica é a que menos me interessou, na leitura que fiz das 54 páginas de sua autoria agora publicadas. Sobre o texto com pretensões historiográficas, aliás, pesam as possíveis críticas de lacunas e incongruências. Já as suas memórias do ambiente sociocultural da infância e da adolescência, e de personagens e acontecimentos relevantes nos primórdios do seu desenvolvimento pessoal, intelectual e profissional, assim como as suas confissões do que a retinha, aprisionava, amargurava, angustiava, deprimia e, em contrapartida, do que a movia adiante, e ainda do que esperava para o futuro remoto, posterior à sua morte, me pareceram muito interessantes. Nesse âmbito, mesmo as evidentes "falhas de memória" não atrapalham a leitura (principalmente se confrontadas com informações adicionais, trazidas nas notas de rodapé e no anexo escrito por James Gammil). Também a dimensão confessional nos põe em contato com verdades emocionais da autora que não dependem de nenhum confronto com dados factuais.

Essa problemática relativa à eventual intenção autobiográfica e historiográfica foi bem assinalada na apresentação de Alexandre Socha, ainda que ele tenha ido por um caminho ligeiramente distinto do que estou seguindo aqui: embora tome como base de suas considerações o texto clássico de Lejeune sobre O pacto autobiográfico (1975/2014),4 minha argumentação segue um caminho um pouco diferente. De certa maneira, o que sugere Socha é que o texto tem mais valor como memória - a qual, longe de nos apresentar um registro objetivo do que se viu, ouviu e viveu, é por isso mesmo dotada de uma força subjetiva reveladora - e como confissão - em que a força da subjetividade é ainda mais evidente.

Também é possível, decerto, ler o pequeno texto dito autobiográfico apenas para reencontrar nele questões da teoria e da técnica kleiniana, mas isso não nos leva muito longe. Bem ao contrário: para ter acesso a essas questões, mais vale ler os textos efetivamente publicados por ela, pois no presente material elas aparecem de passagem e de forma muito pouco clara. Nessa medida, o capítulo de Robert Hinshelwood não acrescenta muito, e supor que o interesse de Melanie Klein pela questão da angústia se deva ao fato de ter sido uma menina angustiada fica entre o especulativo e o óbvio: que criança não o é? E quantas crianças angustiadas tornam-se grandes psicanalistas? Mas, enfim, o próprio autor resolve ler a "autobiografia" na chave da confissão, focalizando, por exemplo, a ambição - a transformação da ambição pessoal em ambição em termos de valor e futuro de seu trabalho. Do mesmo modo, o envelhecimento de Melanie Klein e seu retorno memorialístico aos primór-dios justamente quando se angustia quanto ao porvir, que marcam o conteúdo e o tom afetivo do relato, pertencem claramente à dimensão confessional do escrito. A esses temas retornarei adiante.

Liana Pinto Chaves está certa quando diz que "quem aparece não é a grande pensadora, criadora de uma das mais importantes teorias da psicanálise" (p. 111). Claro, mas falta dizer que quem aparece em negativo - ou nas coxias do teatro - é uma senhora de mais de 70 anos (o texto foi sendo escrito entre 1953 e 1959), já vendo a morte se aproximar, mas ainda vorlaut (atrevida), como o fora desde sempre. Esse atrevimento teórico e técnico está no âmago de toda uma trajetória de enfrentamentos, superações e realizações extraordinárias. Essa menina vorlaut foi uma adolescente, uma adulta e uma senhora idosa sempre atrevida, cheia de vitalidade e projetos, como assinala Liana. Mas vai se transformando, e nesse pequeno texto dito autobiográfico o que vem à tona é justamente a persistência do atrevimento diante da morte, um atrevimento que traz consigo tanto o destemor quanto a necessária reconsideração de sua vida; trata-se, enfim, de um trabalho de elaboração da mortalidade.

Feitas as contas, que saudade daquela mãe, daqueles dois irmãos -Sidonie e Emanuel -, daquela família unida, resiliente, e até daquele pai que preferia a irmã mais velha e dizia isso com a maior sem-cerimônia! Tudo pode parecer muito idealizado, uma resposta ao fundo depressivo que trazia consigo, mas o que vejo nesse momento é saudade e uma imensa gratidão diante de todos, até do marido, Arthur Klein, com quem não tinha afinidades, mas de quem ficou com o sobrenome pela vida afora. Gracias a la vida, como disse Violeta Parra, que me ha dado tanto. Um belo final para um longuíssimo processo de luto, iniciado ainda cedo com a morte da irmã querida, quando Melanie Reizes tinha apenas 4 anos, a morte do pai, a morte do queridíssimo irmão, a morte da mãe, a morte do filho mais velho...

A gratidão, aliás, é reconhecida no texto de Meira Likierman, citado por Liana. E faz parte da elaboração dos lutos a abertura ao porvir na figura dos netos, os novos queridos - se a sorte ajudar, os novos atrevidos. Enfim, como diz Liana Pinto Chaves, "um texto amoroso, de acerto de contas" (p. 129). Não se trata, assim, de uma versão idealizada da história, o que teria obstruído a criatividade e os processos de luto. Ao contrário, é a consumação do luto e das realizações que resgatam, redimem e absolvem até os velhos contratempos e obstáculos. Não é idealização, é gratidão, como na máxima do amor fati preconizada por Nietzsche. E é com um texto literário que fala, a seu modo, da alegria de existir e testemunhar - uma ótima poesia de Luiz Meyer - que esse capítulo se encerra.

Em seguida, encontramos um texto academicamente muito bem realizado por Claudia Frank, mas que quebra bastante o tom que Melanie Klein deu ao seu escrito e que foi bem apreendido no capítulo de Liana. Não traz novidades para quem está habituado a ler os textos de Klein, a biografia disponível de Phyllis Grosskurth e os textos da grande controvérsia ocorrida na década de 1940 na Sociedade Britânica, mas pode ser de interesse para os demais leitores. Trata-se, enfim, de um texto historiográfico competente, vastamente documentado e bem apresentado. Mas, como disse antes, o interessante no texto de Klein agora publicado não é em absoluto sua dimensão de história, de biografia no sentido estrito. Por isso, passei pelo capítulo de Frank com alguma impaciência.

O tom mais pessoal - tanto o do texto comentado como o da própria comentadora - retorna no capítulo de Izelinda Garcia de Barros. Embora leve em conta outras fontes de informação, é da pessoalidade de Melanie Klein - mulher, mãe, psicanalista - que Izelinda trata. Curiosamente, o primeiro item intitula-se vorlaut, palavra em alemão mantida nos textos em inglês e português e que já tinha me chamado muito a atenção quando li as notas "autobiográficas" de Melanie Klein. Lá a tradução fora atrevida; aqui, em nota de rodapé, Izelinda esclarece que literalmente significa "pré-alto", uma condição de precocidade que contrasta imediatamente com a condição de caçula entre os irmãos, todos mais velhos e, ao menos de início, mais altos que ela.

A ênfase do capítulo de Izelinda, ao contrário do que encontramos no texto de Liana Chaves, está justamente nas origens e raízes, no primordial ou precoce dessa menina esperta e ambiciosa, que entra em depressão pelas várias perdas de entes muito queridos e, mais ainda, pela perda de horizontes amplos o bastante para a realização de seus sonhos grandiosos. Melanie Klein sai dessa condição pelas mãos da psicanálise, mais especificamente pelas mãos de Sándor Ferenczi.

Izelinda Barros assinala a importância desse grande psicanalista para a vida e para a trajetória teórica e clínica de Melanie, a primeira psicanalista que devia sua vida à psicanálise e a ela devolveu sua dívida com absoluta dedicação e visceralidade. A psicanálise parece ter sido fundamental para o desenvolvimento de seu potencial como mulher, como mãe (a partir principalmente do caçula, Eric) e como avó, e todas essas condições foram decisivas para seu desenvolvimento como psicanalista de crianças e adultos. Izelinda acentua a forte presença da experiência da gestação, com seus mistérios, na formação da mente psicanalítica de Melanie Klein, o que me fez lembrar de Nelson Cavaquinho afirmando que "cobra não morde uma mulher gestante porque respeita seu estado interessante". A ideia de uma teoria e de uma prática que nasçam desse "estado interessante" e do que vem a seguir, nas relações íntimas e viscerais entre a mãe e seu bebê, já fora enfatizada por Janet Sayers, a quem Izelinda presta grande atenção.

O que talvez pudesse ser acrescentado a esse capítulo é precisamente o que nos foi possível conjeturar a partir do texto de Liana Pinto Chaves: trata-se de uma senhora de mais de 70 anos reconstituindo sua trajetória de vida na forma de uma elaboração de lutos e realizações, de um "amoroso acerto de contas", como disse Liana, de um autêntico agradecimento. "Tudo vale a pena se a alma não é pequena", conforme o poeta. Nessas notas ditas autobiográficas, Melanie Klein nos conta como sua alma se alargou, como cresceu, com a vida, com a maternidade, com as perdas e com as conquistas, com os sonhos aparentemente perdidos (na época do casamento com Arthur) e com os realizados e ainda por realizar. É o que ela tem a legar aos netos, especialmente a Michael, mas também a todos nós, psicanalistas, netos ou bisnetos da "açougueira genial", como disse certa vez Lacan, movido certamente por uma pontinha de inveja.

Essa genialidade está no cerne do relato de James Gammil, apresentado como anexo. Embora não seja um comentário centrado nas notas autobiográficas (que são, porém, mencionadas de passagem), o capítulo de Gammil traz a vivacidade de um testemunho: ele fala de suas experiências pessoais com Melanie Klein e nos faz um retrato muito vivo dessas experiências. Vemos Klein na sua intimidade profissional, por assim dizer, como supervisora, como analista e como colega. Pareceu-me um texto bastante eficaz em nos mostrar de que maneira Melanie Klein realmente trabalhava, incluindo, por exemplo, uma sagaz observação de Betty Joseph (nota 4), comentando o texto de James Gammil, a respeito da posição de Klein sobre o uso da contratransferência. Esse anexo contém ainda diversas observações interessantes sobre Melanie Klein no contexto da política institucional da Associação Psicanalítica Interacional (ipa). Sobre isso, achei notável um trecho da conversa com Gammil: "O senhor sabe, não sei se a minha obra vai ser destruída por meus partidários mais fervorosos ou pelos meus piores inimigos" (p. 205).

Uma verdade, que se estende, aliás, a autores como Lacan ou Winnicott. Grandes autores às vezes produzem esse efeito, que nos faz lembrar de uma frase atribuída a Oscar Wilde: "Senhor, livrai-me dos amigos, que com os inimigos eu me arranjo". No caso, Klein reclamava da "teimosia" de analistas kleinianos, mais realistas que o rei, que insistiam em interpretar a inveja diante de um material em que não parecia a Melanie Klein haver nenhum fundamento para isso. A difusão dos ensinamentos de Klein dessa maneira dogmática e repetitiva, certamente, acabou criando certa aversão a ela, mesmo em gente que não a leu e não a conhece. Enfim, o texto de James Gammil me pareceu extremamente bom, agradável de ler e oportuno, por permitir um encontro diferente e mais livre com suas ideias e com seu estilo, fechando muito bem este pequeno volume.

Posso agora retornar ao título desta resenha: "Autobiografia, memórias, confissões: o que Melanie Klein realizou em sua escrita de si?".

Uma biografia - e uma autobiografia - tem a obrigação de registrar os percalços, as vicissitudes, as contrariedades, as resistências, as quedas e toda a gama de sentimentos hostis que fazem parte da luta de uma existência. Tomado como autobiografia, o texto deixaria muito a desejar. Por isso, prefiro vê-lo como memórias e confissão. Mas há nele algo especial: o trabalho de luto concluído, a reconciliação com a história e o passado, o acerto de contas pelas realizações, a gratidão e a aposta no futuro. Há nele paz, amor e sabedoria.

Esse é o legado de alguém que se prepara para passar o bastão, e isso vai além das memórias e da confissão. Retorno a Fernando Pessoa em sua versão do amor fati: "Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena". Trata-se, no fundo e no mais íntimo de sua natureza, de um trabalho de Melanie Klein, com Melanie Klein, para Melanie Klein - algo que, provavelmente, não devia nem precisava ser publicado, mas ao qual, já que foi, podemos nós também ser gratos na intimidade, discretamente.

 

Referências

Delhez-Sarlet, C. & Catani, M. (Orgs.). (1983). Individualisme et autobiographie en Occident. Université de Bruxelles.         [ Links ]

Lejeune, P. (2014). O pacto autobiográfico (J. M. G. Noronha & M. I. C. Guedes, Trads., 2.ª ed.). UFMG. (Trabalho original publicado em 1975)        [ Links ]

 

 

Correspondência:
Luís Claudio Figueiredo
Rua Alcides Pertiga, 65
05413-100 São Paulo, SP
Tel.: 11 3086-4016
lclaudio.tablet@gmail.com

 

 

1 Como a de Arthur Koestler.
2 Como as Memórias de além-túmulo, de Chateaubriand.
3 Como as Confissões, de santo Agostinho e de Rousseau.
4 Sobre toda a problemática dos escritos de si, sugiro a leitura das atas do Colóquio de Cerisy-La-Salle de 1983, intitulado Individualisme et autobiographie en Occident (Delhez-Sarlet & Catani, 1983), em que Lejeune apresentou um trabalho ao lado de dezenas de outros estudiosos, que focalizaram também memórias e confissões.

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