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Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2021

 

PLENÁRIAS DE VANCOUVER

 

Construindo o infantil1

 

Constructing the infantile

 

Construyendo lo infantil

 

En construisant l'infantile

 

 

Bonnie E. LitowitzI; Tradução Paulo Sérgio de Souza Jr

IPh.D. Membro da Associação Psicanalítica Americana (APSAA). Membro do corpo docente do Instituto de Psicanálise de Chicago. Professora associada de psiquiatria na Rush Medical School, em Chicago. Membro do Conselho Editorial do Journal of the American Psychoanalytic Association há 25 anos, periódico do qual foi editora-chefe de 2014 a 2019. Autora de mais de 60 artigos sobre psicanálise, psicolinguística, semântica e semiótica. Coeditora, com Glen Gabbard e Paul Williams, da segunda edição do Textbook of psychoanalysis (2011). falante" (1974, p. 87). Depende do que estamos ouvindo (Litowitz, 2020). Na prolepse podemos ouvir uma nota promissória de entendimentos antecipados (Vorverstandigung) - antecipados ainda que não presentes. Entendimentos que irão emergir à medida que formos falando mais, mas que ainda são apenas potencialidades. No que se segue, ofereço os meus pensamentos atuais sobre "o infantil", na expectativa de que possam suscitar novos entendimentos no futuro. Suspeito ter sido esta a expectativa dos organizadores do congresso: a de que iríamos desenvolver as potencialidades do "infantil" de maneiras interessantes à medida que fôssemos conversando uns com os outros. Chicago / belitowitz@aol.com

 

 


RESUMO

Este trabalho aborda vários fatores que contribuem para a construção do infantil, fatores que abrem múltiplas perspectivas teóricas. Quais dimensões particulares são mais relevantes para qualquer construção é algo que depende, em última análise, de sua utilidade para o analista no estabelecimento da intersubjetividade com os pacientes na prática clínica.

Palavras-chave: infantil, infans, intersubjetividade, funções egoicas, múltiplas dimensões


ABSTRACT

This paper addresses several factors that contribute to constructions of the infantile, as they inform multiple theoretical perspectives. Which particular dimensions are most germane to any construction depends ultimately upon their usefulness to clinicians in establishing intersubjectivity with their patients in clinical practice.

Keywords: infantile, infans, intersubjectivity, egoic functions, multiple dimensions


RESUMEN

Este trabajo aborda varios factores que contribuyen a la construcción de lo infantil, factores que abren múltiples perspectivas teóricas. Qué dimensiones particulares son más relevantes para cualquier construcción es algo que depende, en última instancia, de su utilidad para el analista en el establecimiento de la intersubjetividad con los pacientes en la práctica clínica.

Palabras clave: infantil, infans, intersubjetividad, funciones egoicas, múltiples dimensiones


RÉSUMÉ

Cet article aborde plusieurs éléments qui contribuent aux constructions de l'infantile, car il présente de multiples perspectives théoriques. Quelles dimensions particulières sont-elles les plus pertinentes pour une certaine construction, cela dépende, en dernière analyse, de son utilité pout les médecins, au moment de l'établissement de l'intersubjectivité avec leurs patientes dans la pratique clinique.

Mots-clés: infantile, infans, intersubjectivité, fonctions égoïques, dimensions multiples


 

 

Minha formação como linguista direciona a minha atenção primeiro para a elipse no título deste congresso, O infantil: suas múltiplas dimensões. O, determinante específico que aqui está identificando um substantivo, introduz um adjetivo, infantil. Qual é o substantivo que falta, então? O que é "isso" que tem "múltiplas dimensões"? A minha preocupação imediata é que todo mundo na Associação Psicanalítica Internacional (ipa), menos eu, saiba o que é esse substantivo, saiba o que é o infantil. E por que eu não sei? Mas aí me lembro de algo que o psicólogo norueguês Ragnar Rommetveit escreveu: "O discurso humano é muitas vezes impressionantemente elíptico, mas também às vezes 'proléptico', no sentido de que o mundo social temporariamente compartilhado é, em parte, baseado em premissas tacitamente induzidas pelo

Vou abordar aqui três possibilidades para o "significante enigmático", o substantivo que falta: o corpo infantil, a mente infantil e a psique infantil. Minha tese é que a criança imaginada, inserida em nossas diferentes perspectivas teóricas psicanalíticas, é determinada pela interação dessas três dimensões da experiência de todo infans tão logo ele nasça ou, segundo Heidegger, seja "jogado no mundo" - ou, mais especificamente, jogado num mundo sociocultural particular. E cada mundo particular tem o seu próprio infans imaginado, assim como cada mundo psicanalítico particular.

Porque o infans não pode falar por si mesmo (infantis), todo mundo se mete a falar por ele. Há o infans cristão, nascido em pecado, carente de uma boa educação jesuítica (antes dos 7 anos de idade, de preferência); e, em resposta, a criança romantizada, mais próxima das nossas origens edênicas - e, portanto, nascida inocente -, que vai sendo cada vez mais corrompida pela sociedade (por exemplo, o Emílio de J.-J. Rousseau). Há o infans Beng, da Costa do Marfim (África Ocidental), que vem do mundo dos antepassados trazendo consigo a sabedoria deles para os seus pais, os quais são incapazes de compreendê-la e sob cuja tutela ele só vai ficando cada vez mais tolo (Gottlieb, 2004). Somente um xamã pode entender aquilo que o bebê Beng quer e, portanto, ele deve ser consultado. O xamã representa uma longa linhagem de intérpretes "especialistas": dos xamãs de toda parte até os nossos próprios doutores Spock e Brazelton, e nós mesmos.

Os especialistas em ciência que se propuseram a fazer um estudo do infans nos legaram um infans "experimental", que foi mudando ao longo do tempo, refletindo as mudanças nas teorias de aprendizagem dos especialistas. No início, o infans foi descrito como uma tabula rasa a ser preenchida pelos adultos; depois, um conjunto de reflexos a serem condicionados (o infans de B. F. Skinner). A nossa versão moderna é o infans "competente" (Stone, Smith & Murphy, 1973/1978), produto de muitos estudos realizados por psicólogos do desenvolvimento e linguistas nos últimos 60 anos. Esse infans é um agente ativo em seu próprio aprendizado, extraindo do ambiente regularidades significativas, as quais são generalizadas e têm valor preditivo para engrenar o crescimento futuro. Esses estudos forneceram uma grande quantidade de informações a respeito das capacidades cognitivas e linguísticas infantis: as que estão presentes no nascimento (ou mesmo antes) e as que se desenvolvem ao longo dos primeiros anos. Trata-se de um infans glóssico, dotado de categorias conceituais nascentes (por exemplo, espaço e quantidade), cônscio das intenções e dos comportamentos dos outros.

Como esses dados nos chegam de outras disciplinas, cada uma com a sua própria metodologia, surge a questão de quão relevantes são para aquilo que nós, psicanalistas, fazemos. Devemos levá-los em consideração nas nossas teorias acerca do infans? Os psicanalistas que aderem à psicologia do ego podem responder "sim", já que essas mesmas capacidades e competências estão diretamente implicadas nas funções que definem o ego. Enquanto isso, outros psicanalistas podem seguir o argumento de André Green de que se deve escolher ou o bebê observado, ou o sonho recontado. Green diz: "Os observadores preferem ver a ouvir. Perceber é estar em conexão com a realidade externa. Ouvir é estar em contato com a realidade psíquica" (1996, p. 877). Mas ainda que consideremos esses dados, como é que devemos utilizá-los? Para restringir as nossas teorias psicanalíticas da infância, ou talvez para criar teorias híbridas, combinando achados de múltiplas metodologias?

E quanto ao corpo infantil? Decerto os dados são relevantes, se começarmos com a afirmação de Freud, frequentemente citada, de que o ego é, em primeiro lugar, um ego-corpo, estabelecendo o autoinvestimento (isto é, o narcisismo) numa sequência de órgãos de satisfação para as suas pulsões (isto é, boca, ânus, genitais) antes do investimento noutras pessoas (isto é, relações de objeto). Os estágios psicossexuais de Freud são tanto temporalmente lineares quanto causalmente epigenéticos, ou seja, a resolução de cada um deles, em sequência, é necessária antes que o próximo possa ser resolvido. Caso contrário, o estágio anterior (por exemplo: oral, anal) torna-se um ponto de fixação ao qual se retorna quando se está frustrado ou em conflito, matizando assim as formações de compromisso que resultam em sonhos, sintomas e defesas.

Melanie Klein também assevera que o mundo infantil é composto de funções corporais (por exemplo: alimentação e evacuação), embora para ela, ao contrário de Freud, o foco esteja nas representações destas nas fantasias do infans - isto é, nos processos de pensamento infantis - como "objetos parciais", alternadamente dar/amar e reter/odiar. Ainda que na vida da criança a primeira posição esquizoparanoide seja anterior à posição depressiva tardia, Klein afirma que ambas as posições, a de autorrelação e a de relação objetal, podem surgir durante toda a vida, uma vez que os conflitos entre amor e agressão (Eros e Tânatos) irão matizar todas as nossas relações com os outros - especialmente com aqueles dos quais dependemos, mas que não podemos controlar.

Lacan também começa onde Freud havia começado, dando ênfase ao corpo infantil, mais especificamente ao seu estado desorganizado e não

Bonnie E. Litowitz integrado. Ao observar que todos os bebês humanos nascem prematuros, Lacan assevera que há uma consequência desse nosso necessário período de dependência em relação ao outro/mãe por muito mais tempo que outros primatas. Essa consequência é um desejo de sensação de totalidade para substituir uma real sensação de fragmentação. O infans ganha uma unidade imaginária do outro/mãe durante esse período, substituindo a sua própria realidade, o seu "real" de partes do corpo não integradas (le corps morcelé). Mas ele ganha integração à custa de ser capturado nessa ilusão. Embora inicialmente necessária para a sobrevivência do infans, trata-se de uma tarefa para a vida toda reconhecer e se libertar desse desejo do outro/mãe para ser o sujeito do próprio desejo.2

Cada uma dessas três grandes perspectivas psicanalíticas começa com o corpo do infans, visto como composto de partes desorganizadas e não integradas, exigindo uma longa dependência dos adultos para sobreviver. Em seguida, cada uma delas formula a hipótese de estruturas e conteúdos mentais que resultam desse ponto de partida - criando no processo, desse modo, os fundamentos teóricos a partir dos quais todas as estruturas e conteúdos posteriores irão se desenvolver. Assim como levantei a questão de incorporar em nossas teorias o conhecimento a respeito da atividade psíquica precoce vindo de outras disciplinas, uma questão semelhante poderia ser a seguinte: o que sabemos a respeito do corpo por meio de outras disciplinas, e acaso devemos considerar os dados delas provenientes?

O nascimento altricial do infans humano é, com efeito, um fato. Sabemos que no decorrer da evolução o nosso cérebro maior foi requerendo um crânio maior do que a estrutura pélvica das mulheres pode acomodar. Entretanto, sabemos também que, para garantir a sobrevivência de um ser tão indefeso, com o seu período de dependência excepcionalmente longo, o infans foi sendo equipado, no decurso da evolução, com receptores de distância - para visão e audição - que estão especificamente pré-instalados para permitir a sua vinculação.3 Esses receptores foram especialmente adaptados para uma maior sintonia com a fala e o rosto humanos. Assim dotado, o cérebro da criança duplicará de tamanho nos dois primeiros anos fora do útero, e todas aquelas conexões neurais em expansão irão sofrer a influência das interações diádicas entre o outro/mãe e a criança. Essas interconexões neuronais incluirão capacidades cognitivas como estruturas de linguagem, que já haviam começado no útero, e padrões culturalmente específicos de relacionamento com outros humanos e com um ambiente cultural particular (Cowley, Moodley & Fiori-Cowley, 2004).

Claramente, há uma enorme plasticidade no cérebro humano ao nascer, seguida - como nos dizem os neurocientistas - por uma poda desse vasto potencial neuronal, de modo que as crianças se tornam mais parecidas com os seus pares e cuidadores à medida que vão envelhecendo no mesmo ambiente. Como poderia ser de outra forma, dada a influência dos pais na duplicação da capacidade cerebral do infans fora do útero? Talvez a maior semelhança das crianças entre si e com os seus cuidadores seja aquilo que os Beng querem dizer com "elas ficam mais tolas" - como quem diz: "Agora conseguimos entendê-las". E talvez esse efeito de poda também tenha afetado a mente de Freud, levando-o a formular a hipótese de uma sequência de dois tipos diferentes de pensamento: o primeiro, mais criativo, porém idiossincrático; o segundo, sociocultural e linguisticamente constrangido.4 Este é mais compreensível; aquele requer conhecimento especializado. Aí entra o xamã.

Reconhecer a importância crítica do ambiente inicial do infans levanta ainda outra questão: as nossas teorias psicanalíticas devem levar em conta se esse ambiente é "suficientemente bom", é "facilitador" (Winnicott, 1965)? Ou devemos diferenciar entre necessidades e desejos? Como disse Merton Gill: as necessidades podem ser atendidas; os desejos buscam satisfação. Seria isso outra versão do "o-bebê-ou-o-sonho" de Green?

Se devemos lidar com as experiências reais do infans/da criança com os outros ou apenas com as fantasias, os devaneios ou as ilusões geradas por essas experiências é uma controvérsia que tem as suas raízes nos primeiros debates realizados em nosso campo a respeito da sedução infantil. Esses debates começaram numa época em que o nosso foco era a sexualidade e o período edipiano como o principal ponto de estruturação psíquica. Mas, à medida que as teorias psicanalíticas foram se deslocando cada vez mais para o período pré-edipiano, o debate real vs. fantasia reaparece e denuncia como os psicanalistas encaram o seu papel no processo terapêutico. Os analistas que enfatizam as consequências dos déficits iniciais no reconhecimento ou na responsividade dos cuidadores aos seus infans sentirão a necessidade de partir de onde o desenvolvimento foi interrompido e retomar os processos diádicos (por exemplo, as psicologias do self). Vindos de diferentes tradições, outros analistas podem ver seu papel como algo que proporciona um ambiente de sustentação capaz de: conter os efeitos não integrados dos traumas iniciais; oferecer arcabouço para o crescimento futuro; ou permitir a simbolização de experiências brutas (por exemplo, as teorias de relações de objeto). Mesmo os analistas para os quais a estrutura psíquica permanece central muitas vezes irão incorporar modificações a partir de perspectivas diádicas como um enquadramento para Bonnie E. Litowitz técnicas tradicionais, ou incorporar diretamente as descobertas da pesquisa empírica em seu pensamento. Por exemplo, eles podem considerar como a relação interpessoal foi formada por aquilo que o paciente, quando criança, teve de fazer para manter a vinculação necessária à sobrevivência.5

É óbvio que, quando discutimos a mente infantil ou o corpo infantil, estamos abordando a psique infantil. Quanto a se, ou como, aquilo que sabemos a respeito dos nossos primórdios corporal ou cognitivo entra em nossas teorias, é no tema da psique infantil que a maioria dos psicanalistas faz as suas mais convictas reivindicações de autoridade. Aqui podemos citar dados das nossas próprias metodologias, ou seja, dados extraídos do nosso trabalho clínico com os pacientes.

Nós nos encontramos com nossos pacientes por meio do nosso trabalho clínico e, em nossos esforços para compreender tanto as suas angústias quanto os efeitos delas sobre nós, a maioria dos psicanalistas se pergunta: como é que as coisas chegaram a esse ponto? Então, enquanto perseguimos esses antecedentes temporais e causais, somos motivados a encontrar o início para construir uma narrativa do tempo 1 até o presente. Nesse sentido, todas as teorias sobre a psique infantil são construções, como Freud bem caracterizou toda a sua teorização:

[O que fazemos é] construção - ou, se preferirem, reconstrução. ... Se, nas exposições sobre a técnica analítica, escuta-se pouco a palavra "construções", a razão disso é que, em vez dela, fala-se de "interpretações" e de seus efeitos. Mas penso que construção é a denominação mais adequada. (1937/1964, p. 261)

Para dar sentido ao que estava encontrando clinicamente e criar, a partir desses dados, uma "psicologia científica", Freud olhou para a melhor ciência de sua época: a física newtoniana e a biologia darwiniana. De Darwin ele pegou o princípio de que, para entender uma estrutura atual, é preciso reconstruir os seus estágios iniciais.6 Entretanto, Freud estava totalmente ciente dos problemas de transpor um modelo extraído da teoria evolucionista para uma psicologia do desenvolvimento. Especificamente, trata-se de delinear as mudanças evolutivas através do exame de evidências físicas entre populações, ao longo de gerações, adaptando-se a múltiplos ambientes. Mas qual será o germe das estruturas psíquicas em um indivíduo? E onde está a nossa evidência de mudanças do desenvolvimento ao longo de meras décadas nesse indivíduo?7

A solução de Freud foi reconhecer que um estágio anterior na psique "não pode ser demonstrado" - assim como isso não é possível para nenhum fóssil individual. No entanto, ele concluiu que, para a psique, os estágios iniciais "admitem ser construídos com certo grau de probabilidade". Como assim? Porque, asseverou ele, "no âmbito da mente é tão frequente a conservação do primitivo junto àquilo transformado que dele nasceu, que não é preciso demonstrá-lo mediante exemplos" (1930/1961, pp. 27 e 30).

Embora Freud tenha admitido que "não temos como representar esse fenômeno em termos pictóricos", ele estava confiante o suficiente para afirmar "a conservação de todos os estágios anteriores, ao lado da configuração definitiva, é possível apenas no âmbito da mente" (p. 34), e que "na vida mental nada que uma vez se formou pode acabar, ... tudo é preservado de alguma maneira e pode ser trazido novamente à luz em circunstâncias adequadas" (p. 30).

Por conseguinte, é só indiretamente que podemos conhecer os estágios iniciais dessa estrutura psíquica, ou atividade psíquica, chamada de "o infantil". Ela é como "o" inconsciente - esse outro adjetivo à procura de substantivo, que só pode ser conhecido através de seus "derivados". E o que conta como derivado é determinado por meio da interpretação clínica, à luz da construção (ou reconstrução) da psique individual naquele período da vida. Esse "fato", articulado por Freud há quase 100 anos, parece ser a premissa subjacente a muitas interpretações dos fenômenos clínicos atuais como re-presentações, em vidas adultas, de períodos de desenvolvimento passados, desde o retorno do recalcado até o pensamento de processo primário e o ressurgimento de estados psíquicos infantis.

Se alguém pode ou não reencontrar, em contextos clínicos, os estágios iniciais reais no desenvolvimento da psique ou da atividade psíquica infantis é algo que continua sendo problemático para muitos em nossa disciplina -inclusive para mim. Como alternativa, alguns psicanalistas preferem adotar outro princípio darwiniano, concentrando-se no ambiente ao qual cada paciente seu, individualmente, teve de se adaptar. Outros, talvez em reação a questões acerca de evidências reconstruídas em geral, escolhem evitar por completo uma sequência diacrônica, optando, em vez disso, por análises sincrônicas do presente - os momentos "aqui e agora" de encontro que ocorrem em um determinado sistema paciente-analista. Alguns exemplos disso: apelos à teoria de sistemas dinâmicos não lineares (Galatzer-Levy, 1995); análises da evolução das trocas em uma díade (Boston Change Process Study Group, 2005); enactments que irrompem nas interações interpessoais (Stern, 2009); mudanças momentâneas nos estados do self conforme rupturas e reparos do self-objeto (Kohut, 1971); e possivelmente também a dinâmica de mudança constante articulada nas teorias de campo (Baranger & Baranger, 2008). Em geral, acho justo dizer que a literatura psicanalítica atual enfatiza o exame atento do processo nas trocas paciente-terapeuta, momento a momento, em vez de especular sobre as estruturas psíquicas iniciais ou a atividade psíquica.

 

Conclusão

Encontramos o novo, o desconhecido, através do que já sabemos. É a partir dessa base que construímos uma ponte para estabelecer aquilo que Rommetveit chamou de uma realidade social temporariamente compartilhada - uma intersubjetividade - com os nossos pacientes. Como consequência da nossa formação como psicanalistas, recebemos os pacientes já com uma teoria predileta em mente; e algum conceito de desenvolvimento, ou algum conceito de mudança sequencial ao longo do tempo, permaneceu como parte da maioria das principais teorias psicanalíticas. Estas incluíram mudanças: nos investimentos libidinais; na força das funções egoicas e dos tipos de defesa; nas representações de si e dos objetos; na autocoesão; ou de um registro para outro. Seja qual for a teoria com a qual escolhemos trabalhar, não podemos deixar de encontrar aí um infans reconstruído; e se escolhermos trabalhar a partir da perspectiva de múltiplas teorias, mais de um infans. Portanto, o que estou afirmando é que, como Freud e os teóricos e clínicos desde então, iremos recorrer a tudo o que sabemos para dar sentido àquilo que encontramos clinicamente - aos infans imaginados a partir das nossas teorias, mas também ao que consideramos ser a melhor ciência de nosso tempo.

A nossa meta é sempre entrar no mundo intersubjetivo dos nossos pacientes, e nós reunimos as ferramentas teóricas necessárias para essa construção. Nossa fé nesse projeto é sustentada pela crença, como Rommetveit dizia, de que "a intersubjetividade, em algum sentido muito importante, tem de ser dada como certa para ser alcançada" (1974, p. 86).

 

Referências

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1 A autora detém os direitos autorais deste artigo, que é de sua responsabilidade como palestrante do LII Congresso Internacional de Psicanálise, da Associação Psicanalítica Internacional (IPA), sob o título O infantil: suas múltiplas dimensões, a ser realizado em Vancouver, Canadá, de 21 a 24 de julho de 2021, com registro disponível no site www.ipa.world/vancouver.
2 Em última análise, deve-se acatar a lei simbólica do pai (le Nom-du-Père), pela qual tanto o filho quanto a mãe/o outro são culturalmente limitados.
3 Assim, diz-se que a criança humana é tanto altricial quanto precocial.
4 Infelizmente, quando ele consagrou esses conceitos em sua "psicologia científica", não conseguiu evitar o resvalamento em dois grandes vieses do século XIX: darwinismo social e colonialismo (Freud, 1900/1953, cap. 7).
5 Um analista sullivaniano pode se referir às distorções paratáxicas que foram necessárias para que a pessoa se sentisse segura.
6 Da mecânica newtoniana ele pegou os conceitos de energia, trabalho e homeostase.
7 Uma diferença adicional é que a evolução prossegue probabilisticamente em relação a diferentes ambientes; o desenvolvimento é direcionado a metas pelos adultos em um ambiente.

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