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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.4 São Paulo out./dez. 2020

 

RESENHAS

 

Psychoanalyse in Brasilien: historische und aktuelle Erkundungen1

 

 

Lucas Hangai Signorini

Psicanalista. Mestre em psicologia escolar e do desenvolvimento humano pela Universidade de São Paulo (USP). Membro filiado do Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

Correspondência

 

 

 

Organizadores: Chirly dos Santos-Stubbe, Peter Theiss-Abendroth e Hannes Stubbe
Editora: Psychosozial-Verlag, 2015, 193 p.
Resenhado por: Lucas Hangai Signorini

Como se deve escrever a história do Brasil? Tal pergunta, informa-nos Lilia Schwarcz (2019), pautou o primeiro concurso público do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (ihgb), inaugurado em 1838. Essa tarefa acompanhava o objetivo consolidado na independência política, em 1822, de estruturar e justificar uma nova nação, sem entretanto realizar profundas mudanças institucionais. A partir desse concurso, segundo a autora,

foi dado, então, um pontapé inicial, e fundamental, para a disciplina que chamaríamos, anos mais tarde, e com grande naturalidade, de história do Brasil, como se as narrativas nela contidas houvessem nascido prontas ou sido resultado de um ato exclusivo de vontade ou do assim chamado destino. Sabemos, porém, que na imensa maioria das vezes ocorre justamente o oposto: momentos inaugurais procuram destacar uma dada narrativa temporal em detrimento de outras, criar uma verdadeira batalha retórica - inventando rituais de memória e qualificando seus próprios modelos de autênticos (e os demais de falsos) -, elevar alguns eventos e obliterar outros, endossar certas interpretações e desautorizar o resto. ... No caso, a intenção do concurso era criar apenas uma história, e que fosse (por suposto) europeia em seu argumento, imperial na justificativa e centralizada em torno dos eventos que ocorreram no Rio de Janeiro. (p. 14)

O primeiro lugar, desse modo, foi dado a um estrangeiro, o naturalista Karl von Martius, que advogava a tese de que o país se definia por uma mistura de gentes e povos. Não nos cabe aqui trazer a profunda discussão feita pela historiadora, exceto por um ponto, que nos remete a essa introdução sobre a escrita de umadeterminada história, como podemos concluir a partir da ocasião do concurso de 1838. Construir uma história oficial não é um recurso inofensivo ou sem importância,

tem papel estratégico nas políticas de Estado. ... o objetivo, como bem mostrou o exemplo de Von Martius, ... é criar um passado mítico, perdido no tempo, repleto de harmonia, mas também construído na base da naturalização de estrutura de mando e de obediência. (pp. 21-22)

Sugere-se que o leitor tenha isso em mente ao se debruçar sobre o conjunto de textos organizados por Chirly dos Santos-Stubbe, Peter Theiss- -Abendroth e Hannes Stubbe em Psychoanalyse in Brasilien: historische und aktuelle Erkundungen (2015). Essa mesma sugestão é dada pelos autores dos sete artigos que compõem o livro, e também pelos organizadores2 na introdução. O alerta é prudente, considerando que uma tradução possível para o título seria Psicanálise no Brasil: explorações históricas e atuais. Isto é, uma obra que contém o significante explorações logo de início, e se apresenta em uma língua estrangeira à do país cuja história da psicanálise pretende tratar, necessita mesmo desse cuidado, ainda que cinco dos oito autores dos artigos sejam brasileiros.

Essa postura ética é fruto de um trabalho conjunto dos organizadores, o projeto de pesquisa "Sigmund Freud in den Tropen" [Sigmund Freud nos Trópicos], que trata do desenvolvimento da psicanálise no mundo lusófono. Este é, provavelmente, o primeiro livro do assunto em língua alemã.

Talvez por isso, logo na introdução, "Die brasilianische Psychoanalyse im historischen, kulturellen und sozialen Kontext" [A psicanálise brasileira em um contexto histórico, cultural e social], os organizadores fazem um panorama do contexto social, econômico e cultural do Brasil, levando em consideração a enorme desigualdade social presente em nosso país. A psicanálise brasileira, por sua vez, não está isenta dessa desigualdade, e muitas vezes é permeada por certa contradição: se por um lado há muitos analistas cuja remuneração por hora equivale ao salário mínimo legal, recebido por cerca de 70% dos trabalhadores no Brasil, por outro a psicanálise parece estar amplamente difundida na cultura popular brasileira; se por um lado é de amplo conhecimento que psicanalistas trabalharam como assistentes médicos de torturadores durante a ditadura militar, por outro houve a presença de uma psicanalista, Maria Rita Kehl, na Comissão Nacional da Verdade. Essas e outras contradições estão presentes na história da psicanálise brasileira apresentada nesta obra.

No primeiro capítulo, "Sigmund Freud in den Tropen", de mesmo nome que o projeto de pesquisa dos organizadores do livro, Hannes Stubbe, após uma breve introdução sobre seu interesse pelo Brasil, apresenta os primórdios de alguma circulação do pensamento freudiano em nosso país. O autor crê haver diferentes fases nessa circulação, como o momento dos precursores e propagandistas da psiquiatria psicodinâmica no final do século xix, o movimento modernista brasileiro e o início da institucionalização da psicanálise em 1937. Nesse capítulo, Stubbe pretende se aventurar sobre os primórdios da psicanálise, em especial sobre o autor da primeira tese de doutorado psicanalítica - e também a primeira publicação acerca da psicanálise no mundo lusófono -, Genserico Aragão de Souza Pinto.

Intitulada Da psicoanálise: a sexualidade das nevroses, a tese foi defendida em 1914, e o autor pretendia usá-la para facilitar o acesso às teorias de Freud no país. No primeiro capítulo, apresenta o desenvolvimento e a síntese das ideias freudianas; a seguir, examina os estudos da sexualidade e a psicogênese da histeria, com ênfase no mecanismo de deslocamento afetivo.

Stubbe cita uma contradição na obra de Pinto: embora tivesse acesso à mais moderna psicopatologia dinâmica da época, seu interesse repousava sobre "normalizar" os comportamentos, ou seja, trazer ordem ao caos dos transtornos mentais. Ainda assim, é notável a habilidade e a coerência de Pinto, já que o conhecimento científico vinha importado da Europa para um país onde 64% da população, na década de 1910, era analfabeta, principalmente a população feminina. Segundo Stubbe, esse é um dos motivos pelos quais as mulheres não parecem ter desempenhado nenhum papel no início do movimento psicanalítico no Brasil.

O acesso a Freud por meio da língua alemã é tratado no segundo capítulo de Psychoanalyse. O autor, Hanns Füchtner, lembra-nos que dois contemporâneos de Genserico Pinto, Júlio Pires Porto-Carrero e Juliano Moreira, eram mestres da língua alemã. Consta, aliás, que foi esse último quem pela primeira vez mencionou Freud numa palestra na Bahia, em 1899. O destaque a Juliano Moreira aparece nesse capítulo e no seguinte, como veremos. De todo modo, diferentemente de Moreira, que já era conhecedor do alemão, Porto-Carrero aprendeu o idioma com o objetivo de ler Freud no original, e correspondeu-se com o pai da psicanálise, tendo lhe enviado um livro de sua autoria.

Novamente, há no texto certo destaque para a contradição presente nos primórdios da psicanálise, isto é, o fato de ela ter sido utilizada pelos cientistas da época para promover o saneamento social. Füchtner ressalta que esse era o interesse da medicina de então, que temia as multidões urbanas, palco da temida "mistura racial". Nesse contexto, a psicanálise é acoplada à teoria vigente no país, a teoria da degenerescência, e os autores, embora conhecedores do alemão, não viam quaisquer contradições entre a psicanálise e seu uso para tais fins.

O capítulo segue com a apresentação de outros importantes autores, como Arthur Ramos, Francisco Franco da Rocha, Gastão Pereira da Silva e Durval Marcondes. De cada um deles são apresentados os maiores feitos e contribuições para que a psicanálise se tornasse uma disciplina forte no Brasil. Essa força é explicitada pela existência na época de múltiplas traduções da obra de Freud feitas diretamente do alemão para o português. Füchtner conclui o capítulo com uma interessante tese sobre esse tema: de acordo com ele, a dificuldade em aprender o alemão para ler Freud no original tem um efeito positivo, porque leva a debates úteis sobre o que Freud pode ter significado e como pode ser mais bem traduzido.

O terceiro capítulo, de Cristiana Facchinetti e Rafael Dias de Castro, tem Juliano Moreira como protagonista. Homem negro, psiquiatra e diretor de um dos manicômios mais importantes da história brasileira, o Hospício Nacional de Alienados, teve contato com as ideias de Emil Kraepelin e Sigmund Freud, e contribuiu para a difusão da psiquiatria de língua alemã em solo brasileiro, onde o discurso sobre a profilaxia ganhava cada vez mais importância na psiquiatria. Juliano Moreira teve participação importante na institucionalização da Liga Brasileira de Higiene Mental (1923-1947), cuja função era alinhar o papel do psiquiatra ao do Estado intervencionista, isto é, a psicanálise poderia ser usada para ajudar os psiquiatras em seu projeto profilático de evitar o surgimento de infratores e desviantes.

Os autores enfatizam o papel pioneiro de Juliano Moreira para a criação da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro e para o fim da carreira do psiquiatra. Com o início da Era Vargas, Moreira perdeu todos os cargos e foi forçado a se aposentar.

Se nos três capítulos anteriores destaca-se o papel fundamental de determinados autores na edificação da psicanálise no Brasil, no quarto capítulo, de Marina Massimi, encontramos certos substratos que nos ajudam a compreender como ocorreu tão fortemente a apropriação desse campo do saber em nosso território. Segundo a autora, isso só pôde acontecer porque se deu a partir de um saber já existente, isto é, um saber terapêutico centrado no uso da palavra, presente na cultura dos povos originários e nos sermões missionários dos padres jesuítas. No primeiro caso é atribuído à palavra um poder terapêutico que permite ao falante governar os elementos da natureza; já no segundo a palavra é um remédio para a salvação, considerada nos termos de saúde postulados pela medicina da alma, ou seja, a palavra é concebida como o fármaco por meio do qual o indivíduo aprende a viver e morrer bem. Essas funções serão retomadas e reelaboradas na medicina moderna mediante o seu ator principal, o médico, que passa a atuar como confessor e conselheiro para promover a saúde do paciente.

Outro ponto que a autora destaca como de importante apropriação do saber psicanalítico é o movimento modernista do começo do século XX. A psicanálise teria fornecido aos escritores modernistas uma nova perspectiva dos conflitos psicológicos pessoais e do processo literário criativo.

O quinto capítulo apresenta a experiência de Peter Theiss-Abendroth, que traz a dimensão de quem são os analisandos brasileiros que se dirigem aos consultórios alemães na atualidade. O autor nos conta que são frequentes as mulheres e os homens que migram por conta de um relacionamento, e a Alemanha se torna uma tela de projeção para idealizar atribuições de prosperidade e ordem. Nesse sentido, esse artigo perfaz o ensaio clínico da obra, no qual o que está em jogo é a relação que emerge entre o brasileiro e o alemão na sala de análise.

André Martins é o autor do sexto capítulo, particularmente interessante no conjunto dos sete que compõem o livro. Isso acontece porque o autor considera três personagens fundamentais, Freud, Lacan e Winnicott, a fim de pormenorizar a influência do pensamento desse último na cultura brasileira, bem como o modo pelo qual as ideias winnicottianas puderam encontrar terreno fértil pela forte afinidade com a cultura brasileira.

Martins argumenta que o desejo entendido como força vital em Winnicott se contrapõe ao desejo como falta em Freud e Lacan, e defende, portanto, um impulso para expandir e a liberdade criativa para reinventar relações e valores do mundo a partir de contribuições individuais e coletivas. Ao afirmar que a sociedade brasileira não se estrutura de forma neurótica, o apelo ao movimento criativo é apontado como solução para o desprezo do brasileiro pelo repetitivo e pelo burocrático. Essas concepções podem suscitar um debate bastante importante, principalmente porque não é pretensão do autor considerar pesquisas decoloniais recentes sobre classe, raça e gênero - como a de Schwarz (2019) - quando sustenta que o Brasil é um país que suporta a miscigenação.

Por último, o capítulo de Francisco Capoulade - diretor do importante documentário cujo título inspira o nome dessa última parte, "Hestórias da psicanálise" - remonta à nossa ideia inicial sobre como se deve escrever a história. Ao inventar um novo significante, hestórias, Capoulade põe em xeque o mito brasileiro de uma suposta unidade que comporia uma verdadeira história. Além disso, ao fundir dois significantes (história e estória) e utilizar o plural, o autor revela suas intenções: trata-se de um estudo sistemático de acontecimentos passados, mas também das histórias transmitidas oralmente. Desse modo, deixa-se a palavra aos próprios brasileiros, que fizeram ou ainda fazem parte desse processo, para assim explorar o "jeito de psicanálise" brasileiro. O capítulo, portanto, narra os pontos principais do documentário dirigido por Capoulade, o qual sugerimos que seja assistido. Acreditamos haver uma importante semelhança entre o filme e este livro, pois o último não parece querer construir uma história da e para a psicanálise. Pelo contrário, coloca no cerne da argumentação o conflito e a contradição, que afinal estão também no cerne da própria psicanálise.

 

Referências

Schwarcz, L. M. (2019). Sobre o autoritarismo brasileiro. Companhia das Letras.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Lucas Hangai Signorini
Rua Harmonia, 868
05435-001 São Paulo, SP
Tel.: 11 3814-9863
lucashangai@hotmail.com

 

 

1 Psicanálise no Brasil: explorações históricas e atuais.
2 Escolhemos conjugar o plural aqui, e em outras situações desta resenha, no masculino. Nossa língua ainda permanece colonizada, e faltam recursos para livrar este texto do mal-estar da cis-heteronormatividade.

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