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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.2 São Paulo abr./jun. 2021

 

TEMAS LIVRES

 

Um pensamento em torno do setting

 

Thinking about setting

 

Un pensamiento sobre el encuadre

 

Une réflexion à propos du cadre

 

 

Luca Trabucco

Psiquiatra. Psicanalista. Membro da Sociedade Psicanalítica Italiana (SPI) e da Associação Psicanalítica Internacional (IPA). Gênova / luca.trabucco@spiweb.it

 

 


RESUMO

Neste trabalho o autor aproxima-se de um discurso sobre o setting que não dissesse respeito tanto às suas características e funções, mas ao seu significado conceitual. O setting pode ser considerado a parte "material" ou "factual" da relação analítica, mas a redução dele aos seus elementos externos deve ser entendida como intolerância à verdade, como relação primária entre elementos irredutíveis, que sempre têm algo de material e de mental. Por relação primária quer dizer a relação bebê-seio (mãe), entendida como precondição de qualquer experiência possível, que surge, como Bion indicou, como preconcepção - as preconcepções do seio e edípicas. O setting é um espaço real em que os sonhos podem se desenvolver, um espaço em que o ser e o sonhar são dois momentos inseparáveis. Portanto, para indicar um elemento fundamental, pode-se dizer que o setting tem a ver com a ambiguidade paradoxal do ser.

Palavras-chave: setting, memória e desejo, invariância e transformação, ambiguidade, paradoxos


ABSTRACT

In this paper the author approaches a discourse on the setting that does not concern as much its characteristics and functions as its conceptual meaning. The setting can be considered the "material" or "factual" part of the analytical relationship, but the reduction of the setting to its external elements must be understood as an intolerance of the truth, as a primary relationship between irreducible elements. The setting is a real space in which dreams can create a space in which being and dreaming are two inseparable moments. Therefore, to indicate a fundamental element, it can be said that the setting has to do with the paradoxical ambiguity of being.

Keywords: setting, memory and desire, invariance and transformation, ambiguity, paradoxes


RESUMEN

En este artículo el autor acercarse de un discurso sobre el encuadre que no se refiera tanto a sus características y funciones sino a su significado conceptual. Se puede considerar el encuadre la parte "material" u "objetiva" de la relación analítica, pero la reducción de él a sus elementos externos debe entenderse como una intolerancia a la verdad, como una relación primaria entre elementos irreductibles. El encuadre es un espacio real en el que los sueños pueden desarrollarse, un espacio en el que ser y soñar son dos momentos inseparables. Por lo tanto, para indicar un elemento fundamental, se puede decir que el encuadre tiene que ver con la ambigüedad paradójica del ser.

Palabras clave: encuadre, memoria y deseo, invariancia y transformación, ambigüedad, paradojas


RÉSUMÉ

Dans cet article, l'auteur aborde un discours concernant le cadre qui ne touche pas tellement ses caractéristiques et ses fonctions mais sa signification conceptuelle. Le cadre peut donc être considéré comme la partie « matérielle » ou « factuelle » de la relation analytique, mais le réduire à ses éléments extérieurs doit être compris comme une intolérance à la vérité, comme une relation primaire entre des éléments irréductibles qui ont toujours quelque chose de matériel et de mentale. Par relation primaire il veux dire le rapport nouveau-né/sein (la mère), prise comme une précondition de toute expérience possible qui surgit, telle que l'a signalé Bion, des préconceptions du sein et œdipiennes. Le cadre est un espace réel dans lequel les rêves peuvent se développer, un espace dans lequel l'être et le rêve sont deux moments indissociables. Par conséquent, pour indiquer un élément fondamental, on peut dire que le cadre a une relation avec l'ambiguïté paradoxale de l'être.

Mots-clés: cadre, mémoire et désir, invariance et transformation, ambiguïté, paradoxes


 

 

O setting é a base sobre a qual a técnica e a prática psicanalítica são construídas e tem um caráter que denota fortemente a identidade da psicanálise.

Define-se por uma série de prescrições, positivas e negativas, que D. Quinodoz (1992) agrupou em quatro categorias:

Espaço: divã do paciente e poltrona do analista; isolamento de terceiros; constância da sala.

Tempo: tempo constante de sessão; frequência de quatro/cinco sessões por semana; duração indefinida (e disponibilidade de compromisso).

Economia: é o paciente que paga; pagamento por sessões perdidas.

Abstinência: analista e analisando não mantêm relações fora da análise; ausência de ações; nenhuma relação do analista com terceiros no que se refere ao analisando.

O setting pode assim ser considerado a parte "material" ou "factual" da relação analítica, que diz respeito aos objetos e às regras "objetivas" que lhe são subjacentes.

Neste trabalho eu gostaria de me aproximar de um discurso sobre o setting que não dissesse respeito às suas características e funções, mas ao seu significado conceptual.

Além disso, este trabalho é uma homenagem a Carla Preve1 pelo seu 90.º aniversário: um de seus escritos nunca publicados, lido em 8 de novembro de 1986 no Centro Milanês de Psicanálise, "O paciente guardião do setting", estimulou o pensamento de muitas gerações de psicanalistas.

C. Preve parte de situações clínicas em que os pacientes "alertaram o analista a não distorcer ou interpretar mal o significado do setting". Essa simples observação implica a busca e a necessidade "natural" de um bom setting, entendido como expressão de uma função intrínseca à própria mente. "A possibilidade ... de se orientar para uma boa 'base' e reconhecê-la, ou de se orientar para uma 'base' que é semanticamente incompreendida e distorcida": pode-se assim encontrar na relação "primária" do paciente a mesma dinâmica existente na relação primária com o seio. Percebe-se, implicitamente, no sentido do trabalho, a ideia de que o setting pode ser entendido como um "pensamento sem pensador", uma preconcepção que encontra sua realização no encontro analítico.

A boa base é um espaço seguro para "manter unidos todos os aspectos" do paciente - na mente do analista, que

com sua abertura a todas as projeções do paciente e com sua capacidade investigativo-racional pode ser capaz de não se comportar como a cidade de Troia do mito, com desconfiança, inaceitabilidade e ao mesmo tempo possessividade, mas conhecendo e lidando com o conteúdo do Cavalo de Troia sem negá-lo ou destruí-lo. (Preve, 1986a, p. 120)

Mas a boa base é também um espaço seguro para manter unidos todos os aspectos da mente do analista, que pode se ver incerto quanto a se deve priorizar os aspectos externos (factuais) do setting ou os aspectos internos, a atitude mental do analista - se pode tolerar o paradoxo de que o setting é material e mental. O paciente pode procurar um bom ambiente, como um continente estável, ou pode atacá-lo, por uma variedade de razões. Na prática ele fará as duas coisas ao mesmo tempo. É o analista, como afirma claramente Di Chiara (1971), que deve suportar a maior parte do peso do trabalho que o setting impõe/propõe, e que é representado fundamentalmente como um setting mental, uma disciplina da memória e do desejo, como diz Bion (1969), ou uma tensão constante para desligar-se da factualidade.

O setting se apresenta como um paradoxo. Di Chiara afirma: "É, de fato, o sujeito implícito de toda atividade analítica e de toda comunicação científica sobre essa atividade" (1971, p. 49). Mas o inconsciente não é o objeto implícito de qualquer atividade analítica?

O setting é, portanto, definido como um pressuposto, uma origem que se mostra como um elemento paradoxal: por um lado, é uma base "material"; por outro, é um argumento implícito, uma atitude mental, que é absolutamente "abstrata". Mas não é o inconsciente baseado no instinto um elemento "material", não mental, que pode ser apreendido, em nível mental, através da sua derivada, a fantasia inconsciente (Isaacs, 1948), e que determina a mente, por meio do trabalho de abstração da função α, do sonho (Bion, 1962)?

Uma relação material, com o seio/setting, que de puro alimento/cuidado físico se torna alimento para o crescimento psíquico.

C. Preve (1986b), falando sobre a necessidade de manter juntos os aspectos contraditórios do setting, expressa tolerância ao paradoxo, e depois define o setting como "organizador do processo analítico, ... tendo em vista o significado etimológico do verbo organizar: fornecer um órgão-instrumento". O setting é um instrumento sistematizado que, nascido como um "dispositivo externo" para proporcionar um contexto estável que diminui a interferência sensorial, tem sido gradualmente enriquecido com significados, até adquirir "o significado da atenção e do interesse na troca mental e as condições que podem favorecê-la e destacá-la". Podemos pensar que a "invenção" do setting tem suas raízes mnésicas inconscientes em uma invariância do ser humano, aquela situação que toda mãe cria ab initio e sem nenhuma preparação, se as coisas se sucederem suficientemente bem, com seu filho recém-nascido. Dessa unidade instintiva e somatopsíquica parte a possibilidade de enfrentar o paradoxo da vida e da expansão mental - o desenvolvimento da mente, capaz de tornar apreensível a própria experiência, e a função da própria apreensão, a mente que se pensa, o aristotélico νουσ.

 

Freud e o setting

Na advertência editorial à edição italiana dos escritos de Freud sobre a técnica da psicanálise, nota-se como ele foi ambivalente ao publicar suas notas sobre o assunto, devido a uma série de razões: as transformações que a técnica da psicanálise sofreu desde a sua emergência até aquele momento (1910), e as que viriam a ocorrer nos anos vindouros; a possibilidade de que seus escritos pudessem suscitar uma espécie de estereótipo disponível em qualquer paciente, com a consequente perda da "inocência" destes; o perigo de se tornar um estereótipo disponível a qualquer analista, induzindo-o a pensar que a aplicação dessas "regras" pudesse substituir, para um potencial analista, a formação através da "autoanálise".

O que eu gostaria de desenvolver aqui é a relação entre estereótipo e mudança. As duas vertentes, representadas por um lado pela mudança e por outro pelo estereótipo, parecem-me indicar os dois extremos paradoxais de uma realidade irredutível - que imagino estar presente no próprio Freud - em que o processo do viver psíquico se move, entre invariância e transformações (Bion, 1965), entre disciplina e liberdade, pelo fato de que não é possível ser original senão com base na tradição (Winnicott, 1971).

Outro aspecto que Freud teme é considerar o que podemos assumir como invariância, as regras "objetivas" do setting, como algo em si mesmo, reificado numa factualidade que o priva de sentido. Parece-me que esse ponto é particularmente evocativo da atitude profundamente científica do pensamento de Freud, de modo que os modelos que ele deriva da observação empírica nunca podem ser assumidos a priori, levando a um procedimento por julgamentos axiomáticos ou dogmáticos, mas devem sempre ressurgir da prática, para poder alcançar o status de "lei científica", na psicanálise narrativa mitológica, um elemento metapsicológico (que pode ser usado para falar sobre a análise em vez de "fazer análise"). Nos escritos sobre o uso da interpretação dos sonhos na análise (1911), imagina uma análise do sonho "tão completa quanto possível", uma sugestão segundo a qual, por exemplo, não se deve proceder à análise de um novo sonho até que o primeiro seja "completamente" analisado. Mas isso é praticamente impossível, diz Freud. E não apenas na prática. Tal imaginação teórica implicaria, nos termos usados por Bion em Transformações (1965), uma capacidade para conhecer (K) que poderia vir a coincidir com a verdade última e irredutível (O). Não haveria mais uma tendência a O, no limite um tornar-se O, mas um ser O, e isso significaria estar fora da realidade psíquica. A realidade, que pode ser dada pelos diferentes usos que um paciente faz dos sonhos, ou pelos limites hermenêuticos do analista, impõe que a única possibilidade real é a tolerância de permanecer na situação em que o sonho só pode representar o resultado do encontro da personalidade com o próprio inconsciente, e por meio da sua função

o trabalho do sonho permite ao material pré-comunicável adquirir as qualidades de armazenabilidade e comunicabilidade; o mesmo acontece com os estímulos e impressões sensoriais derivados do contato da personalidade com o mundo exterior. O contato com a realidade não depende do trabalho do sonho; a acessibilidade à personalidade do material resultante desse contato, ao contrário, sim, depende do trabalho do sonho. (Bion, 1962, p. 65)

O inconsciente e a materialidade, o negativo, só podem ser apreendidos em nível psíquico através da sua transformação pela função α, do trabalho do sonho, que transforma elementos impróprios para serem pensados em elementos úteis para o pensar o pensamento.

Além disso, a hipótese teórica imaginativa de Freud, de uma interpretação completa do sonho, parece-me que poderia coincidir com uma posição em que a frustração e a angústia provocadas pela persistência do paradoxo tenderiam a ser evitadas mediante a fantasia (delirante) de aniquilação de um dos polos do próprio paradoxo. Haveria uma identidade entre o sonho e sua interpretação. Essa hipótese coincidiria com uma fase de "realismo ingênuo" do processo de pensamento, derivada da busca por evitar a frustração. Na história do pensamento, a angústia determinada pela irredutibilidade do paradoxo da existência conduziu a fases cíclicas de realismo e de idealismo ingênuo (Kant). A controvérsia entre realismo e idealismo é talvez tal que

ambos se enganam, enquanto se agarram a valores absolutos. Mostra um estado de espírito em ambos que se aproxima do estado psicótico. No realismo ingênuo, há uma alucinação concreta. No idealismo ingênuo, encontramos um componente "produtivo", como dizemos na linguagem psiquiátrica. São produções delirantes, pensamento puro. (Sandler, 2000a, p. 92)

Na psicanálise também podemos encontrar essas duas posições: por um lado, a ideia de Freud sobre uma possível "interpretação completa", que corresponderia a uma visão concreta e alucinada do inconsciente; por outro lado, as derivações narrativas - por exemplo, as teorias elaboradas nos Estados Unidos, no início dos anos 1980, de Schafer (1978) e Spence (1982) - em que se nega o fato clínico na sua relação indissolúvel com uma experiência real, interna e externa, em que "se favorece a 'construção' inventiva e a negação da referência a uma ordem subjacente ao fato selecionado" (Sandler, 2000a, p. 101). Além disso, em caso de divisão da unidade paradoxal, ter-se-ia um procedimento intelectual e dedutivo, pelo qual o raciocínio dedutivo, privado do aspecto intuitivo, ou vice-versa, viria a definir aquela situação bem identificada por Kant (1781/2005), em que pensamentos sem conteúdo são vazios, e intuições sem conceitos são cegas.

A negação da irredutibilidade do inconsciente, representando uma negação da realidade psíquica, torna-se a manifestação do ódio do homem pelo pensamento, do ódio do psicanalista pela psicanálise. Portanto, a interpretação "completa" do sonho, para voltar ao centro do meu argumento, a redução do setting aos seus únicos elementos externos, "que comprime seus constituintes ... e proíbe ou recusa a elaboração, aproxima-se das ideias avançadas por Freud sobre psicose (confusão palavras-coisas)" (Green, 1975/1991, p. 21), e deve portanto ser entendida como intolerância à verdade, como relação entre elementos irredutíveis, que sempre têm algo de material e de mental.

Freud, referindo-se à necessidade de manter viva a relação entre incognoscível - inconsciente -, verdade e consciência, manifesta seu amor pela análise:

Proponho, portanto, que no tratamento analítico a interpretação dos sonhos não seja exercida como uma arte em si mesma, mas que seu uso seja sujeito àquelas regras técnicas que geralmente orientam o desenvolvimento da cura. ... Mas posso assegurar-lhe que não há tempo em que não valha a pena ter confiança nos próprios princípios teóricos e convencer-se a não lutar com o guia do inconsciente para o restabelecimento de conexões. (1911/1958b, pp. 93-94)

O objetivo é realmente ganhar experiência, através da intuição, e não de uma teoria que é um fim em si mesma, expressão de uma tendência a ocluir a mente com fatos, a ser escrava do próprio desejo e memória, a substituir a busca da verdade pela aprendizagem da experiência mediante um pseudoconhecimento jargonal, cujo único propósito é evitar a frustração e a angústia do paradoxo.

A referência a um inconsciente instintivo assume assim o sentido de manter o negativo sempre presente como limite inalienável para o nascimento do pensamento:

Há um poder sem precedentes do negativo, de estabelecer o contraponto pelo qual o leitor pode gerar e administrar em si o outro rosto, o outro polo da realidade ... o que Freud abriu (possibilitou) neste sentido: o exercício e a percepção do ódio dentro da sessão representam a possibilidade de fazer emergir o amor. (Sandler, 2001, p. 128)

Em 1912, no texto "Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise", Freud propõe a atitude analítica de atenção flutuante, um método para evitar que, "ao seguir a escolha [de prestar atenção a algo em particular], as próprias expectativas, se corra o risco de nunca encontrar nada que não se saiba" (1912/1958c, p. 112) - e também um método de disciplina mental que se dirige ao desconhecido, ao inconsciente, e que representa um autêntico método científico, que não parte de preconceitos.

Freud apresenta o setting no texto de 1913 "Sobre o início do tratamento". A situação, que propõe como "um cerimonial preciso sobre as situações em que o tratamento ocorre", é aparentemente banalizada por ele como "o que resta do tratamento hipnótico a partir do qual a psicanálise se desenvolveu" (1913/1958a, p. 133), e parece motivá-la apenas por fatores pessoais: a fadiga de sustentar o olhar do paciente por horas, ou não querer influenciar a expressividade do paciente com sua própria expressão. Mas Freud imediatamente revela a complexidade de seu pensamento ao acrescentar:

O paciente geralmente sente a situação que lhe é imposta como uma privação [grifo nosso] e se rebela contra ela. ... Essa medida tem a finalidade e o resultado de evitar a mistura imperceptível entre transferência e associações livres do paciente, de isolar a transferência e de fazê-la emergir no devido tempo nitidamente delineada como resistência. (p. 134)

Introduzir uma privação - sensorial e motora - traz à tona outra relação que não a conhecida. Pode-se assim distinguir entre transferência - transformação em movimento rígido, em que o desconhecido é substituído pelo conhecido - e associações livres - transformações em psicanálise, em que se pode deixar espaço para o desconhecido. No setting, o paciente encontra espaço para a regressão (Winnicott, 1971), pode temporariamente renunciar à sua própria organização e flutuar mais livremente em associações inconscientes, permanecendo em contato com o inefável, contando com o holding garantido pelo setting concreto e mental disponibilizado pelo analista.

Se Freud, por um lado, identifica os possíveis mal-entendidos do paciente, por outro, com o "método" da atenção flutuante, ele indica um contraponto que permite ao analista manter sua ordem mental sem sucumbir ao "ódio pela psicanálise". C. Preve (1986b) compreende plenamente esse ponto quando nos leva a sondar as situações mais comuns de "distorções semânticas do setting", especialmente por parte do analista. Concentra-se em particular nas situações em que "uma concepção restritiva e rígida do setting constitui um risco para o paciente, para o analista e para o curso da terapia". Os mal-entendidos são expressão da tentativa de resolver o paradoxo do setting, reduzindo-o a uma regra processual apenas motivada por fatores extrínsecos à natureza do processo. A relação dinâmica e mutuamente significativa entre os aspectos externos e internos do setting - materialidade e significado - é intuída por Preve como o elemento de garantia para a tolerância de uma constante abertura de sentido que evitará conduzir à exclusão (delirante) de um dos dois termos.

 

Evolução do tema

Em 1967, José Bleger publicou um texto que se tornaria clássico sobre o tema: "Psicanálise do enquadramento psicanalítico". Ele apresenta esta definição básica:

Proponho adotar o termo situação psicanalítica para indicar esse complexo de fenômenos que fazem parte da relação terapêutica entre analista e paciente. Essa situação inclui fenômenos que constituem um processo, que estudamos, analisamos, interpretamos, mas inclui também um enquadramento, ou seja, um não processo, isto é, um conjunto de constantes, dentro do qual o próprio processo ocorre. ... O enquadramento corresponde às constantes de um fenômeno, de um método ou de uma técnica, e o processo ao conjunto de variáveis. (1967/2002, p. 103)

Aqui me parece que podemos encontrar uma forma de expressar uma ideia manifesta por diferentes autores no curso do desenvolvimento do pensamento psicanalítico: a antinomia do ser e do vir a ser, a antinomia entre identidade e mudança, a relação entre transformações e invariâncias de Bion.

Nessa definição está contida in nuce a concepção de Bleger do que deveria ser a relação dinâmica entre processo e não processo. O enquadramento, o setting, é assim definido de forma negativa como não processo, ou constante. Se considerarmos essa formulação do ponto de vista da epistemologia psicanalítica de Bion, para além da noção original do setting como expressão da simbiose proposta por Bleger, o enquadramento como invariante coloca-se como elemento de contraponto no contexto da concepção das transformações.

Invariância refere-se a algumas qualidades reais que caracterizam a natureza mais íntima das coisas, independentemente da posição do observador. Invariâncias nada mais são do que formas platônicas e o reino do númeno trazido à luz por Kant. ... Invariâncias podem ser intuídas, detectadas e, até certo ponto, nomeadas. Elas são a contraparte mental de uma realidade que é existente, intuitiva e utilizável, mas por fim incognoscível. Elas podem ser parcialmente conhecidas e reter uma característica fundamental de O: sua transcendência (em relação a tempo, espaço e individualidade). (Sandler, 2005, pp. 360-361)

Se, portanto, o setting diz respeito à esfera do transcendente, de O, ele é proposto como uma preconcepção, que deve atender à própria realização.

De acordo com Bleger, o setting é silencioso até que se avarie. "Não se tem conhecimento de algo até que se organize como um objeto interno" (Bleger, 1967/2002, p. 105), formulação que se refere à teoria do pensar de Bion (1962/2016), uma experiência de algo, o negativo, o absoluto, que se torna utilizável à vida mental através dos processos e funções do pensar. O valor do invariante reside na sua relação com os processos de transformação, porque o próprio invariante, como nos é dado a apreender, é uma abordagem de O, nunca um ser O definitivo. Portanto, voltando a Bleger, em sua concepção do não processo, do enquadramento, parece-me que este é concebido como algo excessivamente estático e esquemático, e não como um elemento que se realiza continuamente pela sua própria função, uma "invariante" que deve manter-se em equilíbrio com uma contínua possibilidade de se perder - produto do equilíbrio e da disciplina de afastar memória e desejo. Além disso, considerar o setting uma preconcepção implica dizer que a sua "revelação" não está necessariamente ligada a uma ruptura, mas a negatividade ocorre na própria realização, uma vez que não há uma realidade que corresponda à própria preconcepção. Nenhum seio verdadeiro coincide com o seio ideal.

Precisamente por causa desse "desalinhamento" entre ideal e real, o setting assume todas as qualidades de um elemento constitutivo do pensamento psicanalítico, como afirma Di Chiara no trabalho "O setting psicanalítico", em que o define como a atitude mental do analista, que permite gerar uma "situação criada e administrada pelo analista desde a primeira entrevista. ... O setting analítico é o que é criado pelo analista, a parte do trabalho de análise que é realizada principalmente pelo analista" (1971, p. 48).

Assim, o setting é progressivamente concebido como aquela condição fundamental da relação analítica que, graças à sua qualidade particular e paradoxal (material/mental), permite o surgimento de fenômenos de transferência, isto é, fazer aparecer o que não está presente no campo analítico.

O setting como símbolo de um espaço/função mental que permite a simbolização, o pensamento, refere-se nesse ponto ao conceito de holding de Winnicott (1971), como a atividade física concreta da mãe. No próprio momento em que "trabalha", ele perde suas qualidades materiais para se tornar função mental pura, assim como o leite que flui do seio, que de um elemento nutritivo puramente físico torna-se alimento para a mente, através de um caminho de abstração.

A sobreposição da atividade mental da mãe, que por meio do processo de holding e reverie possibilita o desenvolvimento da vida mental, com a atividade do analista no seu trabalho tem sido enfatizada e discutida, por exemplo, por Di Chiara (1971), quando diz que uma interpretação sem um setting - mental, eu acrescentaria - é tudo menos uma interpretação, e que o setting analítico é um invariante que qualifica a análise e o analista; e Conforto (1998), que destaca a capacidade do analista de tolerar o sofrimento (ps) como o elemento que define o setting mental do analista, e um pré-requisito para o surgimento de um fato escolhido que permita operar a reverie e, então, proceder ao desenvolvimento do trabalho de deixar consciente/inconsciente a experiência.

C. Preve, em sua formulação do setting como "organizador", condensou essas considerações ao designá-lo como o elemento básico do processo de pensamento. Também se referiu às formulações de Green sobre o setting analítico como "isomórfico" ao setting do sonho, aproximando assim o sonho, a atividade matricial de cada pensamento, da sessão. De acordo com Green,

assim como o sonho está contido dentro de limites precisos (a abolição do polo perceptivo e do polo motor), a sessão também está contida dentro dos limites do contrato analítico, e essa contenção visa manter uma funcionalidade específica para os diferentes elementos da realidade psíquica. (1975/1991, p. 72)

A contenção que o setting propõe e representa é o que permite ao paciente, mas sobretudo ao analista, sonhar a sessão, desenvolvendo a imaginação, a capacidade da mente de perceber relações e vínculos essenciais e invisíveis. Nesse sentido, Green vai muito além da concepção de Bleger: o setting não reproduz simplesmente determinada relação de objeto (em Bleger, a relação simbiótica), mas "é o que permite o nascimento e desenvolvimento de uma relação de objeto" (1975/1991, p. 76). Além disso, Green observa que, se o setting corresponde ao holding, a parte física dessa função em análise é proibida, embora não se possa realmente bani-la; é verdade que o contato físico é vedado, mas a objetividade do lugar, não apenas mental, que o analista prepara para o paciente, e para si mesmo, permanece como um elemento físico real inescapável. Grinberg (1981/1983) afirma que os dois aspectos do setting, o externo e o interno, não podem de fato ser separados, pois correspondem às duas faces inatingíveis da mesma moeda.

O setting, conclui Green, é um espaço de ausência, onde se determina o potencial da presença, o negativo que é pensar na materialidade, o silêncio que envolve a música e a torna possível. Nesse sentido, o processo analítico é pensar, um pensamento que parte de O, o negativo, e tende a voltar a ele. O processo, a música do paciente e do analista, contém o silêncio, a pausa, de onde vem e para onde retorna.

As considerações de Ogden (2005) sobre o holding como um conceito ontológico que diz respeito ao ser - O -, como um elemento que permite manter no tempo o sentido de continuidade do ser, parecem-me uma forma de expressar o conceito de que o setting é o que define o sentido de identidade da análise. A "materialidade" do setting assume assim o sentido da experiência real percebida, verdade que garante a base para distinguir a experiência do delírio, a opinião da proposta científica. O setting é um espaço real em que os sonhos podem se desenvolver, em que o ser e o sonhar são dois momentos inseparáveis.

Como indiquei antes, as "distorções semânticas do setting" (Preve) derivam fundamentalmente da pretensão de separar esses elementos:

Na psicanálise, como na vida, o desenvolvimento pode ser positivo ou negativo; pode criar ligações, e ser construtivo, ou dividido, e tornar-se destrutivo, dependendo da predominância que o está influenciando, seja a dos instintos de vida ou de morte. Bion sugere que "a possibilidade de aprender depende da capacidade de manter ♀n integrado sem o tornar rígido". (Sandler, 2019)

O setting despojado do seu paradoxo torna-se um continente rígido e destrutivo.

 

Uma conclusão

Gostaria de definir o setting identificando-o com

a teoria do continente e do conteúdo, [que] parece facilmente utilizável, no seu ethos mais profundo, durante a sessão analítica, no desenrolar da relação (tanto intrapsíquica como na relação analítica) entre feminilidade e masculinidade dos dois parceiros do casal analítico, que pertencem à realidade sensitiva e psíquica. ... O casal analítico constitui-se como a contraparte psíquica do casal parental interno criativo como fonte prototípica de amor, vida, vinculação (Klein, Winnicott, Bowlby) e seu ódio, morte e desafio relacionados ao vínculo. (Sandler, 2009, p. 298)

A definição do setting como elemento dinâmico é baseada em uma série de hipóteses teóricas:

• conceitos "binoculares" de Freud - a bissexualidade humana, o aparato psíquico inextricavelmente formado por aspectos biológicos (instintos) e culturais, os dois modos de funcionamento psíquico segundo o princípio do prazer/desprazer e o princípio da realidade, sob a égide da dualidade dos instintos de vida e de morte;

• o desenvolvimento da vida emocional no Édipo, a relação com os objetos parciais e totais e a oscilação ps⃡d;

• o fato fundamental da criatividade do casal parental;

• a feminilidade e a masculinidade ♀♂ como elementos da psicanálise (Bion, 1963).

Por tudo isso, o setting apresenta-se como elemento "ambíguo", refletindo os aspectos paradoxais da existência (Sandler, 2003).

Se por um lado o setting, através de seus próprios caracteres "normativos", vem colocar-se como limite em relação às reivindicações do princípio do prazer/desprazer, por outro lado, em função de sua natureza "ambígua", com a qualidade feminina/continente ♀ pode permitir que a frustração se oriente para o desenvolvimento construtivo. "As qualidades receptivo-facilitativas do continente no ambiente analítico (e o próprio ambiente analítico) são semelhantes ao ambiente favorável-receptivo da fêmea. Cuidar e conter é a implementação de um vínculo pródigo e fertilizante, uma relação propícia continente-conteúdo" (Sandler, 2009, p. 301). Um setting que poderia ser chamado de "rigoroso e acolhedor", que se baseia na disciplina do analista de afastar memória e desejo (Bion, 1969) e na tolerância à angústia do paradoxo, permite "experimentar ps⃡d, [que] envolve o surgimento do que não é conhecido e requer a condição de não ser arrastado por uma busca apressada e ansiosa por fatos e razões" (Sandler, 2009, p. 301): poder pensar.

O setting, mental e não mental, do analista é mantido em função da tolerância dessa possibilidade de definir a experiência apenas em nível verbal, com a consciência de que no fundo uma solução não é possível e real. O pensamento é caracterizado pela tolerância dos paradoxos fundamentais: ps⃡d, instintos de vida e de morte, ♀♂, princípio do prazer/desprazer e princípio da realidade, fenômeno e númeno, ser e tornar-se, natureza corpuscular e ondulatória da luz, identidade e mudança, velocidade e posição de uma partícula no espaço (princípio da incerteza de Heisenberg), o ovo e a galinha etc.

Em minha opinião, as rupturas de setting do analista não se devem tanto à inobservância das regras técnico-materiais, mas quando elas ocorrem, o que exprimem é a quebra dessa dinâmica, que é de tal ordem que algo negativo, o material, a experiência bruta, a sensação, pode adquirir um significado, tornar-se um elemento que pode ser usado para pensar. É possível haver análises impecáveis do ponto de vista "formal"2 que contenham violações muito profundas do setting, e vice-versa, aparentes rupturas no setting que vão na direção de uma extensão do campo de pensamento.3

A tolerância à dor manifesta-se na capacidade do analista de disciplinar a memória e o desejo. A perda de controle, nesse sentido, conduz a outras violações muito graves do ambiente, sempre numa aparente impecabilidade "formal", com analistas que, por exemplo, com base em ideias preconcebidas, "guiam" pacientes ou candidatos através de interpretações estereotipadas. A chamada à abstinência perde toda a sua função se permanece um procedimento e não se torna algo "imaterial", simbólico, parte da atividade mental do analista - elemento simbólico do negativo, ausência de memória e desejo, privação, pensamento.

O setting, portanto, como representante do cuidado materno primário, holding e reverie, seria uma unidade monística original em que a distinção soma/psique ainda não é necessária, seio e leite são amor e cuidado, a experiência é inconsciente:

Essa fase inconsciente é uma condição indispensável para que qualquer experiência exista. ... É o fato de que nada pode ser consciente que já não tenha sido inconsciente. Há um processo necessário de "inconscientização" ou "numenização" da experiência sensorial, quando toleramos o paradoxo de duas formas diferentes da mesma existência, a realidade psíquica (númeno, inconsciente) e a realidade material (fenômeno, conteúdo manifesto). (Sandler, 2000a, p. 29)

O negativo que o setting representa é bastante distinto de uma negação - que contém a mesma qualidade "positiva" que a afirmação (ver Freud, 1925/1961). É inefável mas intuível, e portanto de alguma forma perceptível, como o contraponto na música (Sandler, 2000b, 2003). Ouvir música significa ouvir o que não se pode dizer, e ao ouvir estamos envolvidos numa escuta múltipla - simplificando: a linha da melodia e a do contraponto, que geram, como um casal criativo, uma música/filho único. Como diz Bion (1962/2016), é o espaço do pensar, que contém não coisas, as quais não são nada. Assim, o setting cria o espaço para ouvir a música do paciente e fazê-la ressoar no analista. A música como expressão do inconsciente vem do que Sandler chamou, a partir de Bion, o reino do negativo (realm of minus):

Penso que esse reino é o verdadeiro reino numinoso do inconsciente, ou unbewusst (literalmente: inconsciente; ou melhor: não conhecido). É imaterial e impensável, mas existe. Hegel tomou um novo caminho chamando-o "o negativo". ... Sua apreensão ocorre antes e além dos limites definidos pelo aparato sensorial. Freud não inventou o termo "inconsciente"; ele apenas o formulou melhor como "realidade psíquica". É o negativo o contraponto imaterial à realidade material. Inversamente, a realidade material é o contraponto positivo, o contraponto material da realidade psíquica. São duas formas da mesma existência (monística) essencialmente incognoscível. (2011, p. 15)

É apenas no setting que a produção de associações livres e o seu contraponto, a atenção flutuante, se tornam possíveis. Como sabemos, as associações livres não são de todo livres; aparecem assim apenas porque as suas origens são ignoradas. No entanto, sua definição "refere-se a uma ação que é simultaneamente livre e associada a algo" (Sandler, 2013, p. 101). Como afirma Grotstein (2002), com associações livres temos uma transdução da linguagem infinita de O para a linguagem consciente finita. A associação livre representa uma transformação de O, o verdadeiro desconhecido. Mas dentro se esconde e ao mesmo tempo se desvela o propósito original: "A teoria de Bion das transformações e invariâncias pode nos ajudar aqui: o 'propósito inconsciente' sugere uma dada invariância; os 'fatos fenomenais superficiais' são as transformações em torno dessa invariância" (Sandler, 2013, p. 95).

O setting entendido como o lugar do negativo (minus) (-) representa não só a relação primária, a unidade psicossomática original, mas também a relação original entre homem e realidade, e os meios que ele deve adotar para tornar essa relação possível: o pensamento.

Em conclusão, gostaria de propor compreender o setting como expressão da preconcepção do seio (Bion, 1962), representado pela função ♀♂. Nesse sentido, para voltar ao trabalho de Preve, o paciente pode ser "guardião do setting" porque ele sabe o que precisa, e tem necessidade de ver a realização dessa preconcepção "suficientemente boa" (Winnicott, 1971).

F, um paciente de 20 anos de idade, muito taciturno normalmente, fala comigo, de maneira lacônica, da sensação de inutilidade que experimenta em relação à própria vida: inutilidade de se esforçar nos estudos, pois poderia acontecer que, aos 25 anos, uma vez formado, ele morresse, e então tudo teria sido inútil. Depois de um tempo de silêncio, eu lhe digo que poderia acontecer que, aos 25 anos, uma vez formado, ele não morresse. F permanece em silêncio após um breve consentimento, surpreendido, e penso sobre o que ele pode ter vivido para cancelar tão dramaticamente o significado da vida. Nesse ponto, diz que gostaria de me fazer uma pergunta. Queria saber como eu me comportaria se ele me revelasse um segredo - por exemplo, se me revelasse que matou um homem. Pensou num filme que viu. "O que você faria: me denunciaria para a polícia ou guardaria isso para você?"

Aqui o setting, pretendido como função de contenção, se manifesta sem ter sido "quebrado", como diz Bleger, de alguma forma.

Quando o paciente me fala de sua ideia da inutilidade de viver, já que poderia morrer aos 25 anos depois de se formar, penso, ou melhor, tento pensar sobre o que não diz, sobre o conteúdo latente, e não o manifesto, o que poderia mais ou menos ser expresso da seguinte forma: se eu me formar e tiver que enfrentar a vida, como farei? Uma das razões pelas quais F procurou análise foi a dificuldade, até a impossibilidade, de estudar durante o último ano do ensino médio, o que levou à sua reprovação no exame final. Minha "interpretação" simplesmente trouxe de volta o discurso do paciente de uma cisão estrita, que produz pseudoconhecimento ilusório (aos 25 anos, eu morro), para uma abordagem de integração da parte dividida: os mortos, o eu assassinado que não pode encarar a vida, não se sentindo capaz de enfrentar a realidade, a angústia de viver em vez de morrer.

Uma segunda razão pela qual F procurou análise foi o abuso de drogas "leves", ou seja, a necessidade compulsiva de escapar da frustração. Meu contato com as ansiedades que ele tenta evitar pode gerar algo catastrófico, não só nele, mas também em mim. Se elas são tão intoleráveis, me farão denunciá-lo à polícia, ou seja, o setting será quebrado, o continente será destruído por um "hiperconteúdo". Assim, ele me solicita diretamente em uma questão fundamental do setting, que é a contenção do continente: o espaço analítico vai se romper, sendo invadido por estrangeiros (polícia - supereu sádico?), ou será que pode resistir?

Diante do núcleo da análise, para tornar o inconsciente consciente em termos freudianos, ou seja, para transformar elementos brutos da experiência em imagens pensáveis, que possam ser usadas para apreender verdades sobre si mesmo, confrontamo-nos com a missão impossível de enfrentar o inefável, o desconhecido, e surge naturalmente a necessidade de verificar se o instrumento utilizado é confiável, ou seja, se o setting como "organizador do processo analítico" (Preve) é capaz de suportar o peso que a mente do paciente não é capaz de suportar.

O fato de F "ter sonhado" com um assassinato, um homem morto, a polícia, um analista que pudesse guardar tudo para si, já representa um procedimento em uma transformação β ¨ α (Bion, 1962), construção de imagens do sonho, tudo isso provavelmente permitido pela minha intervenção, que implicou minha liberdade de me pôr em uma posição diferente da dele, de não ficar congelado em uma posição dividida, delirante, de poder entender o contrário e mantê-lo junto sem ter que dissolver o paradoxo. O ♀ não se fragmenta em contato com o que sente ser potencialmente mortal. O setting, nesse caso, talvez tenha sido proposto como uma realização "suficientemente boa" de sua preconcepção porque fomos capazes de nos colocar, mesmo que apenas fugazmente, "lutando com algo, algo que é muito difícil de descrever" (Bion, 1976/1989, p. 235), mas que não é nada.

 

Referências

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Recebido em 9/3/2020
Aceito em 1/2/2021

 

 

1 Analista didata da Sociedade Psicanalítica Italiana, que lecionou muitos anos no Instituto de Milão e trabalhou em Genova até os 80 anos.
2 Pense-se em como um setting extremamente rígido pode representar um acting in de um analista e, portanto, uma violação do setting (Preve, 1986b). Nesses casos, o analista parece estar trabalhando no que Sandler (1989) chamou de função anti-
α.
3 Ver, a esse respeito, as considerações de Nissim Momigliano (1988) sobre as "rupturas" do setting por parte de Freud.

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