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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo abr,/./jun. 2020

 

RESENHAS

 

A metapsicologia de Christopher Bollas: uma introdução

 

 

Chagas Diefenthaeler

Psicanalista. Membro associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA). Mestre em clínica médica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Preceptor da residência e do curso de especialização em psiquiatria da PUCRS

Correspondência

 

 

Autora: Sarah Nettleton
Tradutor: Lirácio Júnior
Editora: Escuta, 2018, 151 p.
Resenhado por: Edgar Chagas Diefenthaeler

 

 

A autora deste livro, Sarah Nettleton, tem o mérito de haver analisado a obra de Christopher Bollas como um todo, possibilitando aos leitores vários caminhos interpretativos. Ela apresenta os elementos fundamentais da teoria de Bollas, de forma que o leitor possa compreender o pensamento metapsicológico do autor e sua visão do funcionamento da mente. Sarah demonstra muito conhecimento da obra em questão e organiza os conceitos de maneira precisa, sem interferir na compreensão deles. Segundo ela,

além de criar um continuum entre a subjetividade humana normal e as várias manifestações da psicopatologia, Bollas procura integrar a linguagem psicanalítica em muitos aspectos da sociedade e da cultura. ... Uma leitura cronológica dos livros de Bollas sugere que sua imagem da mente estava presente, em essência, desde o princípio de sua escrita. No entanto, seu modelo metapsicológico não aparece como um todo em nenhum lugar. Isso cria um problema para o leitor... O objetivo deste livro é uma tentativa de remediar essa situação. Ele foi concebido para ser um guia, uma espécie de mapa de rotas, que deve permitir ao leitor compreender as teorias que fundamentam o modelo bollasiano. Ele não se destina a ser uma crítica, um estudo comparativo ou uma introdução abrangente a toda a obra de Bollas. Para o leitor que esteja interessado em outras áreas de sua escrita, o apêndice apresenta alguns ensaios sugeridos, listados por tópico. ... O primeiro capítulo explora um princípio dualista que, sob vários aspectos, é um tema central ao longo da obra de Christopher Bollas. Em seguida, nos dedicamos a uma exploração dos elementos individuais de seu pensamento: o inconsciente receptivo, os genera psíquicos, o idioma e o conhecido não pensado, o self e o personagem, o objeto evocativo, a complexidade inconsciente, a associação livre e o par freudiano. O penúltimo capítulo explora suas ideias sobre a diversidade de abordagens que existem dentro da psicanálise britânica contemporânea, e o capítulo final funciona como uma coda, na qual fios de sua metapsicologia são reconectados. Os capítulos 2 a 11 começam com uma lista dos principais ensaios relativos ao tópico abordado e também uma lista de conceitos-chave. Esses conceitos vão se desenvolvendo ao longo de todo o livro para formar um glossário da linguagem psicanalítica de Bollas. (pp. 22-23)

Sarah informa que neste livro sintetizou material proveniente de várias fontes: os escritos extensivos de Bollas, a experiência de seu trabalho clínico adquirida em supervisão, o material inédito que ele gentilmente lhe permitiu usar e muitas comunicações e discussões pessoais que expandiram a compreensão da autora. Ela afirma que seu objetivo foi esclarecer, em vez de interpretar; diz que são seus alguns dos exemplos ilustrativos e certas ênfases acrescidas. "O mapa não substitui o viajar", conclui ela (p. 23).

No capítulo 1, "Dualidades psíquicas", Sarah observa que subjaz à metapsicologia de Christopher Bollas uma polaridade fundamental entre dois princípios gerais, e que essa dualidade se manifesta de modos diferentes, como maternal/paternal, forma/conteúdo, integrado/delineado, intuitivo/conceitual e receptivo/ativo. Encontramos essa dualidade desde o nascimento. A autora complementa que é provável que, de alguma maneira, esteja presente mesmo antes do nascimento, permanecendo em nós, momento a momento, como formas potenciais de ser. O equilíbrio e a tensão entre elas influenciam todos os aspectos de nossa vida intrapsíquica e sustentam nossos encontros com o mundo exterior. Com frequência, Bollas alude explicitamente à dualidade das ordens materna e paterna.

A partir do capítulo 2, "O inconsciente receptivo e o genera psíquico", Sarah indica os principais ensaios sobre o tema e lista os conceitos-chave. Afirma que, na atmosfera política atual, a profissão psicanalítica é cada vez mais convocada a se definir, e uma das maneiras pelas quais ela pode fazê-lo é reivindicando um singular interesse terapêutico pelo inconsciente. A autora pergunta:

A que tipo de inconsciente nos referimos? Como imaginamos o inconsciente e o papel que ele desempenha na estrutura e no funcionamento da mente? Essa questão pode ameaçar uma das poucas áreas de suposta coesão no mundo psicanalítico, mas tem implicações cruciais para o nosso entendimento de todos os aspectos da psicanálise: suas teorias, suas abordagens clínicas e seus objetivos terapêuticos. (p. 29)

Sarah complementa dizendo que devemos explorar a teoria bollasiana do inconsciente receptivo, que é, em sua opinião, a contribuição mais abrangente e coerente para a compreensão psicanalítica da mente inconsciente desde Freud.

Se admitirmos o inconsciente receptivo como um modelo metapsicológico válido, devemos esperar que ele ofereça uma maneira de pensar sobre o desenvolvimento da mente e do self, para iluminar nossa compreensão da psicopatologia e da saúde e para contribuir com a teoria de técnica terapêutica. (p. 38)

No que se segue no livro, a autora espera mostrar que a metapsicologia de Bollas realmente oferece conceitos inovadores, que enriquecem todas essas áreas do pensamento psicanalítico.

No capítulo 3, "Idioma", ela aborda esse conceito, pelo qual podemos ver por que uma experiência particular pode ser significativa para a criança. Bollas sustenta que cada indivíduo nasce com um núcleo essencial do self, "um correlato psíquico da impressão digital humana". Para denominar esse cerne do self, ele usa a palavra idioma. Nós nascemos com a impressão digital humana como parte de nossa identidade. "Nunca podemos alterá-la ou perdê-la, e ninguém mais a terá, exceto nós mesmos" (p. 40). Esse "núcleo de lógica" gera a estética única que orienta nossa relação idiossincrática com o mundo, o modo pelo qual, inconscientemente, abordamos nossa experiência. O idioma é o núcleo inato do self, e a autora o considera a adição mais relevante ao modelo onírico freudiano.

No capítulo 4, "O conhecido não pensado", Sarah trata de outro aspecto crucial da realidade da criança em desenvolvimento, o conceito de Bollas que ela considera ser possivelmente o mais disseminado: o conhecido não pensado. Bollas parte do conceito de apresentação de coisa de Freud.

Seu conceito do conhecido não pensado refere-se aos pressupostos aprendidos inconscientemente pelo bebê sobre a natureza da realidade, baseados crucialmente em experiências que se inscrevem na mente antes do advento da linguagem. ... Ao longo de nossa vida, a mente consciente é sustentada pelo conhecido não pensado. Suas primeiras raízes residem primordialmente nos axiomas da maneira como a mãe faz as coisas. Então, à medida que as demandas da fase edipiana perturbam a díada materna e os acordos são negociados entre os impulsos idiomáticos da criança e as regras e hipóteses da realidade social, o conhecimento não pensado continua a ser formado. (pp. 50 e 54)

Como adultos, todos os aspectos da vida que encontramos ao longo do dia são confrontados com modelos inconscientes, que refletem uma combinação singular de idioma e experiência. Bollas escreve: "Existe em cada um de nós uma divisão fundamental entre o que pensamos que sabemos e o que sabemos mas talvez nunca sejamos capazes de pensar" (p. 54).

No capítulo 5, "As relações do self" a autora interroga-se sobre o significado do termo self. Considera que, para Bollas, essa é uma questão muito complexa. Segundo ele, "na palavra self, encontramos um termo que contém o mais alto grau do não pensado" (p. 62). Do ponto de vista teórico, a autora acredita que Bollas conceitualiza o self de várias maneiras:

como uma soma das representações internas, como um objeto de um diálogo interno ou como um conglomerado de estados mutáveis do self. O self tem presença no real, mas sempre se evadirá à nossa compreensão. Nesse sentido, ele é análogo ao sonho: existe como uma entidade circunscrita, ainda que com significados que se disseminam, potencialmente para sempre, em inúmeras direções. É tanto uma unidade quanto uma rede infinita. (p. 63)

Sarah começa o capítulo 6, "Personagem e inter-relações", dizendo que, tendo examinado algumas complexas relações internas que coexistem no self, devemos considerar o que acontece quando dois selves se encontram e interagem. Bollas usa o termo personagem para se referir ao modo como nos comunicamos inconscientemente com outra pessoa ou somos por ela percebidos. Para ele, esse modo é "o padrão do ser e do relacionar-se gerado pelo idioma do self de cada pessoa" (p. 65). Seu interesse pelo conceito de personagem, como algo que tem impacto sobre o outro, reflete seus precedentes acadêmicos no campo da literatura. Ele ressalta que as peças e os filmes lidam centralmente com a simulação do personagem e seus efeitos. "Nunca podemos conhecer nosso próprio personagem", sugere Bollas, "embora para os outros seja facilmente observável na forma como interagimos com nossos objetos" (p. 66). Ele relaciona essa atmosfera pessoal essencial ao idioma de uma obra artística.

No capítulo 7, "Objetos evocativos", Sarah aborda outro aspecto central da teoria de Bollas: o efeito evocativo dos objetos e da interação entre objetos e idioma. É um tema que se repete ao longo da obra do autor, talvez mais do que qualquer outro.

Muito do pensamento psicanalítico é ponderado em favor da realidade interna e do papel da fantasia inconsciente, mas Bollas com frequência enfatiza, além disso, a importância da experiência vivida no mundo externo. Segundo ele, para que os pacientes se tornem conectados aos seus núcleos idiomáticos, eles precisam desenvolver interesse não só pelos temas profundos e dilemas que os levaram à análise, mas também pelas minúcias da vida comum, pois são tais detalhes que revelam o pensamento inconsciente representado pelas suas escolhas de objeto. (p. 81)

No capítulo 8, "Complexidade inconsciente", a autora analisa com mais detalhe a natureza do inconsciente sob a perspectiva da metapsicologia de Bollas.

Sua visão do inconsciente, altamente complexa, desenvolve-se a partir do conceito freudiano de pontos nodais: pontos de intensidade psíquica formados pela convergência de fios inconscientes. Em A interpretação dos sonhos, Freud (1900) descreve o mecanismo pelo qual vários significados de momentos relevantes do devaneio são condensados em uma imagem de sonhos hipercatexiada. (p. 87)

Bollas enfatiza que tal processo não se restringe aos sonhos. Em qualquer momento do dia, estamos operando em muitos planos sobrepostos de realidade psíquica, com momentos de intensidade gerados continuamente à medida que a nossa atividade mental interna encontra objetivos evocativos no mundo externo. Nesses momentos de altíssima intensidade, os genera psíquicos são criados.

No capítulo 9, "Associação livre", a autora examina o que é

provavelmente a contribuição mais extensa de Christopher Bollas para a teoria da técnica clínica: seu desenvolvimento do conceito de associação livre. Ele descreve as inovações clínicas fundamentais de Freud como "a realização mais revolucionária da psicanálise". ... Bollas também vê o processo de associação livre como terapêutico em si mesmo, como mentalmente formativo tanto para o analisando quanto para o analista. Esse processo desenvolve capacidades inconscientes, e isso para Bollas constitui o objetivo mais profundo e central do tratamento psicanalítico. (pp. 91 e 101)

Ele afirma que o método desenvolvido por Freud pode ser a base do trabalho psicanalítico com todos os tipos de patologia.

No capítulo 10, "O par freudiano", Sarah observa que a relação analítica é abordada sob diversos ângulos ao longo da obra de Bollas. Trata-se de algumas das implicações de suas ideias teóricas sobre a parceria única que ele chama de par freudiano - o relacionamento criado quando o paciente, em associação livre, encontra a "atenção uniformemente suspensa" do analista. Bollas descreve isso como a "descoberta revolucionária de uma relação de objeto" (p. 105).

Todos os aspectos do seu modelo de metapsicologia estão presentes no consultório: o inconsciente receptivo e os genera psíquicos, a elaboração do idioma através da seleção e uso de objetos, a complexidade infinita do inconsciente, a apresentação e representação do self e o potencial singular da associação livre. O relacionamento analítico também incorpora as várias dualidades que sustentam seu pensamento: materno e paterno, subjetivo e objetivo, disseminação e foco, forma e conteúdo. (p. 106)

No capítulo 11, "Mundos separados", a autora afirma que a metapsicologia de Bollas oferece um modelo diferenciado da estrutura e do funcionamento da mente. Mas, paralelamente, ele apresenta um argumento poderoso em prol do pluralismo teórico.

Todas as várias teorias psicanalíticas nos permitem conceitualizar um aspecto particular da mente que, de outra forma, poderia permanecer inconsciente e não pensado, e cada uma oferece conceitos relevantes para a compreensão de elementos particulares de nossa experiência. Assim, como foi visto no capítulo 2, o recalque é mais bem conceituado com o uso da metáfora espacial do modelo topográfico de Freud, enquanto o desenvolvimento psíquico e a dinâmica conflitual dentro da mente são mais proveitosamente abordados com o modelo estrutural mais antropomórfico. Sem toda a gama de teorias psicanalíticas, não seríamos capazes de pensar em certos tipos de fenômeno. (p. 118)

O pensamento clínico de Bollas abrange muitas das descobertas teóricas das tradições kleiniana e winnicottiana. No entanto, sua concepção de mente, tanto em sua amplitude como em seus detalhes, altera a ênfase da psicanálise clínica, mantendo o foco sempre, em primeiro lugar, no crescimento das capacidades inconscientes do paciente.

No capítulo 12, "Uma teoria integrada", Sarah reúne os conceitos mais importantes de Bollas, esperando que o livro tenha demonstrado que os muitos conceitos teóricos individuais do autor realmente resultam em um modelo metapsicológico integrado. Embora suas origens se encontrem em aspectos das descobertas revolucionárias de Freud, o modelo bollasiano tem suas próprias ênfases e equivale a uma teoria única da mente.

A metapsicologia de Bollas oferece um quadro abrangente e integrado, um modo de pensar sobre a mente que é teoricamente coerente e clinicamente esclarecedor. Ele oferece um vocabulário conceitual que amplia nossa compreensão, tanto de redes infinitamente complexas da vida mental quanto do extraordinário potencial da psicanálise. (p. 132)

No apêndice, Sarah Nettleton reafirma que este livro se centrou nos fundamentos da teoria da mente de Bollas. Para os leitores que quiserem explorar outras áreas de sua escrita, ela disponibiliza uma lista cronológica de artigos selecionados, nos quais ele aborda psicopatologia, psicanálise, técnica psicanalítica e questões de cultura e sociedade.

 

 

Correspondência:
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