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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.4 São Paulo out./dez. 2020

 

IDEAIS

 

Os ideais e o narcisismo trófico1

 

The ideal and the trophic narcissism

 

Los ideales y el narcisismo trófico

 

Les idéaux et le narcissisme trophique

 

 

Alberto EiguerI; Tradução Marilei Jorge

IPsiquiatra e psicanalista. Membro da Sociedade Francesa de Terapia Familiar Psicanalítica (SFTFP) e da Associação Internacional de Psicanálise de Casal e Família (AIPCF). Entre outras obras, escreveu L'inconscient de la maison (2004) e L'analyste sous influence: études sur le contre-transfert (2019). Seu livro mais recente é Thérapies en ligne: la pratique analytique au défi de la communication virtuelle (2020)

Correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho se propõe a definir o conceito de ideal diferenciando-o do ideal do ego, do superego, da idealização e da idolatria. O ideal é o fundamento principal da ética do sujeito. Do mesmo modo, isso motiva a repensar a maneira de entender o superego. Para estudar o ideal, o autor analisa suas origens geracionais, a transmissão pelos pais, a referência aos antepassados, às identificações secundárias. Todavia, o ideal não remete a um ser preciso, mas paradoxalmente a várias pessoas e a ninguém. Assim como o ideal do ego é o herdeiro do narcisismo, o ideal seria, mais precisamente, o herdeiro do narcisismo trófico, aquele que contribui para o crescimento. Na clínica e na prática analíticas, o conceito de ideal permite acolher o grito de vida ou de sobrevida por trás das ideias ou dos comportamentos de certos pacientes que parecem barulhentos e exuberantes, classificados geralmente como defesa maníaca. Para sustentar essas considerações, o autor apresenta várias ilustrações clínicas.

Palavras-chave: ideal, narcisismo trófico, defesa maníaca, criatividade


ABSTRACT

This work proposes the definition of the concept of ideal, showing its difference from the ideal of the ego, superego, idealization and idolatry. The ideal is the main foundation for the subject's ethics. Consequently, this encourages the rethinking on the way superego is understood. In order to study the ideal, the author analyses its generations' origins, the parents' transfer, the reference to the ancestors, to secondary identifications. However, the ideal is not seen as accurate, as it is paradoxically reference from many people and from nobody. As the ideal of the ego is the narcissism heir, the ideal would be, more precisely, the trophic narcissism, the one that contributes for growth. At the clinic and analytical practice, the concept of the ideal allows us to embrace the call for life or survival based on certain patients' ideas or behaviors - those who seem to be loud and dazzling, usually considered a maniac defense. To support all these considerations, the author presents many clinical and designer's illustrations.

Keywords: ideal, trophic narcissism, maniac defense, creativity


RESUMEN

Este trabajo se propone definir el concepto de ideal, diferenciándolo del ideal del ego, del superego, de la idealización y de la idolatría. El ideal es el fundamento principal de la ética del hombre. De la misma manera, eso induce a repensar el modo de entender el superego. Para estudiar el ideal, el autor examina sus orígenes generacionales, la trasmisión por los padres, la referencia a los antepasados, a las identificaciones secundarias. Sin embargo, el ideal no se refiere a una criatura específica, sino paradójicamente a diversas personas y a nadie. Así como el ideal del ego es el heredero del narcisismo, el ideal sería, más exactamente, el heredero del narcisismo trófico, aquel que contribuye para el crecimiento. En la clínica y en la práctica analítica, el concepto de ideal permite acoger el grito de vida o de sobrevida por detrás de las ideas o de los comportamientos de determinados pacientes que aparentan ser ruidosos y exuberantes, editados generalmente como defensa maniaca. Para asegurar esas consideraciones, el autor presenta varias ilustraciones clínicas de creadores.

Palabras clave: ideal, narcisismo trófico, defensa maniaca, creatividad


RÉSUMÉ

Ce travail se propose définir le concept d'idéal le différenciant de l'idéal du moi, du surmoi, de l'idéalisation, de l'idolâtrie. L'idéal fonde pour beaucoup l'éthique du sujet ; par la même occasion, cela incite à repenser l'aperception du surmoi. Pour étudier l'idéal, l'auteur analyse ses origines générationnelles, la transmission par les parents, la référence aux ancêtres, les identifications secondaires. Toutefois, l'idéal ne renvoie pas à un être précis, mais paradoxalement à plusieurs et à personne. Ainsi que l'idéal de moi est l'héritier du narcissisme, l'idéal serait plus précisément l'héritier du narcissisme trophique, celui qui contribue à la croissance. Dans la clinique et la pratique analytiques, le concept d'idéal permet d'accueillir le cri de vie ou de survie derrière les idées ou les comportements de certains patients qui paraissent bruyants ou exubérants, édictés habituellement comme défense maniaque. Pour étayer ces considérations, l'auteur présente plusieurs illustrations cliniques et de créateurs.

Mots-clés: idéal, narcissisme trophique, défense maniaque, créativité


 

 

No meu país, diz a Rainha Vermelha,
é preciso correr bem rápido se quisermos
ficar no mesmo lugar e, para ir a outro lugar,
é preciso correr duas vezes mais rápido
.

LEWIS CARROLL, Alice no país das maravilhas

Os ideais são o mais puro produto do narcisismo, quer se apresentem sob a forma mais completa, quer sob a forma mais irrealista. A perfeição, a exceção, o modelo absoluto, a grandeza, aquilo que pode satisfazer completamente, essas variações do extremo servem para nos lembrar de onde viemos, da intimidade nutritiva do início da vida, que nos fez acreditar que tudo é possível: a ilusão primitiva ou primeira, aquela que o bebê vivencia, deslumbrado pelas capacidades maternas e paternas. Tivemos de lutar muito para conseguir nos livrar das ilusões sem sofrimento excessivo, mas o ideal permanece como testemunha dessa época gloriosa, inextirpável, embora tênue, remanejado sob a influência da realidade.

Já que vamos trabalhar para identificar o conceito de ideal, é oportuno propor uma definição como a do narcisismo trófico.

G. Bonnet (2010, 2012) contribuiu para melhor definir o ideal como produção do inconsciente que se configura como uma entidade, seguramente abstrata. O ideal não estaria forçosamente ligado a um ser preciso. Segundo Bonnet, ele é não coercitivo, melhor dizendo, ele dá somente uma orientação, sem se impor.

Dito isso, é preciso levar em conta que, por suas origens, o ideal é marcado pela objetividade. Os dois pais são determinantes para isso, cada um à sua maneira, e por vias singulares, mesmo se sua afinação contribui para isso, ao menos através de duas transações.

De um lado, no interior de um vínculo primitivo, cercado de ilusão, no qual a criança sente o altruísmo, a previsibilidade, a fiabilidade e o devotamento dos dois, e um amor percebido como infinito. De outro, pelo testemunho dos próprios ideais dos pais. Essa dupla marca vai definir o desejo do sujeito de satisfazer seus ideais: verdade, liberdade, justiça, beleza, fidelidade, confiança... Lutar por uma causa é lutar por alguém, mais precisamente em seu nome.

No que diz respeito ao narcisismo trófico, ele é uma dimensão de narcisismo a serviço da autoconservação, aquela que visa proteger, fertilizar o ego, com vistas a favorecer seu crescimento. Ele está de acordo com a tendência do ego a se perpetuar nas melhores condições para realizar seus objetivos - o conatus de B. de Spinoza (1677/1994). Essa condição se distingue das formas patógenas do narcisismo, regressivas, deletérias, agressivas contra si mesmo ou contra o outro, segundo diversos autores. O narcisismo trófico se distingue claramente da satisfação excessiva do ego, da arrogância. Torna-se uma dimensão do narcisismo chamado habitualmente positivo.

É possível imaginar o engajamento em uma empreitada humana, em uma relação sentimental ou amical, sem esse fogo que o ideal lhe confere? Por um ideal, tanto podemos viver como morrer, antes de passar por, e suportar, os piores sofrimentos. Por um ideal, podemos nos tornar incivilizados, déspotas ou assassinos. Por um ideal, somos capazes de nos tornar pacientes ou muito apressados, de tolerar o ímpio, a calúnia, a prisão, a tortura, o exílio... e de encontrar forças para nos revoltarmos. E, no entanto, o quanto ele torna nossa vida mais leve, mais feliz, mais audaciosa.

O ideal estético é o mais aceito, porque ele só engaja quem acredita nele, ajudando-o a pintar, a esculpir, a escrever. É o resultado imaginado da obra a realizar. O ideal moral é mais complexo. É necessário para reconhecer os limites além dos quais estamos em transgressão; torna-se um obstáculo à nossa liberdade quando a dúvida nos abate enquanto estamos em busca de invenção ou de verdade. Efetivamente há momentos em que o ideal que se quer moral é um entrave ao progresso. Ele faz pender para o conformismo. O ideal político, quando se torna utopia, é precioso demais para nos fazer feliz. Exige ser cuidado a qualquer preço para não deixar aflorar o ceticismo que ele desperta no fundo da alma. O ideal amoroso pode ser tão elevado que exija autopunições, melhor dizendo, o masoquismo. Mas o ideal tem uma qualidade maior: ele é expectativa, leva ao futuro. Ele permite a organização de um projeto, a reflexão estratégica. Pensar, preparar, prever. Essas virtualidades se encontram na forma mais estruturada do ideal: o ideal do ego, nosso desejo de progredir e de nos aperfeiçoarmos. Voltarei a isso.

Um dos aspectos incontornáveis dessa questão é que, quando idealizamos, o fazemos a respeito de alguém ou de alguma coisa. Trata-se de um campo no qual o narcisismo é levado a compartilhar, ao diálogo, à participação. Não se trata de solidão absoluta, nem de recusa social. Certamente, por um ideal é possível se fechar no silêncio ou se retirar para o meio do deserto. Mas na mente haverá um outro, homem ou deus, magnífico portador das projeções do narcisismo.

Outro elemento é que o ideal se destina a conjuntos humanos, aos grupos, à comunidade ou à nação. No ideal do ego, o sujeito cria a representação dos dois pais em sua unidade formadora do ser que ele se tornou. O ideal tende a uniformizar as identidades plurais, ou melhor, a singularizar os grupos, para dar mais força à aspiração e mais ânimo ao desejo de perfeição. Por exemplo, as expressões "espírito de grupo/de empresa", "sob a mesma bandeira", "unidos venceremos"... Um ideal de verdade une um grupo de cientistas ou de juristas. Ele propõe objetivos e cria vínculos, porque pode se colocar no lugar do chefe, ser o guia. O parentesco dos ideais com os valores universais lembra que o ideal é vivido em um coletivo.

Um afeto está ligado a ele de modo privilegiado: a paixão. A identidade se abstém de sensações intensas - na intimidade, as emoções são suaves, contidas -, enquanto o ideal faz os homens correrem. Veja-se a esse respeito a exaltação política, a paixão amorosa, a irreverência do revoltado. O ideal cria condutas que se aproximam do exagero; por ele, nos superamos, não sentimos cansaço, esquecemos a fome ou o frio.

Minha paciente, Aurora, arruinou anos de sua vida por um ideal político, mas é de outra forma de ideal que eu queria falar: aquele que surge nela em relação à sua vida sentimental. Mesmo nos momentos mais difíceis de seu engajamento ideológico, seu grupo clandestino sofrendo perseguições, seus amigos sendo presos, ela tendo de se esconder, Aurora sempre nutriu fortes sentimentos amorosos por um de seus companheiros. Ela permaneceu muito sonhadora, sustentando seu imaginário de viagens fabulosas, de experiências sentimentais excepcionais. Ela me conta que, nesse período de repressão política, teve de se isolar e se afastar fisicamente de um de seus parceiros. Levada por seus sonhos despertos, pensando que podia encontrá-lo em outra cidade, saiu de seu esconderijo para ir atrás dele, embora lhe tivessem vivamente recomendado que ficasse onde estava. Ela não o encontrou no lugar em que imaginava. Mais tarde, soube que, durante sua ausência, seu esconderijo fora localizado pela polícia e que teria sido presa se a tivessem descoberto ali.

Aurora decidiu, então, prosseguir na busca de seu amigo, passando perto de perigos inimagináveis. No fim de tudo, ela conseguiu um passaporte que lhe facultou fugir do país. Seu maior desejo era encontrar o companheiro. Assim, essa fuga lhe permitiu salvar sua vida, quase sem saber. Quando estava fora de perigo, ficou sabendo que seu amigo estava preso. Ela acabou por se resignar.

Alguns anos mais tarde, conseguindo esquecê-lo, junta-se a outro rapaz, mas levam uma vida à margem, de pobreza e privações. O encontro com outro homem a conduz a novos caminhos. Assim, ela chega a Paris, seguindo suas quimeras sentimentais. A cada vez, isso lhe permite sair de uma situação ruim. Ela faz questão de manter sua vida amorosa "rica" e "interessante". Livre, ela não se prende ao parceiro se seu ideal não fica satisfeito. Mas qual "instinto" a faz sentir o perigo para evitá-lo quase sem ter consciência disso? Seus sentidos parecem reagir com vivacidade a qualquer sinal vindo dos amigos que signifique "desamor"; seus devaneios também parecem ser úteis, ou fundamentalmente seu narcisismo. Melhor dizendo, seu ideal narcísico lhe permite se proteger.

Conheci esses episódios de sua história por fragmentos; ela não me contou tudo de uma vez, mas só bem tarde em sua análise. Soube também, bastante tempo depois do início do tratamento, que ela tinha se casado três vezes. Embora conhecesse sua sensibilidade, ela me surpreendia por sua falta de nostalgia ou de constância sentimental. Cada fragmento de sua vida amorosa surgia como que marcado por um ideal de felicidade que se consumia intensamente no momento. Com toda a certeza, ela podia alimentá-lo com seus sonhos românticos.

 

A idealização e seus avatares

Até aqui nós tratamos do ideal. A idealização tem um sentido mais forte: é uma predisposição para idealizar uma pessoa, um grupo, uma nação. Já estamos no nível da doença, mas a idealização aparece também como a forma mais simples de relação com o pai e a mãe, na base da construção desse pilar do aparelho psíquico que é o ideal do ego. Todo mundo passa por esse processo no início da vida, mas depois alguns permanecem demasiado presos a ele. O objeto é exaltado, idealizado psicologicamente, considerado a parte mais nobre de si. Como resultado de deslocamento, essa idealização leva ao objeto de amor, geralmente subestimado. Às vezes, a criança mais velha inventa para si outros pais, ou outro pai de condição superior: ela teria sido o fruto de uma ligação clandestina da mãe com esse homem, ou um de seus irmãos teria sido concebido assim. Freud nos propõe que esse romance familiar seria o produto de um deslocamento da antiga idealização da criança em relação a seus genitores esmaecida pelo tempo. Beatriz nos apresenta um exemplo curioso: ela teria sido a criança roubada de uma cigana (normalmente as crianças pensam que os ciganos roubam as crianças, e não o contrário).

Na esfera patológica, a idealização encobriria o ódio, seria uma defesa contra o sentimento de perseguição, o temor do ataque desse outro. Sua intrusão, sua "maldade", seu espírito de vingança. No fundo se atribuiriam a ele qualidades principalmente negativas, defeitos ou más tendências. A idealização tentaria encobri-las, tranquilizando, ao mesmo tempo, sobre as consequências desses temores. Esse é um dos modelos possíveis.

A idealização pode ser também uma tentativa defensiva para estabilizar uma desilusão, uma desidealização, a decepção "causada pelo outro", que se teria mostrado diferente do previsto. Nesse caso, ela aparece como uma defesa face ao sentimento depressivo. Chegamos aí à perspectiva das assim chamadas defesas maníacas, ao lado de outras produções, como a clivagem, o triunfo, o desprezo e a troça (Klein, 1934/1967). Elas recobrem o espectro menos grave das perturbações. Na verdade, a idealização é importante no caso das psicoses com componente persecutório, a paranoia, a esquizofrenia, a mania, a melancolia.

Tanto o delírio passional quanto a perversão a comportam, embora para essa última a ideia mais frequentemente admitida, a partir dos trabalhos de M. Khan (1979/1981), é de que a forma específica de exaltação deveria ser entendida como uma idolatria. Ela é a manifestação de uma admiração e de uma veneração em relação a uma parte do outro, em detrimento de seu ser total: uma qualidade psíquica ou física, os cabelos, a inteligência, a capacidade esportiva, por exemplo. O resto, isto é, a persona psíquica e em especial suas emoções, sua sensibilidade, é totalmente negligenciado, ignorado. Se se trata de uma criança ou de um adolescente, espera-se que realize proezas nesse campo exclusivo. É por isso que Khan a designa como idolatria, a adoração de um ídolo. A sensação experimentada não é a admiração ou o amor por esse objeto parcial, mas a volúpia. Convém lembrar que, em todas essas variantes, a idealização parece totalmente ineficaz para criar um impulso de progresso. Ao contrário dos ideais, ela é demasiadamente dirigida para fins de autossatisfação, brandindo a flâmula do amor pelo objeto. Não é raro que ela caminhe ao lado de atitudes marcadas pelo excesso de zelo, de esforços, na realização das tarefas empreendidas em seu nome.

 

Uma forma de idolatria

Para ilustrar minha fala sobre a idolatria, apresento o caso de Inácio, paciente com fetiche por meias e cintas-ligas que se excita, entre outras situações, ao olhar mulheres de bicicleta passando ao lado de seu carro. Nesse caso, o movimento das pernas, que faz subir e descer a saia, deixa entrever alternadamente a parte superior das meias. Sua teoria sexual, que pode se definir como "A mulher nos esconde o melhor pedaço", o leva a criar situações em que essa visão se realiza melhor. Ora, uma vez seu sistema foi desmantelado por um excesso de excitação: ele começou a proferir palavras obscenas para uma das mulheres de bicicleta, enquanto sentia um forte desejo de se masturbar em seu carro. Esse acidente lhe valeu um processo, depois uma condenação. Mas ele não podia frear esse movimento de veneração idólatra em relação às meias das mulheres. Aparentemente ele ficou encolerizado contra a mulher para expulsar de si o sentimento obsceno, atribuindo-o a ela.

Tal como meu paciente descreve sua vida erótica, ela serve de justificativa para o fracasso do primeiro encontro. Sua primeira parceira foi uma prima, uma relação totalmente casta. Ele chegou ao casamento inexperiente. Rapidamente sentiu-se decepcionado com sua mulher, bastante rigorosa, presa à ordem, ao lar. O casal se instalou na monotonia, sem humor, sem prazer. Acreditando que ele era feliz, seu irmão casou-se com uma das irmãs de sua mulher. Ele pensava que as moças dessa família eram "pérolas". Meu paciente não teve coragem de lhe "abrir os olhos". A última das irmãs de sua mulher casou-se com um boa-vida, extrovertido, que com o tempo se tornou amigo dele e que gostava de contar que a esposa (portanto, a cunhada de Inácio) era uma mulher quente, sensual e ardente. Quanto ao paciente, ele alimentava uma espécie de inveja que a simpatia nutrida pelo amigo dissipava a cada ocasião em que o encontrava. Mais uma vez, Inácio não explicou nada de sua vida de casado. Ele sentia vergonha. Mas eis que há cerca de dez anos seu amigo e cunhado morreu. Meu paciente começou a frequentar a cunhada. Eles se sentem próximos, se desejam, lamentam todos esses anos perdidos. A discrição, o medo do escândalo sobrepõem-se a essa ligação. Ele decide interrompê-la, com a morte na alma. Quanto ele teria gostado de "usar os chinelos" do cunhado, ir até o fim dessa troca de identidade tanto tempo sonhada! Mas ele teve medo de tocar o que seu duplo havia acarinhado.

Então, seu fetichismo pelas meias de mulher tomou uma proporção nunca vista. "Falta de pele", a moda das meias foi substituída há alguns anos pela dos colantes. Ele se lembra que mesmo as meias de sua mulher lhe davam vontade de se masturbar solitário. Uma vez, teve de viajar para a África com ela e a ajudou a fazer as malas, para poder pôr um par ali. A esposa o tira, ele coloca de novo. Ela protesta: "Com o calor da África, para que vão servir essas meias?". Inácio nunca se explicou. Isso devia permanecer sua paixão. Torná-la pública teria feito com que perdesse todo o encanto.

O gosto do segredo é poderoso, tanto quanto a atração do movimento das pernas mostrando e ocultando a borda das meias e o fetichismo da metacomunicação. Ele vê nisso a expressão do feminino entregando seu enigma, o gesto gracioso típico da mulher? Talvez, a exemplo de numerosos fetichistas, isso o incomode, ele queira corrigi-lo, anulá-lo. Não aceita ser o escravo da diferença que separa os sexos. E, no entanto, ele só pode valorizá-la, endeusá-la. Se um fetichista, no metrô, idolatra o gesto cortês de ceder o lugar a uma senhora, ele vê nisso o contraste entre homens e mulheres e, para ele, é isso a sexualidade. Pouca coisa, vocês diriam. Inácio parava sempre no umbral do amor. Ele nunca atravessava a porta.

Certas profissões são o exemplo dessa atitude, a da moda, por exemplo. Eu não acredito estar forçando a barra ao dizer que o fetichismo a inspira. O do consumidor ou igualmente o da consumidora. Pode-se mesmo adiantar que a clínica do gestual se encontra na extremidade de um amplo espectro em que o gestual dos homens e das mulheres - o que evitam na frente dos outros, o que utilizam - esconde elementos da petrificação do falo: uma estátua. Última homenagem feita ao que precedeu o cataclisma da castração.

Meu exemplo ilustra apenas uma situação particular, mas ele é bastante forte, porque Inácio tinha seu ideal amoroso. Somente a realidade não o acompanhava. Atingir o ideal pode dar medo suficiente para que se busquem pretextos morais a fim de não se permitir obtê-lo. Então, vale mais pensar que fazer. Além disso, se lhe faltou determinação para assumir seu desejo, é que seu ideal e sua excitação não conseguiram coordenar seus objetivos com o narcisismo trófico, Inácio estava preso em seu próprio jogo: ele idolatrava a mulher-mãe, não podia admitir que ele, um rapaz, tivesse o direito de gozar de uma sexualidade mais completa e satisfatória.

Em seu estudo pleno de erudição, H. Rey-Flaud (1983) nos propõe uma associação brilhante entre o amor cortês da literatura medieval e a paixão de pacientes como Inácio, que se encontram na impossibilidade de atingir seu ideal: a dama venerada, pura, com a qual eles sonham. Quando o objeto de seu desejo está ao alcance da mão, o desejo se evapora e o projeto sentimental desmorona como um castelo de cartas. O autor fala de neurose cortês.

Sugeri antes que os inimigos do ideal são, segundo as circunstâncias, o ódio, a decepção ou a realidade. Creio ser correto afirmar neste momento que seu inimigo, às vezes, é ele mesmo. É necessário se permitir o escândalo, o clash.

 

Da idealização ao ideal

O mundo psicanalítico atual e, em particular, os partidários de M. Klein se interrogam sobre o papel da idealização nas diferentes patologias e sua evolução no interior das terapias. Afastando-se do ensinamento da autora, eles põem em destaque, em especial, os aspectos criativos da idealização. Como todos se lembram, M. Klein a considera uma defesa diante da perseguição ou da depressão e, por essa razão, necessita regularmente ser interpretada, sob pena de deixar o paciente deslizar em direção à impotência e à utopia nas manhãs sem ilusões. A. Alvarez (1992/1997), uma terapeuta que se ocupa essencialmente de crianças e adolescentes, geralmente muito doentes (autistas, psicóticos, limítrofes, que sofreram abusos sexuais, com tendência antissocial...), apresenta, com muito bons argumentos, a ideia de que a idealização, embora apareça como uma defesa, se inscreve em certos casos no movimento que visa superar as angústias de perda, a exemplo de qualquer criança pequena em seu desenvolvimento normal. É importante para ela distinguir o alívio, a alegria, e a esperança que acompanha essa idealização tem uma função reparadora junto ao ser em sofrimento; isso é diferente da recusa de reconhecer a realidade, observada na defesa maníaca. Para o terapeuta, é importante não "perder a ocasião", porque isso leva ao risco de frustrar e de ferir um paciente que realiza um tímido movimento de desenvolvimento pessoal. É difícil para ele chegar lá, e precisa se sentir capaz de inventar e de inovar, de ter uma experiência como "ator" de sua existência. Encontram-se pacientes que negam defensivamente a verdade, e há outros que se opõem a isso sem ter consciência clara de por que e por qual razão fazem isso. A mente desses últimos é muito frágil, mesmo que eles apareçam como "temerários". A tarefa principal do terapeuta é ajudá-los a construir uma capacidade de pensar, e não lhes arrancar interpretações para as quais eles não estão nem um pouco preparados. Devemos evitar confundir força e onipotência, acrescenta A. Alvarez.

Essa análise examina ainda os outros elementos da defesa maníaca - a recusa da realidade, a reparação, a agitação, o desejo de controle (que normalmente acompanha a idealização) -, concluindo que é importante deixar esses movimentos evoluírem, pois o paciente sente necessidade disso, especialmente se ele viveu sob o efeito paralisante de uma doença grave. É seu momento de libertação. Se um garoto pergunta a seu terapeuta se o vermelho é sua cor favorita, o que ele pode sentir quando um terapeuta exigente e bom aluno interpreta de imediato que a criança tem vontade de invadi-lo? Nada além de desprezo, enquanto ele terá (também) necessidade de sentir seu terapeuta próximo, partilhando gostos em comum.

Para expor seu ponto de vista em um espírito certamente muito consensual, A. Alvarez busca alusões na obra de Klein: a idealização representa sempre uma vantagem, o sujeito que idealiza está pondo uma parte importante de afeto em sua relação com o objeto, com o outro. No início, é o excesso, a exaltação emocional... Todo objeto ideal apresenta as primícias da adoção definitiva do bom objeto inconsciente para o qual tende o desenvolvimento de amadurecimento, um objeto que, mais tarde, estabelecerá a força do psiquismo do sujeito, pelo reconhecimento de sua delicadeza, de seu apoio, de sua generosidade. O self sai reforçado desse processo. Em consequência, a idealiza- ção do desenvolvimento histórico da criança deve ser diferenciada da idealização defensiva. O processo da introjeção do bom objeto ideal é longo e lento, e cada momento é precioso no encaminhamento do crescimento. Em terapia não se pode perdê-lo.

Há algo mais elevado que o ideal do eu?

Na linha das expectativas do ideal, lembrarei também a tendência, bem diferente daquela de meu paciente Inácio, por zelo, pela exigência de ter êxito custe o que custar: em resumo, a coerção. Quando o ideal não é realizado, isso torna o sujeito infeliz, e impede de imaginar a renegociação, a mudança de rumo ou de tática.

Entramos no campo dos "amálgamas" e das confusões tópicas. O ideal do ego aqui está sob a pressão de um superego muito exigente e severo.

Ora, o ideal do ego, em sua forma mais completa, "não deve nada a ninguém", melhor dizendo, não fornece ao sujeito a impressão de que para se aperfeiçoar é preciso atingir uma realização perfeita de seus projetos. A única dívida com os objetos idealizados é o desejo de ser semelhante a eles.

Isso é diferente das relações mais comuns do ego com o superego, que são de obediência, até mesmo de temor de punição. Com certeza o superego comporta uma dimensão protetora e de tutela, mas isso não suscita investigação de aperfeiçoamento pessoal. E quando ele se associa ao ideal do ego, esse último aparece como especialmente duro e coercitivo.

No caso do superego, o vínculo com o objeto é singular, ele se estabelece em relação ao pai ou à mãe, e esta se mostra como a porta-bandeira da lei paternal. Convém destacar também que a mãe modifica a severidade do superego pela introdução da dimensão de uma nova segurança e de doçura feminina: graças à aceitação de suas recomendações, a confiança entre gerações será restabelecida. Essa interpretação do aspecto maternal do superego, sublinhada por J.-L. Donnet (1996), merece certamente ser posta em discussão com outras variantes mais "duras", até mesmo impiedosas, do superego maternal, de origem oral.

O ideal do ego mantém, por outro lado, relações com os dois pais, de certa forma confundidos, e nessa qualidade ele é a cristalização dos ideais coletivos. A longa marcha de Freud para diferenciar o ideal do ego do superego, entre 1915 e 1932, pode atestar certa dificuldade, a de circunscrever uma instância em que o bom narcisismo criaria um impulso, a ambição no sujeito de melhorar (Freud, 1933/1995). Sem dúvida, Freud é mais sensível ao sentimento de erro e dos conflitos internos que à força da transferência do ideal. Quero dizer que ele insiste um pouco excessivamente sobre o lado de culpabilidade nas relações da criança com os mais velhos. Para Freud, é o ponto essencial da psicologia. No entanto, o que procuramos é fundamentalmente viver em paz e estar seguros de nosso futuro: essa é uma questão narcísica que depende enormemente da confiança de nossos pais em nosso sucesso pessoal É verdade que as aspirações positivas do sujeito não são atingidas com serenidade; elas implicam um combate e muitas crises. Mas o importante é quem ganha a batalha, nosso sentimento de dívida para com o superego ou nosso direito à felicidade? Esse último está inscrito na linhagem narcísica do ideal do ego.

Atualmente se propõe, integrando o ensino dessas ideias, uma nova tópica do aparelho psíquico, que incluiria o narcisismo, o self e o ideal do ego - as precedentes sendo inconsciente/pré-consciente/consciente e isso/ego/superego (Bergeret, 1997).

Eis um exemplo clínico que nos permite diferenciar a idealização, o ideal e o superego. Patrick não se dizia feliz. Ele pensava que seu futuro estava comprometido, não importando o que fizesse. Ansioso demais, seus amigos terminariam por rejeitá-lo, dizia; desajeitado demais no trabalho, acabaria por ser mandado embora; não muito interessante, seria abandonado pela namorada. Se não aconteceu ainda, é porque eles não tinham percebido a realidade das coisas: seus amigos, porque ele lhes escondia seu mal-estar; seus empregadores, porque eram demasiado tolerantes, suportando por enquanto seus erros de cálculo ou seus esquecimentos, tão mais graves por ser ele um perito contábil; sua namorada, porque o amor a cegava.

Mas a verdade de sua "incompetência" ia ser conhecida cedo ou tarde. Estava em sursis. Para evitar a rejeição, ele reconhecia que se comportava como um gentil rapaz civilizado, até mesmo obsequioso. Porém, sua sedução não era natural como a de seu pai, que brilhava por seu saber e sua vivacidade de espírito. Nele, a sedução era natural, sem esforços. Enquanto para Patrick era tudo tão difícil, tão penoso, tão forçado. Um dia, não conseguiria mais enganar. Segundo ele, seu pai o havia "quebrado" com suas observações e suas exigências. Cada nota ruim, cada imprudência tinham atraído, até recentemente, por volta do final dos estudos universitários, as críticas paternas. Seus "sermões" intermináveis reforçavam a incompetência ou a falta de atenção de Patrick.

Eu poderia ter fracassado totalmente em meus estudos, ouvindo essa explosão quotidiana de palavras amargas, mas aguentei, ao menos para não mais ouvi-lo. Levei muito tempo, mas acabei por conseguir um diploma. Tornou-se uma espécie de obsessão: assim que ouço uma crítica, hoje em dia, as do meu pai voltam à minha memória.

Com a mãe, ele também não se sentiu tranquilizado. "O problema é seu" é uma das expressões favoritas dela.

Minha mãe pensa primeiro nela. Talvez eu espere ainda que ela me dê alguma coisa. Quando ela deseja ostensivamente que eu a acompanhe na visita à minha avó, ela me diz, como para não confessar o que quer: "Vovó ama ver você de vez em quando".

Durante bastante tempo da análise desse rapaz, tratou-se de sua fragilidade narcísica, que o tornava tão pouco seguro de si e tão cético. Eu lhe propus diferentes interpretações buscando suscitar fantasias ou lembranças recalcadas, acreditando que esse método clássico de abordagem permitiria que ele ganhasse confiança em suas potencialidades e, depois, que tolerasse melhor suas hesitações e seus atos falhos. Mas sua autossabotagem era mais forte; ele estava doente de sua própria intolerância, semelhante à imagem que me apresentava de seu pai. Comecei a supor que seu amor pelo pai era bem mais importante do que ele dava a entender. Pai e filho pareciam se confundir. Se ele falava do pai, falava de si mesmo, e vice-versa.

Patrick me respeitava, é verdade, mas ele sentia um certo prazer em demonstrar que nada nem ninguém podia mudar seu destino. Então, decidi modificar minha tática de tratamento. Sugeri que o pai me parecia um perfeccionista que o criticava porque pensava que ele, Patrick, podia ir mais longe, fazer melhor. Ele o consideraria muito capaz, além das aparências, apto a ter sucesso? Evidentemente eu não o conhecia, tive de admitir. Mas em sua mente Patrick podia representar um ideal a atingir. E era em nome desse ideal que o pai se autorizaria a ser duro e exigente.

Repeti essa ideia várias vezes, estendendo-me em exemplos que o paciente me havia fornecido. Sublinhando o ideal do pai, eu falava indiretamente do dele. Era o que me interessava. Na hora, ele contestava minhas conclusões, mas o que veio depois levou a pensar que elas tinham sido úteis: de um lado, ele pôde melhorar seu contato social, libertando-se do peso de seus tormentos, ganhando coragem diante dos outros; de outro, ele começou a considerar a possibilidade de que seu próprio pai tivesse sofrido a violência de seu passado familiar, dominado pela fatalidade. De fato, ele descendia de uma família de pescadores bretões, com frequência vitimados pelo mar. Gerações de homens desaparecidos. Nascer marinheiro significava poder morrer jovem. Viver em sursis...

A idealização do pai era evidente, o ponto de vista dele era considerado um veredito divino. O superego de Patrick se mostrava especialmente severo sob as marcas desse pai tirânico. Ora, o que nos permitiu avançar foi o fato de separar o ideal paterno da atitude de violência, de descobri-lo por trás do tratamento sofrido. O narcisismo de Patrick tomou, assim, mais amplitude. Nele, foi o reforço do polo do self-objeto que deu novo brilho ao brasão de seu narcisismo (Kohut, 1971/1974).

 

A transmissão dos ideais

Mas como chegam ao sujeito as mensagens que lhe permitem construir esse ideal do ego? Trata-se, certamente, da formação de seu narcisismo, assim como das expectativas exprimidas por seus pais. Todavia, a experiência mais imediata nos ensina que isso não é suficiente, e que, conhecendo os fatos, as mensagens inconscientes terão ali um papel determinante. Seria possível pensar em uma transmissão de inconsciente a inconsciente, mas seu lado mágico parece-me inaceitável. Seria mais oportuno ressaltar a diversidade de mensagens indiretas que a criança pequena recebe, vindas de seus genitores e de outros membros da família, inclusive dos educadores, pela narrativa de sua história ou das figuras alegóricas, esses gestos heroicos que acabam suscitando inúmeras identificações na criança. Justamente, o pai de Patrick tinha o hábito de relatar em família como ele tinha conseguido se elevar para fora de seu meio, a fim de melhorar sua situação, com perseverança.

Freud, por seu lado, inspirou-se nestes modelos ideais que marcaram sua juventude: Cromwell, em quem ele via o revolucionário ousando destronar um rei déspota, e Aníbal, o chefe cartaginês que prometeu a si mesmo vingar a honra ofendida de seu pai, Amílcar, indo combater a orgulhosa Roma. Freud associava o rei Amílcar a seu próprio pai, Jacob, de quem um crápula tinha tirado o gorro e jogado em um bueiro, obrigando-o depois a recuperá-lo. Mas ao contrário do pai submisso demais, que obedeceu sem protestar à ordem do crápula, o rei não cedeu e clamou por vingança contra o opróbio. Freud desaprovava a atitude do pai, embora, ao associá-lo ao rei, compusesse um personagem mais ideal e capaz de suscitar a ação. Freud forjou seu destino lutando contra os preconceitos de uma sociedade decadente e intolerante. Isso o ajudou a criar a psicanálise.

Inúmeros historiadores e analistas se utilizaram dessa passagem, a comentaram, vendo nela uma rivalidade edipiana entre Sigmund e Jacob, decepcionante para seu filho, em sua falta de coragem. Eu me afasto dessa interpretação. Creio que a mensagem paterna foi tão clara como a do rei Amílcar e que caminhava na mesma direção. "Vinga-me, meu filho, mas sejas discreto e comedido, não assumas riscos inúteis, reflete antes de agir, organiza uma estratégia adaptada a tuas forças e às fraquezas de teus adversários." A prova é que Aníbal fracassou diante de Roma e levou sua pátria à ruína, e Freud teve mais êxito.

Retomemos o fio de nosso desenvolvimento teórico. Que papel representam os segredos de família, os brancos de memória, as omissões, pondo a pique a afirmação do ideal? O segredo de um pai enterrado em seu inconsciente ou mais frequentemente provocando um tal sentimento de vergonha que o impede de revelá-lo aos outros, especialmente para uma criança, corrói, por assim dizer, sua disposição positiva para a transmissão. Esse segredo diria respeito à vida de um antepassado, um avô ou eventualmente o próprio pai. Por exemplo, o segredo de um nascimento fora do casamento, de um caso judiciário, de uma prisão. Se, além disso, o adulto impede a criança de fazer perguntas, de sondar esse segredo, se ele chega até a lhe sugerir "não meter o nariz" nisso, ou que não é interessante pensar nisso, sob pena de punição, instala-se um vazio no vínculo, atingindo o desejo de verdade da criança. Assim, podem surgir criptas no ego, que são, no final das contas, perturbações do narcisismo. A cripta é uma falha narcísica, presente na criança, em resposta a um fantasma parental, portanto um fato secreto, não revelado, a respeito de um antepassado (Abraham & Torok, 1978). Um setor do ego torna-se deserto, areia movediça, afastando ainda mais o sujeito de seu verdadeiro self. É evidente que a criança não é enganada pela situação, mas tem dificuldades para entender. Ela pode sentir que falta solidez no familiar, que este não consegue se assumir, que está oprimido por suas considerações morais. Essa pusilanimidade a decepciona, mas, tendo tanta necessidade dos adultos, não ousa dizê-lo. O ideal sofre com isso.

Há o risco de surgir uma forma de identificação, a do personagem escondido; não está excluído que o familiar o induza inconscientemente. Ao desejar que esse ato vergonhoso, cometido pelo antepassado, não seja revelado, ele pode desejar que a criança o imite. E o jovem percebe isso. Por quê? Porque ao lado da vergonha pode haver admiração pela conduta do antepassado. Pode-se lamentar que, por exemplo, ele tenha dissipado a fortuna da família, mas pode-se dizer "Aí está um boa-vida, que sabia aproveitar, se sentir feliz". É o que conduz a uma identificação alienante na criança. O ideal é confundido aqui com o personagem cujo comportamento se reprova.

Imaginemos uma outra situação. Em vez de sentir vergonha pelo episódio, o familiar sentiria orgulho e teria encontrado um argumento que o justificasse. Se o antepassado tivesse roubado um banco, era porque ele estava mergulhado em dívidas, e sua família ia morrer de fome, por exemplo. Imaginemos que, no lugar de ocultar essa história, ele a apresente em família sem dificuldades e que a criança a ouça. Ela pode criar uma certa idealização desse antepassado; sua coragem, sua perspicácia, determinada ideia de virilidade serão aceitas em seu favor. Ela pode até construir um ideal "invertido", em que a transgressão, o opróbrio, a abjeção nos outros casos apareçam como heroicos. Essa situação não é diferente do modo como certos jovens delinquentes, toxicomaníacos ou pervertidos vivem seu código de ética. A relação deles com a perturbação psíquica e sua determinação em continuar são influenciadas por esse modelo. É por essa razão que achei interessante propor, em uma obra coletiva publicada em 1997, entre os "objetos transgeracionais" assim como representados pelos membros dessas famílias para si mesmos, duas variantes, distinguindo o antepassado secreto (fantasma) e o antepassado impostor que não provoca vergonha. E é esse afeto, mais que o conteúdo do evento, que faz a diferença.

Evoquei igualmente o antepassado idealizado no caso de um luto impossível e o ancestral objeto de fidelidade edipiana para um dos pais.

Nesses dois últimos casos, também não se trata de segredo de família, mas, ao contrário, o familiar ou o antepassado santificado está muito presente. Ele absorve os interesses da criança, de modo diferente segundo cada caso, é verdade, porém não há perturbação do seu pensamento (impensável). No caso do luto impossível, pode-se observar que a criança se considera indigna (haveria mil variantes, mas, para esclarecer minha afirmação, dou esse exemplo simples). No caso da fidelidade edipiana, o sujeito não consegue nem viver a própria vida, nem encontrar um parceiro ou uma parceira.

Em 1987, falei da cultura do fracasso dominando certas famílias como uma tendência masoquista; pela montagem do projeto e o fracasso regular de sua realização, confirma-se quase ativamente a ideia de que é impossível atingir esse ideal de ego.

Às vezes grandes cientistas e inventores são tentados por esse mesmo mecanismo. Leonardo da Vinci, que nos fascinou tanto por seu gênio, inventou um grande número de máquinas: bombas hidráulicas, paraquedas, helicóptero, avião, automóvel, escafandro, submarino e máquinas de guerra temíveis... O homem demorou mais de três séculos para fabricá-los. A falta de combustíveis poderosos as tornava irrealizáveis na época. Mas há outro fator. Estudando hoje os desenhos desses projetos feitos por Leonardo, observa-se frequentemente que um detalhe tornava a máquina inutilizável. Ela não poderia funcionar. Um grão de areia no mecanismo. É como se Leonardo, ao mesmo tempo que inventava, introduzisse um elemento que tornava o projeto impossível. Resultado tão mais curioso quanto o artista Leonardo visava atingir a "perfeição". Estaria isso ligado, de algum modo, a seu nascimento fora do casamento? Certamente, posso chocar por esta ideia, mas me parece que Leonardo desejou duas coisas: de um lado, queria superar o tempo e o espaço, sentindo-se livre e autorizado a mudar o mundo, como seu pai, que soube ultrapassar os limites; de outro, temia as consequências de suas invenções, o que corresponde ao sentimento de não ser aceito por uma família oficial.

Freud insistirá no amor intenso e exaltado de Caterina, a mãe, que dará à criança o que estava destinado a seu amante demasiado ausente; ela encontrou nesse vínculo um refúgio e uma consolação. A convicção de Leonardo, nutrida por esse potente narcisismo delegado, o fazia sentir que tinha os meios de transformar a natureza... e ao mesmo tempo isso devia permanecer seu segredo. Pouco importa se as máquinas iam servir, então; bastava que sua querida mãe estivesse persuadida de seu talento excepcional.

 

Conclusão

O ideal do ego é o resultado do narcisismo: a pureza, a ambição, o desejo de se superar. Esse último teve de ser modelado, saneado antes de transferir suas virtualidades para essa instância: moderar a grandiloquência, as pretensões a possuir tudo e a saber tudo, a excitação de obter satisfação imediata. Se existe acordo entre a expectativa ideal dos pais e o projeto da criança, ela a assumirá, lhe dará seu traço pessoal. A imitação, a compulsão, o "eu faço isso por você" tornam a empreitada não concretizável - na melhor das hipóteses, vazia. A inscrição no ideal do ego é, no final das contas, uma empreitada do sujeito e para o sujeito. Então, ocorrência entre o narcisismo dos pais e o do sujeito.

Em relação aos ideais, sua transmissão não é um trabalho que se inscreve em uma linha direta e mecânica. O que os pais demonstram é mais importante que as explicações. Em todo caso, explicar nem sempre serve, porque encobre uma amargura. As frustrações dos pais, para falar simplesmente, são as deles, enquanto o ideal é o fruto do positivo. A meu ver, um ímpeto de vencer nasce de uma mensagem otimista.

A idealização não é o ideal, mas ela contribui em muito para seu enraizamento, da mesma forma que o ideal do ego dos pais faz trabalhar o da criança. Cada genitor trará o seu, eles estarão provavelmente em contradição ou desalinhados: tanto melhor para a criança, que poderá fazer a triagem. Mas, talvez ainda mais que os pais, serão os irmãos e irmãs que servirão de modelo ideal, ou outros com quem conviva, os coleguinhas ou os professores, os heróis de suas leituras ou vistos na tela. Cada um trará sua nuance, se disfarçando, por sua vez, pois o ideal é um ser anônimo, é vários e ninguém.

 

Referências

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Correspondência:
Alberto Eiguer
154 Rue d'Alésia
75014 Paris, France
alberto-eiguer-psy.fr
albertoeiguer@msn.com

Recebido em 15/12/2020
Aceito em 29/12/2020

 

 

1 Este trabalho retoma o capítulo 4 de meu livro Du bon usage du narcissisme, publicado em 1990. O texto foi remanejado e atualizado em 1999.

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