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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2021

 

PLENÁRIAS DE VANCOUVER

 

"Os dragões dos primórdios": o término e a persistência do infantil1

 

The "dragons of primeval days": termination and the persistence of the infantile

 

"Los dragones del principio": la terminación y la persistencia de lo infantil

 

« Les dragons des commencements » : la terminaison et la persistance de l'infantile

 

 

Glen O. GabbardI; Tradução Paulo Sérgio de Souza Jr

IMembro da Associação Psicanalítica Americana (APSaA). Professor clínico de psiquiatria no Baylor College of Medicine, em Houston, Texas. Autor ou editor de 28 livros e 360 artigos. Primeiro editor-chefe adjunto do International Journal of Psychoanalysis, o primeiro editor não britânico. Houston / glen.gabbard@gmail.com

 

 


RESUMO

Em nenhum outro momento a persistência do infantil é mais evidente do que no processo do término. Freud foi incaracteristicamente sincero ao dizer que questionava se uma verdadeira transformação era alcançada no término. Ele observou: "Às vezes bem se pode duvidar que os dragões dos primordios estejam realmente extintos". A intensidade e a onipresença do infantil em nosso trabalho serão mais bem vislumbradas pelo estudo da defesa contra o infantil.

Palavras-chave: término, infantil, dragões dos primordios, raiva, tristeza


ABSTRACT

The persistence of the infantile is nowhere more apparent than in the termination process. Freud was uncharacteristically candid in saying that he questioned whether a true transformation was achieved at termination. He noted: "One feels inclined to doubt sometimes whether the dragons of primeval days are really extinct". The intensity and pervasiveness of the infantile in our work may best be glimpsed by studying the defense against the infantile.

Keywords: termination, childish, dragons of primeval days, anger, sadness


RESUMEN

En ningún otro momento la persistencia de lo infantil es tan evidente como en el proceso de la terminación. Freud fue inusualmente sincero al decir que se preguntaba si una verdadera transformación era alcanzada en la terminación. Él observó: "Una persona se siente inclinada, a veces, a dudar si los dragones del principio realmente fueron extinguidos". La intensidad y la omnipresencia de lo infantil en nuestro trabajo se pueden vislumbrar mejor por medio del estudio de la defensa contra lo infantil.

Palabras clave: terminación, infantil, dragones del principio, ira, tristeza


RÉSUMÉ

Nulle part la persistance de l'infantile n'est plus apparente que dans le processus de terminaison. Freud était étrangement sincère lorsqu'il mettait en question si une vraie transformation était atteinte dans la terminaison. Il a remarqué : « Parfois, on se sent incliné à douter que les dragons des jours primitifs seraient vraiment disparus ». L'intensité et la diffusion de l'infantile dans notre travail peuvent être mieux aperçues, lorsque l'on étudie la défense contre l'infantile.

Mots-clés: terminaison, enfantin, dragons des commencements, colère, tristesse


 

 

Na Menninger Clinic, em meus primeiros dias como candidato a psicanalista, era comum organizarem uma pequena conferência em torno de um caso quando o paciente não estava apresentando melhoras. Tenho vivas lembranças de uma conferência desse tipo que aconteceu há mais de 40 anos. Ela começou com uma sombria conclusão oferecida por um analista sênior que eu respeitava muito. Ele estava tratando um homem, por volta dos seus 50 anos de idade, que descrevia como "atravancado". Continuou dizendo: "Após 18 anos de tratamento analítico, quatro vezes por semana, ficou evidente que esse paciente não consegue terminar". A minha reação ao ouvir isso foi algo entre a descrença e o horror. O que o analista estava querendo dizer com "esse paciente não consegue terminar"? Como iniciante no campo, pensei que teria sido mais preciso dizer que o paciente estava sendo rebelde e recusando-se a terminar.

Entendí, no entanto, que o paciente estava claramente querendo ficar, e que o analista não podia simplesmente mandá-lo embora. Mas fiquei pensando com os meus botões por que é que o paciente estava agindo feito um "bebê". Essa experiência inicial evoluiu em um interesse de longa data pelo processo de término e as suas vicissitudes (Gabbard, 2009). Assim, quando os meus colegas da Associação Psicanalítica Internacional (ipa) me convidaram para ministrar uma palestra em Vancouver, fiquei particularmente satisfeito com o fato de que o tema escolhido envolvia a persistência do infantil. De imediato, esse tema desencadeou associações sobre a mitologia do término e todos os nossos embates com esse complicado aspecto do trabalho analítico. Com efeito, eu diria que a persistência do infantil é mais evidente no processo de término do que em qualquer outro lugar. Freud esteve particularmente atormentado com o espinhoso problema que consiste em finalizar o tratamento. O fato é que, em seus trabalhos sobre técnica, ele não oferece nada sobre o assunto da técnica do término.

Strachey (1964), em sua nota de editor que acompanha "Análise termi-nável e interminável", comentou que havia algo a respeito do qual os pontos de vista apresentados por Freud nesse artigo diferiam dos - ou, na verdade, contradiziam os - anteriores. Em resumo, Freud expressou ceticismo quanto a um tratamento psicanalítico poder surtir um efeito verdadeiramente preventivo em relação a conflitos e embates futuros. Suas dúvidas eram, de fato, duas: ele não apenas questionava a ideia de prevenir a ocorrência de uma neurose nova e diferente como também duvidava que se pudesse evitar o retorno de uma neurose que já havia sido tratada. Talvez ele tenha sido incaracteristicamente franco ao dizer que questionava se uma verdadeira transformação era alcançada no momento do término. De passagem, propôs o seguinte pensamento: "Às vezes bem se pode duvidar que os dragões dos primordios estejam realmente extintos" (Freud, 1937/1964, p. 229) - frase que aparece no título da minha palestra hoje. Freud reconheceu abertamente que o pavor infantil de ser ignorado, rejeitado, desdenhado, odiado, indesejado, desprezado ou abandonado é uma força que segue viva apesar das experiências positivas que se vem a ter na vida - experiências que, teoricamente, poderiam mitigá-la.

A impressão que tenho, a esta altura da minha carreira, é que aqueles "dragões dos primordios" nos acompanham a todos, mesmo depois de consumada uma análise. A persistência desse pavor infantil pode interferir tanto na capacidade que nosso paciente tem de terminar quanto na capacidade que o analista tem de deixar seus pacientes irem embora. Nós precisamos dos nossos pacientes como eles precisam de nós. O meu ponto principal aqui é que a visão do término que muitos de nós transmitimos envolve um mito de que o infantil pode ser conquistado ou domado. Não tenho certeza de quantos de nós realmente acreditam nisso. Melanie Klein (1950/1975) observou que os resultados variam de acordo com a gravidade e a estrutura do paciente, e advertiu seus supervisionandos a ter em mente as limitações da análise. Além disso, afirmou que o término equivale a um estado de luto, no qual as ansiedades iniciais são reavivadas e os sentimentos dolorosos são despertados. Aconselhou-nos a seguir com esse processo de luto e reconhecer os embates infantis em vez de ser coniventes com defesas maníacas contra tais sentimentos.

 

Sobre a negação da profissão

O mito de que temos a capacidade de domar completamente as nossas feras interiores prosperou durante anos no ensino analítico a respeito do término, apesar do ceticismo de Freud. Ao longo da minha carreira analítica fui vendo pouca correlação entre a sabedoria convencional acerca do término e o que realmente acontece no cenário clínico (Gabbard, 2009). Claramente não há um roteiro a ser seguido. Como candidato, quando estava terminando o meu primeiro caso de supervisão, o meu supervisor me anunciou que "a fórmula é um mês de trabalho de término para cada ano de análise". Lembro-me de ficar encantado, embora um pouco cético, com a existência dessa fórmula. Fiz rapidamente as contas: minha paciente havia estado no divã por cinco anos, então ela terminaria dali a cinco meses! Um mês para cada ano. Que maravilha! - pensei eu. Ao longo do tempo, porém, notei que, quando meus pacientes ouviam essa fórmula, muitos deles tinham reações que variavam da inquietação ao desprezo. Será que estavam prontos para partir, e eu esperando que eles passassem mais alguns meses no divã? Outros ficavam furiosos por eu estar pensando em abandoná-los. Como é que eu poderia ser tão cruel?! Uma chegou inclusive a insistir que o único modo de ela conseguir terminar era se pudéssemos tomar café juntos, regularmente, depois de pararmos a análise. Quando me recusei a honrar o seu desejo, ela me disse com desdém: "Você não pode me atender por todos esses anos e depois me largar sem nenhum acompanhamento!"

Kantrowitz (2015) realizou detalhadas entrevistas com 82 pessoas que haviam feito análise. Algumas estavam atuando na profissão; outras, não. Em suas entrevistas, o assunto do término despertou nesses ex-analisandos respostas intensas e cheias de emoção. Alguns consideravam a experiência como tendo sido de grande profundidade emocional e intensa conexão, ao passo que outros sentiam-se profundamente traídos. A esse respeito, é digno de nota que a maioria dos analisandos discutidos no estudo de Kantrowitz finalizou as suas respectivas análises unilateralmente, não por decisão mútua. Além disso, dos 82 sujeitos, 51 vieram a recorrer ao analista após o término. Kantrowitz também relatou que a queixa mais frequente dentro desse conjunto de ex-ana-lisandos era que o analista havia saído do papel profissional e não estava ciente dos impactos negativos que tais ações tinham sobre os seus pacientes. Muitos dos ex-analisandos voltariam periodicamente a ver seu analista para uma ou duas sessões, o que não difere muito do número de casos de Freud - em que pelo menos 10, de seus 36 pacientes, foram atendidos intermitentemente ao longo dos anos, conforme a necessidade (May, 2008).

A experiência de Freud em ter um pequeno grupo de pacientes que nunca conseguiam terminar totalmente é comum hoje em dia, mas poucos analistas falam sobre isso abertamente. No rigoroso estudo de Robert Wallerstein Forty-two lives in treatment [Quarenta e duas vidas em tratamento] (1986), ele acompanhou 42 pacientes da Menninger Clinic por um período de 25 anos e avaliou os seus resultados. Surgiu um grupo de cinco pacientes que ele chamou de condenados à terapia perpétua, ou seja, eles pareciam ter bons resultados desde que não fossem pressionados pelo analista a terminar totalmente.

No meu papel de supervisor, fui tomando consciência do fato de que muitos analistas altamente conceituados têm pacientes que não demonstram intenção de terminar. É uma trivialidade descobrir que alguns analistas têm um número de casos que inclui um punhado de pacientes que "completaram" 10 ou 12 anos de análise, mas continuam vendo seus respectivos analistas uma vez por semana - ou, às vezes, por mês - perpetuamente, sem plano algum de terminar.

Embora muitos de nós aceitemos essa variante, ela parece ser severamente evitada em discussões com colegas, muitas vezes por causa do constrangimento dos analistas. Tenho de observar que, ao longo dos anos, também fui acumulando condenados à terapia perpétua, que sentiam necessidade de continuar vindo - uma vez por semana, uma vez por mês, ou mesmo a cada seis meses - indefinidamente a fim de manter a conexão comigo. A análise do desejo deles não mudou necessariamente a convicção de que não estavam prontos para terminar totalmente. Eu me consolei com o comentário de Freud de que o término é, com efeito, uma questão de tato.

André Green (1999) escreveu acerca de um subgrupo de pacientes que ficam tenazmente conectados a um objeto interno. Pacientes como esses podem ficar apegados de maneira semelhante ao seu analista, mas não à psicanálise. Odeiam em segredo a autonomia porque a veem como um sinal de independência do objeto. O sofrimento pode ser atraente para eles porque garante que irão manter a presença do objeto dentro de si. Além disso, ele interfere com sucesso em qualquer forma viável de subjetividade. Essa estratégia masoquista pode ser formidável em sua tenacidade.

Por outro lado, há outros condenados à terapia perpétua que se instalam no divã para uma estadia prolongada e são articulados, inteligentes, engraçados, divertidos e agradáveis. Os analistas podem bem ficar na expectativa de ver esses condenados como ficariam na expectativa de ver velhos amigos. De ambos os lados há uma espécie de conspiração; uma negação da morte, da perda ou da possibilidade de que a relação deva ter um fim. O analista pode racionalizar que não há necessidade de discutir o término porque, afinal, "o paciente ainda não está pronto".

Em alguns casos que supervisionei havia um ponto complicado nessa agradável série de conversas, quando analista e paciente se apaixonavam um pelo outro. Desafiando a noção de que a dor e a perda devem ser trabalhadas como parte do término, eles podem se tornar amantes. Na minha experiência como supervisor em muitos casos de violação de fronteiras, aprendi que esse desdobramento está longe de ser raro em casos de análise interminável (Gabbard, 2017).

No caso mais corriqueiro, em que a má conduta sexual não se aplica, certos pacientes ainda desejam manter uma conexão permanente com o analista. A análise desse desejo não muda necessariamente a convicção do paciente de que ele não está pronto para terminar totalmente. Martin Bergmann (1997) afirmou com franqueza que a psicanálise carece de um paradigma para o término. Ele observou que o amor experimentado na transferência pode ser o melhor relacionamento amoroso que o paciente já teve, e não é provável que o paciente vá abrir mão dele sem lutar. Lucy Lafarge (2019) notou que a regressão por volta do momento do término é muito mais recorrente do que sugere a literatura. Ela identificou duas formas comuns: um nível mais elevado de transferência primitiva, que é simbiótico por natureza, e um nível mais primitivo, envolvendo experiências de desorganização, senso instável de identidade e distúrbios somáticos.

Partilho da opinião de Lafarge de que os anseios infantis podem emergir poderosamente quando o término é encetado. Além disso, quando se trata de enfrentar o término olhando-o diretamente nos olhos, os analistas se digladiam com o mesmo problema que os pacientes. Nós também enfrentamos a nossa própria tristeza à medida que acompanhamos o paciente pelas vicissitudes da perda e do luto. Nós, analistas, no entanto, podemos renegar projetivamente o nosso próprio pavor de finalizar e abandonar, vendo-o como algo que reside principal ou exclusivamente no paciente.

O fato é que tanto os analistas quanto os pacientes compartilham com frequência de uma aversão às camadas mais profundas da perda, da tristeza e da raiva associadas ao término. Em seu conhecido artigo sobre o uso do objeto, Winnicott (1969) descreveu uma situação comum na qual a análise pode estar caminhando, com ambas as partes se comportando bem, e o paciente pode chegar a mobilizar uma completa autoestrutura para permitir uma expressão de gratidão pelo analista. Em algum nível, porém, os pacientes sabem que houve pouca mudança na subjacente fome de conexão, mas tiram consolo da noção de que o tratamento foi feito de forma adequada.

A descrição de Winnicott sugere que, em alguns casos, a intensidade e a pervasividade do infantil em nosso trabalho podem ser mais bem vislumbradas pelo estudo das defesas contra o infantil. A perspectiva de perdas dolorosas, experiências perturbadoras no processo de amadurecimento, o reconhecimento (e o terror) compulsório do envelhecimento e a inevitabilidade da morte podem reativar o que há de mais obscuro nas profundezas do nosso inconsciente. Além disso, a perspectiva de término pode despertar traumas há muito tempo enterrados, colocando os pacientes frente a frente com experiências não metabolizadas de complicados esforços - repletos de conflito e lágrimas - de se separar dos pais. Muitos analisandos nutrem a fantasia de que a díade analítica irá criar uma forma de reparentalização que substituirá os desapontamentos com os próprios pais. Nós, analistas, podemos involuntariamente encorajar essa visão. Tanto o analista quanto o paciente podem se assustar com a primitividade infantil em torno do término.

Há não muito tempo, um profissional que atendi por anos em meu consultório chegou ao fim de uma sessão difícil. Ele se sentou e preencheu um cheque, como sempre fazia - o que sempre pensei ser uma forma de ele prolongar a sessão por um minuto ou mais. No entanto, dessa vez parou no meio da escrita do cheque, olhou para mim e perguntou de modo pungente: "Você não está planejando se aposentar, está?". Sem sequer hesitar, respondi: "Não" Ele deu um suspiro de alívio e disse: "Que bom" Daí terminou de escrever o cheque e fez uma pausa para a "deixa de saída" (Gabbard, 1982), na porta. Olhou para mim e disse: "Não vá me deixar na mão, beleza?". Eu sorri e disse: "Beleza".

Então eu fiquei ali, enquanto ele partia, contemplando por que é que eu havia respondido às suas perguntas daquela maneira. Fiquei francamente envergonhado. Percebi que havia feito algo como uma falsa promessa. O que é que eu estava pensando? Não podia prometer que não iria me aposentar, e certamente não podia insinuar que não iria morrer. Entretanto, a era da covid-19 estava apenas começando, e lá estava o manto da morte suspenso no céu como um carrasco caprichoso. Eu quis inconscientemente lhe assegurar que não me perderia como havia perdido o próprio pai. Nenhum de nós pode prever o nosso futuro, mas acho que eu estava tentando apoiar a sua negação em relação ao seu desejo de ter-me com ele para sempre. Ele era claramente tão importante para mim quanto eu para ele. Inconscientemente, talvez eu também estivesse me esquivando de uma versão dos dragões dos primórdios. Não quis insinuar que poderia me aposentar ou morrer porque eu sentia haver uma extraordinária tristeza logo abaixo da superfície, e não queria acender uma chama que pudesse compeli-lo para além do limite.

Como observa Pinsky (2017), nenhum de nós pode ter certeza de quando iremos morrer ou de quão doentes podemos ficar. Na verdade, a única coisa

que sabemos com certeza é que todos iremos perecer. Operamos em análise como se as coisas fossem continuar indefinidamente. A pandemia medonha pela qual estamos todos passando nos lembra que a qualquer momento qualquer um de nós pode morrer. A era da covid-19 trespassou a nossa negação. Todos fomos forçados a viver sabendo que a vida é transitória e frágil.

 

Um relato pessoal

Anos depois de a minha análise didática ter chegado ao fim, notei que eu estava sendo assombrado por questões que não haviam sido adequadamente exploradas em minha primeira análise. Comecei, então, uma segunda análise com um analista de orientação diferente numa localização geográfica diferente. Esse tratamento continuou por algum tempo, e eu senti que estava me beneficiando dele de um modo que aprofundou a minha compreensão. Depois de alguns anos, eu trouxe à tona a possibilidade de término. Meu analista não foi nem a favor, nem contra, mas procurou explorar como aquilo havia surgido e que pensamentos eu tinha a respeito dos prós e dos contras.

Após alguns dias dessa exploração, fiquei irritado com o analista e falei com ele sobre isso. Esclareci que tinha uma boa impressão do nosso trabalho em conjunto, mas sentia que ele estava me segurando por motivos que lhe diziam respeito. Ele continuou a analisar, como de costume, e eu comecei a me perguntar quando é que ele iria me "liberar". Aí ele fez uma observação que me pegou em cheio. Depois que expressei a minha irritação, ele disse: " Vai ver que é mais fácil para você pôr fim à análise ao me enxergar te segurando em vez de te deixando ir" Perguntei por que ele pensava assim. Ele respondeu: "Vai ver que é mais fácil para você sentir raiva do que tristeza"

Os meus olhos encheram d'água, e eu me dei conta de que ele havia pegado um nervo profundo em mim. Não queria enfrentar uma parte minha, infantil, que tangenciava a perda e o pavor de estar sozinho. Uma memória distante surgiu em minha mente. Com 3 ou 4 anos de idade, a minha mãe me deixou numa creche quando teve de voltar a trabalhar. Ela disse para eu não me preocupar. Tudo ficaria bem, disse ela. Eu queria acreditar, mas não sabia o que dizer. Finalmente lhe disse isto: "O seu casaco está desabotoado. Vou abotoá-lo para a senhora". Depois de abotoar seu casaco, disse a ela que ficaria bem. Não era realmente o que eu pensava naquela época, mas senti que ela queria que eu dissesse aquilo. Ela partiu, e eu lutei contra as lágrimas para que ela não me visse chorar enquanto saía pela porta. Ainda me lembro disso de forma viva.

Ao retornar à minha conversa com meu analista, reconheci que podia ser que eu tivesse ficado indignado com aquilo que percebi como a sua recusa em me deixar ir. Essa postura defensiva e contrafóbica era uma tentativa de contornar a tristeza em perdê-lo e o processo de luto associado a estar sem ele. Cresci com fortes defesas contra a necessidade de qualquer coisa ou a apresentação de qualquer vulnerabilidade. Em retrospectiva, percebi que minha mãe não tinha tempo para cuidar de mim, então fui conivente com a visão que ela tinha de mim como alguém que, em termos de cuidado, não precisa de muito. Neguei claramente as minhas próprias necessidades de dependência. Era preferível sentir raiva, e ficar indignado porque o meu analista estava me segurando, a permitir que os meus aspectos infantis emergissem - a saudade, a dependência e o desejo de evitar o abandono. Ao me aproximar do término, com um pé para fora da porta, eu podia formular o conceito de que o meu analista estava me coagindo a ficar e de que eu tinha de lutar pela minha independência. Confortava-me em algum nível inconsciente pensar que ele queria que eu ficasse. Há muito tempo Fairbairn (1940/1952) nos advertiu que o amor é perigoso. Ele observou que o amor pode ser tão arriscado que não ousamos facultá-lo a nossos objetos significativos. Os pacientes podem fugir do amor do analista e, ao mesmo tempo, proteger o analista de seu próprio amor. Apegos amorosos nos tornam vulneráveis. Fairbairn também observou que uma criança pode sentir que o motivo da falta de amor de seus pais por ela é que a sua destrutividade fez com que ele desaparecesse.

Durante toda a minha infância adotei uma posição defensiva que me tornou mais ou menos adulto e capaz de ser independente. Assim, em algum nível, a minha visão era a de que o meu analista poderia ter alguma dependência em relação a mim, mas eu não era dependente dele. Eu tinha pavor de precisar enfrentar o sentimento infantil de abandono e perda. Levei anos em minha segunda análise para reconhecer esse terror da perda. Ocasionalmente eu pensava: "E se eu tiver algum tipo de emergência e ele não estiver mais clinicando ou tiver falecido?". Eu logo me reafirmava que conseguiria lidar com a perda dele, mas, em segredo, sentia-me profundamente preocupado. Via-o colado a mim e me segurando para que eu pudesse negar que era eu quem dependia dele.

Nós, analistas, escolhemos uma carreira em que quem está no comando somos nós. Nós colocamos fim à sessão. Nós autorizamos o término do paciente. Nós mantemos alguma forma de controle. Ao escolher uma profissão em que nos tornamos extremamente próximos de indivíduos que não conhecíamos anteriormente, apenas para vê-los partir, estamos todos tentando controlar os reinos infantis dentro de nós por uma forma de pseudocontrole. Estamos no papel do pai deixando o filho ir, de modo que possamos evitar estar na posição da criança ou do bebê que tem de partir e sente-se abandonada(o).

Os dragões dos primórdios continuam a nos assombrar. Nunca temos sob total controle a perda de nossos pais, a partida de nossos filhos ou a morte de nossos colegas e amigos. Ao nos esforçarmos para ajudar nossos pacientes, estamos conscientes da perda inevitável daqueles que amamos e da certeza da morte. O reino infantil nos assombra durante toda a nossa vida profissional. Muitas vezes não conseguimos identificar exatamente aquilo que estamos sentindo em relação a um paciente que cogita o término. Certa vez Harold Searles (1960) observou que os sentimentos nos vêm sem etiquetas que esclareçam de onde vieram.

Pode ser uma fantasia universal dos analistas a de que podemos, de alguma forma, mitigar a dor da perda e a angústia da tristeza. Quem dera fosse verdade. Provavelmente o melhor que conseguimos fazer é guiar o paciente pelas águas turvas da tristeza e da perda. Quando o paciente se afasta, podemos encorajá-lo a olhar novamente e contemplar o que ele vê.

 

Algumas reflexões sobre a aproximação do término

No momento do término, nós, analistas, devemos estar cientes do redespertar das operações defensivas contra a tristeza, a perda e o terror, e fazer o nosso melhor para proporcionar uma compreensão psicanalítica daquilo a que se está resistindo e por quê. Não devemos apressar o processo por causa dos desejos do paciente ou de nossas próprias preocupações. Por outro lado, temos de respeitar o fato de que os pacientes podem saber aquilo de que necessitam mais claramente do que nós. Alguns talvez precisem se tornar condenados à terapia perpétua; talvez precisem que os acompanhemos por longos períodos de tempo em suas respectivas jornadas. Talvez façamos bem em reconhecer os limites do paciente nesses casos, em vez de passar por cima deles e persuadi-los a uma outra visão, que nos é preferível (Gabbard & Ogden, 2009).

Como Ogden e eu sugerimos em nosso artigo sobre tornar-se analista, publicado no International Journal of Psychoanalysis em 2009, o relacionamento analítico é fundamentalmente idiossincrático. Há múltiplos determinantes que têm de ser considerados. Devemos desconfiar de coagir o paciente a fazer o que acreditamos ser necessário. Em vez disso, seguimos a toada do paciente com o pressuposto de que ele pode saber coisas que não sabemos. Em minha experiência, descobri que a maioria dos pacientes vai terminar do modo como precisam, e eles não estão tremendamente interessados nas alternativas do analista. Além disso, se alguém força o paciente uma fase de término, sem uma colaboração cuidadosa, o paciente pode agir de acordo com uma versão "como se", ou "falso self', de término. Nós, analistas, podemos ser críticos e devemos sempre desconfiar de compelir o paciente numa determinada direção, sabendo que alguns pacientes precisarão de tratamentos muito

Glen O. Gabbard longos, diminuindo gradativamente a frequência, enquanto outros devem se apressar no término para evitar uma tristeza insuportável.

Bion (1967) nos advertiu que devemos desconfiar do nosso desejo de que o percurso do paciente prossiga numa determinada direção. Devemos também nos preocupar com a nossa necessidade de conformar o paciente àquilo que nós desejamos que ele seja. Além disso, Winnicott (1963/1965) observou que o núcleo do verdadeiro self, em todos nós, é um segmento que deve permanecer inacessível. Esse isolamento preserva uma autenticidade que é sagrada para o self em evolução.

Por fim, precisamos examinar o nosso desejo de nunca deixar o paciente ir. Como Freud, a maioria de nós é cética quanto à possibilidade de que os dragões dos primórdios estejam verdadeiramente extintos. Talvez tenhamos de nos contentar com o modesto objetivo de ter avistado os dragões de perto, no decorrer de uma análise consumada, e de ter encontrado modos de viver com eles.

 

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1 O autor detém os direitos autorais deste artigo, que é de sua responsabilidade como palestrante do LII Congresso Internacional de Psicanálise, da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), sob o título O infantil: suas múltiplas dimensões, a ser realizado em Vancouver, Canadá, de 21 a 24 de julho de 2021, com registro disponível no site www.ipa.world/vancouver.

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