SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.55 issue1Thinking is a way of resisting obscurantism author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Brasileira de Psicanálise

Print version ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.1 São Paulo Jan./Mar. 2021

 

RESENHA

 

Budapeste, Viena e Wiesbaden: o percurso do pensamento clínico-teórico de Sándor Ferenczi

 

 

Denise Salomão Goldfajn

Pós-doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi. Membro da Associação Internacional de Psicanálise Relacional e Psicoterapia. São Paulo / dsgoldfajn@gmail.com

 

 

 

Autor: Gustavo Dean-Gomes
Editora: Blucher, 2019, 496 p.
Resenhado por: Denise Salomão Goldfajn, São Paulo

 

De Budapeste a São Paulo, um percurso para Sándor Ferenczi

And if we can, then we must
Hold our heads up, learn to trust
It's up to you, it's up to us
Some dignity
A little love
A little love

Manic Street Preachers, "Four lonely roads"

A epígrafe acima inicia o livro de Gustavo Dean-Gomes Budapeste, Viena e Wiesbaden: o percurso do pensamento clínico-teórico de Sándor Ferenczi, lançado em 2019. Os versos da banda de rock galesa dos anos 1980 sintetizam bem a imagem do enfant terrible que vem se projetando na literatura psicanalítica com o "renascimento" de Ferenczi, movimento de redes-cobrimento do pensamento desse psicanalista que surge a partir da década de 1980 - com a publicação do Diário clínico (1985) e de sua correspondência com Freud (1991-1996) - e que vem reunindo psicanalistas de distintas orientações em diferentes partes do mundo, unidos pelo interesse comum pela obra desse pioneiro da psicanálise. Chamado de enfant terrible por ter espírito crítico e irreverente, Ferenczi foi colaborador, paciente, aluno e amigo de Freud, além de professor e clínico reconhecido por seus pares no tratamento do que ele mesmo designou como pacientes difíceis. Na busca constante pelo desenvolvimento da técnica psicanalítica, Ferenczi, como um roqueiro, abalou as estruturas do pensamento psicanalítico, modificando a teoria e a técnica através do que aprendia em sua própria experiência clínica com os pacientes. Nos versos da música, bem escolhida por Dean-Gomes, revela-se o personagem, pensador da clínica, que com seus textos insistiu em demonstrar que, também em psicanálise, se observarmos bem ("hold our heads up"), aprenderemos que confiar depende de um e outro ("learn to trust/ it's up to you/ it's up to us") e que a arte do cuidado só pode acontecer com alguma dignidade e certa dose de amor ("some dignity/ a little love/ a little love").

A sensibilidade de Gustavo Dean-Gomes, ajustando a poética roqueira ao pensamento de Ferenczi, se faz presente também na escrita do livro. Mesmo sendo resultado de sua pesquisa de mestrado realizada na Pontifícia Universidade de Católica de São Paulo, o texto é ao mesmo tempo agradável e erudito, composto de uma extensa revisão bibliográfica dos autores internacionais e nacionais que produziram a maior parte do conhecimento sobre Sándor Ferenczi disponível no início da psicanálise e na psicanálise contemporânea, em especial desde o renascimento do interesse por ele. Incluem-se nessa lista pesquisadores húngaros, franceses, italianos, norte-americanos e brasileiros -como Luís Claudio Figueiredo (orientador da dissertação de mestrado contida no livro), Daniel Kupermann, Jô Gondar e Leopoldo Fulgencio -, cujos textos inspiram Dean-Gomes a desenvolver uma discussão relevante sobre a ética do cuidado, fundamentada principalmente em psicanalistas e acadêmicos brasileiros que elencam e reconhecem nas ideias de Ferenczi os elementos formais e sutis para a construção da clínica do cuidado.

O que lemos com clareza é o resultado de uma pesquisa minuciosa, que nasce da genuína curiosidade do autor/pesquisador pelas incertezas e rupturas com que ele próprio se deparou em sua experiência com a clínica psicanalítica. O autor relata o encontro com pacientes que não apresentavam "a possibilidade de vinculação transferencial nos moldes daquela observável na neurose" e que o levaram, apesar do auxílio de supervisões e da análise pessoal, a sentir falta de "um corpo teórico que fornecesse consistência ao que era experimentado ao longo dos encontros com os analisandos" (p. 22). Dean-Gomes diz ter buscando respostas a sua demanda estudando autores como Melanie Klein, Wilhelm Reich, Donald Winnicott e Heinz Kohut; "a situação, entretanto, modificou-se a partir de nosso contato com a obra de Ferenczi" (p. 23). Lembrei-me então de uma passagem descrita pela psicanalista húngara Judit Mészáros, que registra uma conversa com André Haynal, uma das lideranças do renascimento de Ferenczi; quando era um jovem analista, ele se perguntava:

De onde eu consigo aprender algumas coisas que não acho em meus livros de psicanálise? O típico estereótipo ecoou em meus ouvidos: "Tudo está em Freud", mas eu não encontrava o que buscava. Em outra ocasião, perguntei ao meu supervisor de onde vinham as ideias que ali discutíamos, porque em Freud elas não estavam. O renomado analista disse-me que não sabia, mas que ligaria para outro sábio colega de Nova York a fim de perguntar. O sábio colega lhe respondeu: "Aprendemos com a experiência". E eu perguntei: "Mas a experiência de quem?". Um dia acidentalmente numa biblioteca encontrei um livro com um texto de Ferenczi e lá eu li sobre o analista que adormece durante a sessão de análise, sobre como os sintomas se modificam em paralelo às mudanças na relação paciente-analista, ... sobre como entendemos, como nos sentimos, como ele ou ela se sente. Existe um alguém! Existe um alguém que sabe de alguma coisa que está faltando no que aprendemos, a quem podemos recorrer porque escreveu honestamente sobre seus erros e tentou aprender com eles, e ainda os escreveu e publicou. (2015, p. 29)

André Haynal faleceu em 2019 e, como não poderia deixar de ser, suas contribuições figuram na bibliografia e no livro de Dean-Gomes. A descrição do jovem analista intrigado com as descontinuidades entre a clínica e a teoria psicanalítica faz com que as experiências de Haynal e Dean-Gomes se cruzem, no prazer de encontrar "um alguém" que estava faltando e na curiosidade despertada pelo percurso de Sándor Ferenczi e seus desdobramentos, recuperando-se um capítulo que se encarta no princípio de um imaginado livro com toda a historiografia psicanalítica. Isso nos leva a refletir: que lugar o legado histórico de Ferenczi deve ocupar para todo aquele que deseje estudar ou praticar a psicanálise? Qual a influência que o pensamento de Ferenczi e seu longo diálogo com Freud e com outros pioneiros têm sobre outros psicanalistas que vieram depois de Ferenczi? Por exemplo, para Dean-Gomes a pesquisa sobre o percurso do autor provoca um rearranjo na dicotomia entre teoria e clínica e recoloca a clínica em destaque: "Como é impossível desven-cilhar a clínica da teoria, falamos então em uma pesquisa sobre o 'pensamento clínico-teórico" (p. 25).

A organização da pesquisa de Dean-Gomes, que encontramos neste livro, é abrangente. O livro é dividido em oito seções, que se iniciam com uma biografia e desenvolvem uma pesquisa de todos os textos escritos por Ferenczi cronologicamente. Primeiro, a fase pré-psicanalítica, com uma revisão dos artigos menos conhecidos, publicados antes do encontro de Ferenczi com a psicanálise. A seguir, a produção colaborativa com Freud para a consolidação da psicanálise clássica. Depois, o período das inovações técnicas, desde a descrição das experimentações com a técnica ativa até a introdução do trauma e o desenvolvimento da matriz materno-primária, a análise mútua. As divergências com Freud sobre a traumatogênese também são abordadas, o que muitos apontam como o motivo para que Ferenczi se tornasse presença espectral na literatura psicanalítica, de sua morte, em 1933, a meados dos anos 1980. Cada escrito de Ferenczi é abordado e contextualizado com comentários retirados da correspondência entre Freud e Ferenczi, e também com a descrição da influência de autores que Ferenczi lia, que mantinha presente em seu pensamento e com quem dialogava, oferecendo-se ao leitor um panorama completo e um índice de consulta dos textos de Ferenczi, além de uma análise das implicações das ideias desse pensador para a psicanálise.

Note-se que as cidades mencionadas no título retratam bem o escopo que o autor dá à pesquisa. Budapeste representa o desenvolvimento da identidade profissional e ética. Nessa cidade, Ferenczi atuou como médico e foi autor de artigos em que já se delineavam suas ideias sobre a liberdade, a importância do ambiente na constituição do psiquismo e o cuidado com a infância, além de sua curiosidade pelas ciências do espírito. Também está descrito no livro o caráter social que Ferenczi dava a sua prática clínica, como a defesa da descriminali-zação da homossexualidade. Budapeste representa as origens de um pensador libertário, um médico interessado pelas questões sociais e um psicanalista que trabalhou intensamente em sua clínica, tendo os pacientes como parceiros na experimentação de novas técnicas para curar. Viena foi a cidade-símbolo das transformações na vida de Ferenczi. Ali ele estudou medicina e encontrou a psicanálise de Freud, tendo papel fundamental na organização do movimento psicanalítico, que tomaria forma institucional para sua expansão e difusão na Europa e nos Estados Unidos. Por fim, Wiesbaden, cidade onde ocorreu o último congresso em que Ferenczi apresentou um trabalho, em 1932. O trabalho em questão foi publicado como artigo em 1933 com o título "Confusão de línguas entre os adultos e a criança: a linguagem da ternura e da paixão", fonte de controvérsias com Freud sobre a teoria do trauma - retomada e ampliada por Ferenczi - e que marca também a emancipação do pensamento teórico-clínico de Ferenczi. Muitos apontam as discordâncias com Freud sobre a traumatogênese, a emancipação de Ferenczi enquanto autor clínico-teórico e seus ousados experimentos clínicos como as razões que o levaram a um esquecimento ou descarte nos anais da psicanálise.

Após trilharmos o percurso sobre o pensamento clínico-teórico de Ferenczi bem acompanhados de Dean-Gomes, torna-se fácil comprovar que o renovado interesse pelo autor não pode ser restrito apenas à edição e publicação de seu Diário clínico.

Verificou-se que, de fato, as reflexões de nosso autor proveem ótimos subsídios para se refletir sobre uma série de temas da seara em psicanálise: clínica, psicopatologia, psicogênese, metapsicologia e ética - e, com relação a esta, sobressai-se o tema do "cuidado" no tratamento analítico. (p. 466)

Nas considerações finais, Dean-Gomes retoma a contribuição de autores brasileiros, especialmente Figueiredo, Kupermann e Fulgencio, e destaca os elementos retirados do pensamento de Ferenczi que matizam a ética do cuidado descrita por eles:

a adaptação do ambiente, o acolhimento e a hospitalidade (o cuidado em sua função estruturante, que possibilita ao sujeito cuidar de si e dos outros), o paradoxo da implicação e da reserva do cuidador, tratado tão apropriadamente por nosso personagem quando de suas reflexões sobre a resistência e a sucumbência à contratransferência, a "empatia" e o cada vez mais significativo aspecto "testemunhal" de "reconhecimento" da escuta analítica. (p. 469)

Dean-Gomes vai além e assinala os elementos mais sutis na matriz relacional do cuidado:

Há outros valores importantes na ética do cuidado que podemos relacionar com o legado ferencziano - que esperamos ter conseguido trazer com alguma competência ao leitor. Incluindo o menos referido traço da "sedução-ética" - que, relacionado à noção de "interpelação," torna-se um "chamado para a vida" ... - ou a dimensão que tangencia o brincar e a criatividade nas práticas terapêuticas. (p. 470)

Essa discussão, que teve início em Budapeste, segue viva em São Paulo, através dos autores colecionados e pela condução escrita de Dean-Gomes.

O livro é fonte segura de conhecimento sobre a vida e a obra de Ferenczi e, mais ainda, é um compêndio de referências para pesquisa, devendo ser incluído em qualquer curso e currículo sobre a história da psicanálise e a formação de psicanalistas. Pela abrangência do trabalho, pela extensão do livro (496 páginas), somadas ao cuidado que o autor tem com as referências e com a escrita, faz falta um bom índice remissivo, que ajudaria especialmente ao leitor-pesquisador. Fica aqui uma sugestão para as próximas edições que seguramente estão por vir.

 

Referências

Mészáros, J. (2015). Ferenczi in our contemporary world. In A. Harris & S. Kuchuck (Eds.), The legacy of Sándor Ferenczi: from ghost to ancestor (pp. 19-32). Routledge.         [ Links ]

Creative Commons License