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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo July/Sept. 2020

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

A atualidade de Virgínia Leone Bicudo

 

The relevance of Virginia Leone Bicudo in the present times

 

La actualidad de Virginia Leone Bicudo

 

L'actualité de Virginia Leone Bicudo

 

 

Jean Marc TauszikI; Tradução Darlene Lorenzon

IMembro da Sociedade Psicanalítica de Caracas

Correspondência

 

 


RESUMO

Esta é uma transcrição livre da exposição do autor na homenagem a Virgínia Leone Bicudo organizada pela Sociedade de Psicanálise de Brasília, em 21 de outubro de 2020, com o título Olhares sobre Virgínia Leone Bicudo. No texto, a partir de uma posição de estrangeiro, de onde foi especialmente convocado, o palestrante enumera algumas contribuições psicanalíticas da homenageada e, com base em algumas articulações de suas ideias, reflete sobre certos aspectos da vida científica e institucional da psicanálise atual, discutindo também sua relação problemática com a sociologia em um contexto global tenso e atravessado por múltiplas variantes de segregação.

Palavras-chave: preconceitos, teoria psicanalítica, ideologia


ABSTRACT

The following is a free retranscription of the author's presentation in honour of Virgínia Leone Bicudo, which was organised by the Brasília Psychoanalysis Society on 21 October 2020 under the title "Olhares sobre Virgínia Leone Bicudo". In the text, the speaker lists-from the position of a foreigner, from which he was specially called-some of the contributions Bicudo made to psychoanalysis and, based on some of her ideas, reflects on certain aspects of the current scientific and institutional reality of the field, while also discussing its problematic relation -ship with sociology in a tense global context permeated by multiple variants of segregation.

Keywords: preconceptions, psychoanalytic theory, ideology


RESEUMEN

Lo que sigue en una retranscripción libre de la exposición del autor en el homenaje a Virginia Leone Bicudo, organizado por la Sociedad de Psicoanálisis de Brasilia el 21 de octubre de 2020 con el título "Miradas sobre Virginia Leone Bicudo". En el texto, desde una posición de extranjería desde donde se le convocó especialmente, el expositor enumera algunos aportes psicoanalíticos de la homenajeada y sobre la base de alguna articulación de sus ideas reflexiona sobre ciertos aspectos de la vida científica e institucional del psicoanálisis actual, discutiendo también su problemática relación con la sociología en un contexto global crispado y atravesado por múltiples variantes de la segregación.

Palabras clave: prejuicios, teoría psicoanalítica, ideología


RÉSUMÉ

Il s'ensuit une transcription libre de l'exposé de l'auteur pendant l'hommage à Virginia Leone Bicudo, organisé par la Société de Psychanalyse de Brasilia le 21 octobre 2020 ayant par titre « Regards sur Virginia Leone Bicudo ». Dans ce texte, à partir d'une condition d'étranger, d'où il a été spécialement appelé, le conférencier énumère quelques contributions psychanalytiques de celle à qui on rend des hommages et, appuyé sur quelques articulations des idées de cette psychanalyste, il réfléchit à propos de certains aspects de la vie scientifique et institutionnelle de la psychanalyse actuelle, en discutant aussi sa relation problématique avec la sociologie, dans un contexte mondial tendu et percé par de multiples variantes de ségrégation.

Mots-clés: préjugés, théorie psychanalytique, idéologie


 

 

Descobri Virgínia Leone Bicudo casualmente. Um psiquiatra na Venezuela, com seus quase 90 anos, a citou referindo-se a alguns psicanalistas que, sem ser médicos ou psicólogos, construíram uma obra sólida e coerente. O que chamou minha atenção sobre aquela menção foi seu sobrenome materno, Leone, o mesmo de Sergio Leone, diretor de spaghetti westerns como O bom, o mau e o feio (1966), Era uma vez no oeste (1968) e outros filmes memoráveis dos anos 1960 e 1970. Esse gênero cinematográfico conservava uma temática norte-americana - a dos cowboys -, sendo filmado na Espanha, com atores de várias nacionalidades, sob a direção do mestre italiano. E, em tom de piada, eu disse que com certeza essa mulher praticaria psicanálise spaghetti.

O certo é que o tempo não desmentiu aquele ocorrido, salvo as distâncias e os contextos... Uma analista não homem, não médica e não branca - digo de maneira negativa para ressaltar a ideia de um paradigma predominantemente masculino, médico e burguês, então imperante no Brasil em meados dos anos 1930 - e que portava o peso das identificações pertencentes a suas diversas linhagens: o fator negro e escravo por parte do pai, o mediterrâneo e imigrante por parte da mãe, o brasileiro e cafeicultor por parte do contexto socioeconômico da época..., aspectos constituintes que, com certeza, teria que elaborar com sua primeira analista, Adelheid Koch (alemã e judia), em um idioma que certamente não era o de nenhuma das duas. Uma mulher herdeira de duas modernidades, a do movimento modernista, que desde os anos 1920 e com a ajuda de Durval Marcondes se aproximou da psicanálise, da vida cultural paulista e da antropofagia, e depois a da arte e arquitetura moderna, que tanto a seduziu desde Londres, quando contemplava a construção da nova capital projetada por Oscar Niemeyer nos anos 1960, o que fez com que ela realizasse seu desejo de fundar um núcleo de psicanálise nesse ponto de inflexão urbana que é Brasília. Um Niemeyer que, sendo ateu e comunista, poderia por sua vez construir uma catedral como a de Nossa Senhora Aparecida, que projetou para Juscelino Kubitschek, um presidente cigano, que não se identificava com o liberalismo nem com o estatismo (algo raríssimo hoje em dia) e que, além de cientista (urologista de formação), era amigo íntimo de Chico Xavier. Virgínia, uma mulher negra, educadora, que depois bebeu de um rio alimentado por duas fontes igualmente importantes para seus interesses vitais, a sociologia e a psicanálise (a princípio Freud, seguido por Klein, e depois Bick, Bion e autores argentinos que lhe eram contemporâneos: os Baranger, os Garma, os Rascovsky etc.). Um spaghetti ou, se preferir, uma feijoada, com deliciosos ingredientes de diferentes procedências.

No início dos anos 2000, comecei a me interessar pela psicanálise brasileira, e assim redescobri Virgínia, principalmente por seu dinamismo e seu trabalho institucional quase titânico, que a faz presente em qualquer iniciativa duradoura e consistente do trabalho cotidiano psicanalítico local, mas também por alguns desenvolvimentos notáveis. Um artigo de 1964, publicado pelo International Journal of Psychoanalysis, sobre a culpa persecutória e o que ela denominou posição pré-depressiva, foi revelador desde a primeira vez que o li. Pareceu-me que descrevia, com anos de antecedência, aspectos semelhantes aos mecanismos de defesa que, tempos depois, Meltzer sinalizou no limiar da posição depressiva e que hoje são temas corriqueiros da nossa disciplina. Naquele artigo, em resumo, ela sustenta que a culpa persecutória é secundária em relação à projeção da culpa em um objeto, o qual num segun do momento será considerado injusto e insistente por seu empenho em se fazer necessário na vida do paciente - solução intermediária entre uma posição esquizoparanoide cada vez menos complexa e uma posição depressiva cada vez mais acessível. Em 1966, foi publicado no Uruguai outro artigo teórico-clínico que me estimulou especialmente e que refinou meu olhar. Ele aborda o fracasso da defesa maníaca, trazendo uma ideia interessantíssima: a de uma vertente sã da mania colocada a serviço da vida e que deve ser preservada no trabalho com nossos analisandos. Essa é uma precisão maravilhosa e de utilidade clínica fundamental.

A propósito, contarei uma anedota recente que vem ao caso. Quando pedi ao meu analista que me falasse um pouco sobre Virgínia, sabendo que ele a havia escutado em várias ocasiões, em congressos e em alguma visita a Caracas nos anos 1970, ele ressaltou que ficou impressionado com a distinção que ela fazia entre dois tipos de regressão - o que está a serviço do eu e o que, ao contrário, é perturbador e contraria o eu -, enfatizando os modos de administrar e sustentar no processo analítico esses dois tipos. Para mim, foi uma revelação, sobretudo quando compreendi o lugar preponderante que teve, em minha própria análise, a regressão e o manuseio quase artesanal que meu analista fazia dela para sintonizá-la com a criatividade e com meu crescimento. Como resultado, de certa forma, também fui analisando de Virgínia, o que pude perceber recentemente.

Esse último aspecto me faz lembrar o que propõe Haydée Faimberg (2018) com a noção de uma situação ainda não advinda, algo que sempre esteve ali, mas que apenas depois, em um segundo tempo, advém por efeito de um après-coup, possibilitando a historização do percurso vital de um paciente e a história da transferência. Faimberg aproxima da situação ainda não advinda uma noção solidária, a de conceito faltante, argumentando que aquilo que acontece como novidade na transferência pode demandar outros constructos conceituais, que ampliem o alcance da compreensão e da instrumentação clínica. Acredito que, tratando-se do pensamento de Virgínia, é possível fazer com que diga coisas ainda não ditas, ainda não conceituadas e muito menos incorporadas na nossa reflexão.

Pediram-me que falasse sobre Virgínia sob o ponto de vista estrangeiro, de fora e de forma alheia à brasilidade, termo que sustentamos desde o Pensamento Psicanalítico Latino-Americano (ppl), quando realizamos em 2017 o laboratório chamado Brasilidade na Psicanálise/Psicanálise Brasileira, experiência enriquecedora, com elementos inovadores e uma participação animadora, liderada no Brasil por Denise Goldfajn, Carlos Frausino, Sylvia Pupo e Helena Surreaux, e que apresentamos no encontro da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi) em Fortaleza. Essa exterioridade, naquela oportunidade, permitiu-me captar a intraduzível e fundamental expressão usada aqui, o jeito, possibilitando-nos falar de fora sobre algo que no interior não parecia demandar interrogação nem deslocamento. Com o jeito cunhamos um neologismo, sujeito, e falávamos como se tivéssemos descoberto um tesouro, cada um com su-jeito, que condensava grande parte do que encontramos, que era a brasilidade e sua relação com a prática psicanalítica.

Fico feliz, então, em poder fazer Virgínia falar a partir de uma posição que me convida a dialogar com meus contemporâneos, fazê-la trabalhar com suas próprias articulações conceituais, exercer uma suposição imaginária - à moda de Bion - que dê conta da eficácia de seu pensamento em minha realidade psíquica e minha compreensão da prática, e portanto válida como perspectiva psicanalítica. Para isso, articularei três textos esclarecedores escritos por ela para pensar a nossa disciplina em função de alguns temas que lhe resultaram essenciais e que irão se revelando à medida que avancemos.

O primeiro deles, naturalmente, é sua dissertação de mestrado como socióloga, defendida em 1945. Pareceu-me encontrar nela uma constatação: a do modo como o relato macunaímico parecia se realizar na concretização das relações sociais de negros e mulatos com a classe branca dominante - e quem sabe não seja possível observar ali também algo que pôde significar para Virgínia sua inserção nos distintos âmbitos aos quais pertenceu. Escrito em tom sociológico, esse trabalho propunha um olhar inovador, o do colorismo (diferente do racismo e do classismo), que distinguia o panorama brasileiro. Sobre essa premissa, Virgínia reconhece - ou ratifica - que as oportunidades de ascensão social do negro dependiam do "embranquecimento" de sua aparência. Ela descreve magistralmente o caráter relacional dos processos de construção da identidade, sem negar com isso a dimensão estrutural das desigualdades entre negros e brancos e a evitação, mediante esse mecanismo, do desenvolvimento de uma consciência da discriminação. Sem dúvida, um texto inovador e de uma vigência assustadora para a época.

Um giro importante acontece em 1969 (24 anos depois de sua dissertação), em um trabalho sobre as contribuições de Freud para as ciências sociais, onde se desassocia das interpretações sociológicas para apostar na psicanálise como chave de leitura possível do fenômeno social. Ali, Virgínia critica o modo pelo qual certa sociologia explica a gênese da agressão coletiva - exclusivamente em razão da frustração condicionada por fatores sociais e culturais - e resgata a perspectiva freudiana que alega que os processos inconscientes também integram e desintegram a personalidade e os grupos sociais, considerando as fantasias de parricídio, incesto e filicídio e invocando o impulso destrutivo, o qual, sem se conectar, se projeta no mundo exterior. (Embora Freud não adote conceituações sociologizantes em sua terminologia, fica evidente que sua experiência pessoal como objeto de preconceitos raciais ou religiosos e o perigo dos fundamentalismos que aniquilam o sujeito fazem parte da estrutura de sua metapsicologia, um contraponto importante com a recente leitura e interpretação de Paola Amendoeira na homenagem que nos reúne.) Nesse artigo, Virgínia descreve duas atitudes tão comoventes como atuais (lembrem que escreveu o artigo em 1969): apresenta um pensamento onipotente que instrumenta objetivos e fins na dimensão do absoluto - o tudo ou nada - e aponta o ataque indiscriminado a aquisições e sucessos culturais.

Ela aprofundará essa linha de pensamento três anos mais tarde, em 1972, ao ler em Caracas um texto sobre a incidência da realidade social no trabalho analítico, tentando dar conta da interação entre os processos sociais e os processos psíquicos, tanto no paciente quanto no analista. Nesse texto, Virgínia alerta sobre uma psicanálise implementada ideologicamente, obstinadamente defendida em função de preconceitos que podem ser certos ou errados, mas ainda assim preconceitos. Ela insiste em distinguir a ciência - a que deveria aspirar a psicanálise - da ideologia (baseada em crenças), da doutrina (baseada em dogmas) e das utopias (que não necessitam da realidade).

Esses três ensaios nos permitem pensar, quase 20 anos depois do falecimento de Virgínia, sobre as possíveis articulações entre as duas disciplinas colocadas em jogo nesse percurso e sobre o modo como algumas categorias da disciplina sociológica e algumas ideologias, em vez de favorecer ou enriquecer qualquer aproximação psicanalítica ao mundo convulsionado do qual fazemos parte, a impedem. Os fatos estão à mostra para ser constatados várias vezes: a segregação racial e a perseguição religiosa, a corrupção e o desperdício, a psicopatia dos governantes, a falta de solidariedade com os desfavorecidos, a xenofobia, o feminicídio, o ecocídio, a ineficácia dos poderes públicos, o avanço descarnado do neoliberalismo, a hipocrisia progressista, o avassalamento policial, a incerteza e o mal-estar que tudo isso nos causa... Mas a forma como cada vez mais os psicanalistas parecem resolver a questão produz desconcerto e preocupação. E não são poucas as vezes que reflito sobre o que Virgínia diria a respeito.

No debate contemporâneo parece ser cada vez mais natural negar o caráter descritivo dos conceitos psicanalíticos - seu único caráter possível e necessário - a favor de conceituações sociológicas que, podendo ser descritivas em sua origem, se ideologizam implacavelmente, deixando de descrever a realidade circundante para passar a criá-la apenas com a enunciação do conceito. Noções psicanalíticas como as de diferença sexual, histeria, fálico/castrado e outras são deslegitimadas por esses mesmos psicanalistas, que eliminam de sua caixa de ferramentas constructos altamente descritivos e metafóricos, substituindo-os por um sistema de referências com conceitos que, primeiro, não dão conta nem da clínica nem da economia libidinal do sujeito - e lembrem-se de que somos psicanalistas - e, segundo, não incluem o mundo inconsciente, que é o nosso fundamento.

Noções de cunho sociológico - a de patriarcado, por exemplo - são úteis no contexto coletivo que lhes dá sentido, úteis inclusive como metáfora para captar certo funcionamento da mente, o efeito da cultura na subjetividade e as práticas que se legalizam ou se naturalizam a partir de sua eficácia, mas fazê--las passar por teoria explicativa geral, que reconfigure o corpus psicanalítico e domine o sofrimento do sujeito, é ir longe demais. Agregar aos conceitos de inspiração sociológica algum termo psicológico, ao falar de racismo estrutural ou de transfobia, não reverte nem complexifica a situação - ao contrário, a achata ainda mais, fazendo de sua enunciação algo cada vez mais moralizador e não menos segregacionista que aquilo que denuncia. Que o contexto de gestação, enunciação, prática e transmissão do legado freudiano tenha estado e esteja permeado pelos fenômenos e tendências que a reflexão sociológica descreve não invalida nem desmerece a psicanálise, nem a torna menos comprometida com a crítica e a ação social, porque, se o fizesse, o próprio discurso sociológico também se invalidaria. Não parece sensato que nem a psicanálise nem os outros campos do saber relativizem ou desmantelem a realidade psíquica, além das necessárias (e regulares) revisões, saltos e criações de um corpus teórico em constante mutação.

É também cada vez mais comum que alguns psicanalistas assumam publicamente posições absolutistas, inflexíveis, em que todo o mal recai de um lado (aviltado e sem matizes), com desejo retaliativo e reivindicativo, sem a inclusão em suas sentenças da complexidade característica da realidade, tanto psíquica como material. É comum notar colegas que ou denunciam violações em um lugar e não o fazem em outro, sob o velho apotegma de não jogar para o time contrário, ou aludem a excessos cometidos por outros para não refletir sobre os próprios quando estes dizem respeito às políticas com as quais se identificam, daí prevalecendo a moral (seja de esquerda, seja de direita) que os faz decretar quem é o verdadeiro ou o falso queer, negro, gay ou patriota, ou quem é a verdadeira ou a falsa feminista, abortista ou ecologista. Retomo as características ressaltadas por Virgínia (numa época em que o inassimilável para a cultura era a homossexualidade, a perda da virgindade, a pílula anticoncepcional, a roupa unissex e o divórcio): um pensamento onipotente que instrumenta objetivos e fins na dimensão do absoluto, e o ataque indiscriminado a aquisições e sucessos culturais, sejam os do Ocidente, os da arte e da cultura, os da psicanálise etc.

Nem a diferença sexual é desigualdade, nem a referência aos órgãos genitais invalida a teoria de gênero - senão, o que é a psicossexualidade, a pulsão e o prazer? -, nem toda apropriação é roubo... A lista é longa. Em vez de uma desconfiança em relação ao outro, trata-se da suspensão da própria certeza para alojá-lo, entendida a inclusão como o ato de pôr em prática. Depois de tudo, nosso compromisso como psicanalistas é com vítimas e criminosos, porque nossa premissa é o sujeito em sua singularidade, e não a palavra de ordem coletivizadora que organiza alguns aspectos da interação social e política. E isso não contravém o ideal de justiça nem a luta por um mundo melhor; na realidade, é a melhor aposta possível sobre a base de nossos conhecimentos.

Nas exposições precedentes, especialmente as de Carlos Frausino e Paola Amendoeira, configurou-se uma imagem potente, que eu gostaria de retomar para finalizar minha intervenção: a calçada. Carlos nos apresentou uma fotografia dos anos 1930 na qual uma jovem e altiva Virgínia, junto a outra menina, caminha sobre alguma calçada paulista olhando fixamente para a lente do fotógrafo. Também ressaltou aquela sentença puritana que dizia: "Mulher direita não anda na rua direita". A calçada também se impõe na leitura de Paola, quando nos recorda daquele evento fundamental para o psiquismo de Freud e para a construção de sua ciência, a de seu pai humilhado na rua, incapaz de reagir diante do desprezo proferido por conta de sua condição judia. Acredito que foi Richard Sennett quem apontou que o grau zero da urbanidade ficou constituído quando o homem projetou calçadas, quando levantou sobre a terra alguns centímetros de cimento que organizaram os percursos e delimitaram os lugares e suas funções. Além disso, é importante dizer que a psicanálise é uma prática urbana, solidária com a ideia de cidade. Eu me pergunto que consequências teria impedir de transitar pela calçada um aspecto fundamental (materno) de Virgínia: sua herança mediterrânea, italiana, dando lugar exclusivamente a sua linhagem negra e africana, sem aludir à miscigenação da qual somos produto. E aqui reitero o ofício de nossa autora que antecedeu ao de socióloga e ao de psicanalista: o de educadora. Se em algo devemos insistir, desde os nossos vértices de observação, é em educar a partir do que nossa experiência clínica nos aporta e do que sabemos fazer com o método que utilizamos. Disso poderia nos falar Virgínia Leone Bicudo, uma psicanalista da atualidade.

 

Referências

Bicudo, V. L. (1945). Estudo de atitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo. Dissertação de mestrado, Escola Livre de Sociologia e Política, São Paulo.         [ Links ]

Bicudo, V. L. (1964). Persecutory guilt and ego restrictions. The International Journal of Psychoanalysis, 45(2),358-365.         [ Links ]

Bicudo, V. L. (1966). Consecuencias del fracaso de la defensa maníaca. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, 8(3),303-315.         [ Links ]

Bicudo, V. L. (1969). Contribución de Freud a las ciencias sociales. Revista Uruguaya de Psicoanálisis, 11(3),268-286.         [ Links ]

Bicudo, V. L. (1972). Incidência da realidade social no trabalho analítico [Apresentação de trabalho]. IX Congresso Latino-Americano de Psicanálise, Caracas. https://bit.ly/3mz43T4        [ Links ]

Faimberg, H. (2018). La situación aún no advenida y el concepto faltante. In F. M. Gómez & J. M. Tauszik (Comps.), Psicoanálisis latinoamericano contemporáneo (Vol. 1, pp. 78-94). APA Editorial; PPL.         [ Links ]

 

Correspondência:
Jean Marc Tauszik
Colinas de Bello Monte
0414-3296990 | 0212-7516547
jmtauszik@gmail.com

Recebido em 4/11/2020
Aceito em 10/11/2020

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