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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020

 

RESENHA

 

Clínica psicanalítica: testemunho e hospitalidade

 

 

Leda Herrmann

Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Doutora em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora de Andaimes do real: a construção de um pensamento (2007)

Correspondência

 

 

 

Autor: Marcio de Freitas Giovannetti
Editora: Blucher, 2018, 176 p.
Resenhado por: Leda Herrmann

 

Um autor que se constrói

O livro de Marcio Giovannetti Clínica psicanalítica: testemunho e hospitalidade (Série Escrita Psicanalítica, coordenada por Marina Massi) - coletânea de escritos e testemunhos de apresentações e conferências em instituições psicanalíticas - nos conta de sua trajetória pela psicanálise que vai se transformando em autoria psicanalítica.

A trilha pela qual Marcio segue é a clínica, declarada no próprio título escolhido para o livro. O que vai emergindo da leitura dos capítulos é um original autor psicanalítico, o qual, por estar com os pés firmemente assentados na obra freudiana, pode pensar a clínica inventando percursos não ortodoxos, como o uso de Skype com um paciente jovem, morador/viajante em outro continente em razão de seu ofício, que o obrigava a percorrer sistematicamente países desse continente. O paciente nos é apresentado no primeiro capítulo, "Sobre a função testemunho em psicanálise". Vamos encontrá-lo novamente no antepenúltimo capítulo, "Hospitalidade na clínica psicanalítica hoje". Repetição? Não, mas reiteração da exploração que Marcio foi fazendo e que lhe permitiu construir os conceitos de função testemunho e de hospitalidade na clínica como legítimos conceitos psicanalíticos. E isso sem se desviar das pegadas freudianas, valendo-se das contribuições do filósofo Giorgio Agamben sobre as características do mundo em que vivemos dos finais do século xx para os inícios do século XXI. Essas são também pegadas freudianas, como Marcio aponta em vários capítulos, e que tão bem resume Camila Salles no texto para as orelhas do livro: "Como testemunha, o psicanalista dá voz ao que ainda não pode ser 'legitimado como experiência vivida'. Não se restringe ao recalcado ou ao emergente em situações de falência psíquica; toma em consideração o mundo".

Função testemunho e hospitalidade em psicanálise, mais que conceitos emprestados de Agamben por Marcio, organizam seu pensamento psicanalítico, resgatando da produção freudiana a relação intrínseca que a habita de incessantemente reformular conceitos e teorias, quando pensar o homem psíquico impunha a Freud levar em conta as condições do mundo em sua época - do final do século xix à primeira metade do século xx. Marcio é cidadão do século xx na transição para o século XXI, e são as características que esse mundo toma que nosso autor não perde de vista no seu trabalho na clínica psicanalítica e na elaboração teórica que dela vai fazendo. Tal rota freudiana percorre o livro todo. Um exemplo já encontramos no segundo capítulo, "Esboço para uma cena primária e para uma cena analítica no início do século XXI", publicado pela primeira vez em 2004, na Revista Latino-Americana de Psicopatologia Fundamental.

Se a psicanálise emerge com a teoria dos sonhos nos finais do século xix, e se a teoria dos sonhos é a base estrutural de seu arcabouço teórico, é mister repensá-la num momento em que a mais natural das fronteiras, aquela que separa o dia da noite, já não mais existe para uma geração que, ao simples toque de um mouse, define o horário e o local em que está. O espaço cibernético modifica também a experiência temporal; o conceito de permanência e durabilidade se desfaz. A separação entre lugar privado e público, referência estruturante de todo um século, é implodida pela globalização, ou pela planetarização, e, com isso, implode-se também o conceito de subjetividade. (p. 30)

Por sua vez, em "Instinto: da teoria da autoconservação à teoria da mortalidade", argumentando sobre a forma criadora do texto freudiano, em que os conceitos são sempre retomados e jamais definitivos, consoantes à relação entre homem e mundo, escreve:

A primeira oposição instintual inicial se dava entre sexualidade e autoconservação. A última entre sexualidade e morte. Mantém-se, ao longo desses 15 anos, um dos termos da equação básica da vida humana: a sexualidade. Outro, a autoconservação, transforma-se em seu oposto: a morte. (p. 50)

Assim, o destino que Marcio encontra para os conceitos freudianos no conjunto de sua obra, de serem revisitados e revistos, impõe a Freud a tarefa da incorporação a eles de novos significados. Essa sintonia fina de Freud, Marcio encontra em outros autores psicanalíticos, posteriores a ele, mas não se mantém nos seguidores desses autores. Essa crítica está mais evidente no capítulo "Uma questão hamletiana", em que analisa a obra de Bion.

Na esteira da sintonia fina de Freud encontrada em Bion, observa:

Se o olhar inicial de Freud se posicionava na sexualidade, o ponto de vista primeiro de Bion partia da guerra. Se Freud inicia seu Além do princípio do prazer com os sonhos traumáticos, é o próprio trauma experimentado na guerra que vai dar início à obra de Bion. Se Freud ali falava do sonho traumático como um amortecedor do excesso que inundou o ego, Bion vai retomar essa função do sonho, continente para o excesso, não apenas no espaço intrapsíquico, mas também no espaço relacional. Se o primeiro corpo descrito por um é o corpo erógeno, pelo outro, o primeiro é o corpo guerreiro, ferido pelo excesso. Se o corpo erógeno deseja um outro corpo, o corpo guerreiro necessita de um outro corpo e de uma outra mente para cuidar de seu estilhaçamento. (p. 89)

Em relação à perda dessa sintonia fina nos seguidores de um autor posterior a Freud, escreve nesse mesmo capítulo, ao comentar o uso da grade de Bion:

Mas como em psicanálise a transferência costuma se dar também com o próprio texto escrito, com a própria teoria, a palavra escrita de Bion foi sacralizada por alguns adeptos. Resultado: sua grade, publicada como um exemplo, um modelo, passou a ocupar o lugar da grade a ser desenvolvida e criada por cada psicanalista a quem seu texto falasse. No lugar do pensamento próprio e autônomo, do pensamento que dialoga com o outro, no lugar de instrumento de liberação da escuta da outra voz, a do analisando, a grade transformada em objeto sacro, intocável, intransformável, portanto, vem a tornar-se meta ideal de escuta, não da outra voz, mas sempre da mesma. Muitas escutas se aprisionaram atrás dessa grade. (p. 85)

É interessante observar as datas de referência dos textos que compõem os capítulos do livro. Com exceção do primeiro, "Sobre a função testemunho em psicanálise", inédito, escrito em 2013, foram todos preparados para publicação em revistas psicanalíticas ou para apresentação oral em eventos psicanalíticos, com posterior publicação. Esses textos cobrem o período da produção de Marcio que vai de 1995 a 2003, ou seja, sua plena maturidade psicanalítica - maturidade expressa no texto de 2013 pela sistematização do conceito que cria de testemunho em psicanálise, e que usa e trabalha ao longo do livro.

Assim como o citado texto de Camila Salles nos aguça a vontade de adentrar o livro, o prefácio de Cecilia M. de B. Orsini nos conduz por sua leitura. Constituem em conjunto, orelha e prefácio, verdadeira introdução comentada ao texto de Marcio. Destaco dois parágrafos do texto de Cecilia, exemplares dessa condição que apontei de autoria psicanalítica encontrada no livro de Marcio, que trabalha e sistematiza uma original reflexão clínico-teórica:

O caso de um jovem executivo é paradigmático dessa empreitada. Seu trabalho requeria um excesso de viagens, nada mais nada menos que 87 viagens em 10 meses. Nas entrevistas iniciais, um Marcio um tanto perplexo pondera com o paciente se seria útil atendê-lo nessas condições, ao que o jovem responde, numa manobra surpreendente em meio ao excesso de trânsito: "Não saia daí!". Marcio escuta o apelo e deixa-se estar nesse cenário instável. A dupla começa uma aventura por Skype, trafegando por hotéis, países e cidades. Criam um abrigo não no setting tradicional, mas na hospitalidade da palavra trocada em novos meios - os meios possíveis -, movendo fronteiras para poder acolher a alteridade desse paciente viajante, estrangeiro de si e do mundo em novos sentidos para além dos que a psicanálise já debatia. O jovem sai da depressão em que se encontrava, faz novos projetos, procura uma morada.

Esse jovem executivo, habitante de aeroportos e hotéis, do mundo virtual, metaforiza uma subjetividade que exige novos paradigmas. Marcio lança mão de autores que pensam o lugar do trânsito, do "não lugar", entre eles Agamben, Benjamin, Marc Augé, Derrida, Baudrillard, Blanchot e Bachelard, com os quais procura repensar a clínica num mundo de fronteiras borradas, de narrativas empobrecidas, de afetação pela velocidade e pelo trauma informacional. (p. 10)

Todas as discussões clínicas que o livro contém constituem-se como dados de uma pesquisa que dão fundamento para as conclusões e formulações a que Marcio chega sobre a clínica e a própria disciplina psicanalítica. Este livro testemunha sua autoria.

 

 

Correspondência:
Leda Herrmann
Rua Girassol, 34/102
05433-000 São Paulo, SP
Tel.: 11 3088-8123
herrmannfl@globo.com

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