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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2020

 

IDEAIS

 

O assintótico1

 

 

Pierre Fédida2; Tradução Claudia Berliner

 

 

"A conclusão assintótica [Der asymptotische Abschluss] do tratamento é, em si, indiferente para mim, mas decepciona as pessoas ao redor..." Essa observação de Freud comunicada a Fliess (carta de 16 de abril de 1900), a respeito de um paciente (M. E.) que este lhe tinha encaminhado quatro anos antes, dá um tom realista quando se trata de avaliar a análise por seus resultados terapêuticos. Em relação a um ideal de completa cura - objeto de expectativa do paciente e, talvez, das pessoas ao seu redor - é, portanto, preciso satisfazer-se com essas conclusões assintóticas em que subsistem sintomas residuais (ein Rest der Symptomen), mas em que se evita que o paciente permaneça, devido à transferência, num tratamento interminável (Endlosigkeit). Ao fim de sua "carreira de paciente", Freud convidou M. E. para jantar em sua casa. "Dependia apenas de mim", acrescenta Freud, "prolongar ainda mais o tratamento, mas desconfiei que, nesse caso, tratava-se de um compromisso entre o estado de doença e a saúde, compromisso que os próprios doentes desejam, mas ao qual o médico não deve se prestar." Antes de terminar a carta, Freud ainda afirma o seguinte:

Não vou perder esse homem de vista. Como ele teve de arcar com todos os meus erros técnicos e teóricos, acredito vir a ter mais sucesso num próximo caso em menos da metade do tempo. Oxalá o Senhor me envie um... Por vezes, algo em mim me compele a uma síntese, mas resisto [grifo nosso].3 (1956, pp. 281-282)

Devemos alegar, como há quem faça, que o "assintótico" se explica pelas dificuldades então enfrentadas por Freud, dificuldades relativas ao manejo da transferência?4 Não veríamos nenhum inconveniente em nos alinharmos a essa explicação se, contudo, ela não pressupusesse um modelo do tratamento bem-sucedido, ou seja, cujo término estivesse garantido pela liquidação da transferência. Caso esse em que o assintótico seria não só redutível, mas francamente eliminável.

Não carece de interesse procurar entender em que momento do pensamento de Freud a transferência continua sendo para ele um fenômeno se não obscuro, ao menos flagrantemente cego! Temos aí a relação com Fliess, com seu secreto poder de despertar o pensamento e também de mascarar o que lhe é manifestamente familiar: a histeria masculina não é um problema menor, e a teoria da passividade sexual infantil permite conceber que o menino pode, assim como a menina, ter sido vítima de uma cena de sedução. Enquanto a questão da transferência fica, por assim dizer, prisioneira d'A interpretação dos sonhos (que, no entanto, constitui os prolegômenos de sua elaboração técnico-teórica), o pensamento parece estar ocupado com as verificações clínicas das hipóteses que ele se deu racionalmente. O primado atribuído ao método em detrimento da técnica é propício para ensejar satisfações intelectuais muito sensíveis ante os enigmas (Rätsel) da vida psíquica; assim fazendo, a compreensão psicogenética que a psicanálise ganha ante um caso parece ter como ônus dificuldades (Schwierigkeiten) técnicas que mantêm intocado o essencial.5 O assintótico bem poderia, então, ganhar destaque e desempenhar o papel de antificção de um ideal do sucesso terapêutico.

Os sintomas - assim como os filósofos - inclinam-se idealmente às sínteses! Freud diz a Fliess sentir-se ele mesmo compelido a isso, mas resiste ou, mais precisamente, segura isso em baixo (aber ich halte es nieder). Em outras palavras, ele reprime em si o que tenderia a se impor como as liquidações pós-balanço (o termo Abschluss comporta essas significações de anulação por conclusão totalitária). Nas palavras de Proudhon, que Freud não contestaria: "A síntese é governamental"! Ela resolve, por dissolução dos contrários, em nome de uma totalidade ideal, e por intolerância ao fragmentário. Endereçando-se ao Fliess da periodicidade dos ciclos vitais, é verdade que Freud pode se reconhecer tentado por essas sínteses, cuja forma é teoricamente constituída e propulsada pela ideia de repetição periódica, cujo motor é um princípio de vida.

Aliás, não é assim que o ideal de cura total está, de certo modo, subsumido numa clareza intelectual - de natureza explicativa - que autoriza a crer que um tratamento termina quando o paciente está curado e, isso, graças à tomada de consciência do recalcado? Em suma, o ideal dessas sínteses faria coincidir o conhecimento intelectual do recalcado e a cura! Caso esse em que a conclusão por cura significaria que todos os sintomas desapareceram. A tradução francesa da carta de 16 de abril reintroduz, por meio de seu lapso, esse ideal imaginário. Der asymptotische Abschluss não foi traduzido por "la conclusion asymptomatique" [a conclusão assintomática] (Freud, 1956, p. 282)?! E, tal como Freud lembra em outra parte, uma psicanálise não poderia concluir-se com uma síntese, pois - quanto à síntese, "os sintomas dela se encarregam"! Em sua própria literalidade, a análise não poderia ser concebida de outra maneira que não sob essa forma da insistência do fragmentário - ficamos tentados a dizer: do fragmental - e da persistência dos contrários: em primeiro lugar, eros e thanatos, reunião e destruição, unificação e separação. Até o final de sua obra, o heraclitismo de Freud manterá o fragmento como signo arqueológico de uma negatividade (a ausência, a morte) de linguagem sem a qual a verdade histórica não seria pensável. O que nos é dado conhecer são restos (restos de vida, segundo Ferenczi, restos diurnos...) que, por fazerem imagem no presente (figurabilidade e condensação), são precisamente formações de síntese que desempenham um papel de evidências encobridoras. A historicidade que a psicanálise põe a descoberto não é a da Lebensgeschichte que a psiquiatria clínica intenciona por apreensão compreensiva mediante a Krankengeschichte (Kraepelin, Binswanger, Jaspers), mas é antes construída6 e, como tal, nomeada pela palavra que revela a pré-historicidade do presente. A verdade histórica é o ser de linguagem em que se desenreda, diretamente na fala, o präsentisch (presente absoluto) da imagem visual (a crença em sonho), de seus atos no cotidiano, de suas configurações repetitivas de transferência. Mas, na medida em que a análise conheça a exigência desse trabalho sem fim - unendlich - com os restos e que essa exigência seja proporcional à insistência deles - "Tudo o que um dia ganhou vida se aferra tenazmente a seu próprio saber" (Freud, 1937/1950) -, será isso uma questão de ideal, porque o único ideal seria aquele de ser para sempre incansável como indica o questionamento? Que o diabo nos guarde de fazer, sub-repticiamente, a psicanálise se transformar numa pesquisa filosófica de inspiração platônica ou plotiniana ou mesmo agostiniana! A visada de tais filosofias do processo ou da processão está contida na ideia de um progresso por superação dos contrários e de uma ascensão à felicidade do ideal do bem. O Um e o Todo põem fim aos contrários graças a uma transcendência do além. E até a Aufhebung hegeliana idealiza o espírito em função do poder que a dialética fornece de resolver as contradições. A insistência teórica e técnica da resistência forma e informa a exigência da psicanálise até se dissuadir de atribuir a seu procedimento a representação de uma meta como projeto e de um fim como conclusão, em vista do qual se imaginaria o progresso. A psicanálise não pode ser nem platônica nem hegeliana: a resistência do resto, para além de um tratamento terminado, define a análise sem fim, pois não poderia haver fim no presente. A resistência manifesta que esse presente é sempre retorno do aquém. Garantir um futuro no presente, dar ao tratamento um projeto para além de seu término, não é esse o meio mais seguro de vestir o isso de um ideal e - como se sabe - de fazer o negativo se atualizar sob essa forma tão bem chamada de terapêutica negativa? Nesse caso, a positividade do ideal (mudar, conseguir, curar etc.) fica destituída do imaginário de suas representações de expectativa e, atualizando-se negativamente, aniquila a negatividade da resistência. A negatividade como a concebe a psicanálise depende - tal como desenvolvemos anteriormente7 - desse não-dito que não é o ainda-não expresso, mas que é ressonância da fala (Widerhall, diz Freud) mediante as sobredeterminações que formam sua essencial ambiguidade interna. A negatividade inerente à linguagem é dissuadida por esta de se constituir positivamente em ideal - ainda que fosse para a fala: a linguagem é o ato de escutar o que se diz no que se fala e no que se faz. A menos que se deixe apanhar pelo engodo de seus efeitos (pedagógicos, políticos etc.), a linguagem não pode, tampouco, se fazer representação-meta do tratamento analítico. Acrescentemos que se a linguagem chega a ser concebida como um referencial explícito e exclusivo do trabalho analítico, e caso se torne assim um programa temático do tratamento, cessa imediatamente de ser linguagem para ganhar ares dessas logologias totalitárias que a sofística utiliza em seus discursos.

Mas voltemos uns passos atrás.

O ideal de uma conclusão "assintomática" e, portanto, de uma cura total sem restos, dando então direito, ao paciente, de aproveitar a vida e dando ao analista o benefício da reputação de ser um "bom" terapeuta, é a meta implícita da prática da sugestão de que a psicoterapia é a herdeira devotada. O bom é um desses valores corporais cuja sensorialidade faz do presente um dom sem possível dívida. É o que sugere, sem dúvida, a palavra bonheur [felicidade], que em francês camufla o que o termo alemão comporta, a saber, os sinais contrários da falha e do agrupamento.8 Tal como o estoicismo cristão, as filosofias da felicidade dispõem-se a confiar à ética médica um cuidado da saúde de um tal tipo que a virtude se adquire por uma prática do bem da qual resulta o bom.9 Sujeito suposto saber, o psicoterapeuta é aquele cujo crédito provém do objeto que o constitui assim: o saber sobre seu objeto (o processo de cura do doente) é, então, a representação-meta (ideal) em que ele tem de acreditar - como por identificação ao eu que ele representa no presente. Em outras palavras, o bom terapeuta é a qualificação imaginária de um eu ideal constituído como representação-meta do tratamento. Ainda nessa via de reflexão (cujo desenvolvimento, aqui, teremos de limitar),10 um eu-ideal desses forma-se por "identificação ao pai da pré-história pessoal" (Freud, 1923/1981, p. 243).11 Enquanto formação imaginária idealmente boa,12 o eu pode assumir os traços do objeto mostrando-se narcisicamente compreensivo e amoroso para com as paixões atormentadas do isso. "Quando o eu", diz Freud, "adota os traços do objeto, como que se oferece, por assim dizer, ele próprio ao isso como objeto de amor, procura compensá-lo de sua perda dizendo: Você pode amar a mim também, veja como sou parecido com o objeto" (p. 242).13

Não devemos perder a oportunidade de extrair algumas consequências contidas nas considerações precedentes.

Se a reação terapêutica negativa pode amplamente esclarecer acontrario a função de um fim positivamente idealizado,14 tem a vantagem de permitir introduzir uma metapsicologia da doença e da saúde. Não se trata aqui de oposição entre o normal e o patológico, cuja inter-inteligibilidade funda, em Freud, a noção clínica de psicopatologia (voltaremos a esse ponto), mas sim de vivências antinômicas de natureza e de alcance axiológicos. Doença e saúde são valores. Nesse sentido, são diversamente indexáveis ao funcionamento das instâncias psíquicas e do seu chamado conflito sistêmico. "Melhor doente do que culpado": é assim que Freud explica essa resistência à cura (resistência inconsciente) tão dificilmente redutível e às vezes radicalmente irredutível. O "egoísmo" desse estado - que não deixa de fazer pensar no do sonhador, do doente orgânico, do apaixonado e... do analisando em sua neurose de transferência - merece nossa atenção redobrada por ser reforçado narcisicamente pela bondade compreensiva de que o terapeuta está investido. E, além disso, a doença é - por assim dizer - de essência melancólica na medida em que expressa um abandono amoroso.15 No fundo, é para "introduzir o narcisismo" que a doença "concebe" a melancolia! E o que chamamos de saúde seria ao mesmo tempo pensável como uma hipocondria (Fédida, 1977) e/ou como relacionado "do ponto de vista metapsicológico ... com equilíbrios de forças entre diversas instâncias do aparelho psíquico, instâncias reconhecidas ou, se preferirem, inferidas, postuladas por nós" (Freud, 1937/1975, p. 379, nota). As satisfações substitutivas ou, como se diz, os "benefícios" da doença em relação à saúde decorrem, portanto, de uma inteligibilidade exclusivamente metapsicológica. E isso na medida em que, precisamente - ao pregar o ideal triunfante da vida -, temos grandes chances de fazer aparecer o poderoso motor da morte, do qual o tratamento analítico conhece ao mesmo tempo os desafios violentos e a eco- nomia autoconservadora (na queixa, numa rememoração recorrente e em certas configurações de dominação transferencial). Fica claro que positivar a vida num ideal do tratamento é fornecer ao paciente como única esperança a morte de seu analista!

O amor de transferência é o que denominamos, num trabalho recente, reação terapêutica positiva.16 Tal designação não deve, contudo, nos fazer perder de vista que ela é homóloga à reação terapêutica negativa e, no fundo, de igual natureza. Apenas destacaremos aqui o que interessa diretamente a nosso propósito. Mesmo em suas expressões sexualizadas, o amor de transferência é a manifestação de um fenômeno religioso (no sentido próprio do termo), em que a pessoa do analista é tomada como ideal atualizado (no presente) de uma representação-meta. A totalização evidenciada pelo devaneio desse amor qualifica claramente esse último na sua vocação de síntese resolutiva: não é - nos lembra Freud - justamente no momento em que a paciente está a ponto de chegar a uma rememoração particularmente penosa que ela se declara totalmente curada e deseja demonstrar seu reconhecimento pelo dom sexual? Esse reconhecimento deve ser escutado a um só tempo como demonstração do que ela pensa dever àquele que a curou e como escolha do objeto de amor até então desconhecido. E a "cura" produzida pelo efeito de um tal amor voltado para a pessoa do analista não intervém como totalização, exatamente do mesmo modo que um sonho vem na hora certa para ainda não acordar? A utilização psíquica da pessoa do analista como resto diurno também deve ser entendida no sentido como Ferenczi concebia o sonho a título de terapeuta do traumático: face ao terror da destruição interna ou da aniquilação, a totalização amorosa parece uma chance de cura. E ainda poderíamos agregar que é quando a fala em análise pressente que esta opera no negativo do fragmentário que sobrevêm fantasias de desintegração e de despedaçamento. A angústia-culpa vinculada ao pensamento é tamanha que o amor de transferência ganha ares de um ato de crença em um presente capaz de satisfazer. Os componentes autoeróticos do amor de transferência são, é claro, evidentes e o eu do analista - o estilo próprio de sua pessoa - imagina assim a satisfação alucinatória no lugar de um sonho esquecido.

O parentesco do amor de transferência com o sono da hipnose tem um interesse ainda mais particular para o que estamos desenvolvendo, na medida em que a palavra amor17 faz síntese por sua mera enunciação, em que se tornaram problemáticos o eu [je] e o tu. A sugestão que o poder da palavra possui exclui, é claro, toda negatividade de linguagem que permitiria escutar suas "pulsões parciais" e o desconhecimento de seu objeto. A paranoia - conforme suas reversões indicadas por Freud no tocante à homossexualidade do verbo amar - é, indubitavelmente, uma das transformações possíveis do amor de transferência. Não raro acontece que, de bom-objeto, o analista se torne objeto persecutório. Sem desconsiderar tais aspectos, é forçoso convir que o ideal aqui representado pelo eu (bom) do terapeuta justifica conceber - na esteira da sugestão hipnótica - o amor de transferência como uma "formação de massa a dois". É uma ideia presente em Freud a respeito da hipnose e comparativamente ao papel em que é colocado o líder. Nisso Freud coincide novamente com Heráclito na sua designação do homem-massa enamorado/adormecido. A cura obtida como um fim ideal do tratamento nada mais é, então, do que a forma totalizadora sintética de um sintoma. E seria legítimo afirmarmos que o psicoterapêutico - sempre que faz prevalecer o efeito de sugestão da pessoa do terapeuta e que dá intencionalmente o crédito ao presente - nada mais é que um sintoma de suporte! O único presente que o analista conhece - incluindo sua própria apresentação [apprésentation] de si mesmo - é o resto.

Ao evocar a resistência da doença como aquilo que torna difícil o acesso à culpa inconsciente, Freud estava portanto pensando, como vimos, no processo melancólico a ela aparentado. E na nota que citamos, ele acrescentava:

Talvez dependa também [o desfecho] de um outro fator: a pessoa do analista permite ser colocada, pelo doente, no lugar de seu ideal do eu? Com isso se relaciona a tentação de desempenhar, ante o doente, o papel de profeta, salvador de almas, messias. Como as regras da análise se opõem resolutamente a essa utilização da personalidade do médico, há que honestamente reconhecer que temos aí uma nova barreira ao efeito da análise; a tarefa desta não é tornar impossíveis as reações mórbidas, mas oferecer ao eu do doente a liberdade de decidir de uma ou outra maneira. (1923/1981, p. 265)

Esse comentário poderia facilmente ser ilustrado por meio de vinhetas clínicas de alguns tratamentos. A tendência do analista de reforçar, no começo de um tratamento, o suporte psicoterapêutico (prevalência de atitudes compreensivas, diálogo, expressão da capacidade de "fazer" algo pelo paciente etc.) não deixa de produzir melhoras com frequência "espetaculares", festejadas pelo paciente e por seu meio e que decerto gratificam o profissional. Tais melhoras não tardam em ser seguidas de regressões melancólicas que às vezes tornam a tarefa impraticável. A insistência de Freud em alertar contra a propensão narcísica do eu do analista conserva uma atualidade totalmente pertinente em razão do desenvolvimento, em nossa época, dos heroísmos terapêuticos e do interesse cultural pelos chamados casos difíceis (estados-limite, distúrbios narcisistas da personalidade, estruturas as if etc.).18

A oposição doença-saúde (e a homologia metapsicológica desses valores) não coincide, como dissemos, com a distinção entre normal e patológico e seu esclarecimento recíproco na psicopatologia clínica freudiana. O fato de que Freud designe a clínica pelo momento crítico que sobrevém num continuum psíquico (luto e melancolia, sonho e esquizofrenia etc.) modifica evidentemente o estatuto da normalidade e, correlativamente, o do patológico. O capítulo 7 de Ainterpretação dos sonhos seria uma oportunidade de lembrar como a normalidade é uma hipótese metapsicologicamente inferida, cuja axiomática necessária possibilita a construção de um aparelho psíquico com base na experiência comum do sonhar. O clínico-técnico, em sua determinação psicopatológica, é despertado na leitura do texto pelo analista desde que essa leitura encontre ressonância em sua própria prática. Na acepção esquiliana (pathei mathos: o que o sofrimento ensina transformando sua vivência em experiência) do psicopatológico, a análise faz do momento crítico (um ato falho, um lapso, um sonho etc.) um momento de despertar constitutivo de insight, e a percepção interna dessa experiência aparece claramente como a condição necessária - se não suficiente - para se tornar analista deste ou daquele caso.

A ideia de que a normalidade seja uma "ficção ideal"19 sugere, do ponto de vista da prática do tratamento, algumas reflexões na continuidade do que vimos expondo.

Em primeiro lugar, se o analista traz em seu pensamento o ideal de fazer seu paciente alcançar uma cura concebida como adequação a uma normalidade (por exemplo, adaptativa), ele é solicitado por essa representação (-meta) em função de um imaginário nostálgico relativo a sua própria análise e, sobretudo, a seu próprio analista. Em outras palavras: querer para seu paciente um grau de normalidade a que ele mesmo não chegou transforma essa ficção ideal num mito de procuração de que participam, principalmente, culpa e acusações em relação àquele que analisou o analista, revanche, ou seja, desejo de liquidar identificações ideais esperando fazer melhor do que ele. Percebe-se, pois, que essa ficção ideal de uma normalidade é certamente uma formação sintomática poderosa, na medida em que ela toma seu conteúdo de uma fantasia contratransferencial (de ordem mítica). A expressão contratransferência poderia, nessa oportunidade, ser entendida como o enclave de uma oposição transferencial a seu analista dentro da contratransferência do profissional no tratamento com seu paciente. A fantasia de um ideal de normalidade pensado "em favor" do paciente intencionaliza a atenção dita flutuante e se presta a introduzir um reforço das defesas patológicas do paciente ou, então, uma tamanha distorção de sua fala que o tratamento acaba se tornando educativo ou pedagógico.

Esse ideal de normalidade também ameaça desenhar outras configurações clínicas do processo do tratamento. Na medida em que o ideal de normalidade está representado no analista pela referência a um corpus teórico de teor conceitual (um saber intelectual da teoria), ele carrega essas conformidades adaptativas para o tratamento, principalmente com aqueles pacientes cuja plasticidade na variação das identificações parciais os torna particularmente sensíveis - por medo de rejeição ou abandono - ao que o analista "pensa". Nesse caso, não estamos longe daquelas análises iatrogênicas que em certo momento designamos pela expressão análises-que-parecem-fazer-adoecer e que, a nosso ver, caracterizam-se por um double-bind particular que pode ser resumido assim: a regra de associação livre é vivida e "aplicada" como se se tratasse de uma injunção que emana do próprio analista dominado por um ideal de pensamento; ter de satisfazer a expectativa do analista e correr o risco de decepcioná-lo produz, no tratamento, um efeito em espiral quando o analista não suporta bem que o ideal da regra seja maculado por uma fala não verdadeiramente associativa e ininterpretável (associações de palavras, familiaridades interlocutórias, descrições pontilhistas dos objetos do local etc.). A psicopatologia, tal como se revela num tratamento precisamente, põe a descoberto funcionamentos psíquicos que fazem degringolar o ideal normativo da regra fundamental. Dizer que essa regra é um ideal inaplicável e que o funcionamento psíquico do paciente ganha realidade pela distância em relação ao ideal não constitui uma afirmação satisfatória. De inspiração "modernista", essa afirmação não reconhece o estatuto da associatividade inerente à fala na sua relação paradigmática com o sonho e com a transferência e tal como é propiciada numa análise.

Mas esse ideal de normalidade intervém também sob outra forma, conexa às precedentes, embora distinta. Também aqui os casos considerados difíceis servirão de referência clínica. Enquanto H. Searles põe a ênfase em situações típicas em que o doente se esforça para deixar o analista louco (dissociação, perda de identidade deste etc.), devemos considerar que o esforço para tornar o analista normal participa de mecanismos de clivagem existentes em certos pacientes e reforçados pela ideia, presente no projeto do analista, de produzir uma "aliança terapêutica" com o "eu-normal" de seu paciente ou com o que chamam de sua "parte sadia". Supõe-se, então, que o paciente, a despeito de suas crises ou de seus sintomas delirantes, pode se comunicar com o analista num nível de compreensão mútua e de tomadas de consciência explicativas. Consideramos que esse ponto de vista não se sustenta. E embora dê a ilusão de poder ser realizado favoravelmente, acarreta posteriormente um aumento mais selvagem e agudo das manifestações patológicas. Não resta dúvida de que se o analista abandona o "sítio do estrangeiro",20 para legitimar uma comunicação intercompreensiva tida como subtraída dos processos primários que trabalham nas bases, ele ratifica uma familiaridade da fala e restringe, na mesma medida, seu poder de ambiguidade (no sentido de Zweideutigkeit). Querer tornar o analista normal é, portanto, solicitar dele que ele não o escute. E, caso aconteça de o analista assumir essa posição a que o paciente o designa, diminui em igual medida sua própria capacidade de percepção clínica psicopatológica tanto do paciente como de si mesmo. As psicoterapias difíceis são precisamente aquelas que justificam uma comunicação com o paciente (sobretudo sob a forma de um playing winnicottiano) mantendo ao mesmo tempo a distância e a dissimetria necessárias para a interpretação.

O sucesso de uma psicoterapia é da ordem de uma ficção. Freud nos deu o modelo disso no seu comentário da fantasia pompeiana de Gradiva. E sabemos que, ao final de sua exposição, Freud apresenta os motivos pelos quais o sucesso terapêutico de Zoé Bertgang é, sem dúvida para sempre, inimitável. A ficção do ideal adota aí essa forma escrita que cada analista pressentiria no momento em que fala de um caso ou tenta redigir o desenrolar de um tratamento. Não é muito particularmente nesses momentos que ele elabora tecnicamente o que não pôde ser? Se o escrito é a forma de elaboração teórico-técnica por excelência, sua dificuldade interna decorre, sem dúvida, dessa confrontação com os ideais do tratamento e sua função depressiva, com a condição de que estejam constantemente perceptíveis em negativo. O enunciado de uma interpretação, determinada intervenção...: era isso e, uma vez dito, já não é mais isso. A menos que o analista proponha a si mesmo como ideal magistral da prática da análise e de sua teoria e, então, didatize seu discurso sob a forma de uma exemplaridade clínico-teórica, ele é sem dúvida, mais que qualquer outro, levado a essa reserva da fala que é a experiência de sua ética. Falar ou escrever sobre um tratamento é quase impossível. Pensar a partir de uma prática e comunicar o trabalho elaborativo decorrente dela é não só desejável como necessário. É aí que viriam se colocar, muito naturalmente, o problema da comunidade psicanalítica e aquele das condições objetivas - institucionais - da comunicação dos analistas entre eles. Esse problema (que não abordaremos aqui) nos oferece, contudo, a oportunidade de precisar um último ponto. A regra de não intervenção de um terceiro na análise implica uma ética não ideal da fala. Não ideal no sentido de que aqui o ideal é passível de ser descrito segundo uma axiologia negativa. A ficção é, sem dúvida, a única forma positiva que a descrição do ideal possa adotar. O ideal em negativo concerne, com efeito, à condição de referência da linguagem à fala. É nesse sentido que se concebe a não-resposta do analista - variante da regra de não-intervenção de um terceiro. Assim como Freud via na anotação durante as sessões uma contradição com a condição da atenção flutuante, é também inerente à escuta do analista que este se reserve de falar sobre o que escutou. O tratamento analítico implica a responsabilidade da fala e, assim, sua própria reserva do infantil (precisamente naquilo em que ela é associativa e, a partir do sonho, escutada). O que está em questão é essa memória do infantil no analista, cujos restos a fala do paciente desperta. A memória do infantil (no sentido em que o é a Traumgedächtnis de Freud, ou seja, "memória do sonho") é, de certo modo, amnésica. E ficamos tentados a acrescentar que a fala do analista é a garantia disso. Essa ética da fala está, portanto, tecnicamente fundamentada a ponto de que, no limite, o analista se vê na impossibilidade de relatar a um terceiro as palavras escutadas em sessão. E sabemos que a explicitação dessa disposição ético-técnica sob a chancela do "confidencial" comporta sempre o risco de tornar o ideal paranoico ao lhe conferir uma positividade. Essa inversão possível do ideal pela explicitação positiva de seu conteúdo aparece como reversão diabólica da psicanálise. Uma certa história da psicanálise ilustraria ao máximo essa hipótese!21

Nos últimos 20 e pouco anos, os trabalhos psicanalíticos, tanto anglo-saxões como franceses, dedicaram uma atenção mais ou menos fecunda às aporias técnicas do tratamento, suscitando novos avanços teóricos. A influência da escola inglesa é inegável: não deixaram de senti-la como uma boa higiene diante de certos efeitos de uma moda de intelectualismo e contra a inflação da abstração. A solicitação que essa influência trazia era a de uma interrogação clínico-técnica apoiada na experiência da contratransferência, sobretudo por meio dos casos considerados difíceis e que desafiam a análise e o analista a serem humanos!22 As expressões culturais de uma contestação de que a psicanálise, ainda hoje, é objeto não se deixam tão sistematicamente interpretar como resistências. E embora seja legítimo fazer uso dessa noção em presença das oposições ideológicas à psicanálise, o que justificaria aqui nosso interesse é, antes, a função dessas resistências sobre as transformações da prática - clínica e teórica - da psicanálise.

A partir daí, como não se indagar se a problemática dos ideais não constitui a retomada apática das questões insistentes que ocupam o pensamento dos psicanalistas contemporâneos? Equivaleria a dizer, de outra maneira, o que Freud exprimia em 1911 numa carta a Binswanger: "Na verdade, não há nada para o que o homem, dada sua organização, seria menos apto do que para a psicanálise" (Binswanger, 1970). A constatação realista da insuficiente proporção dos sucessos terapêuticos recebe uma consolação da ideia de que, "se realizamos terapeuticamente tão pouca coisa, ao menos aprendemos por que podemos realizar poucas coisas. Nossa terapia me parece ser a única racional nesse sentido". O idealismo não é, portanto, conveniente nesse domínio, e os detratores da psicanálise poderiam, no fim das contas, ser aqueles cuja filosofia é política, considerando a visão clara que têm de que o ser humano é uma multidão, cuja demanda de alienação é bem mais poderosa que seu desejo de liberdade.

Não se poderia dizer que Freud permaneceu alheio a essa percepção. Psicologia das massas e análise do eu bem como Omal-estar na civilização são textos que dimensionam perfeitamente o fenômeno dos ideais, cuja acepção coletiva esclarece, por sua vez, as alienações imaginárias do eu individual.

Mais que em ruptura com os padrões socioculturais da comunicação, a situação analítica se instaura a partir de um paradoxo que consiste em entregar alguém a sua solidão de ser uma multidão - uma multidão que faz massa. O heraclitismo de Freud pressentiu essa dimensão do despertar-adormecido que se apresenta para um eu predisposto a encontrar no analista um ideal destinatário de sua crença. A sugestão - formação hipnótica do homem-multidão - é evidentemente uma tentação para o paciente e para o terapeuta. Não elucidada em suas relações com a hipnose, a histeria e o sonho, a sugestão continuará sendo por muito tempo o tormento de uma prática analítica dominada pelo ideal de liberdade. E quando a dois não é possível formar um nós (o Wirheit de Binswanger), o que resta é cada um para o seu lado - o analista, como diz Freud, não tem nada para rememorar do que o paciente viveu. É verdade que sempre falta pouco para que o tratamento analítico volte a ser uma formação de massa a dois se, por acaso, acreditarem dever se comunicar e tornar a intercompreensão mais humana. Então, dois é demais!

No entanto, nada é pirandelliano em Freud. O solipsismo do sonho - sua natureza egoísta - garante a a-socialidade da fala que ele abre. Incompreensível para o sonhador, o sonho no entanto é uma confidência23 junto ao analista. Quanto ao social, somente o Witz daria dele a intuição fugidia, e a comunicação de linguagem que ele é desnorteia a comunicação e torna a linguagem boa para brincar. Entre sonho e Witz, a interpretação e a construção tornam o "dois" destinado a uma aristocracia exigente da retidão das palavras e de seus infinitos recursos. Cada um consigo mesmo, os dois permanecerão estrangeiros. Clássica é, pois, a análise. A linguagem - desde que não se torne, por sua vez, um ideal - impede as totalizações e as sínteses e separa uma unidade de multidão a que sempre aspira o eu.

Que a comunicação ou o diálogo sejam uma formação de multidão e, a esse título, uma fala que só o sonho pode escutar: eis, sem dúvida, com que dissuadir a psicanálise de se tornar uma ciência humana. Nessas condições, não seria a cientificidade de sua teoria muito problemática e o ideal intelectual que a representa não desestimularia os analistas de iniciar qualquer tratamento? Os ideais intelectuais exercem, com efeito, tamanha sedução que um tratamento e seu paciente, sem contar o próprio analista, são evidentemente assintóticos em relação a esses ideais. Freud nunca deixou de estar exposto ao domínio de um ideal que a teoria realizaria, e a tentação da síntese ganha aqui toda a sua significação. Parece, contudo, que a exigência da resistência tenha, ao longo de toda a sua vida profissional, lembrado a ele que essa acepção ideal da teoria não era sustentável diante dos fatos e das elaborações técnicas que eles impõem. Não é o ideal, então, a reação teórica negativa do analista quando, precisamente, ele se torna o ideal de um saber positivo da própria análise, de seus fins e de seus meios? É nessas condições que o metapsicológico se torna um saber conceitual feito de modelos abstratos e deixa de estar apoiado numa atividade clínica e técnica em operação no pensamento. Inversamente, as positivizações técnicas da psicanálise são produzidas por uma psicologização secundária de uma metapsicologia encarregada de dar conta disso.

Ao final desta exposição, lembramos que a asymptotische Abschluss do tratamento de M. E. ocorre depois da constatação de uma sensível melhora do estado do paciente, assim como da modificação de seu modo de ser. A continuação do tratamento teria sido um compromisso entre a doença e a saúde. Certo de ter cometido erros técnicos e teóricos, Freud tem, contudo, bons motivos para estar satisfeito. O enigma psíquico foi quase resolvido. Quanto aos sintomas residuais, eles não deveriam influenciar o resultado definitivo do tratamento.

Ao invocar o embaraço de Freud quanto ao manejo da transferência, costuma-se deixar de lado o alcance metapsicológico da noção de assintótico. Vizinha da ideia fechneriana de aproximação periódica, até mesmo da ideia de ciclicidade, cara a Fliess, essa noção conta com os princípios de constância e de estabilidade e, em "Análise terminável e interminável", não ignorará a função econômica da morte numa definição da vida pela autoconservação. Ademais, está também colocado o problema do masoquismo no tratamento e do narcisismo transferencial e contratransferencial.

Em outras palavras, não se trata simplesmente de constatar os limites que demarcam a análise e com que compromisso caberia concluir; mas compete à psicanálise se calibrar pelos ideais que se deu e, em seu próprio movimento autorreflexivo, perceber que a afirmação desses ideais só lhe é necessária para a descoberta de seus limites, que são os limites do humano meramente por viver. Sabe-se que as terapias que põem a vida no princípio de sua ação e fazem dela uma finalidade a alcançar se transformam rapidamente em práticas místicas em que a sugestão ocupa lugar de saber. O assintótico - resistência à síntese - é, poderíamos dizer, a função analítica do ideal ou então a distância contínua produzida pela representação psíquica de um ideal. Enquanto for uma formação sintomática da contratransferência, o ideal permanece, pela distância, analisável, sem jamais ser anulado.

Aí é onde caberia, sem dúvida, solicitar a leitura de certos textos de Ferenczi. Em determinado sentido, fica-se tentado a concluir que o traumático tal como aparece no tratamento é efetivamente contratransferencialmente produzido (descortinado) pelos ideais do analista (da análise). E embora seja verdade que a transferência do paciente convoca o analista a responder por seus ideais, estes ficam tanto mais rígidos quanto mais ameaçados estiverem de ser desmantelados. Não seria, então, o analista que estaria sendo convidado por Freud a figurar essa assíntota e seu destino aproximativo de garantir, apenas por sua atenção, uma estabilidade constante? Mas o ideal dessa estabilidade é uma hipérbole ou uma parábola?

 

Anexo Sobre o caso de M. E.

Na carta citada acima (16 de abril de 1900), também está escrito que o "enigma" que o paciente "apresentava foi quase plenamente resolvido". M. E. "se sente muito bem e seu modo de ser modificou-se inteiramente". Já em 21 de dezembro de 1899, após a evocação do sonho (absurdo) (sonho do pai morto) que promete "obstinadamente o fim do tratamento de E." ("doente perseverante"), ficamos sabendo que "esse paciente se sente ousadamente bem. Por um surpreendente desvio (de sua análise), ele conseguiu demonstrar para mim mesmo a realidade de minha doutrina e, isso, fornecendo-me a explicação (que até aquele dia me tinha escapado) de minha própria fobia de trens..." A lembrança de uma cena infantil datada de antes dos 22 meses ("uma cena ao mesmo tempo sexual, anódina, natural etc.") "profundamente enterrada sob todas as fantasias" do paciente satisfaz as exigências teóricas da etiologia sexual traumática: o que permanecia enigmático para a compreensão tende a se resolver. Em outras cartas anteriores (24 de janeiro de 1897 e 29 de dezembro de 1897), Freud não esconde sua alegria em comunicar a Fliess os achados do tratamento de E. (por exemplo, a palavra Käfer em relação com a perplexidade do que fazer [que faire]). Mas, tendo diminuído a animação do verão de 1899 (término da redação da Traumdeutung), o "segundo ferro no fogo" é, por meio da prática cotidiana, "a perspectiva de chegar alguma hora a alguma realização, muitas dúvidas para resolver e, depois, a esperança de aprender com o que minha terapêutica será capaz de contribuir". Logo em seguida, nessa mesma carta (11 de março de 1900), Freud acrescenta: "De todos os casos, o de E. me parecia o mais favorável, e é também dele que me vem o maior choque. No momento em que eu acreditava ter a solução, ela me escapa, e me vejo obrigado a mudar tudo para reconstruir tudo, o que faz desaparecerem as hipóteses consideradas até então. Não consegui suportar a depressão que se seguiu e rapidamente descobri que me seria impossível prosseguir com um trabalho realmente difícil num estado de mau humor e em meio às dúvidas que me assaltavam. Quando não estou nem bem-disposto nem senhor de mim mesmo, cada um de meus doentes se torna para mim um espírito maligno [em alemão: Quälgeist = algoz ou espírito importuno]. Realmente pensei que iria sucumbir, mas achei uma saída renunciando a qualquer trabalho mental consciente [bewusste Gedankenarbeit] para só continuar tateando às cegas no meio dos enigmas. Desde então, talvez esteja trabalhando com mais habilidade do que antes, mas sem saber muito bem o que estou fazendo. Seria impossível para mim dizer em que pé estão as coisas". Na incapacidade em que se encontra, há meses, de escrever uma linha sequer, Freud diz que se entrega a suas diversões (jogo de xadrez e romances ingleses) "banindo tudo o que for sério". "Assim que me liberto de minha atividade, levo uma vida de filisteu ávido de prazer. Sem álcool, sem charutos, sem relações sexuais, sem contatos humanos! Vegeto, portanto, despreocupado, mantendo cuidadosamente meus pensamentos afastados dos objetos de meus trabalhos cotidianos. Com esse regime, conservo o bom humor e me mantenho à altura de minhas oito vítimas e algozes [Opfern und Quälern]."

Afora o interesse despertado por esses comentários paralelos ao relato do caso evocado, podemos nos dar conta muito bem das condições nas quais Freud põe fim ao tratamento de E. O critério de melhora terapêutica confirmada, na falta do de resolução da transferência, é corroborado, então, pelo da elucidação quase total do enigma. A manutenção em tratamento é vista como uma formação de compromisso que o analista não poderia reforçar. Pode-se, evidentemente, sempre pensar que, ao receber o paciente para jantar na casa dele, Freud coloca em cena - a pretexto de uma socialização amistosa - o personagem do sedutor (paterno) e que - assim fazendo - introduz em ato a resposta traumática à demanda transferencial in-escutada! Mas seria muito temerário adentrar ainda mais numa interpretação que não tem em que se apoiar. Seu único interesse - como a propósito do caso de homossexualidade feminina - é entrar na questão da contratransferência pela questão da defesa contra a sugestão bem como pela questão da autossugestão (se representar como pai).

 

Referências

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1 Trabalho original publicado em 1983: Nouvelle Revue de Psychanalyse, 27, 155-170. O presente artigo não tem resumo no original.
2 In memoriam.
3 Ao sublinhar a última frase citada, chamo a atenção para ela. O texto em alemão diz: "Gelegentlich rührt es sich zur Synthese, aber ich halte es nieder".
4 Como fazem notar os editores das cartas a Fliess, "Freud tinha enfrentado as dificuldades que se manifestam em decorrência da transferência, na época em que ele ainda empreendia tratamentos hipnóticos (vide 'Autobiografia').O 'Fragmento de uma análise de histeria' nos dá a conhecer a técnica de Freud naquele momento, quando essa carta foi escrita. Sabemos que ele ainda não tinha aprendido a superar tecnicamente a transferência. ... As relações pessoais de Freud com alguns de seus doentes também se explicam pela sua parca compreensão, à época, da dinâmica da transferência".
5 As alusões de Freud ao caso de M. E. nas cartas a Fliess merecem ser acompanhadas de perto. [Por motivos de formatação, tivemos de deslocar a longa nota do autor para o fim do texto. (N. da Nouvelle Revue de Psychanalyse)]
6 Cf. o texto sobre as "Construções em análise" bem como Moisés e o monoteísmo e também o comentário da Gradiva. Seria interessante acompanhar, em Freud, desde os Estudos sobre a histeria, o que acontece com a Krankengeschichte. Ver, a esse respeito, o comentário de J. Schotte (1959) sobre o texto de Muschg Freud écrivain.
7 Cf. em particular nosso livro L'absence (Fédida, 1978). O inconveniente de falar de negatividade é, evidentemente, o de manter uma conotação com ressonância filosófica. O que nos importa sobretudo é pensar de que forma Freud, ao longo de toda a sua obra, trabalhou com esse negativo dado à observação sob a forma do residual e do fragmentário. A negatividade designa, portanto, um dito do escutado e abre, assim, para um pensamento da linguagem.
8 Como bem nota Nietzsche, o Glück alemão que se traduz por felicidade vem de Lücke (a falha, a lacuna, o defeito do "ser em falta"), ao passo que a partícula Ge- marca o agrupamento. Falha e agrupamento ou indigência e saciedade, o Glück traz em si uma tensão dos contrários que se resolve ilusoriamente na ambiguidade maníaca (dionisíaca) da imagem do deus. O eudaimôn grego tem quase a mesma conotação que o Glück alemão. Significa o estado de satisfação (atualidade presente de uma plenitude) cuja ressonância etimológica lembra que ele é daimon (= dividir, partilhar as parcelas da sorte) assim como o é eros (nem deus nem mortal): eudaimôn concerne ao estado de quase-sorte daquele que recebeu uma boa parcela.
9 Ver, a esse respeito, em M. Guéroult, Descartes selon l'ordre des raisons (1953), o capítulo 19, dedicado a "Morale et médecine".
10 Com efeito, essa reflexão já deu lugar, de nossa parte, a várias publicações.
11 Ver também Moisés e o monoteísmo. Em nota de rodapé, Freud diz que seria mais prudente falar de "identificação com os pais". Na verdade, de nossa parte, ficamos tentados a evocar a mãe remota [arrière-mère] presente para o pai da pré-história não tanto como a mãe arcaica, mas o imaginário cuidador narcisicamente bom dessa figura paterna. Cf. nosso artigo "L'arrière-mère et le destin de la féminité" (Fédida, 1980).
12 Como veremos, essa bondade ideal do eu-psicoterapeuta é produzida por clivagem defensiva. Sua economia narcísica não deixa de estar relacionada com o sono - cf. nosso trabalho "Clinique et métapsychologie du sommeil" (no prelo, Entrevue). O interesse dessa projeção inerente à famosa "fé expectante" é evidentemente - até em sua determinação místico-religiosa presente na psicoterapia - provocar em troca, sobre o sentimento de culpa, uma completa ignorância e colocar no seu lugar a doença. O idealmente bom talvez seja, portanto, um produto "bem-sucedido" de um mecanismo de sublimação do qual a doença seria o avesso em negativo, impedindo mais ainda ter acesso à culpa inconsciente.
13 Na sequência dessa observação, Freud acrescenta: "A transposição da libido objetal em libido narcisista, que aqui se produz, evidentemente traz consigo um abandono das metas sexuais, uma dessexualização, ou seja, uma espécie de sublimação. E surge mesmo a questão, digna de um estudo mais aprofundado: não será esse o caminho geral da sublimação, toda sublimação não se produz por intermédio do eu, que primeiramente transforma a libido objetal sexual em libido narcisista, para depois atribuir-lhe quiçá outra meta?" (p. 242).
14 Remetemos, aqui, ao notável trabalho de J.-B. Pontalis sobre a reação terapêutica negativa, "Non, deux fois non" (1981).
15 Em nota de suas considerações sobre a culpa e a doença, no final de O eu e o isso, Freud escreve: "A luta contra o obstáculo do sentimento inconsciente de culpa não resulta fácil para o analista. Diretamente nada podemos fazer contra ele e, indiretamente, apenas desvendar lentamente seus fundamentos inconscientes recalcados para que se transforme pouco a pouco em sentimento de culpa consciente. Temos uma oportunidade particular de agir sobre ele quando esse sentimento ics de culpa é um sentimento emprestado [entlehntes], isto é, quando é resultado de uma identificação a outra pessoa que em outro momento foi objeto de um investimento erótico. Tal adoção do sentimento de culpa é com frequência o único resto, difícil de reconhecer, da relação amorosa abandonada. A semelhança com o processo da melancolia é inconfundível. Se pudermos descobrir esse antigo investimento de objeto por trás do sentimento de culpa, a tarefa terapêutica resolve-se brilhantemente, com frequência; de outro modo, não há garantias do desfecho do esforço terapêutico. Ele depende em primeiro lugar da intensidade do sentimento de culpa, a que a terapia, frequentemente, não pode opor uma força contrária de igual magnitude" (1923/1981, pp. 264-265). Citamos tão longamente essa passagem não só porque lança luz sobre o "fundamento" melancólico da doença e sua problemática econômica que a vincula metapsicologicamente ao masoquismo, mas também porque interroga a ética axiológica da psicanálise. Em suma, a reação sob a forma do estar-doente re-medicaliza um ideal terapêutico da análise para colocá-lo diabolicamente em xeque. Mas, se inversamente se tratasse de uma verdadeira melancolia com a violência de sua queixa sacrificial, o analista - como por vezes se observa - seria convocado a desempenhar imaginariamente o papel de um carrasco que faz sua vítima se curar por expiação. Num caso que relatei (Fédida, 1982a), uma paciente melancólica desejava que o protocolo do tratamento realizasse a trama da vítima e do carrasco, sendo o analista convocado a desempenhar o papel imaginário de um juiz nazista.
16 Conferência pronunciada em Entretiens de Psychanalyse da Associação Psicanalítica da França (APF), sobre L'inanalysable (junho de 1982), e que será objeto de uma publicação em breve.
17 Remetemos ao trabalho muito interessante que Marie Moscovici dedicou à palavra amor em seu texto sobre "La déclaration" (1982).
18 Por intermédio de pedidos de supervisão de psicoterapias, foi-nos facultado constatar o quanto os jovens analistas (muitas vezes devido a sua busca de clientela), atendendo casos difíceis (por exemplo, casos de toxicomania ou psicoses histéricas de comportamento perverso), se identificavam heroicamente com este ou aquele analista-pioneiro. Era como se se tratasse de refazer a "descoberta" da análise numa certa clandestinidade da prática. A mitologia em questão é a do analista "humano", criador e salvador de seu paciente. Não estará, aliás, semelhante identificação ao herói da epopeia analítica favorecida por inúmeras publicações de impacto incontestável? Nós mesmos constatamos de que maneira podiam ser lidos trabalhos de Winnicott, Masud Khan, Searles etc. A angústia ante as ameaças de rigidez que o respeito do enquadre analítico comporta vai nesse sentido. O enquadre analítico é, nesses casos, tido por representativo de um ideal formal e abstrato que violenta o paciente e o analista. Caberia aqui reconsiderar a noção de manejo técnico do enquadre. Seria interessante reler o artigo de Guy Rosolato sobre "La psychanalyse transgressive" (1980). E, decerto, não se deve esquecer que o problema aqui levantado nos remete à obra de Ferenczi e a suas divergências com Freud. (Levar em consideração a questão do narcisismo contratransferencial do "dar uma de mãe".)
19 Freud emprega essa expressão, Idealfiktion, em "Die endliche und die unendliche Analyse" (1937/1950, pp. 79-80).
20 Cf. nosso artigo assim intitulado (Fédida, 1982b). A ideia de aliança terapêutica com o eu-normal tenta realizar positivamente a ficção. Além disso, aprisiona o doente num desespero da compulsão à repetição: os sintomas mais violentos tendem a produzir no paciente condutas de autodestruição - no que concerne à compreensividade "humana" do analista.
21 O problema que aqui evocamos implica, evidentemente, o da idealidade da instituição psicanalítica. "De nossa parte, consideramos ser ilusório acreditar que uma instituição psicanalítica possa ser concebida como congruente com as exigências fundamentais da análise." Rigorosamente falando: não existe instituição psicanalítica! Não vamos desenvolver aqui esse ponto de vista, que no entanto permanece presente no horizonte de nosso desenvolvimento. O paradoxo, contudo, é que não se pode, legitimamente, admitir que o analista esteja fora de instituição. Toda clandestinização da prática - prática da clínica, prática da técnica e prática da teoria - acarreta diversos fenômenos prejudiciais à análise: autistização do pensamento, confidencialismo, heroísmos imaginários etc. Sem excluir um fenômeno bastante disseminado: ver um determinado analista se constituir, para "discípulos", numa instituição imaginária ideal. E assim voltamos a cair em novas formas de didatismo. O presente desenvolvimento aborda indiretamente a questão das supervisões. Diremos apenas o seguinte: a primeira supervisão, que convém prosseguir enquanto o analista ainda estiver em análise, deve tecnicamente levar em conta o que chamamos aqui de memória do infantil. As palavras do tratamento relatadas ao supervisor anulam essa memória quando se tornam relatórios minuciosos de sessões. Em contrapartida, uma atividade de elaboração teórica vale como après-coup.
22 Humano segundo a acepção nietzschiana do "demasiado humano". Ver também o sentido que esse termo ganha em Harold Searles.
23 É Freud quem o diz, nas Novas conferências.

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