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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.2 São Paulo Apr./June 2020

 

RESENHAS

 

Beyond psychoanalytic literary criticism: Between literature and the mind1

 

 

Fernanda Sofio

Psicóloga. Psicanalista. Doutora em psicologia social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora de Literacura: psicanálise como forma literária (Unifesp; Fapesp) e Psicanálise na UTI: morte, vida epossíveis da interpretação (Escuta; Fapesp)

Correspondência

 

 

Autor: Benjamin Ogden
Editora: Routledge, 2018, 132 p.
Resenhado por: Fernanda Sofio

 

 

A ficção filosófica de Benjamin Ogden

Em seu novo livro, Beyond psychoanalytic literary criticism: between literature and mind, Benjamin Ogden levanta questões importantes sobre a relação entre literatura e psicanálise, e cria uma belíssima ficção filosófica para pensá-las. É claro que não as resolve, o que talvez fosse impossível, mas nem a isso se propõe. Nesta "resenha" - que em alguma medida não pode ser assim denominada - minha intenção não é resumir o livro de Ogden; nem muito menos discutir cada questão levantada, o que resultaria num trabalho árduo, cujo produto seria um texto tedioso. A ideia aqui é me concentrar na ficção que o autor cria e pensá-la em paralelo a certas obras psicanalíticas, particularmente alguns textos da psicanálise brasileira.

A ficção filosófica de Ogden não foi por ele assim designada. Ao contrário, o que estou chamando de ficção filosófica é o primeiro capítulo do livro de Ogden, cujo título - a meu ver paradoxalmente - é "Introduction" (Introdução). Muito diferente do que vem a seguir, faz pensar em texto acadêmico, explicativo. E mais ainda o subtítulo: "Between the rails: an allegory of art, science and many other things" (Entre trilhos: uma alegoria de arte, ciência e muitas outras coisas), período longo, que aliás inclui subtítulo de subtítulo e remete mais uma vez a um texto explicativo, que fala "sobre", não "a partir".

Mas, assim que começa a narrativa, somos remetidos ao campo da ficção - da ficção filosófica, bem entendido. O primeiro parágrafo contém citação, e ainda estamos entre duas formas: a explicativa e a ficcional literária. No segundo parágrafo, esvai-se a dúvida de estarmos entre uma e outra: é texto de ficção filosófica. Esse título desajustado, portanto, promove o que não consigo pensar em outros termos que não os da ruptura de campo.2 Colocar a ficção filosófica na introdução e dar-lhe título de texto acadêmico é atirar o leitor no cerne da questão central do livro de Ogden: como conversam literatura e psicanálise? Como conversam arte e "ciência" (isto é, arte e o que Ogden entende por ciência)?

O texto é "introdução" a um livro de crítica literária, que depois dele assume uma forma explicativa, mais segura e assertiva. Entretanto - pergunta sem resposta - é possível confiar nas afirmações de uma obra que apresenta uma ficção filosófica como texto introdutório?

A introdução ao livro é uma meditação filosófica literária. Parte de uma referência a Bion: "Imagine, como Bion na primeira página de Transformations (1965), que estamos parados entre os trilhos de um trem que se estendem para o horizonte, para tão longe quanto alcança nossa visão" (p. XV).3 Com base nessa hipótese, materializa a estória de um homem e uma mulher que nascem exatamente no âmago da situação descrita: estão entre os trilhos. A questão que lhes dá vida é aquela de seu narrador: os trilhos não se tocam. Ou se tocam?

No horizonte, os trilhos parecem se tocar. A ficção narra a saga do homem e da mulher, os quais passam a vida a perseguir o ponto no horizonte, que eles podem ver e que portanto deve existir, que é onde os trilhos se encontram. Entretanto, cada vez que correm em direção ao horizonte, que chegam ao ponto onde haviam visto os trilhos se encontrarem, ele se torna mais longínquo. E assim o leitor entende que passam os anos. Os dois perseguem o horizonte, não o encontram, irritam-se. Até que um dia têm a ideia de desenhar o cruzamento numa enorme tela e colocá-la no trilho. Dessa forma, pensam, poderão descansar felizes. E funciona. Como a teoria pronta. Aquietam-se, mas a alegria dura pouco.

Além de ser grande a curiosidade de atravessar o próprio desenho, aparecem no campo ficcional outros casais, personagens que percorrem jornadas semelhantes e intervêm na sua quietude. Assim, o casal descobre novas duplas, outros casais cujas buscas são semelhantes à sua. Por fim, se deparam com eles mesmos, ora mais jovens, ansiosos para chegar ao ponto onde os trilhos se entrecruzam, ora mais velhos, e nem por isso mais sábios.

Ogden escreve lindamente, e o texto é delicioso de ler. As duplicidades são sempre de muito interesse. Nem tudo é nomeado. Então, cada leitor encontrará seus paralelos. Por exemplo, parece-me que, assim como os trilhos não se fusionam, tampouco o homem e a mulher, principais personagens do texto, embora por vezes quase o façam.

Claro está que para esse autor (ou narrador) o encontro dos trilhos é impossível. Qualquer possibilidade de congruência entre literatura e psicanálise é ilusão. É que, a certa altura, os trilhos são nomeados: "Arte e Ciência"; ou ainda: "Campo de Estudo Um e Campo de Estudo Dois"; e por fim: "Literatura e Psicanálise" - assim, em letras maiúsculas. Para esse narrador, o encontro dos campos é sempre uma ilusão de ótica.

Daí eu pensar ser frutífera a "conversa" com a psicanálise brasileira. Oxalá chegue o tempo em que tal conversa se dê, e a troca de ideias seja de mão dupla: do inglês para o português e do português para o inglês. Estamos em desvantagem - nós, que escrevemos em português. Mas nem por isso desistimos. No mínimo, podemos sonhar essa conversa, ao estilo da ficção filosófica criada por Ogden.

As perguntas de Ogden assemelham-se muito às de autores brasileiros, que lhes deram suas respostas. Ogden explica ao longo do livro por que literatura, crítica literária e psicanálise devem caminhar paralelamente - por exemplo, porque o uso que a psicanálise faz da literatura é reducionista, assim como o uso que a crítica literária faz da psicanálise. Ora, a ideia de psicanálise implicada de João Frayze-Pereira (2004) propõe justamente uma teorização a partir da obra de arte e como que junto dela. Ou seja, não reduz obra nem psicanálise, porque a teoria se constrói à medida que a obra é pensada. O autor mostra isso, como o fazem aqueles que estudaram com Frayze-Pereira. Tal aprendizado poderia iluminar a psicanálise a que foi exposto Benjamin Ogden, assim como tantos autores de língua inglesa.

As ficções freudianas de Fabio Herrmann (2002) também "dialogam" com o livro de Ogden. Há diálogo tanto na forma do pensamento como no pressuposto. A forma é semelhante; o pressuposto é contrário. A semelhança na forma deve-se ao uso da ficção: Ogden produz o que estou chamando de ficção filosófica; Herrmann cria a ficção freudiana a partir de sua própria teorização - daí o fato de Noemi Moritz Kon (2003), jocosamente, tê-la chamado de ficção herrmanniana. Os pressupostos são contrários porque a tese de Ogden parece ser de que as "linhas", ou campos, não se cruzam. Para Ogden, é ilusão de ótica pensar simultaneamente a literatura de ficção e a psicanálise. Já Herrmann produz ficção para mostrar que é possível exatamente isso que Ogden diz ser impossível: uma ficção ser literária e psicanalítica ao mesmo tempo.

Parece que as perguntas feitas por aqueles que estudam a relação entre literatura (ou arte literária, ou simplesmente arte) e psicanálise se assemelham. Mas, ao que tudo indica, são frutíferas as "conversas" entre grupos que habitualmente não se falam. Espero ter mostrado que as perguntas de Ogden, Frayze-Pereira e Herrmann muitas vezes convergem (por exemplo, acerca da psicanálise aplicada e da relação possível entre arte e literatura); mas as soluções de cada um, nem tanto. O livro de Ogden e o convite para escrever esta resenha parecem ter resultado numa grata surpresa: fazer questionar se não está na hora de promovermos "conversas", conversas ficcionais, bem entendido, entre as psicanálises brasileiras, americanas, francesas...

 

Referências

Frayze-Pereira, J. A. (2004). Estética, psicanálise implicada e crítica de arte. Revista Brasileira de Psicanálise, 38(2),443-452.         [ Links ]

Herrmann, F. (2002). A infância de Adão e outras ficções freudianas. Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Kon, N. M. (2003). Ficções freudianas, ficções herrmannianas. Ide, 37,95-99.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Fernanda Sofio
Rua Engenheiro Luís Carlos Berrini, 1748, conj. 1608
04571-090 São Paulo, SP
fernanda.sofio@usp.br

 

 

1 Para além da crítica literária psicanalítica: entre literatura e psique.
2 O conceito de Fabio Herrmann indica uma mexida nas relações vigentes. Nesse caso, esperava-se um texto explicativo e/ou acadêmico, mas o leitor é surpreendido por um texto ficcional filosófico.
3 "Suppose, as Bion does on the first page of Transformations (1965), that we stand between two railroad lines that extend into the distance as far as the eye can see."

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