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Revista Brasileira de Psicanálise

versión impresa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo abr./jun. 2020

 

RESENHAS

 

Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo: diálogos

 

 

Berta Hoffmann Azevedo

Psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Correspondência

 

 

Autores: André Green e Fernando Urribarri
Tradutor: Paulo Sérgio de Souza Jr.
Editora: Blucher, 2019, 198 p.
Resenhado por: Berta Hoffmann Azevedo

 

 

O livro poderia se chamar O pensamento dialógico, não somente por ter sido essa uma sugestão do próprio Green, mas porque de fato reflete a natureza da relação de parceria entre ele e Fernando Urribarri, além de fornecer um exemplo vivo da potência de uma dinâmica criadora através do diálogo. Essa fértil interlocução se estendeu durante os 20 últimos anos de Green e se encerrou apenas com sua morte. Em seu testamento, deixou registrado o pedido de que fosse Urribarri uma das três pessoas a falar em seu funeral. Escrito em 2008, e mantido em segredo até 2012, o documento orientava que falassem, nesta ordem, algum de seus filhos, sua amiga Sára Botella e por último Fernando Urribarri. A relevância dessa escolha de um psicanalista de outra geração e argentino, como alguém capaz de carregar seu legado para o lado de cá do Atlântico, sinaliza não apenas o respeito e a admiração que ele nutria pelo colega, mas também sua aposta na América Latina para o futuro da psicanálise e de seu projeto de uma psicanálise contemporânea.

Green se destaca por seu projeto coletivo de investigação de uma matriz disciplinária própria, que considera os limites da analisabilidade e articula o intrapsíquico e o intersubjetivo ao redor da noção de enquadre, a partir de uma tradição freudiana heterogênea e não reducionista - um analista de formação francesa que cruzou o canal da Mancha em seus estudos e levou a sério o debate com pares e mestres, fazendo avançar a teoria e estender o campo clínico na direção de uma lógica da heterogeneidade.

A potência clínica de seus desenvolvimentos metapsicológicos justifica o interesse despertado em analistas dos diferentes continentes em relação a sua obra, sua vida e suas ideias. No livro de entrevistas Um psicanalista engajado (1994), organizado por Manoel Macias, os interessados em Green já tinham acesso a conteúdo de cunho biográfico, que remontava seu percurso e suas relações pessoais. Aqui, em Do pensamento clínico ao paradigma contemporâneo, estão reunidas entrevistas que são de fato interlocuções intelectuais, que abordam de frente os temas teóricos e permitem que Green desdobre seu pensamento, revisite conceitos e se reposicione em relação a eles com base na interpretação e na colocação em perspectiva que partem de Urribarri. Um exemplo disso está já no primeiro capítulo, quando se pede a Green que fale sobre a alteração funcional da representação-coisa presente em certas análises. A princípio, Green não reconhece como sua a ideia; em seguida, acolhe a expressão e relança sua formulação teórica de 1987 a partir daí. Quer dizer, não são perguntas bem preparadas para um grande autor, mas um trabalho conjunto em cima das ideias desse grande autor, retomando-as, reunindo-as, torcendo-as e pondo-as em relação com outras ideias. Este livro vem ocupar um espaço ainda não preenchido, de fazer falar Green sobre suas próprias ideias tão logo iam sendo lançadas.

Na introdução, Urribarri propõe que o livro seja lido como um diário de bordo da pesquisa contemporânea. Seguindo essa sugestão, revisitei as entrevistas e procurei cotejá-las com os tempos de produção teórica em Green.

Em 1990, época da primeira entrevista, encontramos um Green já consagrado, que vinha deixando sua marca como autor desde o final dos anos 1960. Entre outras coisas, havia publicado O discurso vivo (1973), Narcisismo de vida, narcisismo de morte (1983) e Sobre a loucura pessoal (1988), mas ainda que já tivesse elaborado o conceito de trabalho do negativo, não havia lançado o livro de mesmo nome, que viria a público em 1993. Nessa primeira entrevista, eles falam sobre a concepção de caso-limite, recorte de um campo clínico e de pesquisa, e sua articulação com o conceito de trabalho do negativo. O leitor é remetido ao duplo conflito vivido pelo paciente-limite, à dupla angústia de invasão e abandono e ao funcionamento na lógica da desesperança. Os mecanismos de defesa limites, que mutilam o eu e o pensamento, são abordados, introduzindo o leitor a uma lógica própria, que pode ter como expressão clínica o vazio e o branco de pensamento, estados com os quais o objetivo do trabalho analítico consiste em "transformar o delírio em brincadeira, a morte em ausência" (p. 24). A subversão do trabalho do negativo presente nos estados-limites da analisabilidade pode chegar a negativar o desejo e atacar "os vínculos com o objeto até lá nos fundamentos do Eros no eu" (p. 25), problemática que leva a abordar as noções de narcisismo negativo e função desobjetalizante.

A segunda entrevista, de 1996, já contava com o material de Propedêutica: metapsicologia revisitada (1995), cuja reelaboração metapsicológica, em especial da teoria da representação, permite uma formalização sobre a necessidade da articulação entre intrapsíquico e intersubjetivo e oferece as ferramentas freudianas, pós-freudianas e suas próprias para fazê-lo. Trata-se de um passo fundamental para a abordagem do problema das falhas na representação e do irrepresentável. A possibilidade de fracasso na mediação representativa o faz voltar a Freud, reconhecendo nele dois modelos com concepções diferentes no que diz respeito ao tema - o segundo tem no ato o lugar paradigmático que é ocupado pelo sonho no primeiro modelo. De sua parte, a teoria da representação generalizada busca incluir um gradiente representativo que tende a se complexizar desde o mais próximo do corpo e da força até chegar ao sentido, ferramenta para uma escuta ampliada dos processos heterogêneos.

A terceira entrevista, de 2001, conceitua o pensamento clínico, tema que daria nome ao livro do ano seguinte, e marca a renovação dos fundamentos da técnica a partir do enquadre interno e do trabalho psíquico do analista. Descreve sua luta contra os reducionismos e simplificações, e destaca o movimento do analista de suportar o pensamento louco do paciente e também os seus, elaborados, desligar e religar suas ideias para tornar figuráveis impulsos arcaicos e cenas impensáveis. Aborda, portanto, o modelo clínico terciário que vinha desenvolvendo e que marcaria seu projeto coletivo de uma psicanálise contemporânea.

É sobre essa matriz disciplinária que a quarta entrevista, de 2009, se desenvolve, reafirmando e esclarecendo o que vinha sendo lançado coletivamente - por exemplo, em Ideias diretrizes (2002) - como um projeto de investigação para responder à crise da psicanálise, movimento que Urribarri costuma caracterizar como giro dos anos 2000.

A quinta entrevista, também de 2009, é marcada por esse giro, na medida em que aborda as respostas pessoais de Green à questão da destrutividade, que haviam sido intensamente trabalhadas em O tempo fragmentado (2000) e em Por que as pulsões de destruição ou de morte (2007). Trata-se de um encontro para debater sobre a mãe morta, que acaba por se estender em uma perspectiva histórica e reencontrar a pergunta sobre o que ocorre com aqueles pacientes com os quais fracassam as tentativas de instaurar um enquadre de alta frequência e divã. Seus desenvolvimentos para pensar a síndrome da mãe morta sublinham os processos intrapsíquicos de desinvestimento e suas relações com os movimentos intersubjetivos que os determinaram. É nesse capítulo ainda que encontramos uma passagem tocante, em que Green, já velho, testemunha seus limites como pai e sua transformação em um melhor avô. Fala também de como é capaz de se relacionar com as memórias junto à mãe e lidar com suas imperfeições, em contraponto a certos pacientes que parecem brigar com a própria mãe até o fim da vida, num aferramento não transformado da ambivalência - desafios clínicos diante dos quais, após 50 anos de clínica, admite ainda muitas vezes fracassar.1

É de 2011 a última entrevista, na qual vemos Green não só revisitar seus principais escritos e se posicionar quanto a sua participação no movimento contemporâneo, mas também dar um testemunho sobre a psicanálise francesa na ocasião da cisão entre a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP) e a Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP) e os desdobramentos de uma geração pós-Lacan, cuja transferência fraterna teve um lugar especial e promoveu um ambiente de fertilidade ímpar.

Os anexos completam o livro com a carta aberta de Green à Zona Erógena, revista editada por Urribarri, e com as palavras pronunciadas pelo último nas exéquias de Green em 2012, no cemitério Père-Lachaise, em Paris.

Diálogo, conceito que figura como subtítulo do livro, está presente na forma e no conteúdo do que se apresenta em suas páginas. Se imprescindível na lógica necessária ao enfrentamento dos desafios clínicos contemporâneos - em relação aos quais a posição silenciosa do analista a acompanhar o deslizamento associativo do paciente precisa muitas vezes ser revista, na direção de uma criação conjunta implicada do analista (que constrói a partir dos retalhos do discurso disponível e de seu próprio trabalho psíquico no interior de certa construção dialógica) -, também neste livro ele demonstra seu valor. Na oportunidade que oferece de acompanhar o curso das ideias e interrogá-las para que possam ser esclarecidas e aproveitadas, vemos um Green em linguagem palatável, o que, quando se trata de um autor francês, por si só já não é pouca coisa.

Como se pode ver, este é um livro precioso, que nos permite uma economia intelectual e de pesquisa, por reunir em um mesmo compilado ideias que precisariam ser rastreadas ao longo de quase 40 anos de publicação. É assim excelente como porta de entrada ao pensamento de Green e também muito útil para aqueles que já vêm se debruçando sobre o estudo de suas ideias ao longo dos anos. O colega mais versado em Green ressignifica après-coup o que já vem lendo, a partir da qualidade informal que as palavras ganham no formato de conversa, como encontramos aqui.

Finalizo estas linhas comemorando a chegada deste livro ao Brasil e a disposição da Blucher em publicar psicanálise - o que, nós sabemos, não tem sido uma tendência no mercado editorial. Uma contribuição muito bem-vinda da coleção Psicanálise Contemporânea, coordenada de maneira cuidadosa e competente por Flávio Ferraz.

 

 

Correspondência:
Berta Hoffmann Azevedo
Rua André Ampere, 153, conj. 63
04562-907 São Paulo, SP
Tel.: 11 5102-2852
bertaazevedo@hotmail.com

 

 

1 Sua coragem em reconhecer honestamente seus fracassos clínicos, mesmo que parciais, pode ser acompanhada em seu penúltimo livro, Illusions et désillusions du travail psychanalytique [Ilusões e desilusões do trabalho psicanalítico] (2010), inteiramente dedicado a apresentar casos de desilusão - da psicanálise e seus próprios - junto a pacientes particularmente resistentes ou rebeldes à ação analítica.

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