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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.2 São Paulo abr./jun. 2021

 

TEMÁTICOS

 

A sessão de análise como composição idiomática

 

The psychoanalytic hour as an idiomatic composition

 

La sesión de análisis como composición idiomática

 

La séance d'analyse comme composition idiomatique

 

 

Alexandre Socha

Psicanalista. Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / alexandre.socha@gmail.com

 

 


RESUMO

Partindo de quatro breves situações clínicas, o trabalho propõe uma discussão sobre a criação de padrões comunicativos entre analista e analisando. Esses padrões dizem respeito ao dialeto próprio que se desenvolve em cada dupla no decorrer de um processo psicanalítico. A maneira como a sessão de análise é organizada pelo analisando traz ao campo analítico formas estéticas e representacionais singulares, segundo uma lógica inconsciente particular. A exploração do fenômeno em questão é feita em diálogo, entre outros, com os conceitos de idioma (Bollas) e uso do objeto (Winnicott), levando por fim a uma aproximação preliminar entre a escuta psicanalítica e a escuta musical. Tal aproximação é assumida como modelo na captação de determinados aspectos formais do encontro clínico.

Palavras-chave: sessão psicanalítica, idioma pessoal, uso do objeto, formas musicais


ABSTRACT

Presenting four brief clinical situations, this paper proposes a discussion on the creation of communicative patterns between analyst and analysand. These patterns are related to the specific dialect that is built in each analytic pair during a psychoanalytic process. The way in which the psychoanalytic hour is organized by the analysand, brings unique aesthetic and representational forms to the analytic field, according to a particular unconscious logic. The exploration of this phenomenon is done in dialogue, among others, with the concepts of idiom (Bollas) and use of an object (Winnicott), leading to a preliminary approach between psychoanalytic listening and musical listening. This approach is assumed as a model in seizing certain formal aspects of the clinical encounter.

Keywords: psychoanalytic hour, idiom, use of an object, musical forms


RESUMEN

A partir de cuatro breves situaciones clínicas, el trabajo propone una discusión sobre la creación de patrones comunicativos entre analista y analizando. Estos patrones están relacionados con el dialecto específico que se desarrolla en cada par durante un proceso psicoanalítico. La forma en que la sesión de análisis es organizada por el analizando aporta formas estéticas y representacionales únicas al campo analítico, de acuerdo con una lógica inconsciente particular. La exploración del fenómeno en cuestión se lleva a cabo en diálogo, entre otros, con los conceptos de idioma (Bollas) y uso del objeto (Winnicott), conduciendo finalmente a un acercamiento preliminar entre la escucha psicoanalítica y la escucha musical. Este enfoque se asume como un modelo para capturar ciertos aspectos formales del encuentro clínico.

Palabras clave: sesión psicoanalítica, idioma personal, uso del objeto, formas musicales


RÉSUMÉ

Fondée sur quatre brèves situations cliniques, l'article propose une discussion concernant la création de modèles de communication entre l'analyste et l'analysant. Ces modèles sont liés au dialecte spécifique qui se développe entre les individus de chaque paire au cours d'un processus psychanalytique. La manière dont la séance d'analyse est organisée par l'analysant apporte au champ analytique des formes esthétiques et des représentations singulières selon une logique inconsciente particulière. L'exploration du phénomène en question se fait en dialogue, entre autres, avec les concepts d'idiome (Bollas) et de l'utilisation d'un objet (Winnicott), aboutissant finalement à une approche préliminaire entre l'écoute psychanalytique et l'écoute musicale. Telle approche est considérée comme un modèle pour capturer certains aspects formels de la rencontre clinique.

Mots-clés: séance de psychanalyse, idiome personnel, utilisation d'un objet, formes musicales


 

 

Um centro gravitacional

Sempre me surpreendeu a disciplina com que Carlos estabelecia o roteiro dos nossos encontros. A cada sessão tratávamos única e exclusivamente de um tema. Um por vez. Com raras exceções, o programa era quase sempre o mesmo: Carlos deitava-se no divã e apresentava o assunto principal daquele dia. Seguiam-se ramificações, pequenas variações, inversões de perspectiva. Algumas pareciam se distanciar, mas nunca deixavam de incluir o tema inicial ou fragmentos dele. Se o tópico do dia foi uma situação de conflito no trabalho, essa situação era descrita em seus mínimos detalhes, mas dificilmente transitava por outros lugares, como, por exemplo, a recordação de um filme, um sonho recente, relacionamentos afetivos, algo que lhe ocorrera a caminho da sessão ou qualquer coisa do gênero. Todos os estímulos que lhe fizera nos primeiros anos de análise em direção a uma fala mais livremente associativa se revelaram ineficazes. Apontar para outras direções apenas lhe fazia parar e retomar o tema inicial, como um aviso de que nos havíamos perdido do caminho.

Quando em certa ocasião sublinhei o caráter monotemático com que cada uma das nossas sessões se organizava, Carlos ficou em silêncio por alguns instantes. Falou brevemente sobre a monocultura na fazenda de sua família e em seguida me contou, em outro tom de voz, que nunca se sentiu pertencente a um grupo de amigos. Na escola e na faculdade tinha sempre um "melhor amigo". Essa relação se esgotava com o tempo e era substituída por outra amizade, também em contrato de exclusividade. Os estudos deram lugar ao trabalho como ocupação que preenche integralmente seu dia, e o melhor amigo deu lugar a um casamento. No entanto, o casal também tem um convívio social bastante precário, reforçando a escassez emocional que ele próprio constatava em sua vida.

Por volta do quinto ano de análise, Carlos iniciou um curso de teatro amador junto com a esposa. Levava bastante a sério a atuação e parecia experimentar grande prazer ao estar na pele de outros personagens. Penso que a presença de sua esposa no curso fez com que, nesse brincar de identidades, não se sentisse perdido de si. Por muito tempo nossas sessões continuaram ocorrendo da mesma forma, com um tema único. Talvez o que tenha mudado foi a complexidade das variações do tema e a maior confiança de Carlos em distanciar-se mais, sem sobrevir o risco de ruptura com o centro gravitacional.

 

Corrida

Quando Rafael me contou que seu hobby era fazer trilhas de mountain bike, comecei a entender um pouco melhor uma sensação peculiar que surgia em nossas sessões. Na verdade, era mais do que um hobby; andar de bicicleta se tornou uma das únicas situações em que Rafael dizia sentir-se realmente vivo.

Queixava-se dos amigos preguiçosos que não o acompanhavam nas viagens de fim de semana, preferindo em vez disso ficar com as esposas e os filhos. Há tempos Rafael procurava um parceiro de trilha, mas não qualquer um. Já havia dispensado vários conhecidos por não terem a mesma habilidade que ele e por ficarem lhe "atrasando". Uma trilha, que no seu ritmo levava três ou quatro horas, poderia levar seis ou sete se tivesse que ficar esperando e se ajustando ao ritmo dos outros. Nessas ocasiões, se mantinha sempre um pouco à frente dos parceiros, inclusive para que o vissem e admirassem sua destreza e coragem ao atravessar os trechos perigosos. No entanto, ao instaurar com eles um clima de competição amistosa, acabava andando sempre sozinho, algo que considerava muito sem graça.

Certa ocasião Rafael disparou em um de seus solilóquios, percebendo apenas nos minutos finais que havia deixado pouco espaço na sessão para um diálogo. Terminou a corrida descontente, dizendo que queria ter escutado mais o que eu teria a dizer sobre aquele assunto. Sugeri que seu descontentamento poderia ser semelhante ao de disparar na bicicleta e de repente dar-se conta de que chegou na frente, mas que perdeu a companhia no meio do caminho.

Recentemente, com as sessões por áudio realizadas durante a pandemia, percebi sua fala um pouco ofegante e sons diferentes dos habituais. Relacionei isso com o sinal ruim de internet naquele dia e perguntei se por acaso ele estaria em um local diferente. Rafael contou então que havia decidido sair para andar em uma praça durante a sessão, pois isso lhe ajudaria a pensar melhor. Em tom de gracejo, complementou que naquele dia caminharíamos juntos pela praça. Respondi que a pé talvez tivéssemos mais tempo para observar as coisas ao nosso redor.

 

Retornos

Solange certa vez brincou dizendo que já conseguia prever o término das sessões. Nessa brincadeira, me avisava quando estaríamos nos minutos finais ou, inclusive, quando havíamos chegado ao fim. Curiosamente, tinha grande precisão em seus palpites, dispensando qualquer relógio. Quando perguntei, esclareceu que não era sempre, mas que tínhamos o hábito de retomar nos minutos finais algo que fora dito no começo, de pescar alguma expressão ou palavra-chave do início. A conversa fazia então uma espécie de volta circular, o que lhe servia como um prenúncio para o encerramento da sessão. De imediato concordei, reconhecendo com certo humor que isso de fato ocorria.

Após a sessão, cogitei se não haveria nisso algum cacoete para o fechamento do horário ou ainda um modo de criarmos uma sensação provisória de conclusão, como um "por hoje, chegamos ao fim". Detendo-me mais sobre o caso, ponderei que a volta temática partia às vezes de alguma observação minha e outras vezes dela. Em ambas as situações, no entanto, a volta não soava uma inclusão forçada, mas sim proveniente da própria conversa. Não creio que retornávamos exatamente ao mesmo ponto, pois ele reaparecia deslocado do seu sentido original; ou seja, em vez de negar o caminho que havíamos percorrido naquele dia, o ressurgimento do tema tornava tal caminho ainda mais explícito.

Esse formato elaborativo, descoberto por Solange num período em que já estávamos habituados à presença um do outro, se tornou uma "piada interna" à qual recorríamos volta e meia, por vezes até sem perceber. A graça talvez fosse brincarmos com as nossas despedidas, dando a elas um certo ar de previsibilidade.

 

Paisagens sonoras

Os primeiros tempos da análise com Daniel transcorreram predominantemente em silêncio. Uma ou outra palavra era pronunciada, esboços de frases espaçadas que não pareciam ter ligação direta entre si, a não ser que lhe pedisse expressamente pelo elo ausente. Resolvi aceitar seus silêncios, buscando manter neles uma comunicação permanente comigo mesmo, refletindo de modo ativo sobre o que poderia estar acontecendo ali entre nós, a cada momento. Por vezes, acreditava ter alcançado e formulado algo para lhe comunicar. Quando então ameaçava lhe dizer algo, Daniel balbuciava simultaneamente à minha fala, como se também fosse dizer alguma coisa. Ao me calar para que ele então falasse, Daniel voltava novamente ao silêncio. De fato, creio que era esse o seu propósito. Soava quase como um ato involuntário, Daniel falava ao mesmo tempo que eu, mas não para se sobrepor ou anular o que poderia lhe dizer, e sim como uma reação a um estado que fora rompido.

Embora tivesse logo percebido que a natureza do nosso silêncio não era a da ocultação de melodias inconscientes, apenas agora em retrospectiva, e com o diálogo vivo que viemos a construir depois, tornou-se concebível para mim que a função daquele silêncio era a de estabelecer um ambiente sonoro entre nós, um horizonte sem o qual nenhuma melodia poderia manter-se ressoando ou mesmo ser diferenciada de mero ruído. Era o barulho da poltrona quando me mexia, um caminhão a passar pela rua, os gritos das crianças brincando na escola em frente ao consultório, nossas respirações, tosses: tudo isso formava um ambiente sonoro com uma textura bastante característica. Com o tempo, palavras se transformaram em frases, cantos em contracantos, e uma nova espessura discursiva e emocional começou gradualmente a encontrar sustentação entre nós.

 

Dialetos e objetos idiomáticos

Essas breves situações clínicas, díspares entre si, retratam em comum o fenômeno que gostaria de destacar neste trabalho: o da criação de um padrão comunicativo entre analista e analisando. Um modo muito específico com que as sessões transcorrem em cada dupla, assumindo uma forma idiossincrática na interação e na composição do encontro. O padrão que busco aqui circunscrever está condicionado a elementos transferenciais e contratransferenciais do campo analítico e, portanto, tem duração variável e pode eventualmente ser substituído por outros. Coincide com a cultura e o dialeto próprios criados no cotidiano de uma análise, tornando-se evidência da singularidade da experiência ali vivida. Conforme a relação analítica se desdobra, o repertório emocional, representacional e estético da dupla permanece em constante transformação; trata-se, pois, de uma cultura cambiável e de um dialeto vivo.

Retomarei posteriormente os padrões comunicativos presentes nas situações clínicas aqui descritas, relacionando-as a diferentes formas musicais - recurso esse cujo intuito é o de explicitar o aspecto colaborativo entre analista e analisando na composição formal da sessão psicanalítica.

A arquitetura das sessões pode muitas vezes permanecer como pano de fundo em uma análise e nunca chegar a ser abordada diretamente. No entanto, sua função elaborativa sobressai quando assumimos o complexo arranjo de diálogos e silêncios da hora analítica como um objeto estético e idiomático.

O conceito de idioma, conforme proposto por Christopher Bollas (1992/1998), designa um correlato psíquico da impressão digital humana - parcialmente herdado e parcialmente adquirido - que determina nossa relação com o mundo ao redor e com os outros a partir de uma lógica implícita. Afinado a uma vertente winnicottiana, Bollas concebe essa lógica como a dimensão estética do verdadeiro self, ordenando suas experiências através de estruturas aglutinantes de representação, tais como os padrões comunicativos que aqui pretendemos circunscrever. Para o autor, "o idioma pessoal que dá forma a qualquer personagem humano não é um conteúdo de significado latente, mas uma estética de personalidade buscando não imprimir significado inconsciente, mas descobrir objetos que se conjuguem para uma experiência plena de significado" (p. 48).

A concepção de idioma descreve a habilidade inconsciente de cada ser humano em selecionar objetos e formas representacionais que moldam a realidade psíquica, estabelecendo com eles uma ressonância subjetiva. É a densidade estética na seleção e ordenação desses objetos e formas o que permite uma experiência de si mesmo, de ser quem se é. No entanto, vale ressaltar que Bollas se afasta de uma concepção essencialista do self autêntico,1 do "quem se é", preferindo antes enxergá-lo como um potencial. O conjunto de disposições idiomáticas se realiza apenas no encontro com o outro e com o mundo objetal, em uma dialética permanente entre a disposição herdada e a cultura humana. O idioma, portanto, carrega o padrão de uma lógica estética na ordenação dos objetos, mas não de uma lógica estática ou imutável. Nessa concepção, "ser quem se é" está em constante transformação, e talvez fosse mais preciso se falássemos em "ser quem se é, agora".

Ao dar-se sempre no confronto com o mundo objetal, o idioma carrega a memória viva das primeiras interações com o ambiente e com o objeto primário. São os primeiros contatos do recém-nascido com o cuidado materno aqueles que lhe permitirão a integração de elementos que estabelecem uma maneira própria de ser, reunindo experiências fragmentadas em um sentimento de si ("eu sou"). A relação da criança com o idioma materno, com a estética presente no modo específico de a mãe ir ao encontro de suas necessidades, assenta as bases para uma apropriação autêntica do idioma próprio.

Acredito que ele [o bebê] incorpora junto com o leite a nova experiência (plenitude) e a estética dos cuidados maternos. O bebê toma para si não só o conteúdo das comunicações da mãe, mas também sua forma. No início da vida, o cuidado do bebê é a forma fundamental de comunicação, assim, a internalização da forma da mãe (sua estética) é anterior à internalização de suas mensagens verbais. (Bollas, 1987/2015, p. 68)

Nessa perspectiva, a organização formal da sessão de análise poderia ser em parte compreendida como um gesto espontâneo e criativo do analisando, que, por meio da receptividade encontrada na situação analítica, articula e coloca em devir diferentes aspectos do self. Entre eles estão também elementos destrutivos e todo o espectro do sofrimento psíquico como experiência integrada ou não integrada. Atuações, ataques ao analista e ao vínculo alcançam o campo transferencial sempre por meio de uma forma estética, seja ela violentamente sutil ou disruptiva.

Assim, a revivescência de traumatismos primários no processo analítico também seria, em certa medida, um evento tributário ao potencial idiomático, pois cada pessoa a realiza de maneira única. Por outro lado, a ausência de espontaneidade, marca de um self reativo (ou de aspectos reativos do self), produz antes a mimetização de um processo analítico: para além da aparência de um uso do tempo e do espaço da sessão, nada significativo parece acontecer na análise, e pode-se levar muito tempo até que isso seja plenamente percebido.

 

O uso do encontro analítico

Segundo Pontalis (1977/2005), seria um equívoco definir a transferência como essencialmente uma repetição de relações objetais e estruturas fantasmáticas. Ela é, acima de tudo, o espaço potencial em que analista e analisando serão simultaneamente criados e encontrados. Nesse caso, enquanto a relação de objeto se concebe como um predicado do eu, com seu circuito de investimentos, defesas e identificações, a capacidade de fazer uso do objeto pressupõe problemáticas ligadas ao self, onde a outridade não é a priori um fato consumado.

A transferência, enquanto relação objetal, abre caminho para o que Winnicott concebeu como uso do objeto (1971/2019b), dentro do qual podemos distinguir, para nossos propósitos, dois objetos a serem usados pelo analisando: a pessoa do analista e o próprio dispositivo psicanalítico. Embora indissociáveis, é por meio do uso ora do analista, ora da situação analítica que emanações do self autêntico podem ser reconhecidas dentro de um processo. Entre essas emanações incluiríamos aqui, novamente, o manuseio da plasticidade composicional do enquadre e do método da associação livre, proporcionando que elementos dispersos do self sejam coligidos em um padrão comunicativo pessoal.

Em suma, os objetos oferecidos pela situação analítica colocam à disposição do analisando um léxico propício à vivência estética do idioma pessoal. A partir da apropriação desse léxico, amplia-se o repertório simbólico e representacional, levando a novos estados do self e a uma crescente complexidade de pensar e de sentir.

O uso do analista como objeto transferencial, no entanto, precede o pensar e o conhecer (Bollas, 1989/1992). O analisando manuseia a hora analítica, estica, testa os seus limites, odeia através do seu desperdício, ausenta-se e, finalmente, retoma-a em suas mãos. Sua liberdade em "destruir" os objetos oferecidos em uma análise, por meio de oposições, censuras, resistências, retraimentos, ataques ao enquadre etc., pode com o tempo reforçar seu valor real de confiabilidade. O analista, por sua vez, pelo seu modo de escutar e intervir, reitera o método psicanalítico e o enquadre sempre que estes são repudiados, permitindo assim o seu uso.2

A sustentação do dispositivo psicanalítico, com sua concomitante maleabilidade e solidez, cria um ambiente facilitador ao viver criativo e ao contínuo desenvolvimento do idioma. Porém, assim como na díade materna, o analisando não se depara apenas com a realidade do enquadre e do método associativo mediante sua sobrevivência; depara-se também com a realidade do analista enquanto pessoa, seu idioma e subjetividade.

 

O idioma pessoal do analista

Em sua analogia com o papel do rosto materno, Winnicott (1971/2019a) desloca a ênfase da interpretação do psicanalista que visa decifrar conteúdos reprimidos para os efeitos de sua presença ao analisando, ou seja, para a experiência de intimidade que se constrói a cada dupla. Assim como o espelho materno não é um espelho de vidro, pura objetividade, também o psicanalista incluiria sempre algo de si na imagem refletida do analisando.

A prática clínica e a análise pessoal levam ao amadurecimento de uma identidade analítica ou estilo próprio. Nele, somam-se vivências culturais e biográficas a um precipitado de identificações com supervisores, colegas e autores de preferência. A disposição espacial do consultório, os trejeitos e atos ilocutórios, as variações no tom da voz e o modo como se realizam intervenções são elementos que se conjugam a muitos outros para compor uma estética singular. A presença do psicanalista, portanto, também se dá através de uma forma. É pela experiência do analisando com essa forma, ou seja, com a maneira do analista em se fazer presente por meio de sua fala e de seus silêncios, que sua função analítica é incorporada. Como já mencionado, a pessoalidade do analista e a apresentação do método psicanalítico são irredutíveis, não há um sem o outro.

O estilo do analista é um jeito vivo e mutável de estar consigo próprio e com o paciente. O estilo integral do analista está presente em cada sessão com cada paciente e, ainda assim, elementos específicos do seu estilo desempenham um papel maior do que outros com cada paciente dado em cada sessão. O estilo analítico impregna a maneira específica pela qual o analista se conduz na análise. O estilo modela e colore o método, e o método é o meio no qual o estilo ganha vida. (Ogden, 2012/2014, p. 170)

Retomando a proposição anterior da situação analítica como espaço potencial, em que se oferecem ao analisando condições para a organização da vida psíquica em termos estéticos, poderíamos agora parafrasear Winnicott, definindo-a como uma sobreposição não apenas de duas áreas do brincar, mas também de dois idiomas, do analisando e do analista, de onde emerge o objeto analítico.3

É na sobreposição de áreas idiomáticas que se realiza o dialeto próprio de cada dupla, uma comunicação cuja gramática e vocabulário estão sempre sujeitos a revisões. Nesse "jogo de idiomas", movimento intuitivo de mutualidade, analisando e analista evocam um ao outro diferentes elementos estéticos, que estabelecem entre si relações de consonância ou dissonância. Ainda que o pensamento clínico e as marcas do estilo próprio se conservem, o analista é convocado a comunicar-se sempre de um modo distinto: aprende-se a ser o analista de cada novo analisando, a cada nova sessão. A sessão de análise, em seu terreno intersubjetivo, estabelece uma comunicação relacional na qual o inconsciente do analista é requisitado pelo inconsciente do analisando. Ela é, portanto, uma criação colaborativa, embora assimétrica na colaboração.

 

Esboços de uma escuta clínico-musical

O exercício de escutar diferentes colegas debruçando-se sobre um mesmo material clínico é fonte de imenso aprendizado. Ainda que cheguem a consensos, e quer compartilhem ou não de um referencial teórico comum, suas observações dificilmente serão as mesmas. As ênfases interpretativas são colocadas em lugares diferentes, os silêncios têm sentidos diversos para cada um, e o mesmo sonho contado pelo analisando será sonhado de tantas formas possíveis quantos forem os analistas que se empenhem a compreendê-lo.

Proponho retomar as breves situações clínicas apresentadas no início deste artigo de uma perspectiva um tanto particular, relacionando a estrutura formal das sessões com formas musicais. Tais associações ecoaram em minha escuta e possibilitaram certas conjecturas sobre o padrão comunicativo que estava sendo estabelecido nesses atendimentos. Novamente, creio que essas mesmas situações poderiam ser discutidas de muitas outras maneiras. Poderiam ser abordadas em termos cinematográficos, literários, pictóricos, coreográficos ou de qualquer outro meio expressivo. Cada um deles traria potencialidades distintas para a compreensão, modelando e objetivando nosso pensamento. Por certo, não seria a mesma coisa abordá-las por um ângulo musical, figurativo, poético ou como um jogo de rabiscos: o meio expressivo, em sua materialidade conceitual, é um objeto que possui realidade própria ao uso. Somos aqui redirecionados ao idioma pessoal do analista como aquilo que lhe permite trabalhar do modo como trabalha e escutar do modo como escuta - enfim, para os limites de sua compreensão.

Em uma aproximação preliminar entre uma escuta clínica e uma escuta musical, poderíamos conceber as vinhetas iniciais como pequenas peças musicais, guardando a estética particular de cada um de seus compositores. Contam sobre o uso dos instrumentos oferecidos pela situação analítica para reverberar partes do self e o uso da mente do analista para seu processamento simbólico. O consultório se transforma em sala de concerto, cuja acústica silenciosa vem facilitar a audição e a execução subjetiva da partitura transferencialmente atribuída para o dia.

Por exemplo, enquanto me mantinha em silêncio com Daniel, ouvindo a amplitude dos ruídos da sala, com frequência me lembrava do célebre tacet 4'33" de John Cage,4 cuja execução tive a oportunidade de presenciar durante minha adolescência, em uma idade não muito distante da de Daniel. Foi uma experiência bastante impactante na época. Lembro ter ficado surpreso com o fato de que mesmo as risadinhas nervosas de alguém que estava perto e os bochichos de outros no fundo do auditório não incomodavam, como o faziam na sala de concerto. Ali, passavam a ser todos incorporados em um mesmo sentimento solene, quase sagrado, entre os que partilhavam aquele momento. Talvez tenha sido esse sentimento solene que reencontrei com Daniel e que me predispôs a aceitar a composição conjunta, em nossa quietude, de uma tessitura de sons, vindos de dentro e de fora.

No caso de Solange, sua observação perspicaz sobre os anúncios do fim da sessão e a intuição implícita de uma estrutura específica desvelaram a formasonata em nossas sessões: a exposição de um conjunto de temas iniciais (dois ou três principais), sendo desenvolvidos durante a hora analítica e recapitulados em seu fechamento. As três partes que compõem a forma sonata - exposição, desenvolvimento e recapitulação - criam um movimento processual, um percurso narrativo. Nesse esquema triádico e simétrico (a-b-a'), a seção de desenvolvimento realiza uma modulação da tonalidade original, retornando a ela na seção final, em um arco que expande caminhos sonoros de tensão e repouso, conflitos e reconciliações. De modo semelhante, com Solange a recapitulação do tema inicial não era uma repetição do mesmo, mas sim um reposicionamento decorrente do que fora desenvolvido naquele encontro. Embora fosse útil para descrever os deslocamentos de sentido que ali ocorriam, penso que para ela a sonata poderia cumprir também outra função, a de oferecer um vislumbre do encerramento desde o princípio. Isso facilitava o desvencilhar-se de minha presença, para que esta não ultrapassasse em demasia o espaço-tempo da sessão. Na nossa sonata, nos separávamos em uníssono, no acorde final.

Já as composições de Rafael e Carlos remetiam às formas clássicas da fuga e de tema e variações, respectivamente.5 Com Rafael, a sensação de estarmos em uma corrida de bicicletas, com ele disparando à frente e eu tentando segui-lo - muitas vezes, inclusive, atrasando-o, como sugeriu em sua fala -, tinha algo de semelhante ao contraponto imitativo que caracteriza a fuga. A sucessão de linhas melódicas que se repetem e as novas entradas temáticas em encadeamento associativo criam um movimento ininterrupto e acelerado, análogo ao que era contratransferencialmente experimentado por mim. Passávamos, Rafael e eu, um pelo outro, como vozes em defasagem que se perseguem sem coincidir, que se alternam entre consonâncias e desencontros, buscando, quem sabe, em algum momento, compartilhar um mesmo compasso.

Carlos, por sua vez, criava comigo o que musicalmente se aproximaria de uma composição em variações: um mesmo tema reiterado em diferentes contextos, ritmos, tonalidades, com alterações melódicas e harmônicas. Assim como nas nossas sessões, o tema principal permanecia como referência estrita para qualquer desenvolvimento possível que dele se pudesse fazer. Essa forma de compor fazia com que Carlos trouxesse para a sessão uma bússola temática, com a qual poderíamos explorar múltiplas potencialidades do mesmo, num samba de uma nota só. Com isso, decerto trazia para nossas conversas, em gesto, o risco terrorífico de perder-se em definitivo em território alheio.

 

Coda

Embora as vinhetas apresentadas tenham evocado formas tradicionais da música ocidental,6 outras situações poderiam evocar formas e gêneros musicais dos mais diversos. Da diluição formal na música atonal à saturação de ruído no trash metal, passando pela circularidade do minimalismo e do raga indiano, a rítmica monofônica do rap, a improvisação dialógica do jazz, a lentificação de uma marcha fúnebre ou a introspecção íntima de um noturno. Há em cada um deles uma lógica subjacente com a qual o analista sintoniza e responde. Bollas, referindo-se ao estado da mente do analista na comunicação inconsciente com o analisando, sugere que "ouvir música é estar acordado e ao mesmo tempo estar na lógica do sonho da criação de outra pessoa. Acho que isso também é verdade para a posição subjetiva do analista dentro da experiência psicanalítica" (2007/2013, p. 37).

É possível que, por vezes, a especificidade idiomática de cada analisando e a multiplicidade de configurações que o dispositivo analítico viabiliza turvem a nitidez da estrutura formal que ali se apresenta. A literatura psicanalítica habituou-se a enfatizar, por assim dizer, a melodia discursiva trazida pelo analisando e seus caminhos narrativos, mais do que a harmonia implícita na qual ela se apoia. Em outras palavras, as catexias de conteúdos inconscientes, mais do que a própria criatividade psíquica em organizá-los e efetuar suas articulações. Criatividade ou viver criativo, no sentido ontológico aqui empregado, podem ser compreendidos como a habilidade em articular o próprio idioma de maneira autêntica.

Há, entretanto, circunstâncias em que a estrutura composicional se torna um objeto psicanalítico em si mesma, trazendo contribuições para o trabalho de representação; afinal, forma e conteúdo são sempre indissociáveis. Na escuta clínica, a totalidade harmônica e rítmica da sessão se funde aos meandros de suas melodias e intervalos sonoros, como um edifício feito de muitos tijolos. A frase melódica e a harmonia se correspondem e se adensam: assim como o tijolo está contido no edifício, de certo modo o edifício também estaria presente no tijolo. Recorrendo a uma metáfora mais comum em nosso meio, a percepção dessa estrutura composicional, onde se expressam os dialetos de uma dupla, poderia proporcionar ao analista uma lente grande-angular de captação ampla, complementando assim o seu olhar microscópico do encontro.

O uso da forma musical como modelo para a elaboração imaginativa da sessão de análise organiza um modo de pensar e apreender fenômenos específicos que ali se apresentam. É um modelo, portanto, que incide interpretativamente na escuta e no manejo clínico. Ainda que os objetivos e compromissos éticos do fazer musical e do psicanalítico não se confundam, seus elementos estéticos podem vincular-se a um substrato comum, o idioma, em uma aproximação que põe em relevo o registro criativo do par analítico. A construção dessa confluência idiomática guarda em seu bojo um potencial transformacional; porém, como qualquer outra construção, essa não se faz ausente de destruições e perdas, sejam elas em maior ou menor grau.

Algo semelhante talvez possa ser dito com relação à escrita em psicanálise. O analista, enquanto autor, inevitavelmente organiza o relato do seu trabalho clínico a partir de seu próprio idioma. Deixa então ao leitor a tarefa de realizar o mesmo em sua leitura, estabelecendo um diálogo com o texto, dando continuidade a ele com suas próprias associações. Diante da oferta de objetos que um texto oferece, cada leitor poderá reinventá-lo criativamente em suas desleituras. Abre-se, então, espaço para que essa seja uma experiência viva, uma composição feita, no mínimo, a quatro mãos.

 

Referências

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Pontalis, J.-B. (2005). Nascimento e reconhecimento do self. In J.-B. Pontalis, Entre o sonho e a dor (C. Berliner, Trad., pp. 169-200). Ideias & Letras. (Trabalho original publicado em 1977)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (2019a). O papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In D. W. Winnicott, O brincar e a realidade (B. Longhi, Trad., pp. 177-188). Ubu. (Trabalho original publicado em 1971)        [ Links ]

Winnicott, D. W. (2019b). O uso de um objeto e a relação por meio de identificações. In D. W. Winnicott, O brincar e a realidade (B. Longhi, Trad., pp. 141-153). Ubu. (Trabalho original publicado em 1971)        [ Links ]

Wisnik, J. M. (2007). O som e o sentido. Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1989)        [ Links ]

 

 

Recebido em 19/1/2021
Aceito em 15/3/2021

 

 

1 Masud Khan (1988/1991), um elo entre as afinidades e discordâncias entre Bollas e Winnicott, realiza uma interessante crítica aos termos verdadeiro e falsoself, considerando-os uma escolha infeliz e sugerindo que selfautêntico e reativo seriam termos mais fidedignos à epistemologia que os sustenta.
2 Michael Parsons relata com ironia ter ouvido certa vez alguém dizer: "Não acho que meu analista era grande coisa, mas o processo analítico era surpreendente!" (1995, p. 60).
3 Utilizo aqui o termo de Bion no sentido que Green lhe confere, o de uma criação conjunta realizada pela dupla: "O verdadeiro objeto analítico não estaria nem do lado do paciente, nem do lado do analista, mas na reunião desses dois discursos no espaço potencial que se encontra entre eles, limitado pelo enquadre que se quebra a cada separação e se reconstitui a cada reunião" (1974/2017, p. 90).
4 Obra que leva a música aleatória aos limites, com o pressuposto de que, "em qualquer lugar que seja, o que mais ouvimos é ruído. Quando o ignoramos, ele nos perturba. Quando paramos para ouvi-lo, descobrimos que é fascinante" (Cage, 1961/2019, p. 3).
5 A fuga assim como as variações podem ser consideradas tanto formas musicais em si quanto procedimentos para o desenvolvimento do material sonoro, sendo nesse caso utilizadas em outras formas, como a sonata.
6 Para uma discussão mais aprofundada sobre a pertinência atual das formas clássicas, em vez de sua obsolescência ou supressão por linguagens contemporâneas, ver Wisnik (1989/2007). Nessa obra, o autor traça uma esclarecedora concepção cíclica da história da música, onde as pontas se tocam ao redor de uma mesma exploração do pulso e das alturas sonoras. Tal concepção é também oportuna para pensarmos como, anacronismos à parte, certas explorações psicanalíticas realizadas há mais de um século permanecem de grande relevância para indivíduos e para uma época e cultura tão diferente daquela em que surgiram.

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