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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.3 São Paulo jul./set. 2021

 

CARTA-CONVITE

 

Carta-convite

 

 

Claudio Castelo FilhoI; Elsa Vera Kunze Post SusemihlII

IEditor
IIEditora associada

 

 

Impasses

O mais habitual na produção de trabalhos clínicos em psicanálise é que versem sobre os benefícios produzidos durante o atendimento ou processo analítico. Todavia, é mais raro nos depararmos com o relato de situações de impasse ou dificuldades com pouca ou nenhuma perspectiva de serem suplantadas na experiência clínica.

É de notar, porém, que boa parte do desenvolvimento da prática clínica e da teoria psicanalítica decorreu de experiências de impasse ou fracassos terapêuticos, a começar pelo famoso caso Dora, de Freud, e de outros pacientes dele, como o Homem dos Lobos, e em Mais além do princípio do prazer e "Análise terminável e interminável", respectivamente, com a postulação do instinto de morte e com a percepção de limites de atuação da psicanálise. Isso tudo evidenciou entraves nas abordagens que Freud fizera até então, cujo reconhecimento, como acontece nas ciências quando operam de forma realmente científica, revelou questões problemáticas que precisavam ser pensadas, levando-o a grandes mudanças na concepção do aparelho psíquico, da teoria pulsional e da angústia, bem como à mudança de tópica.

Segundo Karl Popper, em Conjecturas e refutações, o real caráter científico de um pensamento ou trabalho não está na corroboração de teorias consagradas ou do que já é conhecido e estabelecido, mas na busca das falhas e impasses do arcabouço teórico e prático que permitam ampliar o escopo do que percebemos e alcançamos, em um processo na direção do infinito. A concepção de que formulações científicas são sempre tentativas de aproximação provisórias e transitórias - o que também é da essência do pensamento psicanalítico, como foi expressamente indicado por Freud - está ancorada nas conjecturas de Platão, no mito da caverna, e de Kant, nos conceitos de númeno e fenômeno. Como diz Bion ao propor a ideia de transformações, há uma realidade última, O, inalcançável e incognoscível, e o que importa em psicanálise é o desconhecido.

O encontro com impasses pode levar à necessidade de reformular ou mesmo descartar paradigmas estabelecidos, o que sempre gera turbulência e desconforto. O reconhecimento, pelos seres humanos, da impossibilidade de alcançar uma verdade última, certa e segura, quase sempre causa reações individuais e grupais bastante adversas e hostis. Em contrapartida à angústia provocada pela ausência de certezas está o pensamento religioso, que considera possível conhecer a verdade última e estabelecer dogmas que excluem as dúvidas. Nas comunidades religiosas, no entanto, há constantes controvérsias, disputas e até guerras entre grupos da mesma denominação pela posse da "verdadeira" leitura, percebida como a única e real. Vale lembrar ainda os conflitos entre diferentes religiões. O mesmo pode acontecer na ciência, quando esta é tomada por um "pensamento religioso" que acredita que aquilo que se pensa é igual ao que existe e à verdade. Bachelard afirmou que toda teoria revolucionária, uma vez estabelecida, tende a se tornar um dogma e uma barreira para o surgimento de outra. Portanto, retomando a ideia de Popper, toda teoria precisa ser testada para que se verifiquem seus limites.

Partindo dessas ideias, propomos um número temático da RBP que se ocupe dos impasses com os quais os psicanalistas praticantes se deparam em sua atividade - situações-limite que possam resultar em reveses, interrupções, complicações, falta de evolução no trabalho, mesmo que este prossiga.

Não é necessário que soluções sejam apresentadas para essas situações, mas a reflexão sobre encruzilhadas ou eventos que caracterizam um contexto de beco sem saída pode auxiliar no desenvolvimento de cogitações sobre eles, que eventualmente permitam fazer surgir outros vértices em que possam ser pensados, ou mesmo evidenciar os limites em que uma psicanálise seja viável ou útil. Esses limites também precisam ser considerados e respeitados, evitando-se as atuações heroicas que resultem em desastre para o analista e/ou para os analisandos.

Convidamos os colegas de todo o Brasil a submeter suas contribuições sobre este tema.

 

Referências

Bachelard, G. (1999). La formation de l'esprit scientifique. Vrin. (Trabalho original publicado em 1938)        [ Links ]

Bion, W. R. (1977). Seven servants: four works by Wilfred R. Bion. Jason Aronson.         [ Links ]

Freud, S. (1955). Beyond the pleasure principle. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (J. Strachey, Trad., Vol. 18, pp. 1-64). Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1920)        [ Links ]

Freud, S. (1964). Analysis terminable and interminable. In S. Freud, The standard edition of the complete psychological works of Sigmund Freud (J. Strachey, Trad., Vol. 23, pp. 209-253). Hogarth Press. (Trabalho original publicado em 1937)        [ Links ]

Kant, I. (2015). Crítica da razão pura (F. C. Mattos, Trad.). Vozes. (Trabalho original publicado em 1781)        [ Links ]

Platão. (2001). A república (M. H. R. Pereira, Trad.). Fundação Calouste Gulbenkian.         [ Links ]

Popper, K. R. (1982). Conjecturas e refutações (S. Bath, Trad.). Universidade de Brasília. (Trabalho original publicado em 1963)        [ Links ]

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