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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.2 São Paulo abr./jun. 2021

 

RESENHAS

 

Dear candidate: analysts from around the world offer personal reflections on psychoanalytic training, education, and the profession1

 

 

Cláudia Cristina Antonelli

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCamp). Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Doutoranda pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp). Campinas / claudia.antonelli@gmail.com

 

 

 

Editor: Fred Busch
Editora: Routledge, Taylor & Francis Group, 2021, 170 p.
Resenhado por: Cláudia Cristina Antonelli

 

 

O convite veio pelo próprio editor, doctor Busch, como o chamávamos entre os candidatos (psicanalistas em formação ou membros filiados, segundo a nomenclatura de cada Instituto) da Organização Internacional de Estudos Psicanalíticos da Associação Psicanalítica Internacional (Ipso-ipa). Eu ainda concluía minha formação, no final de 2020, quando seu suscinto mas generoso email chegou. Perguntou-me se eu - assim como três outros colegas também em formação em diferentes países - aceitaria escrever um breve endosso para a quarta capa de seu livro que logo seria publicado. Sem entender ainda muito bem de que se tratava, aceitei.

Fred (assim se apresentou) enviou-me o manuscrito digitalizado. Primeiramente passei os olhos naquelas páginas, nas quais, não tardou, mergulhei, e soube então serem preciosas. Fred perguntou a 42 psicanalistas seniores de diversas Sociedades do mundo (entre os quais quatro brasileiros) o que diriam, em forma de carta, a um psicanalista ainda em formação. Eles responderam.

O livro me pareceu exalar de maneira geral aquele certo afeto de analista sênior; aquele je ne sais quoi de quem já esteve lá, e concebe com empatia o analista mais jovem de percurso. Advirto-os, porém, desde já: esse "lá", para cada um, é um lugar bastante distinto e particular.

Há sim os aspectos comumente compartilhados. Nos relatos, por exemplo, algo que se revela transmitido de geração em geração é a gratidão ao próprio analista. É tocante e não difícil percebê-lo. Outro ponto quase unânime parece ser o carinho que carregam em relação à própria formação e ao fato de que candidatos do mundo todo (são atualmente 5.342 segundo a IPA) começam a trilhar um caminho que esses analistas iniciaram há mais de 30 ou 40 anos.

Temos de início uma passagem retumbante de Roosevelt Cassorla, e que suspeito fazer eco em muitos de - se não em todos - nós:

Sinto que me permiti ser contaminado pela "praga" psicanalítica (nas palavras de Freud), de tal forma que arrisquei sacrificar outros aspectos de minha vida. Pelo que sei sobre você, você também corre um risco semelhante, não é? Pude observar o que estava acontecendo comigo usando a psicanálise. A "praga" se transformou em remédio. (p. 14)

A atual presidente da ipa, Virginia Ungar, reitera: "Além do mais, quando você se inicia no caminho de tornar-se psicanalista, você logo se dá conta de que isso também é um jeito de viver, um jeito de ser no mundo" (p. 111).

Outro aspecto comum parece ser a satisfação pela escolha da profissão - pelo que tudo indica, nem tão impossível assim. Ou, como conclui Stefano Bolognini em sua carta, "impossível mas fascinante" (p. 37). "Acredite-me, é um raro privilégio", lemos no depoimento de Shmuel Erlich (p. 121).

Vamos percebendo, ao longo destas páginas impregnadas de empatia, experiência e generosidade, que há também - mais que também, um sine qua non - paixão, muita paixão: pela psicanálise, pelo pensar e fazer psicanalíticos, pela lembrança de Freud, pelo mundo da psicanálise, ao menos nestes 42 autores - em meu sonho, representantes de uma comunidade psicanalítica muito maior (somos atualmente 12.693 membros da ipa).

Contudo, não nos iludamos. Esses que já estiveram lá tampouco poupam o outro lado da moeda deste valioso baú. Assim, entre os aspectos em comum, demarcam a importância fundamental e necessária - e amiúde dolorosa - da própria análise no alicerce e, por vezes, ao longo desse fascinante mas - sabemos - desafiante percurso.

De outro espectro do prisma, em uma das mais desafiantes cartas, o colega sênior Donald Moss fala-nos do que chama de muros invisíveis: o perigo das certezas psicanalíticas, que podem ser tão prejudiciais quanto sedutoras, numa espécie de antipsicanálise, também existente, ele diz.

Afora essas balizas razoavelmente próximas entre os testemunhos, o conteúdo que segue será dos mais variados: desde indicações de leituras imprescindíveis até pensamentos ponderados a respeito do papel e alcance do analista em relação ao paciente; da ideia difundida e ali reiterada de que a formação em psicanálise não se encerra nunca ao longo de uma vida, à importância do não isolamento nos côncavos e convexos do próprio recinto de trabalho. Temos por exemplo, a lembrança de que somos - ou deveríamos ser -, antes de psicanalistas, cidadãos de um país e de um mundo. O colega Cláudio Laks Eizirik lembra-nos da importância do ser político do analista.

Como não poderia deixar de ser, vários dos colegas remetem-se com propriedade aos afazeres da prática clínica. Por exemplo, Theodore Jacobs:

A verdadeira compreensão não vem da aplicação de teorias ou da técnica analítica correta. Isso ajuda-o a colocar-se no estado correto de mente; mas é a confiança e abertura para a sua própria mente, silenciosamente trabalhando, buscando e fazendo contato com a mente do outro, que produz o lampejo de compreensão. ... Encorajo-o, no entanto, a ler o máximo que puder. (pp. 25-26)

O mesmo colega, em outra página, recorda-nos da tolerância que o analista necessita ter:

Brenner disse: Lembre-se sempre de que os pacientes podem somente vir até os nossos consultórios. Isso é tudo o que eles podem fazer. Não importa os quão bravos, hostis ou provocativos possam ser, não importa os quão recalcitrantes a nossos melhores esforços, esses são quem eles são neste momento e não podem ser de outra forma. (p. 23)

Percorrendo estas páginas, contemplei uma pequena passagem singela, a citação de uma sugestão do próprio mestre: "Na mesma linha, palavras que também tentei manter em minha mente são a máxima de Freud de que devemos sempre tratar nossos pacientes como convidados de honra em nossa casa" (p. 24).

Há ainda a menção a contrastes clínicos entre a prática de outrora - quando estes autores iniciaram sua formação - e a de agora. Bolognini aponta um fato por ele observado em seu consultório: antes, o desafio parecia se apresentar sobretudo sob a forma de resistências superegoicas dos pacientes (o que era tido como "normal para a época", afirma); hoje, talvez o maior desafio sejam as resistências narcísicas relativas ao ego ideal, que dificultariam a dependência ao objeto (em um processo analítico), tornando-a muitas vezes "condição inaceitável e humilhante" na clínica atual (p. 36).

A colega francesa Ellen Sparer adverte os candidatos: "Para passar do divã à poltrona atrás dele, você precisará ter elaborado o 'suficiente' de seu próprio mundo psíquico, tanto o polo edipiano quanto o narcísico. ... A transferência de seus pacientes testará a coragem de seu funcionamento psíquico" (p. 88) - vida afora, eu suspeitaria.

Em outra vertente, aponta-se a importância dos cuidados e da dedicação à Sociedade da qual fizemos parte enquanto candidatos e à Sociedade da qual faremos parte enquanto membros - às vezes, a mesma; outras vezes, não. Alguns contam sobre sua "adoção" de outra Sociedade, diferente daquela em que se formaram.

Independentemente da escolha, enfatizam a relevância do pertencimento ao chamado quarto eixo de nossa associação internacional, qual seja, a vida institucional. Assim resume Sparer: "Tornar-se psicanalista exige trabalhar e elaborar continuamente sua vida interior e também sua vida dentro do grupo da Sociedade do qual você se tornará membro" (p. 90). A autora ressalta o zelo necessário para com nossa casa - de pensamento, trabalho, estudo, ensino e trocas, científicas e afetivas, entre pares.

Devido ao momento, em um dos relatos a questão do virtual é abordada com crítica ao que antes era concebido como inviável: análises e supervisões online. Harriet Wolfe relata o triste caso de um candidato que acabou por ter o segundo relatório inviabilizado, uma vez que seu paciente se mudou de estado aos 21 meses da análise de alta frequência em curso, dos 24 requeridos em seu Instituto (era seu caso-controle, como costumam dizer nos Estados Unidos). O candidato pleiteou a continuidade via Skype, a qual foi negada. Buscou apoio em instâncias mais altas, mas a negativa se manteve. De qualquer maneira, prosseguiu com o paciente com quem tinha um vínculo suficientemente forte, mas esse final não foi endossado pelo Instituto. Por fim, retirou-se da formação, ao sentir a rigidez dela. Essa história parece-nos ficção nos dias de hoje, num tempo nem tão distante assim daquele (considerando-se que já havia Skype).

Enquanto prossigo, vou percebendo que esta resenha não fará de nenhuma maneira jus a tudo que se encontra ao longo destas páginas tecidas a muitas mãos, com muitas dores, muitos amores, muitas histórias, muita resiliência, muita renúncia, muita dedicação. Vem-me à mente a ideia de que, para contar este livro, precisaríamos de muitos outros livros - a multiplicação de si mesmo -, tamanha a concentração de pensamentos, sentimentos e "conselhos" francamente compartilhados.

Por fim, chego à quarta capa. Lá se encontram os breves endossos ao livro feitos por um colega e por mim. Gosto das palavras de meu colega Charles Baekeland: "Outra voz é também audível. Leitores de Dante escutarão: Retenha toda a esperança, você que aqui entra. Muita dificuldade o aguarda, assim como os esplendores humanos".

De alguma maneira, como costuma acontecer, as palavras essenciais do poeta parecem carregar a potência de uma verdade de outra maneira difícil de ser descrita em poucas palavras (sem desmerecer a nobre e generosa tentativa destes 42 analistas em seus testemunhos).

Por fim, apresentei à banca avaliadora o segundo relatório clínico supervisionado que selou minha formação institucional, diante do qual ouvi de meu diretor de Instituto: "Bem-vinda à genealogia". Ele se referia à grande árvore cuja semente inicial fora plantada pelas mãos do próprio Freud.

Vislumbro que, juntos, fazemos dessa árvore novos galhos, ramos e folhas, enquanto sustentamos e fortalecemos o tronco e suas raízes. Creio que o Dr. Busch nos ajudou, com seu gesto, a publicar isso, a deixar escrito em papel o que vivemos em diferentes gerações de psicanalistas ao redor do mundo. Em uma alusão a Mahler, o compositor, a tradição não sendo o ato mortífero de cultivar as cinzas - das quais nada brotaria -, mas a preservação do fogo. O desejo em movimento, em muitos de nós, de manter juntos essa chama acesa.

Freud, o plantador inicial dessa árvore, é citado nada menos que 140 vezes ao longo dos 42 relatos. Apesar das dificuldades, das resistências, das antidemocracias, dos tempos sempre um tanto sombrios dentro e fora de cada um de nós, me parece que há algo de muito vivo nisso. Há uma chama acesa e incandescente. Fred Busch, na voz destes colegas que há muitos anos percorrem essa chama, nos diz isso.

 

 

1 Caro candidato: analistas de todo o mundo oferecem reflexões pessoais sobre a formação, o ensino e a profissão psicanalítica.

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