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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020

 

PANDEMIA

 

Em busca do desejo: formação psicanalítica na pandemia

 

In search of desire: psychoanalytic training during the pandemic

 

En busca del deseo: entrenamiento psicoanalítico en la pandemia

 

À la recherche du désir : la formation psychanalytique pendant la pandémie

 

 

Débora Regina Unikowski

Membro efetivo, docente e didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ). Psicanalista de crianças e adolescentes - Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Atual diretora do Instituto de Ensino da Psicanálise (IEP-SPRJ)

Correspondência

 

 


RESUMO

A própria vida e o desejo de se tornar analista estiveram na berlinda com a chegada da pandemia. Este trabalho se propõe a descrever e refletir de que forma a Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro e, mais especialmente, o Instituto de Ensino da Psicanálise encontraram meios não só para sobreviver, mas igualmente para incrementar o desejo entre seus integrantes. Foi a partir do fortalecimento da instituição, valorizando o papel dos candidatos nela inseridos, que o quarto eixo da formação psicanalítica cresceu em sua forma virtual, abrindo mais espaço para que todos se lançassem em busca do desejo que, diante dos perigos do isolamento, corria o risco de se perder.

Palavras-chave: formação analítica, desejo, identidade, covid-19, quarto eixo


ABSTRACT

Life itself and the desire to become an analyst were in the spotlight with the arrival of the pandemic. This work aims to describe and reflect on how the Psychoanalytical Society of Rio de Janeiro and, more particularly, the Psychoanalysis Teaching Institute found ways, not only to survive, but also to increase the desire among its members. It was from the strengthening of the institution, valuing the role of the candidates inserted in it that the fourth axis of psychoanalytic training grew in its virtual form. Opening up more space for everyone to search for their desires, which, in the face of the risks of isolation, was in danger of being lost.

Keywords: analytical training, desire, identity, covid-19, fourth axis


RESUMEN

La vida misma y el deseo de convertirse en un analista pasaron a un primer plano con la llegada de la pandemia. Este trabajo tiene como objetivo describir y reflexionar sobre cómo la Sociedad Psicoanalítica de Río de Janeiro y, más especialmente, el Instituto de Enseñanza del Psicoanálisis encontraron formas, no solo de sobrevivir, sino también de aumentar este deseo entre sus miembros. Fue a partir del fortalecimiento de la institución, valorando el papel de los candidatos que forman parte de ella, que el cuarto eje de la formación psicoanalítica creció en su forma virtual, abriendo más espacio para que todos pudieran lanzarse en busca del deseo que, ante los peligros del aislamiento, estaba en riesgo de perderse.

Palabras clave: entrenamiento analítico, deseo, identidad, covid-19, cuarto eje


RÉSUMÉ

La vie elle-même et le désir de devenir analyste étaient sur la sellette, en raison de l'arrivée de la pandémie. Ce travail vise à décrire et à réfléchir comment la Société psychanalytique de Rio de Janeiro et, plus particulièrement, l'Institut d'enseignement de la psychanalyse ont trouvé des moyens, non seulement pour survivre, mais aussi pour augmenter le désir parmi ses membres. C'est à partir du renforcement de l'institution, tout en valorisant le rôle des candidats qui y sont insérés, que le quatrième axe de la formation psychanalytique s›est développé sous sa forme virtuelle, en ouvrant plus d'espace pour que tous se lancent à la recherche du désir qui, face aux dangers de l'isolement, risquait de se perdre.

Mots-clés: formation analytique, désir, identité, covid-19, quatrième axe


 

 

Introdução

Quando, no final de 2019, tivemos notícia de um poderoso vírus e de uma epidemia se instalando na China, sua ameaça nos parecia longínqua. Infelizmente, como num rastilho de pólvora, em curto espaço de tempo fomos atingidos por uma pandemia e tivemos nossas vidas profundamente modificadas, e, ainda, sem qualquer previsão de término.

Este trabalho teve origem na experiência institucional durante os primeiros meses de covid-19 e se propõe como espaço de reflexão diante das inúmeras questões que têm nos afligido, especialmente aquelas relacionadas à formação psicanalítica.

Como terá sido possível prosseguir na vida pessoal e institucional em meio à pandemia sem que jamais tivéssemos tido uma experiência similar? Como mantivemos o ensino da psicanálise na Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (sprj)? Como evoluíram as relações entre membros e candidatos? E entre as diferentes instituições psicanalíticas? Como seria possível aprender com essa experiência, quando a sobrevivência e a existência estavam ameaçadas?

 

Covid-19 no IEP

Como diretora do Instituto de Ensino da Psicanálise (IEP) no biênio 2020-2021, eu preparava com os demais colegas o início da nossa gestão. Seguindo a tradição, a aula inaugural estava marcada para 7 de março de 2020, coincidindo com o início dos seminários em nossa sede. Nosso convidado era Cláudio Eizirik, que palestraria sobre ética e psicanálise e, ademais, na companhia de Sérgio Lewkowicz, coordenaria um working party no dia seguinte. Porém, alguns dias antes, fomos surpreendidos com a notícia de que viagens haviam sido desaconselhadas, sendo necessário aos dois não só reagendar o working party como também adaptar o evento por meio de videoconferência. Curiosamente, o título do trabalho dessa noite "Desafios éticos na formação e prática psicanalítica" anunciava outros desafios que mal imaginávamos encontrar. Efetivamente nessa oportunidade se introduziu algo novo, pois uma plateia repleta e atenta assistiu à palestra e interagiu via internet com nosso ilustre palestrante. Acostumado a eventos virtuais, Cláudio nos havia garantido que, através da imagem e do som, se faria presente e que poderíamos estabelecer ricas trocas. E assim foi, sua voz ecoou muito viva, eliminando de imediato a frustração de não podermos contar com sua presença física; todos os participantes desfrutaram de sua fala, a qual impulsionou perguntas e debates de modo virtual. Brindamos, em seguida, ao início do ano letivo e à possibilidade de lidar bastante bem com o que parecia ser um incidente pontual. Mal se podia imaginar que surgia ali um novo "normal" dentro de nossa Instituição.

Duas semanas depois, por razões do alastramento da epidemia, o primeiro evento da Comissão Científica foi cancelado e suspendemos os seminários da Formação, inicialmente por um mês. Pensávamos ser um tempo necessário para refletirmos com muita parcimônia sobre como proceder para prosseguirmos com nossos objetivos curriculares, sem que houvesse qualquer risco individual. Essa atitude, que poderia parecer excesso de zelo, rapidamente se verificou o primeiro passo para uma quarentena sem data para expirar. A pandemia de covid-19 colocava o mundo perplexo, sem esperanças, obrigando-nos a readaptar a vida em seu contexto social e familiar, profissional e societário.

A quarentena não só trouxe de modo concreto a necessidade de isolamento, em princípio temporário, para evitar o pico da curva de contágio e a consequente superlotação dos hospitais, como também se tornou um "desafio", o que implicava consciência do risco e da incerteza, na luta contra o acaso (Morin, 2006). Diante de todas as incertezas, tentamos a busca da sobrevivência desenvolvendo estratégias. Ficou evidente que os cientistas não eram os donos da verdade, algumas vezes até enunciaram declarações contraditórias, que nem sempre conseguiram aplacar nossa angústia diante do desconhecido, resolver dúvidas e abrandar expectativas nefastas, ou ainda nos ajudar a suportar a ausência de respostas. Segundo Morin, numa entrevista em 2020, "tentamos nos cercar com o máximo de certezas, mas viver é navegar em um mar de incertezas, através de ilhotas e arquipélagos de certezas nos quais nos reabastecemos". Acredito que os pares, nossos amigos e colegas, têm sido essas ilhotas, não necessariamente de certezas, mas de reabastecimento de esperanças. Pudemos unir forças para seguir navegando sem desespero e conseguir abrir mão da negação da seriedade da situação, para aceitar dificuldades e frustrações com muita paciência. Estreitamos mais laços e trocas com colegas de outras sociedades, dividindo inquietações, pensamentos e projetos que se iniciavam. Escutamos muitos colegas através de inúmeros webinars da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal) e das federadas do Brasil, além de vários colegas dialogando em lives no Instagram ou em eventos via Zoom e YouTube. Em muitos se repetiu a ideia de estarmos todos no mesmo barco ou até mesmo em barcos distintos, mas numa mesma tempestade. Analistas e pacientes, docentes e candidatos, todos habitados pelo medo da morte, precisando contar com a força do mundo interno para seguirem pensando e buscando novos caminhos.

Nesse percurso, o conceito de capacidade negativa (Bion, 1970/2007) tem sido fundamental para suportar não só o "não saber" dentro das sessões, sem memória e sem desejo, como também no dia a dia pandêmico, tendo sido inclusive tema da primeira atividade científica virtual da sprj (SPRJ - Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, 2020b). Poder se abster de "tudo compreender imediatamente" permite "estar com" cada paciente e pensar nas necessidades específicas de candidatos e docentes do Instituto.

O isolamento social criou um impasse no funcionamento do IEP, entre fazer seminários online ou simplesmente abrir mão do semestre letivo, ademais dos vários outros entraves para encarar esta nova realidade. Filhos sem escola, com aulas pelo Zoom, obrigações domésticas, antes habitualmente terceirizadas, e trabalhos home office requisitaram adaptações para levar adiante o ensino da psicanálise. Afora a questão econômica, na medida em que pacientes solicitavam reduções no preço das sessões e eventualmente na sua frequência, chegando a interrompê-las algumas vezes, ocasionando a diminuição dos rendimentos financeiros da maioria dos candidatos.

Inicialmente, quando a pandemia ainda não era uma realidade local, alguns minimizaram a gravidade da situação, propondo esperar tudo passar. Outros sugeriam aulas ao ar livre na sede, acreditando retomar a normalidade na maior brevidade. Rapidamente o temor ao contágio e à iminência da morte realmente mudaram nossa dinâmica de trabalho, de ensino e de convivência dentro da instituição.

Se a maioria dos docentes fazia parte da população de risco, os candidatos eram potenciais vetores de contágio - o que se somava à falta de familiaridade com as novas mídias, com o computador, além da resistência ao novo, travestido de rejeição aos contatos virtuais. Por um lado, docentes não se imaginavam ministrando seminários online, enquanto alguns candidatos acreditavam perder muito sem o contato presencial e preferiram ficar debatendo como seguir em frente ou mesmo como parar a Formação. Diante dessa dicotomia, uma turma seguiu com os seminários teóricos e outra retornaria em agosto, quando também seriam retomados os seminários clínicos para todos.

A manutenção das atividades do Instituto se fez de forma gradativa, levando em conta nossas dúvidas e, principalmente, o cansaço experimentado por todos em decorrência dos atendimentos virtuais.

A fala nos penetrava literalmente através dos fones de ouvido, garantia de privacidade, transformando as pausas, a respiração, os silêncios e as entonações de voz em estímulos a serem diferenciados dos ruídos da internet. O trabalho do analista, para manter o enquadre e sua escuta se tornou bem maior e terminávamos cada dia de trabalho enriquecidos pelos encontros, e exaustos pelas solicitações internas e externas. (Unikowski, 2020)

Um pouco mais habituados à nova forma de trabalho, retomamos a partir do mês de maio - e com frequência menor - os exercícios clínicos, antes chamados de supervisão coletiva, em que um candidato apresenta material, dois analistas comentam e a seguir todo o grupo de membros e de candidatos debate o caso. Através do Zoom, apesar da satisfação de vermos e de sermos vistos, as associações livres espontâneas foram prejudicadas, sendo necessária maior disciplina, cada participante tem que esperar pacientemente sua vez de falar. Por outro lado, não precisando se ausentar de casa à noite, o número tanto de membros quanto de candidatos aumentou e as discussões ficaram mais ricas.

Análises por telefone ou computador, via WhatsApp e Skype, se tornaram corriqueiras, e não mais exceções à regra, levando a IPA a nos dispensar da solicitação especial para fazermos de modo virtual análises de candidatos.

 

O quarto eixo virtual

A formação psicanalítica na sprj segue o modelo de Eitingon com seus três eixos: análise pessoal, seminários e supervisão, acrescidos da vivência do candidato com a Instituição, também conhecida como quarto eixo.

Segundo Zac de Filc (1999), essa estrutura de tripé se assenta em verdade sobre quatro pilares, incluindo a Instituição, que existe em meio à realidade e ao cruzamento de transferências, idealizações, resistências e contratransferências, as quais dão conta da presença do inconsciente e de seus afetos. De acordo com ela, ao privilegiarmos e entendermos as transferências e contratransferências, podemos evitar que se transformem em obstáculos à aprendizagem. E dessa forma desejamos que os candidatos aprendam a ser e a fazer, aprendendo a aprender e a construir conhecimento, a fazer escolhas e a se conhecer.

Sobre a participação dos candidatos nas atividades societárias, Rodrigues et al. (2007) mostram a importância do grupo para que se sintam conectados a uma comunidade de colegas nos caminhos de identificação e desidentificação. E, ainda que a idealização inicial faça parte do processo identificatório, pode haver desvios a partir de "famílias" que se constituem em torno dos analistas e linhas teóricas, existindo o risco de a idealização se tornar uma defesa contra angústias persecutórias, de desamparo e de confusão. Contudo, se o processo de desidealização evolui favoravelmente, o objeto adquire seus aspectos mais reais e suas limitações podem ser aceitas. As autoras lembram ainda a importância do narcisismo como possível obstáculo à identidade do analista e a infantilização com sua dupla face: por um lado, a Instituição não reconhecendo a experiência pregressa do candidato como algo que possa enriquecer o grupo e, por outro, o candidato que não consegue colocar-se como aprendiz desse novo ofício porque, muitas vezes, é mestre ou doutor.

Constitui um grande desafio para o candidato que ingressa no Instituto, que vem com sua bagagem teórico-clínica, sustentar as ansiedades relativas a uma nova condição na qual permanece com uma identidade em esboço. As dificuldades inerentes a essa condição peculiar podem levar, por um lado, ao desestímulo ou mesmo à desistência e, por outro lado, a uma precipitação em reivindicar para si mesmo uma condição que ainda não possui, apoiando-se em sua identidade prévia, anulando a experiência de construir uma nova identidade e uma nova filiação. (Rodrigues et al., 2007, p. 55)

E justamente essa construção de identidade em andamento é mais uma preocupação durante a pandemia. A direção do Instituto vem tentando se fazer presente para acolher aflições quanto à formação e ao mesmo tempo incentivar a continuidade e o pleno investimento na psicanálise. Nesse sentido, acreditamos em observar continuamente de que maneira nos apresentamos, como objetos de identificação, ao mesmo tempo que acompanhamos os candidatos no processo da desidealização de docentes, didatas e da Instituição que precisa deixar de ser um Olimpo impossível de ser alcançado para tornar-se espaço de trocas, de emulação e de desenvolvimento.

Assim como pacientes querem se analisar e resistem bravamente, vemos também resistências por parte dos candidatos, o que facilita posturas ambíguas no Instituto. Passivas enquanto esperam transformar seminários em aulas expositivas, com conteúdo antecipadamente trabalhado pelo docente e ativas quanto a reivindicações, como instituir menos exigências na formação. O equilíbrio dessas forças, em geral, permite que a primeira parte do percurso aconteça sem grandes percalços, mas o mesmo não ocorre quando é preciso escrever relatórios, desvelando o real trabalho analítico de cada um ou a monografia, aprofundando um tema de estudo escolhido. Curiosamente, neste momento de pandemia, muitos egressos estão se debruçando sobre escritas pendentes e o número de avaliações cresceu consideravelmente. Transformando o vazio dos encontros presenciais e a ameaça de morte em produção e progressão.

Aliás, com a quarentena, a vida institucional se tornou bem mais ativa, principalmente através de grupos de WhatsApp. E em seguida, com a abertura de espaços, incluindo a participação de candidatos que, em sua maioria, responderam prontamente com seu engajamento em projetos como sprj Solidária1 e Reflexões Psicanalíticas.2 Ou ainda produzindo textos para mídias sociais3 e participando ativamente nos exercícios clínicos, reuniões clínicas de análise de crianças e adolescentes, reuniões cientificas e no working party A Escuta da Escuta. Atividades caracterizadas por ricas trocas, fundamentais no desenvolvimento da identidade do analista, registraram vozes mais atuantes dos candidatos, aumentando o espaço de pertencimento.

As supervisões seguiram online, assim como as análises pessoais, cujos espaços de privacidade precisaram ser encontrados nas mais variadas formas de locais como quartos, carros, áreas de lazer de prédios e outros.

O medo da violência ao sair à noite e a questão da mobilidade, aliados ao desejo do encontro entre pares, influenciaram positivamente uma maior participação online, levantando questões acerca dessa nova forma de funcionamento da Instituição para além da pandemia.

O que poderá permanecer no espaço virtual? Seminários teóricos? Reuniões? Cursos à noite? Precisaremos repensar criteriosamente vantagens e desvantagens, mas sem dúvida alguma o virtual abriu espaço para a curiosidade em descobrir novos temas. Diversos cursos serviram para modificar o desânimo, alimentando o impulso pelo saber.

Entretanto, acredito que, de todas as atividades, a sprj Solidária, através dos relatos e comentários, foi o espaço mais profícuo para pensar a psicanálise na pandemia, em que o diálogo e a escuta psicanalítica sensível às angústias uniam todos numa mesma causa, disseminando generosidade e diminuindo sentimento de impotência e de solidão. Se de alguma forma perdemos parte da emoção do encontro presencial, pudemos ganhar com maior participação dos membros do Instituto e da Sociedade, evidenciando assim a importância de um "quarto eixo virtual", com candidatos falando mais livremente, se expondo e trocando mais com seus pares e demais membros do corpo societário, realmente manifestando um desejo mais evidente de se tornarem analista dessa Instituição.

 

Identidade e desejo

Apesar do novo e inusitado trazido pela pandemia de covid-19, principalmente os aspectos assustadores da contaminação dos familiares e próximos, da rapidez dos desfechos fatais, mesmo em pessoas aparentemente saudáveis e da solidão do isolamento na saúde e na doença, o mundo seguiu girando e a sprj se mostrou viva e pulsante. A bem da verdade, estamos aprendendo e muito com essa experiência.

Arrisco dizer que o medo foi um aglutinador e propulsor do desejo de "estar junto" na Instituição e de manter ardendo a chama epistemofílica. Assim entendo a adesão aos seminários e demais atividades, além da produção de relatórios e de monografias.

Estamos em guerra, ante um inimigo invisível e imensurável, e numa dimensão de tempo distinta, talvez mais próxima do atemporal do inconsciente. Pelo menos nos primeiros momentos do isolamento social vivemos uma falta de rotina, sem pausas de deslocamentos ou de finais de semana, com a sensação de repetirmos sempre o mesmo dia e de literalmente não sairmos do lugar. Não só as manifestações de cansaço, tristeza e desânimo aumentaram, mas igualmente uma maior curiosidade pelo mundo interno de cada um na busca de recursos para viver o presente, aproveitando a tecnologia e suas mídias para manter vínculos e relações transferenciais e contratransferenciais.

O desejo de se tornar psicanalista que ganha a vida no divã se alimenta durante a formação e segue crescendo com a prática clínica, percorre longa estrada na qual é necessário entrar em contato com o estranho de cada situação e olhar constantemente para dentro de nós mesmos. Quem somos e para onde vamos? Cada passo na manutenção de nossa identidade se coaduna com o aumento de uma intimidade que precisa conter, igualmente, tolerância com nossas imperfeições e limitações.

Eizirik nos falou da dificuldade de trabalhar

com o sofrimento psíquico, com os infernos das pulsões de morte e vida em guerra permanente e mortal, e com a apresentação, no campo analítico, através de sucessivos enactments, desses conflitos intermináveis, do sadismo e do masoquismo, e da busca incessante para retornar e retomar as supostas delícias do princípio do prazer e do narcisismo. (SPRJ - Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro, 2020a)

Todas estas constituindo tentações para nos afastarmos de uma atitude ou postura psicanalítica, sendo mais fácil adquirir do que manter essa identidade. E manter essa atitude neste momento nos lembra Bion (1992) quando afirma sobre uma condição necessária do analista e a compara ao oficial na guerra: dele se espera que não fuja e que possa seguir pensando apesar do pânico e o medo.

O desejo, como manifestação das pulsões de vida, vem prevalecendo frente às ameaças de contágio, de morte e de loucura. Seguimos pensando, desejando aprender e promover trocas na Instituição Psicanalítica, onde as diversas atividades têm sido vetores importantes para a disseminação do vírus do desejo de manter a atitude psicanalítica nas diferentes atividades online. Que sigamos aprendendo muito com esta experiência, sem prejuízo às nossas convicções psicanalíticas.

 

Referências

Bion, W. (1992). Conversando com Bion (P. C. Sandler, Trad.). Imago.         [ Links ]

Bion, W. (2007). Atenção e interpretação (P. C. Sandler, Trad., 2.ª ed.). Imago. (Trabalho original publicado em 1970)        [ Links ]

Morin, E. (2006). Introdução ao pensamento complexo (E. Lisboa, Trad., 3.ª ed.). Sulina.         [ Links ]

Morin, E. (2020, 9 de abril). As certezas de uma ilusão. Fronteiras do Pensamento. https://bit.ly/37hXduK        [ Links ]

Rodrigues, A. M. P. et al. (2007). O candidato e a instituição psicanalítica: um quarto eixo na formação analítica? Psicanálise, 9(1),47-75.         [ Links ]

SPRJ - Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. (2020a, 25 de junho). Aula inaugural 2020: Desafios éticos na formação e prática psicanalítica: Cláudio Laks Eizirik [Vídeo]. YouTube. https://bit.ly/33wdk6T        [ Links ]

SPRJ - Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. (2020b, 9 de junho). A capacidade negativa: Arnaldo Chuster [Vídeo]. YouTube. https://bit.ly/39tVF3F        [ Links ]

Unikowski, D. [@sociedade_psicanalitica_do_rj]. (2020, 20 de abril). Psicanálise virtual e enquadres possíveis [Fotografia]. Instagram. https://bit.ly/3lAvdHT.         [ Links ]

Zac de Filc, S. (1999). Formación psicoanalítica hoy: creatividad y futuro. Psicanálise, 1(1),191-208.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Débora Regina Unikowski
Avenida Epitácio Pessoa, 4500, ap. 802
22471-004 Rio de Janeiro, RJ
Tel.: 21 98121-3587
deboraunik@gmail.com

Recebido em 20/7/2020
Aceito em 22/9/2020

 

 

1 Acolhimento emergencial no qual uma equipe, disponível de domingo a domingo, acolhia e direcionava os pedidos de ajuda para membros e candidatos, que atendiam gratuitamente pacientes por telefone, com foco pontual nos problemas da quarentena. Espontaneamente após o contato telefônico, cada analista publicava um relato no grupo de WhatsApp, resumindo a experiência e dando espaço para comentários do grupo.
2 Uma equipe formada por um membro didata, uma candidata e um bibliotecário escolhia temas atuais e buscava subsídios para contínua reflexão via Facebook.
3 Instagram, Facebook, site da sprj e outros espaços de exposição virtual.

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