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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo abr,/./jun. 2020

 

RESENHAS

 

Novos diálogos sobre a clínica psicanalítica

 

 

Adriana Campos de Cerqueira Leite

Psicóloga. Psicanalista. Doutora em psicanálise e psicopatologia fundamental pela Universidade de Paris 7. Mestre e doutora em saúde mental pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Correspondência

 

 

Autora: Marion Minerbo
Colaboradoras: Isabel Botter e Luciana Botter
Editora: Blucher, 2019, 287 p.
Resenhado por: Adriana Campos de Cerqueira Leite

 

 

Cabe-me aqui a grata tarefa de resenhar o segundo livro de uma série de diálogos lançada por Marion Minerbo. Quando digo série de diálogos desperto questões, imagino. O formato inusitado aponta tanto para a sua origem quanto para o seu resultado final.

A origem, a encontramos no mundo virtual, nas crônicas de Marion Minerbo para o blog Loucuras Cotidianas.1 Desde lá, Analisa é quem dialoga com a autora. A jovem observadora e inquieta propõe temas que ensejam uma generosa transmissão de ideias psicanalíticas. O resultado final é um livro de portas abertas. O acesso é fácil: logo nos sentimos à vontade em participar daquela conversa.

A originalidade da obra é a maneira como somos apresentados, em cada capítulo, a uma articulação fresca e sólida: do sofrimento à metapsicologia e à clínica. O leitor verá como acontece - na e pela transferência, com interpretações e manejo - o desmonte do modo sofredor que o sujeito encontrou para se organizar. A psicanalista e autora vai mostrando à jovem interlocutora e aos leitores a sua forma de pensar e agir na clínica

A conversa entre Marion e a estimulante Analisa se dá em torno de alguns artigos já publicados e escolhidos pela própria autora como representativos da sua produção. Aqueles que acompanham a obra de Minerbo sabem que a sua escrita é extremamente generosa com o leitor. Nessa série de diálogos, o texto ganha ainda um tom de brincadeira - brincadeira séria, consistente e que estimula o pensamento criativo.

Poucos autores têm a capacidade de transmitir conceitos complexos com clareza. Marion está entre eles. "É um alívio quando conseguimos encontrar caminhos para transformar a repetição estéril em repetição criativa. É aí que entra o manejo" (p. 37). O leitor acompanhará no texto o requinte do seu manejo.

A conversa inaugural é sobre núcleos neuróticos e não neuróticos. Uma linha permeável é traçada, dividindo a psicopatologia em dois grandes campos. É da perspectiva transgeracional que os dois campos serão pensados. A intersubjetividade, assentada na metapsicologia freudiana, orienta o pensamento da autora e será a lente para toda a reflexão. O pressuposto de dois sujeitos em relação e em afetação mútua atravessa o trabalho, como nos lembra Analisa no prefácio da obra. Aqueles funcionamentos psíquicos em que a separação sujeito-objeto não foi suficientemente conquistada são todos reunidos em torno do núcleo não neurótico, seja ele melancólico, masoquista, paranoico ou outro.

Para além da divisão em dois grandes campos psicopatológicos, a autora, valendo-se do conceito de elementos beta de Bion, propõe uma distinção entre elementos beta-tanáticos e elementos beta-eróticos. O núcleo não neurótico - o inconsciente clivado - se constitui quando o psiquismo aloja em si elementos beta-tanáticos evacuados pelo objeto primário. Por sua vez, a constituição do inconsciente recalcado - o núcleo neurótico - se dá pelos elementos beta-eróticos alojados no psiquismo do sujeito pelo objeto primário.

Traçada essa grande linha divisória, Analisa e Marion embarcam numa prosa acerca das diferenças na clínica, nas defesas, nas angústias e, finalmente, no manejo em cada um dos grandes campos psicopatológicos descritos.

O segundo capítulo, "Como pensa um psicanalista?", se inicia com uma oportuna ode à força e à estranheza do inconsciente freudiano. Unindo-se a André Green, Minerbo alerta Analisa e a todos nós para o risco de perda da potência clínica da psicanálise se o inconsciente "se domestica" e deixa de "produzir o assombro que deveria, a cada dia de trabalho, a cada paciente, em cada sessão" (p. 56). O assombro deve ser experimentado na transferência, que atualiza e positiva aquilo que foi negativado no passado.

A metapsicologia, diz Minerbo à sua jovem colega, vai sendo "encarnada" pelo analista, tornando-se parte do seu ser e do seu modo de olhar para os fenômenos humanos, dentro e fora do consultório. "Como diria Winnicott, eu preciso conseguir criar, por mim mesma, aquilo que encontro nos textos. Preciso reinventar a roda para poder me apropriar dela de uma maneira visceral" (p. 89).

É a partir de uma apropriação visceral por parte de Minerbo que o leitor será introduzido, no terceiro capítulo, ao pensamento de René Roussillon, psicanalista francês contemporâneo, com importante contribuição para o campo da intersubjetividade. Minerbo descreve algumas ideias do autor já "encarnadas" em si. O sofrimento narcísico, ligado às experiências traumáticas não integradas ao eu e em busca de sepultura simbólica (termo de Roussillon), é apresentado pela clínica, gerando mais um capítulo de conversa.

A autora ajuda a jovem colega a compreender como age o traumático no psiquismo e como se manifesta na transferência. Para isso, lança mão da bela imagem da espiga de trigo, que como os traços mnésicos não pode ser assada sem antes ser transformada em farinha, isto é, em representações. Os processos de simbolização primária e secundária, bem como a distinção entre fantasia e fenômenos de cunho alucinatório e entre defesas primárias e secundárias, são discutidos durante esse capítulo na sua densidade teórica, sempre guardando a leveza de estilo.

A discriminação de duas defesas primárias - a clivagem a partir do paradigma do autismo e a identificação com o agressor à luz da psicopatologia da melancolia - abre caminho para o quarto capítulo, sobre o supereu cruel. Trata-se do núcleo que representa um aspecto ainda não advindo do eu; é a sombra do objeto que coloniza o eu, alienado de si mesmo. Aqui e sempre, é a intersubjetividade que orienta o debate. Ferenczi é justamente reconhecido pela autora como quem primeiro apontou a relevância do inconsciente do objeto na constituição do psiquismo e da pulsão de morte.

Compreendida a construção intersubjetiva do supereu, a autora discute a possibilidade da sua desconstrução em outra relação intersubjetiva, a clínica, no campo transferencial/contratransferencial. Toda a potência da intersubjetividade é demonstrada aí. A articulação proposta por Minerbo em torno do supereu cruel é original e fecunda para a clínica. A depender da posição do eu em relação ao supereu cruel, distinguem-se o masoquista e o paranoico, com o seu ódio da alteridade. "Para mim, o supereu cruel é um núcleo não neurótico (psicótico) específico, que se organiza no infans em resposta aos momentos de funcionamento paranoico do objeto primário" (p. 126), diz Minerbo.

A transferência permitirá ao analista instalar-se na função de terceiro diante do sujeito submetido à crueldade do supereu, podendo, com sorte, amaciar as fibras enrijecidas pela experiência traumática vivida pelo sujeito, permitindo novas formas. A força do pensamento da autora se apresenta de maneira especialmente significativa nesse capítulo; sua potência criativa se mostra na articulação da teoria com a clínica.

Com grande liberdade, reconhecendo a origem virtual dos diálogos entre Minerbo e Analisa, ouso dizer que estamos diante de um primoroso tutorial.

No quinto capítulo, a curiosa e sensível interlocutora de Minerbo quer conversar sobre depressão. Três grandes tipos de infelicidade - termo que Minerbo prefere por considerá-lo mais coloquial e abrangente - são então objeto de debate. Na distinção das infelicidades, a autora recorre às ideias de Freud, Pierre Marty e Roussillon - a essa altura, esse último já terá se tornado bastante conhecido do leitor.

Diferentes modos de presença/ausência do objeto determinam diferentes modos de funcionamento do núcleo inconsciente, produtor de cada uma das formas de infelicidade. A infelicidade difusa, sem tristeza, é aquela que se refere a uma vida vazia, sem criatividade, apontando para um empobrecimento psíquico. Com esses pacientes, o analista chega a se indagar sobre como eles foram parar ali, apesar da absoluta ignorância da própria vida psíquica. Na metapsicologia do processo de simbolização, de Roussillon, a autora busca a chave para entender como o "chip" da simbolização é instalado e como funciona. O trabalho psíquico de simbolização, compartilhado prazerosamente no vínculo intersubjetivo, instala a função simbolizante no psiquismo em formação. O não reconhecimento pela mãe das mensagens ligadas à vida psíquica pode massacrar o potencial simbolizante do bebê, que será lançado no deserto de um psiquismo pobre.

O segundo modo infeliz de ser produz o sentimento de impotência, desamparo e falta de autonomia. Trata-se da infelicidade com tristeza, associada à perda ou ao medo de perder o objeto de apoio, aquele sobre o qual o sujeito se sustenta para não desmoronar. O objeto não pode reconhecer os movimentos de autonomia do bebê como próprios, fortalecedores do seu eu. Ao contrário, a mãe interpreta esses movimentos como indícios da sua própria insuficiência. Com isso, a separação do objeto é vivida pelo sujeito como perigosa, já que assim também parece ao objeto. A infelicidade se instala pela impossibilidade de sustentar uma promessa de autonomia. O eu, então desempoderado, instala-se em uma codependência com o objeto. Segundo Minerbo, observa-se uma forma crônica de desvitalização e infelicidade em tempos de paz e uma forma aguda da mesma infelicidade em tempos de guerra ou quando da perda do objeto.

Finalmente, o terceiro tipo de infelicidade se manifesta como autode-preciação: o sujeito tem vergonha de ser quem é e acredita que não pode ser amado por ninguém. É com o Freud de "Luto e melancolia" que a autora busca se aproximar desse modo de ser infeliz, ou da depressão melancólica. A sua origem é compreendida a partir da decepção narcísica precoce, antes que houvesse a inscrição de traços mnésicos de perfeição e plenitude suficientes para que se transformassem em representação do ideal perdido. Na falta da representação, o sujeito é lançado em uma busca, fadada ao fracasso, da perfeição em si mesma. É desnecessário dizer que, imperfeito, o sujeito não é digno de ser amado. Aqui encontramos uma contribuição valorosa para a clínica da melancolia. Duas sombras distintas podem recair sobre o eu: uma produzida pelo olhar vazio, a outra pelo olhar cheio de ódio. O vazio provoca a seguinte identificação: "Não sou amado porque não tenho valor"; e o ódio: "Não sou amado porque sou mau."

Acompanhamos até aqui os diferentes efeitos produzidos pelos núcleos inconscientes que, a depender das vicissitudes da sua constituição, determinam um modo de sofrer. Analisa quer saber mais: a cultura também tem um papel nas diferentes formas de sofrimento? Nesse momento, avançando através do sexto capítulo do livro, o leitor pode ter a impressão, ou o desejo, de que o capítulo se transforme no terceiro livro da série de diálogos entre Marion Minerbo e Analisa, tamanha a riqueza, importância e atualidade das ideias e aberturas que a autora propõe.

Há um modo próprio de sofrer hoje? Retomando um texto seu de 2007, Minerbo reflete sobre o efeito, na subjetividade pós-moderna, da profunda mudança na ordem simbólica e nas instituições que a sustentam e reproduzem. No sofrimento neurótico, inaugural da psicanálise freudiana, reconhecemos a rigidez das instituições. Por sua vez, no sofrimento não neurótico ou narcísico, observamos a saída subjetiva encontrada pelo sujeito pós-moderno diante da crise das instituições antes garantidoras da ordem simbólica vigente. De maneira serena e lúcida, Marion identifica facilitadores e problemas nos dois momentos, modernidade e pós-modernidade, e convida Analisa e o leitor a identificar em si mesmos aspectos modernos e pós-modernos.

As instituições fortes da modernidade oferecem a segurança de um lugar social àqueles que se adaptam a elas, porém marginalizam aqueles que não se reconhecem em nenhuma das poucas alternativas identitárias oferecidas. A pós-modernidade, contudo, não nos livrou do mal-estar; ele ganhou outra forma. A flacidez do laço simbólico produz efeitos diversos, que animam a conversa aqui. De um lado, liberta o sujeito moderno não adaptado, permitindo que ele encontre um lugar, dada a expansão do universo de possibilidades. De outro lado, a imensidão conquistada, por vezes, lança o sujeito no abismo da experiência de desamparo, causada pela depleção simbólica2 no nível cultural e pela anemia psíquica no nível individual.

Os efeitos da depleção simbólica são investigados na sua dimensão macro, aquela das grandes instituições sociais que compõem o macroambiente onde a subjetivação acontece, assim como na sua dimensão micro, indicando o ambiente que contorna a relação do bebê com os seus objetos significativos. Traçada a especificidade do sofrimento psíquico produzido pela miséria simbólica, a autora aprofunda a investigação das estratégias defensivas de que o sujeito pós-moderno lança mão para fazer frente a esse sofrimento. A reflexão aponta para figuras conhecidas do mal-estar contemporâneo, produzidas a partir do uso de diferentes estratégias de defesa. Transbordamento pulsional, desobjetalização ou ainda soluções comportamentais produzem sintomas frequentes nos consultórios e na sociedade como um todo.

No capítulo 7, como um bis, encontramos 10 crônicas escolhidas pela autora, já publicadas no blog Loucuras Cotidianas. Em meio a crônicas psicanalíticas e crônicas escritas por uma psicanalista, o leitor conhecerá algumas das ideias de Marion sobre polarização política, colocação de limites, gourmetização da vida, entre tantos outros assuntos.

Pablo Picasso disse, em certa ocasião, que aos 15 anos já pintava como Rafael, mas que precisou de toda uma vida para pintar como uma criança. A sofisticada simplicidade do texto de Marion Minerbo revela a robustez do seu pensamento e da sua clínica. Analistas jovens ou experientes serão certamente beneficiados pela leitura da obra.

 

 

Correspondência:
Adriana Campos de Cerqueira Leite
Alameda das Bauínias, 350
13101-762 Campinas, SP
adrianacl@uol.com.br

 

 

1 https://loucurascotidianas.wordpress.com
2 A autora esclarece a origem médica do termo, que indica a falta de alguma substância no nível celular. Por exemplo, depleção de ferro produz anemia.

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