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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.4 São Paulo out./dez. 2020

 

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Notas sobre o futuro da psicanálise1

 

Notes on the future of psychoanalysis

 

Notas sobre el futuro del psicoanálisis

 

Des notes sur l'avenir de la psychanalyse

 

 

Bernardo Tanis

Psicanalista. Doutor em psicologia clínica. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Presidente da SBPSP (2017-2020)

Correspondência

 

 


RESUMO

Propomos a ideia de que, para pensar o futuro da psicanálise, faz-se necessário recuperar a perspectiva histórico-temporal, evitando que as bolhas do presente impeçam um olhar em perspectiva. É preciso reconhecer nossos acertos e erros, nossos recalques e recusas defensivas, para quem sabe imaginar um futuro que não esteja condenado à compulsão à repetição. Apresentamos uma reflexão sobre o nosso lugar no cenário das práticas clínicas e sobre o diferencial que temos a oferecer aos jovens profissionais que nos procuram para formação. Sugerimos que, quando inspiradas na psicanálise, na sua ética, mesmo que pontuais e breves, diferentes modalidades de intervenção podem fazer parte da formação no nosso Instituto. Isso permitiria que os analistas atendessem demandas diferentes, que solicitassem adaptações técnicas, mas ancorados numa sólida base metodológica da psicanálise, desenvolvendo assim, ao longo da sua formação, um enquadre interno capaz de dar conta dessa variedade de demandas. Apresentamos a ideia de que transmitir e enriquecer de forma transformadora nosso legado não deve ser pautado por uma verdade imutável a ser imposta, mas por uma tradição vista como fonte inspiradora, que possa ser interrogada e sujeita a críticas e revisões.

Palavras-chave: futuro da psicanálise, transmissão, formação


ABSTRACT

This text proposes the idea that thinking of the future of psychoanalysis brings the need to recover the historical time perspective, avoiding the blur of the present, to see a clear perspective. It is necessary to acknowledge what we have done right and wrong, our repressions and defensive denials, for those who can imagine a future where compulsion and repetition are not likely to be included. We propose the reflection on our place in clinical practice situations and the differential we have to offer those young professionals who look for us for their education and the demands for the current clinical practice. We suggest that when inspired by Psychoanalysis and its ethics, even when specific or brief, different methods of intervention may be part of our Institute. This would allow analysts to respond to any kind of request, requiring technical adjustment, but having a solid methodological basis of Psychoanalysis, developing an internal adjustment during their education and being able to deal with any kind of request. We present the idea that sharing and enriching our legacy in a transformative way may not be based by some imposed and unchangeable truth, but as an inspiring source, that may be questioned, criticized and revised.

Keywords: future of psychoanalysis, sharing, education


RESUMEN

El texto propone la idea de que pensar en el futuro del Psicoanálisis implica recuperar la perspectiva histórico-temporal, evitando que las burbujas del presente impidan una mirada en perspectiva. Es necesario reconocer nuestros aciertos y errores, nuestras limitaciones y denegaciones defensivas, para tal vez imaginar un futuro que no esté condenado a la compulsión y repetición. Proponemos la reflexión sobre nuestro lugar en el escenario de las prácticas clínicas y del diferencial que tenemos a ofrecer a los jóvenes profesionales que nos buscan para formación y las demandas de la clínica actual. Recomendamos que cuando estén inspiradas en el Psicoanálisis en su ética, aunque puntual y brevemente, diferentes modalidades de intervención puedan ser parte de la formación de nuestro instituto. Eso permitiría que los analistas atiendan a diferentes demandas, que soliciten adaptaciones técnicas, pero ancladas en una sólida base metodológica del Psicoanálisis, para poder desarrollar a lo largo de su formación un encuadre interno capaz de cumplir con esa diversidad de demandas. Presentamos la idea de que transmitir y enriquecer de manera trasformadora nuestro legado no debe ser pautado por una verdad inmutable impuesta, sino como fuente inspiradora que puede ser cuestionada y que está sujeta a críticas y revisiones.

Palabras clave: futuro del psicoanálisis, trasmisión, formación


RÉSUMÉ

Ce texte propose l'idée que penser l'avenir de la psychanalyse rend nécessaire la récupération de la perspective historique temporelle, en évitant que les bulles du présent empêchent un regard en perspective. Il faut reconnaître nos réussites et nos échecs, notre refoulement et nos refus défensifs, pour celui qui sait imaginer un avenir qui ne soit pas condamné à la compulsion et à la répétition. On propose la réflexion concernant notre place dans le panorama des pratiques cliniques et du différentiel qu'on peut offrir aux jeunes professionnels qui nous recherchent pour la formation et les demandes de la clinique actuelle. Nous suggérons que lorsque la psychanalyse et son éthique inspirent différentes modalités d'interventions, même que ponctuelles et brèves, celles-ci puissent faire partie de la formation dans notre Institut. Cela permettrait que les analystes répondent à des demandes différentes qui nécessitent d'adaptations techniques, mais ils resteront ancrés dans une solide base méthodologique de la psychanalyse, en développant ainsi tout au long de sa formation un cadre interne capable de rendre compte de cette variété de demandes. Nous présentons l'idée que transmettre et enrichir de façon transformatrice notre héritage, ne doit pas être défini par la vérité immuable qu'on impose, mais en tant qu'une source inspiratrice qui peut être questionnée, soumise à la critique et à des révisions.

Mots-clés: l'avenir de la psychanalyse, transmission, formation


 

 

Agradeço à Associação dos Membros Filiados (amf) do Instituto Durval Marcondes pelo convite e pela parceria produtiva ao longo desses quase quatro anos de gestão como presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). É um prazer e uma honra estar aqui com o querido Marcelo Viñar, psicanalista, pensador e uma liderança da psicanálise latino-americana, e com Gizela Turkiewicz, presidente da amf, representante dos membros filiados - analistas em formação - do nosso Instituto, assim como contar com a coordenação da Cibele Amaro Pires Rays.

Pertencemos a gerações diferentes e compartilhamos o espaço-tempo presente, fato estimulante que reflete a nossa perspectiva da vida institucional. Não vejo outro caminho para o futuro da psicanálise que aquele a ser construído no entrelaçamento e parceria entre as gerações - entre as rugas e cicatrizes da experiência e da maturidade e as percepções, o vigor, as contribuições e os sonhos das novas gerações.

Ao convidar Elisabeth Roudinesco, psicanalista e historiadora da psicanálise, para uma conversa, o entrevistador Carlos Maffi formulou uma pergunta admirável, com um tom um tanto paradoxal: "Quem melhor que um especialista no passado para imaginar o futuro?" (2011, p. 582). Coincido com essa perspectiva. Há anos me interesso e acompanho estudos sobre a história da psicanálise, de suas instituições e seus diferentes modelos, e considero que esses trabalhos constituem uma vacina (em tempos de covid-19...) contra o pensamento dogmático e contra a ideia de que certas teorias ou modelos de formação detêm a verdade em contraposição ao pluralismo inerente ao nosso campo. Procurarei nesta breve fala sinalizar como essa perspectiva temporal opera visando o futuro, sem profecias.

Recentemente li a curta e impactante crônica de Julián Fuks "No tempo da morte, a morte do tempo" (2020). Trata-se de uma ficção necessária para dar conta do mal-estar real ao qual estamos submetidos em face da pandemia. Destaco uma imagem construída pelo autor, um fotograma pregnante, que alude a "um inchaço do presente, como se seu vulto engordasse tanto que ocultasse o passado e bloqueasse a vista do futuro inteiro".

Numa mesa-redonda com colegas latino-americanos, sobre a escuta analítica em tempos de isolamento social, fiz referência à ideia do eclipse (imagem que me fora sugerida por um analisando), que obscurece a percepção (Streaming mvd 2019, 2020). Com menos poesia que o meu escritor escolhido, dei sequência associativa a essa imagem e imaginariamente tratei de perfurar esse vulto agigantado, buscando de alguma forma recuperar a perspectiva temporal que tinha sido anulada. Não será isso o que muitas vezes, acolhendo a angústia esmagadora dos nossos analisandos, fazemos quando algo que podemos dizer ou sinalizar desanuvia a penumbra que assola o eu?

Pois bem, caros participantes deste encontro, para ousarmos pensar o futuro da psicanálise, faz-se necessário recuperar a perspectiva histórico-temporal, evitando que as bolhas do presente impeçam um olhar em perspectiva; mergulhar no passado, pois ele - embora não apenas ele - nos permite fazer uma leitura crítica do nosso presente; reconhecer nossos acertos e erros, nossos recalques e recusas defensivas, para quem sabe imaginar um futuro que não esteja condenado à compulsão à repetição.

A história, a análise crítica e os argumentos racionais e científicos têm sido muito maltratados e ignorados - como sinalizado por Walter Benjamin há décadas -, pela quebra da dimensão narrativa, por um presente que recusa a experiência da história e a memória, pela ditadura da imagem, do imediato e das palavras de ordem e pelo minimalismo de caracteres, em razão de uma urgência voraz que destrói o pensamento e quantifica, ou melhor, precifica a dor da perda ou da morte. Mas de nada nos adiantam a nostalgia e as posturas melancólicas, nem a adesão identificatória aos discursos e práticas dominantes.

O filósofo italiano Giorgio Agamben (2009) já falava da importância de nos mantermos de certo modo estrangeiros para sermos contemporâneos. Trata-se de uma não fusão com o presente, do reconhecimento de uma certa opacidade - noções que retomam a estrangeiridade, tão preciosa à psicanálise, que se ancora na ideia do inconsciente, na alteridade em face do Outro.

Essa perspectiva histórico-temporal opera como chave que dará início ao pentagrama de uma composição orquestral em que cada instrumento tem sua participação, mas é o conjunto que mobiliza o ouvinte. Assim, de modo interligado e apenas separados para a clareza da exposição, convido-os a refletir sobre as transformações presentes em três eixos, nos quais penso que o futuro da psicanálise estará em jogo:

• o nosso campo - uma clínica, como Freud a define, uma teoria da psique e um método de pesquisa, e a presença de outras práticas clínicas;

• as instituições psicanalíticas e a formação de analistas, dentro e fora da Associação Psicanalítica Internacional (ipa);

• o mutante mundo em que vivemos.

Muitos autores e prestigiados analistas se debruçaram sobre esses assuntos, ora vinculados ao impacto positivo da riqueza e expansão da psicanálise nas últimas décadas, ora ligados às polêmicas e aos acalorados debates que essa expansão gerou, culminando no período conhecido como Era das Escolas e em um partidarismo sectário. Isso sem dúvida gerou conflitos e cisões no movimento psicanalítico, o que certamente afetou nossa clínica, nossas instituições e nossos modelos de formação, assim como nossa imagem no meio científico mais amplo, no campo acadêmico e na cultura. Muitos afirmam que nas últimas décadas esse período sectário tem aberto um diálogo mais fecundo entre analistas. Outros, porém, enxergam aí diferenças intransponíveis, sustentadas muitas vezes por questões inerentes a lutas de poder e hegemonia.

Nós, psicanalistas, já fomos os revolucionários que transformaram a concepção do humano ao longo do século XX, mas será que conservamos nosso potencial criativo e transformador? Até onde nossa prática e nossos modelos de formação não se aproximam hoje de uma dimensão mais adaptativa, atendendo demandas do "mercado"?

André Green (2002/2010), em um breve mas instigante trabalho em torno do que chama de crise do entendimento psicanalítico, elenca com propriedade os efeitos desses movimentos, sejam eles desagregadores ou adaptativos, sinalizando impasses e pontos que demandam um trabalho de elaboração, assim como alternativas possíveis. Recomendo vivamente sua leitura.

Aqui, farei apenas alguns comentários sobre os três eixos que elenquei antes, dada a limitação do nosso espaço. As constatações clínicas levaram a transformações no exercício clínico e no lugar do analista, que de preponderantemente intérprete na transferência passou a contribuir ativamente para a construção dos processos de simbolização em face do não constituído, do traumático do encontro com o outro. As raízes dessa mutação remontam às reformulações freudianas dos anos 1920. Essas transformações na escuta e as teorizações que as acompanharam não deixaram de causar impacto na concepção dos modelos de análise e de formação, o que discuto em maior profundidade e extensão em outros trabalhos (Tanis, 2014, 2018).

Assim como os analisandos de hoje não são os mesmos que os da época de Freud, aqueles que procuram formação psicanalítica também são outros. Jovens formados aos milhares em faculdades de psicologia, curiosos de outros campos, outros mais ávidos por exercer uma profissão e menos mobilizados para compreender as obscuras motivações da alma humana. Esses jovens encontram atualmente múltiplas possibilidades de formação: universidades, grupos de estudos de diferentes abordagens teórico-clínicas, inúmeras instituições e grupos psicanalíticos não filiados à ipa, cada vez mais frequentes, e até uma psicanálise evangélica. Há décadas se vê mundialmente o fenômeno da proliferação dessas instituições independentes, e muitas vezes esse fato foi silenciado, ou se tornou objeto de recusa em nossas instituições tradicionais sob a bandeira defensiva de nossa idealizada excelência.

A psiquiatria, por sua vez, além de avançar no desenvolvimento dos psicofármacos, migrou seu apoio e interesse para as práticas cognitivo- -comportamentais. Vemos hoje inúmeros centros de formação em massa de psicanalistas pouco preocupados com o Kulturarbeit (ideia freudiana em torno do "trabalho da cultura") ou com a séria reflexão freudiana sobre a cultura e a ética psicanalítica. Busca-se uma técnica terapêutica, entre as tantas variantes psi oferecidas, a ser rapidamente adquirida a fim de se colocar no mercado de trabalho. Não é um cenário contestador, como na época dos pioneiros, nem tão glamoroso como outrora, dos anos 1950 aos 1970.

Isso nos leva diretamente ao segundo ponto, nossas instituições e Institutos. Com longos processos de formação, de 15 a 20 anos em muitos casos, e com normas e regulamentos que se confundem com a nossa identidade analítica, nos tornamos muitas vezes guardiões da tradição. Muito se fala sobre o paradoxo entre a liberdade no processo analítico dentro de suas singularidades e as normas e leis que regem a vida institucional. Necessárias para muitos, questionadas por outros, nossas instituições não são mais as guardiãs da psicanálise, que hoje está espalhada em múltiplos territórios. Se antes havia claras diferenças entre as duas margens do canal da Mancha, entre uma visão mais empirista e outra mais intelectualizada da psicanálise, embora não por isso menos clínica, hoje elas não estão mais tão bem delineadas. Cabe pensar e refletir sobre o nosso lugar no cenário das práticas clínicas e sobre o diferencial que temos a oferecer aos jovens profissionais que nos procuram para formação. Devemos ir além da autoimagem narcísica da excelência para formular proposta claras e transparentes de como enxergamos uma formação de analistas para o nosso tempo e de como trabalhamos no campo interdisciplinar e na leitura dos processos de subjetivação contemporâneos.

Talvez em tempos passados a IPA e suas instituições locais, ao zelar tanto pelo patrimônio psicanalítico, tenham terminado por sufocar o aspecto mais criativo e irreverente da psicanálise, como notou Kernberg (1996) e tantos outros. A IPA e Sociedades de vários países reclamam há anos da falta de candidatos à formação.

Ao mesmo tempo, multiplicam-se as clínicas sociais, o trabalho em ongs, comunidades, escolas, hospitais, com famílias, pais e bebês, as intervenções pontuais, as terapias breves de base analítica. Nossa gestão apoiou e desenvolveu com seriedade e consistência essas frentes. Para muitos, no entanto, essas práticas constituem uma psicanálise "menor", menos nobre, não porque discordem do compromisso social, mas porque ainda estão apegados à ideia "do ouro e do cobre". Enquanto pensamos cuidar do ouro, as bijuterias reinam soltas, sem nos darmos conta da enorme contribuição que nós, psicanalistas, temos a oferecer no campo mais amplo da saúde pública e da cultura.

Essas diferentes práticas, quando inspiradas na psicanálise, na sua ética, mesmo que pontuais e breves, podem fazer parte da formação no nosso Instituto, habilitando os novos analistas a atenderem demandas de naturezas distintas, com técnicas diversas, mas ancorados numa sólida base metodológica da psicanálise, desenvolvendo ao longo da sua formação um enquadre interno capaz de dar conta dessa variedade de demandas. Tais práticas já faziam parte do programa dos nossos pioneiros antes da Segunda Guerra Mundial (Danto, 2019). Foram abortadas e depois retomadas a partir dos anos 1960, com forte estímulo das experiências pioneiras de Pichon-Rivière e Bleger na Argentina, que contribuíram para o desenvolvimento da perspectiva da clínica extensa, também desenvolvida entre nós por Fabio Herrmann.

Soma-se a isso o terceiro eixo elencado no início desta fala: as grandes transformações do mundo, tão minuciosamente descritas por importantes pensadores, filósofos e cientistas sociais. A pós-modernidade, o neoliberalismo, o ressurgimento das políticas do ódio e do autoritarismo em muitos lugares do globo, as mudanças na composição da família, a fluidez dos gêneros, as relações e os vínculos mediados por tecnologia. Nesse novo contexto, estarão nossas teorias abertas a reformulações? Temos a liberdade necessária para aceitar, como clínicos e pesquisadores da subjetividade, esse desafio? Nossa clínica dá conta do sofrimento e do mal-estar que vemos? E nossa formação, embora pautada pelos importantes conhecimentos adquiridos, se permite olhar para o novo, para a opacidade?

Torna-se imperativo recuperar a ousadia dos fundadores e desburocratizar nossos Institutos. Isso não implica o abandono do rigor e do compromisso ético no exercício da psicanálise, bandeira muitas vezes levantada quando se ousa falar em mudanças, como se a identidade fosse algo estático e imutável.

A pandemia nos levou a implementar a psicanálise à distância. Fomos impelidos a entrar no mundo digital, com todos os receios que tínhamos. Até os mais céticos quanto a essa prática tiveram que aderir a ela. Assumimos nosso compromisso ético de atuar perante a dor e o sofrimento. Ainda temos muitos interrogantes sobre as modalidades de atendimento que estamos praticando, mas as dúvidas e reflexões, quando bem conduzidas, jogam um feixe de luz tanto sobre a novidade como sobre certa acomodação no já conhecido.

Agora nos cabe imaginar e criar o futuro, e não olhar melancolicamente para o passado ou assistir passivamente às catástrofes vindouras. Como transmitir e enriquecer de maneira transformadora nosso legado? Para Walter Benjamin, o processo de transmissão é parte integrante da tradição, e esta deve ser consequentemente desconstruída e interrogada. Sua posição contrasta com aquela sustentada pelos guardiões da tradição, que a veem não como fonte inspiradora, sujeita a críticas e revisões, mas como verdade a ser sustentada e por vezes imposta.

Permito-me uma citação um pouco extensa de Jeanne Marie Gagnebin, destacada filósofa e especialista na obra de Walter Benjamin. Nessa passagem, ela comenta a noção de verdade para Benjamin, desenvolvida em dois consagrados textos do autor, um ensaio de 1922 sobre as Afinidades eletivas, de Goethe, e as teses "Sobre o conceito da história", de 1940.

Abdicar da concepção "idealista" de uma verdade eterna, afirmar que a verdade é histórica não significa, portanto, cair num relativismo preguiçoso, que se disfarça de tolerante e no qual a rigor não há mais verdade, mas só opiniões. Tampouco significa naturalizar um processo histórico como se fosse um desenvolvimento parecido à corrente de um rio ou ao desabrochar do gênio (em Goethe). Nos dois textos, Benjamin afirma um conceito ao mesmo tempo enfático e totalmente histórico de verdade, que orienta a busca do crítico, quando ele visa não só a uma renovação da imagem do passado, mas também a uma transformação da apreensão do presente. Verdade histórica e crítica do presente coincidem. (2011, p. 152)

Apontando para o nosso congresso de Vancouver em 2021, sobre o infantil e suas múltiplas dimensões, podemos fazer uma analogia com o futuro da psicanálise: temos que trabalhar não apenas seu aspecto regressivo, mas o potencial criativo contido na transformação em relação às marcas deixadas pelo passado, que libera o potencial pulsional para novos laços, um Eros em busca de novos vínculos - ou então estaremos fadados apenas às glórias do passado.

 

Referências

Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? In G. Agamben, O que é o contemporâneo? e outros ensaios (V. N. Honesko, Trad., pp. 55-73). Argos.         [ Links ]

Danto, E. A. (2019). As clínicas sociais de Freud: psicanálise e justiça social (M. Goldsztajn, Trad.). Perspectiva.         [ Links ]

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Streaming mvd 2019. (2020, 25 de abril). Fepal: atendiendo la emergencia: la escucha analítica en tiempos de aislamiento social [Vídeo]. YouTube. https://bit.ly/3afFHZH        [ Links ]

Tanis, B. (2014). O pensamento clínico e o analista contemporâneo. Jornal de Psicanálise, 47(87),197-214.         [ Links ]

Tanis, B. (2018). A formação psicanalítica: especificidade e transformações. Jornal de Psicanálise, 51(95),29-41.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Bernardo Tanis
Rua Capote Valente, 432/142
05409-001 São Paulo, SP
Tel.: 11 3062-1855
bernardo.tanis@gmail.com

Recebido em 28/1/2021
Aceito em 8/2/2021

 

 

1 Comunicação apresentada no evento preparatório para o XXVIII Congresso Brasileiro de Psicanálise, organizado por Silvana Rea, diretora científica da SBPSP, em novembro de 2020, com o tema "Por uma ética para o século XXI".

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