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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2020

 

HISTÓRIA DA PSICANÁLISE

 

Virgínia Leone Bicudo: construindo e difundindo a psicanálise no Brasil1

 

Virgínia Leone Bicudo: building and diffusing psychoanalysis in Brazil

 

Virgínia Leone Bicudo: construyendo y difundiendo el psicoanálisis en Brasil

 

Virgínia Leone Bicudo : bâtir et diffuser la psychoanalyse au Brésil

 

 

Jorge Luís Ferreira Abrão

Professor associado do Departamento de Psicologia Clínica da Faculdade de Ciências e Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo surge com o objetivo de discutir as iniciativas empreendidas por Virgínia Bicudo enquanto pioneira da psicanálise no Brasil. Partindo de levantamento bibliográfico e da realização de entrevistas, reconstitui-se o percurso profissional da personagem biografada. Virgínia Bicudo, proveniente de uma família pouco abastada, encontrou na aptidão intelectual um caminho para sobrepor o preconceito e obter destaque profissional. Após concluir o curso normal e formar-se em sociologia, foi em busca da psicanálise como um meio para aliviar-se do sofrimento pessoal. Encontrou na disciplina freudiana um campo profícuo, tanto para demandas pessoais quanto profissionais. Destacou-se como fundadora da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, da Sociedade de Psicanálise de Brasília, do Jornal de Psicanálise e da Revista Brasileira de Psicanálise.

Palavras-chave: Virgínia Bicudo, história da psicanálise, biografia


ABSTRACT

This article emerged to discuss Virgínia Bicudos's initiatives as a pioneer of psychoanalysis in Brazil. Starting with a bibliographic research and interviews, a professional path of the character, her biography, was reconstituted. Virgínia Bicudo was born into a poor family and found, in her intellectual ability, a way to overcome all the prejudice and achieve professional success. After completing the old course for teachers, she became a sociologist and started studying psychoanalysis as a way to relieve personal suffering. She found in Freud's discipline a beneficial place to deal with personal and professional demands. She stood out as a founder of São Paulo's Brazilian Society of Psychoanalysis, Brasília's Brazilian Society of Psychoanalysis, the Journal of Psychoanalysis and the Brazilian Psychoanalysis Magazine.

Keywords: Virgínia Bicudo, history of psychoanalysis, biography


RESUMEN

Este artículo surge con el objetivo de discutir las iniciativas emprendidas por Virgínia Bicudo como pionera del psicoanálisis en Brasil. A partir de un estudio bibliográfico y entrevistas, se reconstruye la trayectoria profesional del personaje biografiado. Virgínia Bicudo, de familia pobre, encontró en la aptitud intelectual una forma de superar los prejuicios y ganar protagonismo profesional. Después de completar el curso de maestro y graduarse en sociología, buscó el psicoanálisis como un medio para liberarse del sufrimiento personal. En la disciplina de Freud encontró un campo fructífero, tanto para exigencias personales como profesionales. Se destacó como fundadora de la Sociedad Brasileña de Psicoanálisis de São Paulo, de la Sociedad de Psicoanálisis de Brasília, de la Periódico de Psicoanálisis y de la Revista Brasileña de Psicoanálisis.

Palabras clave: Virgínia Bicudo, historia del psicoanálisis, biografía


RÉSUMÉ

Cet article apparaît dans le but de discuter les initiatives entreprises par Virgínia Bicudo, en tant que pionnière de la psychanalyse au Brésil. À partir d'une recherche bibliographique et d'entretiens, le parcours professionnel du personnage biographié est reconstitué. Virgínia Bicudo, issue d'une famille peu aisée, a trouvé dans l'aptitude intellectuelle une voie pour surmonter les préjugés et de gagner en importance professionnelle. Après avoir fini le cours de formation d'instituteur et obtenu son diplôme en sociologie, elle a cherché la psychanalyse comme un moyen de se soulager de ses souffrances personnelles. Dans la discipline de Freud, elle a trouvé un terrain fructueux, tant pour les besoins personnels que les professionnels. Elle s'est démarquée en tant que fondatrice de la Société brésilienne de Psychanalyse de São Paulo, de la Société de Psychanalyse de Brasília, du Journal de Psychanalyse et de la Revue Brésilienne de Psychanalyse.

Mots-clés: Virgínia Bicudo, histoire de la psychanalyse, biographie


 

 

Virgínia Bicudo destacou-se no cenário cultural e científico brasileiro no século XX como pioneira da psicanálise, empreendendo diversas ações que promoveram a consolidação e difusão da disciplina freudiana no país, deixando marcas indeléveis de sua atuação profissional que influenciaram várias gerações de psicanalistas que a sucederam, cuja formação profissional foi, de alguma forma, por ela influenciada. Sustentado nessa premissa, o presente artigo vem a lume com o objetivo de discutir as principais iniciativas empreendidas por Virgínia Bicudo durante aproximadamente seis décadas de intensa atividade profissional.

Destaca-se que suas ações no campo da psicanálise não ficaram circunscritas a uma profícua e intensa atividade clínica, ao contrário, suas iniciativas pioneiras espraiam-se por diversas iniciativas, seja na organização e administração das instituições psicanalíticas, seja na formação de psicanalistas ou ainda na difusão das ideias freudianas em diversos contextos, entre os quais merecem ser sublinhados: atuação como visitadora psiquiátrica da Seção de Higiene Mental Escola desde a fundação desse serviço de assistência a crianças com problemas de aprendizagem, em 1938 (Abrão, 2001), como bem lembra Marialzira Perestrello, "Virgínia Bicudo foi a primeira mulher na América Latina a deitar-se em um divã analítico" (2004, p. 11), ao iniciar, em 1937, análise didática com Adelheid Koch. Foi fundadora, em 1944, do Grupo Psicanalítico de São Paulo, precursor da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Sagawa, 1994). Introduziu as ideias kleinianas em São Paulo, após permanecer em Londres entre os anos de 1955 a 1959, ocasião em que travou contato direto com Melanie Klein, com quem fez supervisão (Abrão, 2013; Perestrello, 1992). Foi pioneira da psicanálise de crianças no Brasil, introduzindo essa especialidade na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (Abrão, 2001). Figura como fundadora da Sociedade de Psicanálise de Brasília na década de 1970. Fundou, em 1967, a Revista Brasileira de Psicanálise. Além disso, é signatária de uma vasta e expressiva produção teórica, distribuída em livros e revistas especializadas nacionais e internacionais.

Frente a essa multiplicidade de ações, que torna a atuação profissional de Virgínia Bicudo singular e marcada pelo dístico do pioneirismo, não seria possível, no âmbito deste artigo, abarcar a totalidade das iniciativas por ela capitaneadas. Assim, para dar exequibilidade ao objetivo proposto, o presente artigo ficará circunscrito a algumas temáticas capitais que singularizaram sua formação pessoal e trajeto profissional, quais sejam: contexto sociocultural de sua formação, racismo e psicanálise, iniciativas editoriais, difusão da psicanálise e atuação propedêutica.

 

Uma mulher forjada entre o mito e a realidade

Virgínia Leone Bicudo nasceu em 21 de novembro de 1910, na cidade de São Paulo. Os anos que se seguiram ao seu nascimento consagraram-se como um período marcado por inúmeras transformações na vida econômica, cultural e social da cidade, que vivia um momento de forte transição de um modelo rural rumo à industrialização, acompanhado de acelerado crescimento demográfico.

A exuberância que caracterizou o crescimento da cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século XX fez surgir em seus habitantes a crença em uma identidade coletiva que conferia aos paulistanos singularidade, distinguível por meio de algumas características que lhe eram peculiares, como a constituição étnica, formada a partir da miscigenação de indivíduos de várias origens raciais vivendo de forma harmoniosa e construtiva, e a emergência de um centro urbano marcado pela tolerância e igualdade de oportunidades a todos os povos, o que garantiria possibilidade de sucesso e êxito para todos aqueles que tivessem iniciativa e espírito de conquista.

O mundo novo representado por São Paulo, onde primeiro o branco se fundiu com o índio, depois os descendentes destes se cruzaram com os negros, e agora as novas gerações se consorciam com os fugitivos da Europa convulsionada, é a nova terra da promissão, onde se vão erguer as torres sólidas das "novas arquiteturas da sociedade futura", a Babel invertida, a Babel que une e, portanto, leva ao clímax, a consumação da função mística que sua antecessora frustrara. (Sevcenko, 1992, p. 38)

No entanto, essa representação amplamente difundida no imaginário popular, que até os dias de hoje confere um espírito nostálgico e, até mesmo messiânica, à formação da cidade de São Paulo, inscreve-se muito mais na ordem do mito do que da realidade. Em defesa desse raciocínio, basta constatarmos as precárias condições de habitação, a fragilidade do sistema de saúde pública, a escassa rede de saneamento básico e as exaustivas jornadas de trabalho, condições estas que afligiam a grande massa da população que chegava a São Paulo. Assim, a população interiorana, retirada dos seus nichos de referência na zona rural, os descendentes de africanos, desenraizados de sua cultura e abandonados após a abolição da escravatura, e os imigrantes, evacuados da Europa, formavam um contingente humano em busca da terra prometida que nem sempre se mostrava tão hospitaleira. Dessa forma, "mais do que o mito de Babel, nesta ordem de metáforas, São Paulo para estes grupos evocaria o Cativeiro da Babilônia" (Sevcenko, 1992, p. 39).

Esquadrinhando a trajetória pessoal de Virgínia Bicudo, a partir de sua origem familiar até sua forte ascendência profissional junto ao universo psicanalítico brasileiro, é possível reconhecer a existência de muitos elementos representativos da estrutura sociocultural brasileira que se consolidou ao longo do século XX. Sua origem familiar humilde, como veremos, e o seu posterior reconhecimento profissional concretizado através do pioneirismo e da posição de liderança que assumiu no universo psicanalítico do país, faz ressoar a imagem do mito convertido em realidade.

De um lado, Joana Leone Bicudo, mãe de Virgínia Bicudo, é natural da Catânia, cidade italiana localizada na Sicília, onde nasceu em 2 de dezembro de 1887. Veio para o Brasil quando tinha 10 anos de idade, juntamente com uma leva de imigrantes evacuados da Itália que chegavam ao país no final do século xix com a missão de substituir a mão de obra escrava nas lavouras de café. Dessa forma, Putio Paolo Leone e Agripina Palermo, avós maternos de Virgínia Bicudo, juntamente com os quatro filhos, instalaram-se na Fazenda Matto Dentro, localizada no município de Campinas.

Por outro lado, seu pai, Theófilo Julio Bicudo, nasceu em 9 de janeiro de 1887, na Fazenda Matto Dentro, onde viveu até os anos de juventude. Em 1905 mudou-se para São Paulo com o intuito de dar continuidade aos seus estudos, tornou-se funcionário público lotado nas Agências Brasileiras de Correios e Telégrafos, tendo na juventude acalentado o sonho de cursar medicina. Paralelamente ao seu ofício nos Correios, dedicou-se a dar aulas particulares que eram realizadas em sua casa, destinadas à preparação de candidatos para o vestibular de medicina. Percebe-se, dessa forma, que, apesar de as condições não terem sido favoráveis a ponto de não permitirem que Theófilo Bicudo viesse a cursar medicina, seu pendor intelectual foi canalizado de forma bastante construtiva, contribuindo para que alguns jovens pudessem concretizar suas aspirações intelectuais. A origem étnica e social de Theófilo Bicudo remete-nos a importantes aspectos da constituição sociocultural da população brasileira. De acordo com as informações que chegaram a Rosa Lúcia Zingg, por intermédio de sua mãe, Maria de Lourdes Bicudo Zingg (irmã de Virgínia Bicudo), é possível supor que seu avô era filho do Coronel Bento Bicudo com uma escrava de sua fazenda, cujo nome é desconhecido na atualidade.

Da conjugação do panorama social descrito anteriormente e das indicações fornecidas por Virgínia Bicudo, podemos constatar que o tema do preconceito foi bastante recorrente ao longo de sua vida. É possível aferir a magnitude e o impacto que essa questão exerceu sobre a vida de Virgínia Bicudo em uma entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo, publicada em 5 de junho de 1994, quando Virgínia tinha 83 anos; o tema do preconceito ocupava as lembranças dessa psicanalista. Comenta ela a respeito do interesse pela psicanálise:

O que me levou para a psicanálise foi o sofrimento. Eu queria me aliviar de sofrer. Imaginava que a causa do meu sofrimento fossem problemas sociais, culturais. Então me matriculei na Escola de Sociologia e Política. Isso foi em 1935. Eu tinha conflitos muito grandes comigo mesma, mas achava que a causa era social. Desde criança eu sentia preconceito de cor. Queria o curso de sociologia porque, se o problema era esse preconceito, eu deveria estudar sociologia para me proteger do preconceito, que é formado ao nível sociocultural. (1994, p. 6)

O caminho trilhado por Virgínia Bicudo para lidar com o preconceito que a perturbava desde os anos de infância é bastante revelador de sua personalidade, em vez de adotar uma postura conformista ou de revolta frente a essa realidade social, buscou superá-la valendo-se de seus recursos internos, o que significa dizer que buscou compreender as causas e as razões das manifestações do preconceito inicialmente através da sociologia e, mais tarde, por intermédio da psicanálise, expressando um ímpeto de superação das dificuldades que lembra o percurso de seu pai. Além disso, não nos parece errôneo pensar que os trabalhos de abrangência social desenvolvidos por Virgínia Bicudo junto à Clínica de Orientação Infantil da Seção de Higiene Mental Escolar e as iniciativas que empreendeu divulgando o conhecimento psicanalítico em programas de rádio e artigos de jornal, mediante a divulgação de conhecimentos psicanalíticos relativos ao desenvolvimento infantil e à educação de crianças, são tentativas de minorar as desigualdades sociais e contribuir para a edificação de uma sociedade calcada em valores mais igualitários.

A segunda conclusão a que podemos chegar é que a família Bicudo era proveniente de uma origem social humilde e, em contrapartida a essa realidade, buscava guindar-se a uma posição social que conferisse maior status e conforto, essa foi a intenção dos pais de Joana Leone ao saírem da Itália em direção à terra prometida e de Theófilo Julio Bicudo ao deixar o interior buscando melhores oportunidades de estudo na capital, embalado por seu pendor para a atividade intelectual, que ao longo de toda sua vida foi uma importante referência identitária.

Longe de constituir-se em um ideal arrivista, a ânsia pela prosperidade que permeou o imaginário familiar inscreve-se na ordem do trabalho e da justiça, na ideia de que as conquistas sociais e financeiras se fazem a partir do desenvolvimento pessoal e do esforço cotidiano. Em verdade, esta era a crença de um grande contingente populacional que migrava do interior para as grandes cidades como São Paulo: encontrar oportunidades para prosperar.

Com base nessas conclusões, podemos compreender de que forma o mito da Babel invertida, descrito por Nicolau Sevcenko (1992), se sobrepõe à história pessoal de Virgínia Bicudo. A crença em uma cidade embalada pelos ventos da prosperidade que acolhe pessoas das mais diversas origens, que figurou como esperança de muitos que chegavam a São Paulo nas primeiras décadas do século XX, em verdade constituía-se em uma realidade distante e utópica, convertida em sucesso em uma fração ínfima de casos, fruto de idiossincrasias e do talento pessoal de alguns indivíduos capazes de uma percepção mais apurada das demandas e necessidades de seu tempo.

É nesse sentido que a ascensão profissional de Virgínia Bicudo pode ser entendida: ao superar a condição social humilde construindo uma carreira de reconhecimento internacional, Virgínia Bicudo não só realiza o desejo familiar de conquistar reconhecimento social através do pendor intelectual, característica presente em seu pai; como também, do ponto de vista coletivo, concretiza o mito da Babel invertida ao realizar um sonho almejado pela coletividade.

Ao que podemos depreender de depoimentos dados por Virgínia Bicudo no final da sua vida, as aspirações intelectuais constituíam-se em um caminho saudável para a superação de sentimentos de preconceito e exclusão social. Valendo-se de depoimentos de Virgínia Bicudo colhidos na década de 1990, a psicanalista Teresa Rocha Leite Haudenschild escreveu:

Diz que quando foi para essa Escola da praça ficou muito feliz: começou a ter as oportunidades de estudo que as moças de uma classe social mais elevada tinham, com as quais veio a trabalhar depois e se desenvolver. Numa entrevista anterior (Mautner, 2000) ela conta que "para não ser rejeitada tirava nota boa na escola. Desde muito cedo, desenvolvi aptidões para evitar a rejeição. Você precisa tirar nota boa, ter bom comportamento e boa aplicação, para evitar ser prejudicada e dominada pela expectativa da rejeição diziam meus pais. Por que esta expectativa? Por causa da cor da pele. Só pode ter sido por isso. Eu não tive na minha experiência outro motivo. Meu pai era preto, minha mãe italiana, branca". (2004, pp. 66-67)

Vencer as adversidades pela via intelectual parece ter sido o grande aprendizado e o legado que essa fase da vida de Virgínia Bicudo deixou, contribuindo para a formação de uma personalidade resoluta e determinada. Imbuída dessa determinação, Virgínia Bicudo concluiu em 1930 a Escola Normal Caetano de Campos,2 formando-se como normalista, na sequência concluiu o curso de Educadora Sanitária em 1932 no Instituto de Higiene3 e em 1938 formou-se no curso de Ciências Sociais na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo.4

Foi nos contextos das atividades desenvolvidas na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo que duas questões capitais para a vida pessoal e profissional de Virgínia Bicudo emergem com maior contundência, a saber: a aproximação com o preconceito, as questões concernentes à identidade racial e à descoberta da psicanálise como projeto profissional e instrumento de amadurecimento pessoal.

A sagacidade de Virgínia Bicudo não lhe permitia sustentar por muito tempo explicações simplistas ou fragmentarias, de tal forma que, além de aprofundar seus estudos sobre o preconceito racial no campo da sociologia e psicologia social, defrontou-se com a psicanálise, enquanto instrumento capaz de aplacar suas angústias pessoais.

No segundo ano do curso, com a professora Noemy Silveira, tive contato com a psicologia social. Comecei a ler e ali encontrei a psicologia do inconsciente de Sigmund Freud. Aí disse: "É isso que estou procurando" ... Saí por São Paulo correndo, perguntando sobre onde poderia encontrar curso de psicanálise. Aí me disseram que a resposta estava em Durval Marcondes, psiquiatra. Eu o procurei e perguntei sobre o curso. Aí ele falou: "A senhora já pediu permissão a seu pai, para ver se ele deixa a senhora fazer esse curso?" ... Precisava de permissão, e o Durval falava que precisava disso porque era um curso que iria lidar com sexualidade, e havia muito preconceito. Quando ele pediu essa permissão eu não falei nada para ele, e disse: "Está bem, na próxima sessão eu trago a permissão de meu pai". Mas meu pai já tinha morrido. Voltei e na outra sessão afirmei: "Meu pai disse que posso fazer o curso, me deu permissão". Foi assim que comecei a entrar na linha de Durval Marcondes. (Bicudo, 1994, p. 6)

Duas frentes de estudo e amadurecimento pessoal tomam forma para Virgínia Bicudo nesse momento: as pesquisas sobre questões raciais, que a acompanharam por toda a década de 1940, e a formação psicanalítica, que foi gradualmente ganhando maior importância até se tornar o cerne de sua vida pessoal e profissional.

No tocante ao estudo das questões raciais merece destaque a dissertação de mestrado defendida por Virgínia Bicudo em 1945 na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo - onde atuava como professora assistente desde 1939 - intitulada Estudo deatitudes raciais de pretos e mulatos em São Paulo (Bicudo, 1945). Após entrevistar 30 pessoas, Virgínia Bicudo conclui que prevalece entre os pretos e mulatos de São Paulo uma visão desfavorável sobre si mesmos, na qual predomina o sentimento de inferioridade. Quanto mais elevada for a classe social a que pertence o preto ou mulato, maior a consciência da inferioridade relacionada à cor negra e mais intensos são os esforços para minimizar os sentimentos de inferioridade, desenvolvendo valores pessoais que favoreçam sua aceitação pelos brancos. A constatação que chegou pela via acadêmica por certo não diferiu da experiência pessoal de Virginia Bicudo com o tema.

Na realização desse trabalho, Virgínia foi influenciada não só por suas demandas pessoais concernentes ao preconceito racial, mas também pela presença de Donald Pierson5 no corpo docente da Escola Livre de Sociologia e Política. Esse autor introduziu no Brasil na década de 1940 um novo modelo metodológico de investigação na antropologia cultural praticada no país. Dessa forma, Pierson, seguindo a influência americana, promoveu um recentramento dos estudos raciais, deslocando-o das discussões biológicas de raça, que justificavam as condições sociais dos negros em função de características inatas, em favor de uma visão que levava em consideração as condições sociais em que viviam os afrodescendentes, de tal forma que a discriminação e o preconceito racial eram entendidos como as principais causas que impediam o progresso social dessa população.

Como destacamos, no âmbito das atividades realizadas na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, Virgínia Bicudo foi mobilizada pela teoria psicanalítica. Quando procurou Durval Marcondes, Virgínia Bicudo contava com aproximadamente 25 anos, apesar de bastante jovem, já possuía independência financeira e plena autonomia sobre sua vida, além de uma personalidade inquieta e determinada, condições que a capacitavam a tomar iniciativas, ousadas para a época, e correr os riscos delas decorrentes.

Partindo dessas iniciativas, Virgínia Bicudo passa a compor um pequeno grupo de profissionais capitaneados por Adelheid Koch, que buscavam realizar a formação analítica dentro dos moldes preconizados pela Associação Psicanalítica Internacional (ipa), à semelhança do que ocorria nos na Europa. Assim Durval Marcondes, Flávio Dias,6 Darcy de Mendonça Uchoa7 e Virgínia Bicudo iniciam análise com a Dra. Koch em novembro de 1937, com a peculiaridade de serem atendidos no consultório de Durval Marcondes, que havia cedido o espaço para sua futura analista (Sagawa, 2002).

Três elementos distinguem Virgínia Bicudo de seus colegas de divã, se assim podemos chamar: uma condição econômica menos abastada, o fato de não possuir formação médica e a sua condição de mulher em um grupo predominantemente masculino. Tanto Durval Marcondes quanto Flávio Dias e Darcy de Mendonça Uchoa ocupavam uma condição social e econômica bastante satisfatória, o fato de serem médicos lhes conferia não só status, em uma sociedade que valorizava e atribuía a essa profissão uma conotação quase sacerdotal, como também lhes garantia uma posição econômica privilegiada. Por outro lado, Virgínia Bicudo dispunha unicamente de seu salário como professora para custear as despesas pessoais e auxiliar sua família, tarefa que abraçara desde a morte de seu pai.

No artigo intitulado "Memória e fatos", datado de 1989, Virgínia Bicudo relata as dificuldades enfrentadas para custear os primeiros anos de sua análise didática com Adelheid Koch.

Na entrevista com a Dra. Koch para o contrato analítico, preocupou-me o quanto eu deveria despender para o pagamento dos honorários, os quais correspondiam a tudo o quanto eu mensalmente ganhava, na função de educadora sanitária. Assumi o compromisso imaginando: "Quando a Dra. Koch souber que pede todo meu ordenado, ela reduzirá seus honorários". Enquanto isso não acontecia, consegui do governo um empréstimo, para o pagamento mensal da análise, durante um ano. Após um ano, recebi dois pacientes, um pobre e outro rico, o que me possibilitou continuar minha análise. (1989, p. 95)

Mesmo as adversidades não foram capazes de demover Virgínia Bicudo de sua determinação para realizar a formação psicanalítica, de tal feita que concluiu seu ciclo propedêutico com Adelheid Koch a tempo de integrar o grupo fundador que deu origem à Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Dessa forma, o Grupo Psicanalítico de São Paulo foi oficialmente "constituído no dia 5 de junho de 1944, pelas seguintes pessoas: Sra. Dra. Virgínia Leone Bicudo, Dr. Flávio R. Dias, Sra. Dra. Adelheid Koch, Dr. Durval Marcondes, Sr. Frank Philips e Dr. Darcy Mendonça Uchoa" (Barcelos, 1976, p. 1). Desse momento em diante, Virgínia Bicudo terá uma atuação tenaz e ininterrupta na psicanálise, com diversas ações que se espraiaram desde a prática clínica, passando pelo ensino da psicanálise até a divulgação da psicanálise em diferentes contextos culturais e científicos.

 

A difusão da psicanálise como missão

Embora Virgínia Bicudo tenha tido uma atuação clínica intensa, regular e consistente até o final de sua vida, sua matriz intelectual na sociologia e sua experiência de vida não lhe permitiram ficar restrita unicamente a essa esfera profissional, ao contrário ela parecia ser impulsionada por uma demanda pessoal, a tornar os benefícios da psicanálise acessíveis a um maior número de pessoas. Nesse sentido, suas ações voltadas à difusão da psicanálise podem ser divididas em duas frentes principais: a dimensão social da psicanálise e a formação de psicanalista.

A primeira dessas iniciativas foi desenvolvida no contexto da Clínica de Orientação Infantil do Departamento de Educação do Estado de São Paulo, capitaneada por Durval Marcondes. No âmbito das ações, essa instituição tinha por finalidade realizar atendimentos com escolares deficitários por intermédio de avaliações médico-psicológicas e orientação de pais.

A partir de sua formação como educadora sanitária e do trabalho que desenvolveu na Clínica de Orientação Infantil da Seção de Higiene Mental Escolar, Virgínia Bicudo direciona o foco de sua atuação para o campo da prevenção em saúde mental, mediante a divulgação de princípios relativos à educação infantil formulados na teoria psicanalítica. Nesse sentido, sua prática inicialmente focada no diagnóstico, orientação de pais e tratamento de crianças com problemas escolares ganha contornos mais abrangentes, uma vez que a orientação sobre temas relacionados à educação infantil passa a ser enfatizada e valorizada como meio para atingir um número mais expressivo de pessoas, valendo-se para tal dos meios de comunicação de massa, como rádio e jornais.

À medida que ganhávamos experiência no tratamento da criança-problema através da orientação aos pais, publicávamos nossa experiência em revistas, livros, em programas radiofônicos e em jornais princípios de higiene mental, segundo as teorias de Freud. Tínhamos à nossa disposição um jornal e uma emissora radiofônica por intermédio do Dr. José Nabantino Ramos, um entusiasta da psicanálise que reconhecidamente contribuiu para o desenvolvimento de espaço cultural para a psicanálise. Em 1954, desenvolvi um programa de divulgação de princípios de higiene mental segundo a psicanálise, através da dramatização de textos que eu compunha, e eram levados ao ar semanalmente. Esses textos foram publicados no livro Nosso mundo mental em 1955, quando eu já me encontrava em Londres, regressando em dezembro de 1959. (Bicudo, 1988, pp. 664-665)

Entre as várias iniciativas que ganharam ampla repercussão na década de 1950 cabe destacar três: o programa veiculado na Rádio Excelsior em 1950, a série de artigos publicados no jornal Folha da Manhã em 1954 e o livro Nosso mundo mental, editado em 1956. O conjunto desses trabalhos, bastante interligados entre si, uma vez que o conteúdo do programa radiofônico dos artigos jornalísticos e do livro são bastante semelhantes, são decorrentes da interação de uma série de experiências profissionais vividas por Virgínia Bicudo. Essas iniciativas ganharam ampla repercussão, conferindo grande impacto ao trabalho de Virgínia Bicudo, segundo relatou a Roberto Sagawa: "Foi um sucesso tão grande que, na Câmara de Vereadores, um deles tomou a palavra e mandou colocar na minha ficha um elogio. Eu estava justamente aplicando a psicanálise aos problemas da criança" (1994, p. 21).

A notoriedade desse trabalho fez com que Virgínia Bicudo se tornasse alvo, simultaneamente de elogios e de críticas. Dessa forma, durante o i Congresso Latino-Americano de Saúde Mental, ocorrido em 1954 em São Paulo, uma das mesas redondas integrantes das atividades destinava-se à apresentação dos trabalhos realizados pela Seção de Higiene Mental Escolar, sendo composta por Lygia Amaral, Judith Andreucci e Virgínia Bicudo, todas analistas não médicas, que, além de atuarem como psicologistas8 da Clínica de Orientação Infantil, exerciam atividades clínicas em consultório particular. Por ocasião dessa apresentação, parte da plateia insurgiu-se e passou a questionar o exercício da psicanálise por profissionais não médicos sob a acusação de charlatanismo.

Embora as críticas tivessem como alvo explícito os analistas não médicos designados sob a alcunha de charlatões, o objetivo, nesse momento, era o de abalar a credibilidade da psicanálise, que havia assumido grande proeminência durante o congresso. Em depoimento concedido em 1997, Lygia Alcântara do Amaral nos traz uma lúcida análise sobre as razões que motivaram o ataque.

Foi um período que nós sofremos um ataque dos médicos, que achavam que dar possibilidades às pessoas de entrarem para o trabalho analítico sem formação médica seria então o que eles chamavam de charlatanismo. E naquela época as charlatãs eram a Dra. Koch, que não havia revalidado o diploma, Virgínia Bicudo e eu, nós éramos as três. ... A presença dos argentinos aqui foi muito boa, porque eles perceberam logo que não eram as charlatãs que estavam sendo atacadas, era a psicanálise.

Ao ser acusada de charlatanismo, Virgínia Bicudo foi novamente defrontada com sentimentos de rechaço, justamente na esfera profissional, área que havia cuidadosamente desenvolvido como forma de superação de suas vivências infantis de exclusão social. Nesse sentido, as críticas recebidas em decorrência de sua atuação profissional como analista não médica causaram forte impacto sobre a vida pessoal de Virgínia Bicudo. Não por acaso, após esse episódio, iniciou tratativas para um período propedêutico na Sociedade Britânica de Psicanálise, que se estendeu de 1955 a 1959.

De regresso ao Brasil no início de 1960, assume posição de liderança na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e passa a canalizar suas ações voltadas à difusão da psicanálise no âmbito dessa instituição, de forma a promover a transmissão do conhecimento que havia acumulado na Inglaterra. Nesse contexto duas iniciativas são emblemáticas: a assunção ao cargo de diretora do Instituto de Psicanálise e as iniciativas editoriais que capitaneou.

Entre os cargos que Virgínia Bicudo exerceu enquanto membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, a diretoria do Instituto de Psicanálise seguramente foi o mais duradouro, sendo exercido cinco biênios consecutivos, entre os anos de 1963 e 1973. Além de ter influenciado diretamente na organização pedagógica do currículo adotado no Instituto de Psicanálise, o elemento mais inovador que introduziu foi a criação do Serviço Clínico do Instituto. De acordo com a proposta idealizada por Virgínia Bicudo, o Serviço Clínico do Instituto deveria selecionar pacientes de menor poder aquisitivo, que poderiam se beneficiar com uma análise pessoal e, indiretamente, estender esses benefícios a uma parcela maior da população, dessa forma, profissionais que atuavam diretamente com o público tinham preferência. Uma vez selecionados, os pacientes eram encaminhados para análise com os candidatos que estavam iniciando a formação no Instituto de Psicanálise.

Ao refletirmos sobre o conjunto das ações de Virgínia Bicudo para estruturar o Instituto de Psicanálise, constatamos que, ao mesmo tempo que essa psicanalista se subordinou ao formalismo que caracteriza a formação psicanalítica, buscando implementar um circuito propedêutico inspirado na Sociedade Britânica de Psicanálise, o que em seu entendimento garantiria profissionais mais qualificados, por outro lado não abandona suas preocupações de cunho social que perpassa sua atuação profissional, buscando tornar os benefícios da psicanálise acessíveis a um maior contingente de pessoas, contribuindo assim para a melhoria das condições sociais e das relações humanas.

Embora Virgínia Bicudo tenha se afastado gradualmente dos trabalhos dedicados à aplicação da psicanálise em práticas voltadas à promoção da saúde e da educação em instituições públicas, como a Clínica de Orientação Infantil da Seção de Higiene Mental Escolar, seu interesse por essa área não se extinguiu. Ao propor a criação do Serviço Clínico no Instituto de Psicanálise, Virgínia Bicudo conciliava duas influências, a experiência acumulada no serviço público e as informações adquiridas junto à Tavistock Clinic, onde estagiou; em comum, essas duas situações proporcionaram uma compreensão da abrangência e do alcance social da psicanálise, que, na medida do possível, foi transposta para a prática na Sociedade de Psicanálise.

No auge de sua atuação como diretora do Instituto de Psicanálise, Virgínia Bicudo, valendo-se do prestígio e influência que esse cargo lhe proporcionava, trouxe à tona um antigo interesse que a acompanhou desde o início de seu trabalho como psicanalista, qual seja: a difusão da psicanálise. A materialização desse interesse concretizou-se por intermédio da criação, em 1966, do Jornal de Psicanálise e, em 1967, da Revista Brasileira de Psicanálise.

O primeiro periódico a ser editado foi o Jornal de Psicanálise, que foi idealizado por Virgínia Bicudo com a finalidade de divulgar os trabalhos produzidos pelos candidatos do Instituto de Psicanálise, sendo que seu primeiro número, publicado em 1966, guardava um formato bastante artesanal, tendo sido datilografado e mimeografado pelos próprios alunos do Instituto.

Em 1967, uma iniciativa mais ousada começa a tomar forma com a publicação do primeiro número da Revista Brasileira de Psicanálise,9 destinada a tornar-se um veículo de comunicação oficial da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Ao que parece, a ampla aceitação e boa receptividade do Jornal de Psicanálise estimulou um grupo de psicanalistas a dar forma às aspirações editoriais que começavam a vicejar na Sociedade.

Assim, um grupo de analistas constituído por Durval Marcondes, Virgínia Bicudo, Luiz Almeida Prado Galvão, Laertes Ferrão e Armando Ferrari buscou reunir as condições necessárias, tanto técnicas quanto financeiras, para editarem a revista. Para tanto, contaram com o apoio do empresário José Nabantino Ramos,10 que, reunindo larga experiência no ramo editorial, sugeriu que se criasse uma sociedade anônima com venda de ações para financiar a revista. Superadas as dificuldades iniciais, a revista foi lançada em 1967 por ocasião da realização da I Jornada Brasileira de Psicanálise, sendo que seu primeiro número trazia na capa a reprodução de uma carta de Freud enviada a Durval Marcondes em 1928, na qual o criador da psicanálise acusava o recebimento da recém-lançada Revista Brasileira de Psychanalyse.

Devemos considerar que o momento histórico no qual as revistas foram lançadas era amplamente favorável para propostas dessa natureza, uma vez que em meados da década de 1960 a psicanálise já estava consolidada no país como disciplina científica e as instituições psicanalíticas já contavam com estabilidade administrativa e uma razoável experiência clínica acumulada, de tal modo que a necessidade de divulgar de forma mais efetiva e com maior autonomia o pensamento psicanalítico nacional tornava-se cada vez mais premente.

Nesse sentido, o mérito de Virgínia Bicudo reside em ter uma capacidade aguçada de identificar as tendências presentes em seu tempo e oferecer as respostas necessárias às inquietudes que começavam a vicejar. Essa capacidade perceptiva, aliada ao espírito de liderança e vitalidade que lhe eram inerentes, contribuiu para que a ideia de um periódico dedicado a divulgar o pensamento psicanalítico produzido pelos autores nacionais tomasse forma através do Jornal de Psicanálise e da Revista Brasileira de Psicanálise, publicações essas que, com o passar dos anos, assumem existência própria.

A última iniciativa de vulto capitaneada por Virgínia Bicudo com vistas à difusão da psicanálise no Brasil surge no início da década de 1970, com ações que resultaram no reconhecimento pela IPA do Grupo de Estudos de Psicanálise de Brasília em 1994, que foi elevado à condição de Sociedade de Psicanálise de Brasília em 1999. Uma confluência de fatores concorreu para a concretização dessa expansão das fronteiras psicanalíticas.

Por um lado, havia no país, durante a década de 1970, um franco processo de reconhecimento social da psicanálise, fazendo crescer de forma expressiva o interesse da população por psicoterapia, ou mais especificamente pela psicanálise, decorrente da tentativa de encontrar respostas e significados para o rápido processo de modernização que ocorria no país, justificando assim a ampliação da demanda por formação psicanalítica. Foi assim que a "cultura psicanalítica brasileira" foi se organizando em torno do alto consumo de psicoterapia apoiada numa psicanálise difundida que opera de modo múltiplo, flexível e sutil como "mapa" para a orientação neste mar de incertezas (Figueira, 1991, p. 225).

Por outro lado, havia demandas pessoais de Virgínia Bicudo. O início da década de 1970 marca a relativização de sua influência exercida sobre a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e, em uma escala mais ampla, sobre o Instituto de Psicanálise, do qual fora a primeira e única diretora por aproximadamente 14 anos. Evidentemente esse processo não significava uma redução do prestígio de Virgínia Bicudo entre seus pares, mas indicava um movimento de expansão da Sociedade, que caminhava em direção a novas experiências. A escolha da cidade de Brasília para sediar um novo processo de expansão do movimento psicanalítico brasileiro não foi uma escolha aleatória, haja vista que, ao tomar conhecimento da construção de uma capital no planalto goiano, no período em que residiu em Londres, Virgínia Bicudo vislumbrou a possibilidade de levar a psicanálise para a nova capital.

Para viabilizar a iniciativa, Virgínia Bicudo estruturou sua vida de forma a se revezar entre as atividades que exercia em São Paulo e as novas responsabilidades que começava a assumir na capital federal. Assim, nos primeiros anos, dividia-se entre São Paulo, onde ficava de segunda a quinta, e Brasília - chegava quinta à tarde e regressava domingo à noite. Esse esquema garantia que seus analisandos11 tivessem um mínimo de quatro sessões semanais, ainda que concentradas em dois ou três dias. Posteriormente, quando as atividades de Brasília passaram ao primeiro plano e Virgínia Bicudo não mais exercia a função de diretora do Instituto de Psicanálise em São Paulo, o esquema sofreu uma alteração: ela permanecia três semanas em Brasília e uma em São Paulo.

Virgínia Bicudo residiu em Brasília até o início da década de 1980, quando voltou a morar em São Paulo, sem no entanto abdicar das atividades que exercia na Sede Brasília que fundara, de tal forma que permaneceu viajando regularmente entre Brasília e São Paulo até 1994 (Castro, 2004), quando encerrou definitivamente suas atividades na capital federal.

Tanto o regresso para São Paulo quanto o encerramento das atividades em Brasília demarcam acontecimentos significativos na vida de Virgínia Bicudo. Segundo Rosa Lúcia Zingg, um dos fatores que levou Virgínia Bicudo a retornar a São Paulo no início da década de 1980 foi a morte de sua mãe ocorrida em Brasília em 1982. A decisão de afastar-se de Brasília ocorreu em um momento em que o Instituto já estava consolidado e, portanto, menos dependente de sua criadora, além disso, nesse momento, a saúde de Virgínia Bicudo começava a dar sinais de maior fragilidade, tornando as viagens semanais muito mais custosas.

 

Considerações finais

A partir dos elementos coligidos anteriormente, é possível afirmar que a relação entre a psicanálise e a vida de Virgínia Bicudo comporta diferentes dimensões, de tal forma que uma é constitutiva da outra: enquanto representante da atmosfera de modernização da sociedade brasileira, a psicanálise influenciou a formação da mulher Virgínia Bicudo em um momento histórico marcado pela emancipação feminina; como processo terapêutico a psicanálise proporcionou a Virgínia Bicudo a elaboração de angústias que contribuíram para lapidar uma personalidade afeita ao desafio e à busca da verdade e, por fim, na condição de disciplina científica a psicanálise foi fortemente influenciada, em seu processo de implantação e desenvolvimento no país, pelas ações políticas, didáticas e administrativas de Virgínia Bicudo.

A forma como a psicanálise foi introduzida no Brasil no início do século XX, entendida como um sistema teórico capaz de subsidiar diferentes áreas do conhecimento como a educação, o direito, a medicina, a arte, entre outras, possibilitou diferentes leituras e interpretações da teoria psicanalítica. Se por um lado a psiquiatria da década de 1920 apropriou-se da psicanálise como um instrumental capaz de evitar o surgimento de transtornos mentais, subsidiando uma prática que muito se aproximava da eugenia (Costa, 1976); por outro lado, a aproximação entre a psicanálise e a arte, particularmente o movimento modernista, cujo ícone mais notório foi a Semana de Arte Moderna de 1922, criavam o substrato para expressões de vanguarda de uma sociedade em ebulição (Lobo, 1994).

Ao aproximar-se da psicanálise, Virgínia Bicudo inaugurou uma nova fase em sua vida profissional, passando a dedicar-se de forma integral ao exercício dessa disciplina científica em suas diferentes dimensões: seja na prática clínica, seja na formação de novos analistas, seja na divulgação da psicanálise em diferentes contextos sociais, seu envolvimento foi igualmente apaixonado e intenso.

Entre todas as atividades que exerceu e as responsabilidades que assumiu ao longo de aproximadamente 50 anos, um aspecto do trabalho de Virgínia Bicudo ganha particular destaque, sua constante preocupação em promover a expansão das fronteiras psicanalíticas, tornando as informações relativas à psicanálise e seus benefícios acessíveis a um maior número de pessoas. Suas ações nesse sentido tomaram duas direções ao longo dos anos: inicialmente seu trabalho assumiu uma forte conotação social, procurando aproximar a psicanálise da educação de forma a beneficiar a educação infantil e compreender as dificuldades manifestadas pela criança; em um segundo momento as ações de Virgínia Bicudo foram direcionadas para a difusão das instituições psicanalíticas em diferentes regiões do país, contribuindo para a formação de um maior número de psicanalistas.

Em síntese, Virgínia Bicudo manteve-se ao longo de toda a sua vida em constante sintonia com as demandas de seu tempo, nesse sentido essa psicanalista foi dotada de uma capacidade perceptiva, e mesmo intuitiva, altamente aguçada, que lhe possibilitou identificar as aspirações, as inquietudes e os focos de conflitos presentes nas relações sociais dos grupos com os quais conviveu. Coadunada a essa capacidade perceptiva, está a personalidade resoluta e determinada de Virgínia Bicudo, que a impulsionava à ação e à resolução de conflitos, dessa forma essa psicanalista atuou como agente catalisador de diversas demandas sociais, tomando para si a responsabilidade de praticar determinadas ações e de expor certas ideias que representavam o pensamento de uma coletividade.

Temos em Virgínia Bicudo uma mulher pioneira, que deu expressão a uma psicanalista igualmente pioneira, cujas realizações ultrapassaram os limites das conquistas pessoais, na medida em que suas ações representaram anseios coletivos e promoveram transformações em diferentes segmentos sociais.

 

Referências

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Correspondência:
Jorge Luís Ferreira Abrão
Avenida Rui Barbosa, 1262/91
19814-000 Assis, SP
jlfabrao@gmail.com

Recebido em 18/12/2020
Aceito em 23/12/2020

 

 

1 Pesquisa realizada com auxílio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo n.º 2005/00952-5.
2 A Escola Normal de São Paulo, fundada em 1894, representou um marco para a educação paulistana, na medida em que se constitui em uma das primeiras iniciativas da então Província de São Paulo de assumir responsabilidades relativas à instrução pública, o que justificava a necessidade de criação de instituições dedicadas à formação de professores. Ao longo de sua história recebeu várias denominações: Escola Normal da Praça da República, Escola Normal Caetano de Campos, Instituto de Educação Caetano de Campos, Escola Estadual de 1.º e 2.º Graus Caetano de Campos e atualmente Escola Estadual Caetano de Campos.
3 O Instituto de Higiene foi criado em 1930 a partir do Laboratório de Higiene e Saúde Preventiva da Faculdade de Medicina de São Paulo, cuja origem data de 1918. Em 1934 o Instituto de Higiene foi encampado pela recém-criada Universidade de São Paulo e transformado na Escola de Higiene e Saúde Pública, posteriormente, essa instituição recebeu a denominação de Faculdade de Saúde Pública.
4 A Escola Livre de Sociologia e Política, fundada em 1933, surgiu em um contexto histórico no qual São Paulo busca retomar o espaço perdido no cenário político nacional após a derrota na Revolução Constitucionalista de 1932, mediante a implementação de projetos iluminista que viam no fortalecimento das instituições científicas e educacionais a possibilidade de maior projeção no cenário nacional. É nesse contexto que se localiza a criação de Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo e da Universidade de São Paulo, em 1934.
5 De origem norte-americana, o sociólogo Donald Pierson (1900-1995) realizou pesquisas sobre relação racial na Bahia entre os anos de 1935 a 1937. Com base nesse material defendeu em 1939 sua tese de doutorado na Universidade de Chicago, trabalho que veio a ser publicado no Brasil em 1942 sob o título Pretos e brancos na Bahia. Atuou como professor da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo entre os anos de 1939 e 1959, ocasião em que regressou aos Estados Unidos.
6 Flávio Rodrigues Dias (1899-1994), paulistano, formou-se em medicina pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro. Em 1929 foi convidado para Conselho Federal de Ensino para uma temporada de estudos, visitando centros de psicologia experimental na Europa, onde entrou em contato com a psicanálise. De regresso ao Brasil, já especializado em pediatria, foi diretor clínico da Santa Casa de Santo Amaro. Conheceu Durval Marcondes ocasionalmente em um bonde e entrou em contato com seu interesse pela psicanálise. Participou ativamente da criação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, sendo um de seus pioneiros (Campos, 2001).
7 Darcy de Mendonça Uchoa (1907-2003), formado em medicina pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro em 1927, atuou como psiquiatra do Hospital do Juquery durante 30 anos, onde despertou seu interesse pela psicanálise. Após conhecer Durval Marcondes e Flávio Dias, iniciou sua análise com a Dra. Koch e participou da fundação da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Em 1964, tornou-se professor titular do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina, organizando a primeira residência em psiquiatria dessa instituição, conferindo-lhe forte enfoque psicanalítico (Campos, 2001).
8 Na inexistência da profissão de psicólogo, que nessa ocasião ainda não havia sido reconhecida no país, o que só veio a ocorrer em 1962, as atividades originalmente atribuídas a esses profissionais, como a aplicação de testes psicológicos, eram desempenhadas por professores que em São Paulo foram denominados de psicologistas.
9 A Revista Brasileira de Psychanalyse teve seu primeiro número lançado originalmente em 1928 por iniciativa de Durval Marcondes e Franco da Rocha, com a finalidade de divulgar os textos psicanalíticos que começavam a ser escritos pelos autores nacionais. Esse periódico teve uma existência efêmera, extinguindo-se após a publicação de seu primeiro número.
10 José Nabantino Ramos foi professor de direito financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e da Universidade Mackenzie. Em 10 de março de 1945 assumiu o controle acionário da Empresa Folha da Manhã. Em uma iniciativa editorial inédita reuniu em 1º de janeiro de 1960 os jornais Folha da Manhã, Folha da Tarde e Folha da Noite em uma única publicação denominada Folha de S. Paulo. Ao longo da década de 1950, ampliou sua participação no mercado editorial brasileiro. Após enfrentar dificuldades financeiras, a Empresa Folha da Manhã foi vendida para Otávio Frias em 1962.
11 O primeiro grupo de analisandos que deu origem à Sociedade de Psicanálise de Brasília foi constituído pelos seguintes membros: Caiuby de Azevedo Marques Trench, Humberto Haydt de Souza Mello, Luiz Meyer, Ronaldo Mendes de Oliveira Castro, Stela Maris Garcia Loureiro e Tito Nicias Rodrigues Teixeira da Silva.

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