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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.2 São Paulo abr./jun. 2021

 

TEMÁTICOS

 

Atendimento psicanalítico por telefone: Donald Winnicott, Walter Benjamin, a clínica no país das vozes1

 

In treatment Psychoanalysis through phone calls: Benjamin, Winnicott, the clinic in the land of voices

 

Tratamiento psicoanalítico por teléfono: Benjamin, Winnicott, la clínica en el país de las voces

 

La psychanalyse par téléphone : Benjamin, Winnicott, la clinique au pays des voix

 

 

Luiz Eduardo Prado

Psicanalista. Membro do Espace Analytique, Paris. Professor emérito. Coeditor internacional da Revista Brasileira de Psicanálise. Paris / ledprado@gmail.com

 

 


RESUMO

A partir da experiência de atendimento telefônico, o autor aborda outras, literárias e psicanalíticas, de uso do telefone e do rádio, aqui entendido como telefonema a um grande número de pessoas. Após aludir às maneiras inaugurais de considerar o telefone, sobretudo com Roland Barthes e Marcel Proust, estuda as experiências de Donald Winnicott e Walter Benjamin.

Palavras-chave: psicanálise, telefone, clínica, Donald Winnicott, Walter Benjamin


ABSTRACT

From the experience with telephone assistance, the author approaches others, literary and psychoanalytically, through telephone and radio, here understood as phone calls to a large number of people. After alluding to the inaugural ways of considering the telephone especially by Roland Barthes and Marcel Proust, he studies the experiences of Winnicott and Benjamin at length.

Keywords: psychoanalysis, telephone, clinic, Donald W. Winnicott, Walter Benjamin


RESUMEN

A partir de nuestra experiencia de asistencia telefónica, el autor se acerca a otras, literarias y psicoanalíticas, de uso telefónico y radiofónico, entendido como llamada telefónica a un gran número de personas. Tras aludir a las formas inaugurales de considerar el teléfono, especialmente con Roland Barthes y Marcel Proust, estudia detenidamente las experiencias de Winnicott y Benjamin.

Palabras clave: psicoanálisis, teléfono, clínica, Donald W. Winnicott, Walter Benjamin


RÉSUMÉ

À partir de notre expérience en matière de soins par téléphone, l'auteur aborde une expérience d'utilisation de la radio, laquelle est comprise ici comme un appel téléphonique à un grand nombre de personnes. Après avoir fait allusion aux premières façons d'envisager le téléphone, notamment avec Roland Barthes et Marcel Proust, il étudie longuement les expériences de Donald W. Winnicott et Walter Benjamin.

Mots-clés: psychanalyse, téléphone, clinique, Donald W. Winnicott, Walter Benjamin


 

 

No país das vozes, há também uma Floresta Negra, e também aldeias, e também rios, e também nuvens, tal como na Terra. Só que lá não se pode vê-los, só se pode ouvi-los. E assim, na Terra, não se vê tudo o que acontece no país das vozes, apenas se ouve. No entanto, dificilmente entramos nele sem encontrarmos nosso rumo tão bem quanto aqui na Terra.

walter benjamin

Exilados no país das vozes, nossas angústias, desejos, alegrias, tristezas, erotismo, paixões, preocupações, sonhos, vida nua tomam esta forma inédita, da qual nunca se ouviu falar, de uma terra só de vozes, desencarnadas.

 

Experiências de vozes

Éramos cinco, cada qual caldeirões de experiências, vindos de diferentes horizontes distantes, em direção a mundos separados. Encontramo-nos lá, no país das vozes. Em um grande hospital, organizávamos um serviço de escuta telefônica para quem não se atrevia, não podia vir, e que telefonava de toda parte, até mesmo da vizinhança, às vezes. Eram mulheres, alguns homens e mesmo crianças, pequenas ou grandes. Vozes no telefone, confiando soluços, risos, durante algum tempo, inesperadas, de maneira regular ou não. No país das vozes, como na vida real de carne e osso, de gente presente, compromissos são mantidos. Ou não.

Vozes lembram outras vozes, nossas, em nós, sons, melodias, ritmos, barulho, gritos, há muito esquecidos, adormecidos, inconsciente acústico, auditivo, sonoro. As vozes do outro lado da linha chegam em torrentes, cascatas, enchentes; às vezes trêmulas, desaparecendo, fiapos de voz; algumas suaves, pausadas, claras; outras estridentes, gaguejantes. Esperamos algumas vozes; outras, menos. Algumas nos apavoram. Algumas são leves; outras, pesadas, invasivas, perfurantes. Algumas falam de amores, desiludidas, perdidas, dolorosas; de fúrias, raivas assassinas; de novos encontros, de esperanças renascidas, querem conselhos. Algumas contam sonhos; outras, insônias. Falam de sua vida, de desejos suicidas, de morte. Ainda há as que falam disso tudo junto, ao mesmo tempo, emaranhadas, confusas, lianas enroscadas.

Parece que Freud não gostava do telefone, ele que, entretanto, gostava de escutar. Será que ele sentia, previa, que o telefone é sempre uma cacofonia, e que o que ele deixa passar é a voz má, a comunicação falsa? Pelo telefone, sem dúvida, tento negar a separação - como a criança que, relutando em perder a mãe, brinca de manipular sem descanso um barbante; mas o fio do telefone não é bom objeto transicional, não é um barbante inerte; ele tem um sentido, que não é o da junção, mas o da distância: voz amada, cansada, ouvida ao telefone: é o fading em toda a sua angústia. Para começar, quando essa voz chega até mim, quando está lá, quando dura (com grande sacrifício), nunca a reconheço completamente. ... E depois, o outro está sempre prestes a partir: ele se vai duas vezes, pela sua voz e pelo seu silêncio: de quem é a vez de falar? Nós nos calamos juntos: acumulação de dois vazios. Vou te deixar, diz a cada segundo a voz do telefone. (Barthes, 1981, p. 109)2

 

Clínica

Esta voz fala de não mais aguentar ser espancada e de, apesar disso, ficar. Esta outra fala de seu espanto por ter sido espancada e por ainda pedir mais. Uma descreve sua dor, sua surpresa, a primeira vez; depois, seu espanto assistindo ao desenrolar da cena, abrandando sua paixão, sua capacidade de domínio; a seguir, o desencadeamento, a tempestade, a violência surpreendente, que a assustou, não tanto a do outro, mas a sua própria contenção, contendo a violência do outro, voltando-se contra ela, envolvendo o outro, dominando-o, sabendo que iria parar, perguntando-se quando iria parar, se ainda poderia impedi-lo, tristemente, triunfante, lamentando se alegrar, preparando-se para o momento do lamento, com os vizinhos, com a vendedora de frutas e legumes, os detalhes, sua consternação por ter de falar, de contar, seu nojo de si mesma pela compulsão de se expor, se exibir, e concluir dizendo: "É o meu homem de qualquer maneira, nos amamos"; a triste surpresa do outro: "E logo você, tão linda!"; finalmente telefonava para o hospital, para o nosso serviço, a voz.

Havia a voz de um homem espancado pela mulher. Ele, o segurança noturno, o monstro de músculos; ela, o peso-pena, a frágil flor. Ela disse: "Sente-se aqui"; ele obedeceu. Ela começou; ele não se importou. O que o incomodava era ser visto no estado em que ela o deixava, ir trabalhar, envergonhar-se, mentir, inventar brigas. A voz telefonava, não se queixava, não denunciava, simplesmente não entendia, era mais forte do que ela.

A voz de uma criança telefonando para perguntar se era normal que os pais a amarrassem ao pé da mesa quando saíam para o trabalho. Aquela outra, que perguntava se era normal que o pai a tocasse, ela e o irmão, aqui e ali, e que a mãe soubesse, visse, sem dizer nada.

E nós, ouvintes, depositários, destinatários, caixas de discurso; não nos faltavam palavras, segundo a inspiração, para nos designarmos a nós mesmas(os), tentando refletir por nossa parte. Também nós, entre nós, organizávamos nossa própria sala de vozes, onde, no final do dia, guardávamos nossos diários de bordo; nós, marinheiras, marinheiros, entregues aos cantos das nossas sereias, vagando, divagando, terra de sonhos, pesadelos. Nas cartas que deixávamos uns aos outros, apareceu este denominador comum, o formidável deslocamento dos mastros dos nossos barcos, das nossas naves, real, simbólico, imaginário, risos, surpresas, invenções, razão, sonho, inquietude.

Por vezes, um sonho, um encontro. O sonho: encontrávamo-nos todos, sala grande, nós num canto, um pequeno círculo. Curiosamente, outras pessoas presentes. Falavam, nos perturbavam. Perto do nosso grupo, um jovem ouvia rádio. Intervim, pondo as coisas em ordem; nos despedíamos umas(uns) das(os) outras(os). Uma colega contava o que tinha ouvido. Outros faziam perguntas, comentavam, falavam de suas aventuras como ouvintes de vozes femininas. A certa altura, alguns jovens chegavam, brincavam de futebol; outros esperavam que nosso grupo fosse embora. Nossa reunião terminava. Andávamos pelas ruas entre edifícios, íamos embora, voltávamos para casa, separávamo-nos. Eu anotava nomes, endereços eletrônicos, números de telefone dos participantes, dos que haviam ficado - a maioria já se tinha ido. Outros jovens chegavam, convidavam-me para um ensaio de música, para um concerto. Tudo sonho. Na realidade, só existem vozes. E nossos telefones, fios, cabos, fones, amplificadores.

Não sabíamos que Walter Benjamin, importante filósofo alemão do século xx, já tinha se interessado pelo telefone em sua autoanálise, cujo relato aparece em Infância berlinense: 1900. Nela, por assim dizer, faz uma primeira fenomenologia descritiva do telefone, "seu irmão gêmeo". Diz dele que, para os jovens, "era o consolo da solidão. Para os desesperados que queriam deixar este mundo imperfeito, ele brilhava com a luz da última esperança. Partilhava a cama com os abandonados" (2013b).

Barthes concordaria com esta observação de Marcel Proust:

Descobre-se ao telefone as inflexões de uma voz que não se pode distinguir até que seja dissociada de um rosto onde aparecia sua expressão ... com a mesma ingenuidade daqueles que acreditam que é a própria palavra pronunciada que viaja ao longo dos fios do telefone. (citado por Barthes, 1981, p. 109)3

Curiosamente, Barthes parece ter esquecido a onipresença do telefone para Proust e em seus livros.

Em seu estudo sobre O tempo sensível, Julia Kristeva havia descrito dois horizontes da experiência proustiana: "o horizonte exterior das coisas que dão suas qualidades à clareza de nossa consciência; o horizonte interior de sua escuridão que nos escapa". O telefone, de forma única, confunde esses dois horizontes, interpenetração exterior e interior. O grão da voz aglutinado ao seu ambiente não se distingue dele: o continente torna-se conteúdo. ... Idealmente, o telefone é um dispositivo para dobrar o tempo e o espaço, uma miniatura ou atalho para o objetivo geral de Em busca do tempo perdido, espécie de loop dentro do próprio projeto literário. Mas, como já vimos, é atalho imperfeito, inevitavelmente decepcionante. (McCarthy, 2016)

Encontraremos essa observação do abismo entre o que é comunicado e os meios de comunicação em Winnicott e em Benjamin.

Agora que voltou o tempo das vozes, agora que estamos novamente exilados, pendurados em telefones, relemos Tristes, de Ovídio, outro exilado em terras bárbaras, longe de Roma, com saudade das vozes de sua cidade.

 

Winnicott

Donald Woods Winnicott, conhecido como D. W., também frequentava o país das vozes. Entre 1939 e 1962, manteve conversas pelo rádio, na bbc. A radiotelefonia é extensão da telefonia, um telefonema para a multidão. Entre as experiências pioneiras desse entrelaçamento de telefonia e rádio, está a teatrofonia, antepassado distante de nossas atuais telenovelas.4 As mais interessantes palestras de Winnicott foram feitas entre 1939 e 1944, quando sua voz enfrentava o assobio das bombas alemãs. Falava aos pais, especialmente às mães, sobre suas vidas, seus filhos e filhas, dizendo-lhes que os ouvissem, que prestassem atenção ao que falavam, falando ele próprio, contra as bombas, palavras de intimidade. Algumas de suas falas aparecem em Tudo começa em casa; outras em Acriança e a família,Acriança e o mundo exterior e Os bebês e suas mães. É nessa aventura que o próprio Winnicott se confronta com o monstro nazista. Essas falas no rádio são a base e tecem o fio condutor de seu trabalho futuro. O enquadre inaugural para Winnicott é a guerra. As mães e as crianças, as famílias restritas com as quais conversa, vivem a guerra, ouvem-na ou já a ouviram debaixo de bombas. Quanto às suas famílias de origem, amplas, os avôs e avós das crianças, mães, pais, maridos, irmãs e irmãos, a guerra e os anos do pós-guerra sumiram com eles, os dispersaram, deixando essas mães sozinhas com suas crianças.

Bombardeadas, isoladas, sem marcos, a bbc transmite a essas famílias a voz de Winnicott, criando ambiente seguro, envelope sonoro acolhedor, significando mundos desaparecidos, promessas de mundos por vir. Quando sua voz transmite tranquilidade às mães, ensina o que podem aprender, Winnicott faz trabalho pioneiro com mães isoladas, sozinhas (cf. Winnicott, 1950/1999b).5 O rádio e as vozes são fundamentais, tecem elos. A clareza do estilo de Winnicott está ligada à situação de seus ouvintes e leitores: ele tem de falar claramente sobre a vida cotidiana e, se possível, transmitir noções psicanalíticas. Esquecemos frequentemente tudo isso, se é que o sabíamos. Um artigo providencial nos lembra ou ensina o que se passou:

Quando fala no rádio, Winnicott está na encruzilhada da política, das questões sociais e clínicas, num lugar que as questiona de forma bastante exemplar. ...

Porque, se os programas estão inteiramente centrados na dor das famílias e no destaque dos conflitos psicológicos inconscientes induzidos pelo deslocamento forçado das crianças, qualquer dimensão polêmica de crítica ou contestação do plano [de deslocamento] é excluída. O reconhecimento e a partilha pública da dor das famílias aparecem também como meio de apoiar a legitimidade da lógica do Estado. Em outras palavras, o trabalho de reconforto de Winnicott nas ondas de rádio é capaz de proporcionar condições satisfatórias para a execução do plano de deslocamento das crianças, cujas imperfeições, limites e riscos Winnicott percebe muito cedo.

O envolvimento de Winnicott na frente de retirada das crianças é, de fato, multifacetado. Para além do rádio, realiza várias ações confidenciais relacionadas com a mudança das crianças. Como psiquiatra consultor do plano de deslocamento do governo, escreveu várias cartas para alertar as autoridades sobre os riscos associados à retirada das crianças. ...

É interessante notar que, na ordem de suas comunicações de rádio de 1939 a 1945, foi primeiro aos pais e especialmente às mães que ele se dirigiu.

O tom que Winnicott deu à sua primeira intervenção radiofônica durante o primeiro deslocamento de crianças foi inequívoco. Ele o descreve como uma "grande provação" para os pais, refere-se aos "gritos de ajuda" das mães privadas dos seus filhos, e inicia todas essas conversas com famílias dizendo estas palavras: "São os pais quem mais sabe o que é melhor para os filhos em termos de cuidados infantis".

Esta emissão vem logo após a primeira leva de deslocamento de crianças. Algumas centenas de milhares de crianças foram brutalmente separadas dos pais, [deixados estes] sem qualquer informação, no momento da partida, sobre onde e com quem os filhos ficariam. É nesse contexto de extrema emoção que devemos situar esse primeiro programa, no qual Winnicott insiste na intensidade do choque emocional causado em toda a população por tais separações, inesperadas, repentinas e, em termos de comunicação e diálogo, muito mal preparadas pelas autoridades. As críticas ao plano de deslocamento das crianças centraram-se precisamente no caráter secreto da sua execução e na falta de verdadeira consulta às autoridades locais e às famílias.

Não é certamente insignificante que Winnicott comece essa primeira emissão reafirmando o caráter fundador da função parental e a importância do conhecimento dos pais sobre os filhos - atacados pelo aspecto puramente estatal, dirigista, maciço e pouco personalizado do deslocamento das crianças - e que termine a conversa insistindo no indispensável reconhecimento da dor das famílias. Como tal, essa primeira emissão é mensagem de reconhecimento público, em muitos aspectos política, da dor das famílias, que sai assim do estatuto de experiência privada e adquire o de experiência coletiva e compartilhada. Daí para fazer do deslocamento das crianças uma contribuição aos esforços e sacrifícios exigidos à nação... há somente um passo, que Winnicott não dá!

Há, segundo ele, algo irredutível na dor das famílias, que nada pode circunstanciar ou realmente justificar. No entanto, trata-se de tornar essa dor suportável, o que parece implicar a aceitação do plano, com todas as suas consequências.

Cuidar de crianças pode ser um trabalho árduo e desgastante, pode ser sentido como uma verdadeira tarefa de guerra. Mas ser privado dos próprios filhos é um tipo bem miserável de tarefa de guerra, que dificilmente terá algum atrativo para qualquer mãe ou qualquer pai, e somente poderá ser tolerado se o seu aspecto infeliz for devidamente levado em conta. (Lecadet, 2002, pp. 71-74)

Outra abordagem psicanalítica retoma essa perspectiva clínica e política da obra radiofônica de Winnicott, trazendo alguns esclarecimentos. A estes acrescentamos que a publicação brasileira dessa parte da obra do autor insiste em seu caráter pediátrico-psicanalítico, esquecendo sua importância durante a guerra - e o fato de serem textos que faziam parte da guerra psicológica contra os nazistas, lidos ao som de bombas.

As conversas de rádio de Winnicott foram transcritas e publicadas numa série de apostilas sobre crianças. ... As primeiras entrevistas foram publicadas em 1945, com o título Getting to know your baby; uma segunda apostila, The ordinary devoted mother and her baby, rapidamente seguiu à primeira. Essa segunda, para além das primeiras conferências, incluiu nove (das doze) conferências subsequentes que Winnicott fez por volta de 1949-1950. ... Ambas as publicações rapidamente se esgotaram. Em resposta a pedidos públicos de reimpressão, [foi] publicado em 1957 The child and the family [A criança e a família]. ... Algumas conversas, principalmente sobre o deslocamento das crianças em tempo de guerra, foram incluídas no volume The child and the outside world [A criança e o mundo exterior]. Em 1964, foi publicada uma seleção dos dois volumes sob o título The child, the family and the outside world.6

As conversas de Winnicott na bbc não foram gravadas no momento em que foram feitas. (A menos que o valor histórico de um discurso pudesse ser determinado na época da emissão - como o discurso público da futura rainha ou mesmo o breve discurso de Freud na bbc - a maioria das gravações da época eram consideradas demasiado caras e incômodas para serem conservadas.) Mas sabemos que Winnicott, por razões desconhecidas, regravou novamente onze dos seus discursos no rádio. Embora não sejam as transmissões originais, essas gravações são notáveis pela forma como transmitem algo do ambiente em áudio que ele criou durante a guerra. Para além do assobio e dos barulhos que marcam a tecnologia sonora da época, o que é claro é a cadência e o tom consistente de Winnicott, sua expressão cuidadosa e suas pausas deliberadas. O que também se destaca é a "seriedade do ser", apesar da qualidade fugaz e efêmera da sua voz.7 ...

Ao lembrar aos ouvintes que o próprio fundamento da comunicação é o fracasso da comunicação perfeita, Winnicott desconstruiu a qualidade do meio sobre o qual falava. Sempre analista, Winnicott viu o fracasso como instrutivo: "Espera-se que a política da bbc continue a ser a de prestar um serviço social, dando tempo à educação sanitária que leve em conta as dificuldades inerentes à radiodifusão".8

Uma história bem fundada [sound history] das emissões radiofônicas de Winnicott deixa-nos com uma teoria da comunicação maravilhosamente desconfortável, um desafio à psicanálise: contar "as dificuldades inerentes à vida" ao mesmo tempo que se contam as "dificuldades inerentes" ao próprio esforço de contá-las. Ao manter essa brecha aberta - devido à falha da comunicação perfeita - Winnicott transmitiu as condições para a renovação narrativa necessária para dar sentido ao ruído insensato da experiência de guerra. (Farley, 2012, p. 466)

Importa sublinhar:

Nada disso teria sido possível sem o diretor da bbc, John Reiss, que na década de 1930 foi descrito com alguma ironia como "o Napoleão da radiodifusão". Embora tornando a informação acessível a muitos, havia uma retórica do poder imperial em ação na crença desse diretor no poder divino do rádio para mudar as mentes. (p. 467)

Ao falar no rádio sobre as crianças deslocadas, Winnicott deve assumir cada um dos papéis: é mãe e pai acolhedores, fala do ponto de vista deles; é a criança que partiu, arrancada de sua vida familiar, que se reconciliou com sua nova realidade, mas da qual logo precisará separar-se. Winnicott é também homem da experiência, avô conselheiro, avó benevolente, tio protetor, tia amiga, psicanalista. Ele parece muito próximo da peça de teatro radiofônica e, no entanto, mantém seu lugar (cf. Winnicott, 1945/1987a, 1945/1987b, 1945/1987c).

Perfeitamente a par do que se passava no mundo do rádio, Reiss, diretor-geral da bbc, não teria ignorado o trabalho de um filósofo que enfrentava o uso totalitário do rádio e compreendera as múltiplas utilizações da voz. Tal filósofo lançara os fundamentos do que Winnicott punha em prática agora. Não há nada que indique que o psicanalista conhecia o filósofo ou sua obra sobre o rádio. O comandante da bbc certamente o leu e ouviu em 1936, ano da publicação de seus livros, e a partir de 1928, ano em que suas emissões começaram na Alemanha, onde o nazismo despontava com força e essas emissões de rádio eram instrumento de luta contra os nazistas.

Lembremos que tão importante quanto o que Winnicott dizia era o lugar de sua fala: a bbc, um organismo do Estado britânico, com presença dos serviços secretos britânicos, os quais, alertados sobre os bombardeios alemães, o orientavam a fazer tais palestras. Bombas caíam ou tinham caído, e Winnicott falava da mãe despossuída ou da amamentação dos bebês. Entre a bbc, Winnicott e as mães se deslocavam real, simbólico e imaginário. Quem dirigia a bbc, ou até os próprios serviços secretos, tinha a obrigação de ler os livros do filósofo que combatera o nazismo por meio da radiofonia e, a partir dele, orientar Winnicott. As conversas de Winnicott não eram de sua iniciativa, mas se enquadravam no esforço de guerra psicológica do governo britânico. A divulgação ulterior da obra de Winnicott esconde esse fato.

Imaginemos: um serviço de rádio hoje no Brasil, direcionado à população mais atingida pela guerra cotidiana que vive o país, fazendo um trabalho comparável ao de Winnicott, atento às mães e aos bebês, aos pais e às famílias, das favelas, das periferias. Mesmo sem bbc no Brasil, algum serviço de rádio poderia assumir tal tarefa.

 

Benjamin

Sabemos ainda menos, e nos esquecemos ainda mais, da relação de Walter Benjamin com a psicanálise e com o rádio. Temos vaga noção de sua autoanálise; ignoramos seus esforços com os sonhos, escrevê-los, associar com eles, religá-los à infância; nem temos ideia de seu interesse pela análise da linguagem das crianças. Foi tudo isso que o levou ao país das vozes entre 1927 e 1933. Winnicott chega a um país descoberto por Benjamin, sobre o qual este tem experiência pessoal, conhecimento amplo e diversificado, em especial no campo da infância, da adolescência e do brincar mediados pela voz. Em período conturbado da história de seu povo, quando violentos combates nas cidades alemãs se multiplicam, Benjamin vê o rádio e as suas emissões como instrumentos de luta política.

Ele compreendeu rapidamente a incrível popularidade do rádio e sua capacidade de influenciar a vida das pessoas. Benjamin retrata situações da vida cotidiana - por exemplo, a forma ideal de evitar que uma disputa doméstica termine em divórcio. Seus diálogos, por mais espantosos que sejam, são sobretudo didáticos. O espaço radiofônico, não como instrumento de popularização mas pelo interesse que suscita junto a vasto público, torna-se para Benjamin o lugar por excelência para a aplicação prática das suas reflexões sobre os meios de reprodução técnica e de popularização da cultura. Com humor, um talento inegável para a direção e um espírito de diálogo, ele mostra que o rádio é um instrumento literário, pedagógico e cultural excepcional.

Desde os anos 1920 até o início da década de 1930, Benjamin teve um interesse clínico pela infância (Gess, 2010). Estudou de perto a língua da criança, a partir de uma vasta bagagem cultural e de sua experiência pessoal (Sekkel, 2016). Finalmente, realizou uma autoanálise formidável, cujas ramificações estão longe de ter dado frutos no campo psicanalítico (Benjamin, 2013a; Taïeb, 2019).

Da reflexão sobre como evitar que disputas acabem em divórcio à preocupação de apoiar mães e casais que cuidam dos filhos debaixo de bombas, só há um passo. O comando dessa nova frente de guerra psicológica no rádio, direcionada às famílias e à vida íntima, cabe a Winnicott, que parece receber missões específicas, inspiradas em Benjamin, cujas teses e emissões no rádio ainda enchiam os ares.

Para Benjamin, tudo começou com o que ele vê como o empobrecimento geral da experiência e o estreitamento, ou mesmo o desaparecimento, da voz do narrador. Emudeceram depois da Primeira Guerra Mundial, com uma geração que, "entre 1914 e 1918, teve uma das experiências mais monstruosas da história do mundo. ... Não seria possível, aqui, fazer a seguinte observação: as pessoas voltaram da guerra em silêncio?". Sua reflexão prossegue:

Não mais ricos, mas, pelo contrário, mais pobres em experiências transmissíveis. O que se derramou no fluxo de livros sobre a guerra durante os dez anos seguintes foi algo muito diferente da experiência que se espalha de boca em boca. ... É cada vez mais raro encontrar quem saiba contar algo corretamente. O embaraço alastra-se cada vez com mais frequência na assembleia quando se exprime o desejo de ouvir uma história. É como se uma capacidade que nos parecia inalienável, como se a mais certa das nossas certezas, estivesse nos sendo retirada. Ou seja, a capacidade de trocar experiências. (Benjamin, 2018, pp. 38-39 e 54-55)

Winnicott restabelece em Londres a capacidade de contar experiências íntimas de forma clara, criando a base para a troca de experiências. Há duas áreas em que a experiência de Benjamin, inspirada por seu amigo Bertolt Brecht, lança uma luz particular sobre a experiência de Winnicott na bbc: a luta pela democracia através do rádio e as histórias radiofônicas para crianças e adolescentes, em que predomina a noção de brincadeira. Em ambos os casos, o objetivo é desconstruir o caráter totalitário do rádio e afirmar os valores democráticos. Implica também "utilizar fatos inspirados em situações cotidianas para desenvolver um verdadeiro método de análise comportamental" (Baudouin, 2014, p. 12), com base numa dialética que leve em conta os vários assuntos envolvidos numa dada situação. Durante esses anos, até 1932, Benjamin produziu 95 programas sobre infância e adolescência, para crianças e adolescentes. Alguns desses programas pareciam antecipar as teses de Winnicott sobre adolescentes antissociais, como "O jovem nunca diz a verdade", emitido em 1.º de julho de 1931. Em 1928 fez duas emissões de rádio sobre "A criança e a mentira" e "A criança e o medo". A estas, Benjamin acrescentaria outras, incluindo "Um garoto de rua berlinense" e "Os hlm".9 Todos esses programas tratam de temas muito próximos dos jovens, de forma alusiva ou direta. No texto de 1930 "Reflexões sobre o rádio", Benjamin sublinha a necessidade urgente de transformações que reformulem a relação entre o orador e o ouvinte, por meio de um trabalho sobre voz, dicção, entonação e ritmo, e mediante temas que abordem a intimidade do ouvinte, despertem seu interesse, o aproximem da pessoa que lhe fala. E mesmo de maneira mais complexa.

Benjamin fala às crianças e aos jovens para esclarecê-las (Aufklärung), para lhes revelar o mundo. Mas, ao fazê-lo, mostra-lhes também seu lado sombrio, suas catástrofes e suas vítimas. ... Nem autor nem narrador, a voz narrativa que aqui se exprime é mais a de um "contador de histórias". Benjamin usa o rádio precisamente para redescobrir essa forma "arcaica" de narração (mündliches Erzählen), a fim de criar maior proximidade com o seu público. (Lévêque, 2010)

Nisso reencontramos, de forma diversificada, multiplicada, caleidoscópica, a complexidade das posições de Winnicott em suas próprias emissões de rádio em tempo de guerra, sob as bombas.

Também reencontramos configurações e distribuições do real, do simbólico e do imaginário. Onde se situariam Benjamin e seus jovens ouvintes, os diretores das rádios de Berlim e de Frankfurt, os combates de rua entre fascistas e comunistas, nos quais o filósofo pretendia intervir falando sobre o linguajar das ruas da cidade ou contando histórias para crianças sobre o reino das rãs? E onde se situaria Winnicott contando suas íntimas e tão verdadeiras histórias sobre bebês e suas mães, enquanto caíam bombas?

 

Retorno à clínica

As experiências de Benjamin e de Winnicott no país das vozes permitem-nos lançar nova luz sobre nossas próprias experiências: real, simbólico, imaginário, risos, surpresas, invenções, razão, sonhos, inquietudes - para eles, como para nós, os mesmos. Em cada ocasião se reconfiguravam de diferentes maneiras. Para eles, como para nós, cada uma dessas coordenadas se desloca, se conforma ou se deforma em relação às outras, em cada situação, criando novas perguntas muito mais que certezas, em domínios onde a voz, a musicalidade e o ritmo prevalecem enquanto significantes importantes junto a outros. Cabe a cada um reinventar cada um desses elementos em suas práticas, lembrando sempre que o sujeito recebe do outro sua própria mensagem em forma invertida.

Através da voz e do rádio, o enquadre e a transferência são reconstituídos. Benjamin convidava à criação de uma nova narrativa. Winnicott fez uma primeira experiência, baseada em palavras antigas, sobre corpos, gestos, intimidade, medos, angústia, alegria, ternura e acolhimento, dirigida a mulheres, homens, crianças, violentamente privados delas. Para fazê-lo, ele e Benjamin tinham apenas um instrumento: a voz apoiada por tudo à sua volta, arma do pensamento, individual e coletivo, contra o mesmo totalitarismo, pela mesma democracia, ampliando espaços de jogo, brincadeira e poesia. Cabe-nos, hoje, retomar essas experiências. Já pensaram? Já pensaram se alguém entre nós combatesse no rádio como o fez Benjamin, transformando o rádio numa imensa brincadeira com jovens desfavorecidos e para eles? Uma espécie de Chacrinha politizado? Se alguém entre nós combatesse sobre as ondas como o fez Winnicott, falando calmamente com as mães, com os pais, com as crianças, com as famílias de nossa gente tão carente, tão desprotegida, tão abandonada de tudo? Já pensaram?

 

Referências

Barthes, R. (1981). Fading. In R. Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso (H. Santos, Trad., pp. 107-111). Francisco Alves.         [ Links ]

Baudouin, P. (2014). Walter Benjamin au pays des voix. In W. Benjamin, Écrits radiophoniques (P. Ivernel, Trad., pp. 7-15). Allia.         [ Links ]

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Benjamin, W. (2013a). Infância berlinense: 1900. In W. Benjamin, Rua de mão única. Infância berlinense: 1900 (J. Barrento, Trad.). Autêntica. https://amzn.to/3tcvepe        [ Links ]

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Recebido em 2/3/2021
Aceito em 19/4/2021

 

 

1 Escrito com a colaboração de Marta Raquel Colabone (historiadora, psicanalista, membro do Centro de Estudos Psicanalíticos [cep], São Paulo) e de Vera Lucia Dutra (psicanalista, Rio de Janeiro).
2 Barthes acrescenta esta citação: "Expliquei à mãe que o menino estava lidando com um temor de separação, tentando negá-la através do uso de cordões, tal como, através do uso do telefone, se negaria a separação de um amigo" (Winnicott, 1971/1975, p. 33). A respeito de Freud, ver Sigmund Freud: man and father (1958), de Martin Freud.
3 Tradução adaptada.
4 A teatrofonia foi inventada por Clément Ader em 1881. Desde 1890, a Compagnie du Théâtrophone ligava os principais teatros - o Teatro Francês, a Ópera Garnier e a Ópera Comique - a um estúdio central na rua Louis le Grand, que retransmitia as peças para seus assinantes pela rede telefônica parisiense.
5 Mais uma vez, sem nenhuma referência ao fato de que eram emissões de guerra, às bombas, às cidades destruídas, às vezes até sem referência clara ao título das obras de Winnicott. Vale dizer que em geral, mesmo em inglês, não se menciona a participação do autor na guerra.
6 Essa obra foi publicada no Brasil com o título A criança e o seu mundo.
7 Gravações conservadas em The Planned Environment Therapy Trust Archive and Study Centre em Toddington, Grã-Bretanha.
8 Winnicott (1957/1999a, p. 117).
9 hlm: programa de habitação similar ao Minha Casa Minha Vida.

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