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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.3 São Paulo jul./set. 2021

 

ENTREVISTA

 

Entrevista: Carmen C. Mion1

 

 

Maria Tereza Mantovanini; Regina Lacorte Gianesi

Membros associados da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP)

 

 

RBP: Gostaríamos que você nos falasse sobre a história da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), uma vez que estamos comemorando 70 anos de sua fundação.

CCM: A Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, motivo e inspiração desta entrevista, comemorou 70 anos no dia 9 de agosto de 2021. Ela foi ratificada pela Associação Psicanalítica Internacional (ipa) durante o Congresso Internacional de Psicanálise realizado em Amsterdã, Holanda, em 1951. Estavam então presentes Adelheid Koch e sua analisanda na época Lygia Alcântara do Amaral. Acho que a nossa Sociedade tem uma história muito bonita e comovente. Ela nasceu de um sonho do nosso fundador Durval Marcondes.

A oficialização pela ipa nessa data foi, na verdade, a realização de um sonho que tivera quando ainda era estudante de medicina, nos idos de 1919. Durval ficou fascinado pelas ideias de Freud apresentadas em um artigo escrito por Franco da Rocha, seu professor na época. Ficou tão encantado com essa nova concepção da mente humana que menos de 10 anos depois, em 1927, já formado em medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), conseguiu reunir com Franco da Rocha vários amigos médicos, poetas, escritores e educadores, entre eles Pedro Alcântara Machado e Menotti Del Picchia, para a fundação da Sociedade Brasileira de Psicanálise, a primeira sociedade psicanalítica da América Latina. Na verdade, a finalidade, naquele momento, não era proporcionar formação, mas tornar-se um centro coordenador dos estudos e da divulgação das ideias de Freud. É interessante que logo no ano seguinte, em 1928, Durval Marcondes lança a primeira Revista Brasileira de Psicanálise, como um órgão oficial da Sociedade.

A revista, por circunstâncias da época, teve apenas um número. No entanto, impressionou muito Freud, a ponto de ele escrever uma carta de agradecimento a Durval Marcondes, carta essa que faz parte do acervo do Centro de Documentação e Memória da SBPSP.

Em 1967, depois de constituída a SBPSP, a revista foi relançada por Durval Marcondes, Virgínia Bicudo, Laertes Ferrão (o presidente na época) e muitos outros colegas, que fizeram parte do primeiro corpo editorial, como Deodato Azambuja, Luiz Tenório Lima, Chaim Hamer, Paulo Duarte e Myrna Favilli. Desde então, a revista vem sendo publicada sem interrupção por todos esses anos.

Em 1971, a SBPSP doou a revista para a Associação Brasileira de Psicanálise (ABP) - atualmente, Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi). Houve então um acordo: a revista se tornou um órgão da Febrapsi, com sede no Rio de Janeiro e editoria em São Paulo, da SBPSP.

Voltando à história da Sociedade, é importante destacar que, a partir de 1934, o sonho de Durval passou a ser compartilhado por duas mulheres incríveis, que eram suas alunas no curso de educadoras sanitárias do Instituto de Higiene Mental: Virgínia Leone Bicudo, mulher negra, proletária, formada na Escola Livre de Sociologia e Política; e Lygia Alcântara do Amaral, um perfil totalmente diferente, descendente da aristocracia cafeeira mineira e professora primária. As duas foram tomadas pela mesma paixão. Não conheci Durval Marcondes, porém conheci as duas e tive a oportunidade de fazer supervisão com elas durante a minha formação. Minha segunda supervisão oficial foi com dona Lygia, que era uma mulher muito interessante, interessada e cheia de vida.

Já no fim da vida, com mais de 80 anos, ela propunha, para quem a procurasse para análise, uma experiência analítica intensa diária, mas com a duração exata de seis meses, porque dizia que não podia se comprometer por mais tempo naquela altura da vida... Uma mulher incrível!

Certamente, a partir daí, outros sonhadores - vamos chamá-los assim - se juntaram a essa empreitada. Sem dúvida, quem tornou possível a realização desse sonho foi a Dra. Adelheid Koch, que era membro da Sociedade Psicanalítica de Berlim. A vinda dela ao Brasil é muito interessante porque se deu às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Como inúmeros judeus, pensava em sair da Alemanha, migrar para outros lugares. Ernest Jones, sabendo dos planos de migração da Dra. Adelheid, contou a ela que Durval Marcondes estava procurando uma analista didata para trabalhar no Brasil, porque queria fundar uma sociedade de psicanálise. E lá veio a Dra. Adelheid, com o marido e duas filhas, para o Brasil. Não deve ter sido fácil para ela se adaptar ao português e à São Paulo da época. Ela era uma mulher muito refinada e culta, segundo contava Maria Ângela Moretzsohn, que tem um artigo muito interessante sobre a história da nossa Sociedade.2 Ela estudou português com afinco e em 1937 comunicou a Durval que estava pronta para atender pacientes.

Havia um grupo de estudos sobre psicanálise, formado por Virgínia Bicudo, Flávio Dias, Darcy Uchôa e Frank Philips, que se reunia na casa de Durval Marcondes. Os membros desse grupo se tornaram candidatos à formação, sendo todos analisados pela Dra. Adelheid. É muito interessante essa dupla Durval e Dra. Adelheid. Eles continuaram trabalhando juntos pela psicanálise em São Paulo e no Brasil até a morte dela, em 1980.

Uma parte bonita dessa história é que, quando estava bem envelhecida e muito doente, a Dra. Adelheid fez o que se chama de profissão de fé na psicanálise: chamou de volta seu ex-analisando Felix Gimenes, mas agora na condição de seu analista, fazendo com ele sua reanálise, suas reflexões. Muito tocante...

Durval se dedicou à psicanálise como presidente da Sociedade por nove anos, e até o fim da vida como professor, analista e incentivador dos jovens em formação.

RBP: Você poderia nos contar sobre sua trajetória profissional e como se deu o encontro com a psicanálise?

CCM: Durval e eu temos um ponto em comum, porque assim como ele fui fisgada pela psicanálise aos 16 anos, quando ganhei do meu pai, que era um cirurgião docente da FMUSP, um exemplar de Psicopatologia da vida cotidiana, de Freud.

Eu havia decidido fazer psicologia, porém, na hora do vestibular, acabei comprando um argumento do meu pai de que seria melhor fazer medicina, porque caso contrário, dizia ele, eu sempre dependeria dos médicos psiquiatras, seja para diagnosticar, seja para medicar os pacientes. Concordei com esse argumento naquele momento e decidi fazer o vestibular para medicina. Então começou uma longa volta até chegar à psicanálise novamente.

Certo dia, em 1975, quando eu era estudante de medicina na FMUSP, Luiz Tenório Oliveira Lima, professor de psiquiatria e posteriormente membro efetivo docente da SBPSP, fez com que me apaixonasse definitivamente pela psicanálise. Na época, ele era um jovem professor, de cabelos lisos na altura dos ombros, com rabo de cavalo, e que dava aulas memoráveis.

Entrei na faculdade para fazer psiquiatria, porém me casei no terceiro ano com um colega de turma e acabei engravidando no quinto ano. Meu filho nasceu no fim do quinto ano, em dezembro. Por incrível que pareça (é difícil acreditar nisso hoje em dia), na época não havia licença-maternidade. No internato, o esquema era de dedicação integral: a cada três dias, você tinha um plantão e passava 36 horas direto no hospital, e não havia licença para amamentação. Como eu não deixaria de amamentar, criou-se um impasse, que foi resolvido, em parte, com a procura de uma área próxima da psiquiatria, mas com outro tipo de exigência. Fui falar com o professor Núbio Negrão, cientista e homem admirável, na época professor titular de neurofisiologia da usp, e comecei a trabalhar com ele. O trabalho no qual me envolvi consistia de uma investigação sobre o cerebelo. Um dos animais cujo cerebelo é mais desenvolvido é o gato. Após seis meses nesse trabalho, passado já o período de amamentação, decidi conversar com o professor Núbio porque não aguentava mais torturar gatinhos. Ele era um pesquisador brilhante e um homem muito acolhedor com todos os seus alunos e pesquisadores. Era muito querido. Na época, ele era membro do conselho de um grupo fundado pelo doutor Raul Marino, neurocirurgião, que retornara havia pouco tempo dos EUA, onde fora fazer uma pós-graduação ou um pós-doutorado, não lembro ao certo. Por questões políticas e/ou burocráticas, ele não pôde ficar na neurologia do Hospital das Clínicas (HC), porém conseguiu um lugar no Instituto de Psiquiatria, onde criou um centro de neuropsiquiatria e iniciou as primeiras cirurgias estereotáxicas no Brasil. Ele formou um grupo excepcionalmente capaz de pesquisadores clínicos. O professor Núbio então me apresentou a Daniele Riva, que era o diretor clínico do grupo de Raul Marino. Era a época do auge da Encyclopédie neurologique, que comecei a estudar, e dos estudos sobre as pesquisas neuropsicológicas de Alexander Luria3 na Rússia, um trabalho de investigação das funções mentais superiores e das localizações corticais. Era simplesmente fascinante! Resultado: eu me apaixonei de novo e decidi fazer neurologia. Entrei na residência e fiz três anos, ao fim dos quais fui contratada pela Clínica Neurológica do HC-FMUSP. Trabalhava no Laboratório de Investigação em Neurologia (LIN), cujo chefe era o professor Antonio Spina-França. Porém a psicanalista em potencial estava sempre presente e foi se revelando ao longo de todo esse meu percurso na neurologia.

Digo que a analista já estava lá por causa de alguns episódios ocorridos na residência, os quais me levaram a essa realização, muitos anos depois, durante a minha formação. Por exemplo, quando fui aprovada para a residência na neurologia, o professor Spina-França me chamou e disse que, como meu sexto ano não tinha sido clínico, iria me dar um treinamento intensivo, na verdade de choque, me colocando no PSN, o pronto-socorro da neuro no HC. Nesse ps recebíamos muitos jovens que haviam levado tiros ou sofrido acidentes de carro ou de moto, e que ficavam ali, naquela enfermaria, um tempão em coma, sendo atendidos pela equipe.

Quando cheguei ao PS, resolvi fazer uma revolução: chamei a Dra. Mariza D'Agostino, uma das fundadoras da medicina intensivista, e fizemos uma reforma nos leitos. Colocamos colchões d'água para evitar escaras, e gente para fazer fisioterapia, porque os pacientes ficavam largados lá, não existia nada disso. Passamos a ter assistência da equipe da uti. Bolei um esquema de visitação dos pais, que eu permitia que entrassem e conversassem com os filhos.

Certo dia, o professor Spina me chamou para conversar na sala dele. E fui eu pensando: "O que será que aprontei?". Chegando lá, o que ele queria era me cumprimentar pela humanização e revolução que eu havia feito nos cuidados com os pacientes que ficavam no pronto-socorro da neuro até serem encaminhados. Enfim, a analista estava lá.

Outro episódio de que me lembro: o residente de plantão noturno na Clínica Neurológica era responsável pela clínica de adultos e crianças; quando eu estava de plantão, à meia-noite, momento em que acabava o turno das visitas aos leitos da neuropediatria por médicos e enfermeiras, as mães das crianças internadas ficavam me esperando dar o sinal, porque já sabiam que eu as deixava entrar e ficar sentadas ao lado do bercinho das crianças a noite toda; as enfermeiras adoravam, porque isso aliviava muito para elas, os bebês dormiam, e as mães ficavam muito felizes.

Iniciei minha formação no Instituto da SBPSP em 1981, mas só me desliguei mesmo da neurologia em 1988, quando pedi demissão da FMUSP.

Alguns anos depois, tive que interromper minha formação, porque meu marido foi fazer um pós-doutorado nos EUA e decidi acompanhá-lo. Na época eu já tinha dois filhos e decidi fazer algo que me faltava, que era a especialização em psiquiatria. Eu me inscrevi no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), ganhei uma bolsa e fui para os EUA, para a Universidade de Iowa,4 com meu marido. Trabalhei com a professora Nancy Andreasen, que era a chefe da psiquiatra. Foram anos de muito aprendizado e experiências maravilhosas, embora eu tivesse interrompido minha formação em São Paulo no Instituto. Entretanto, fui aceita no Instituto de Psicanálise de Chicago, onde fiquei por dois anos, para acompanhar a turma do quinto ano. Foi uma experiência muito fértil, muito rica. Só mais tarde, também como um après-coup, fui entender a origem do meu interesse por diferentes autores e a importância da experiência clínica, a sessão, para poder haver conversa. Era a única maneira de me comunicar com os colegas lá. Eu estava no Instituto do Kohut, onde Klein não existia, apenas Anna Freud, e naquele momento estudavam muito Winnicott, que eu nunca havia lido.

Quando voltei, terminei minha formação e só em 1992 comecei a ter participação mais ativa nas questões institucionais, principalmente através das inúmeras comissões das quais fiz parte. Fiquei durante seis anos na Comissão de Ensino, participei de inúmeras comissões de avaliação de relatórios, de membros efetivos e didatas, comissões ad hoc para a discussão dos rumos da Sociedade. Coordenei durante dois anos a comissão para a reforma do estatuto e muitas outras. Sempre gostei de trabalhar nessas comissões porque não tinham o peso do compromisso com as diretorias, e eu prezo uma certa independência.

Em 2010 aceitei fazer parte da diretoria do Instituto como secretária-geral, a convite de João Baptista Novaes França, que era o diretor do Instituto naquele período. Desde então, um longo caminho foi percorrido por mim e também pela nossa Sociedade.

Havia desenvolvido grande experiência no ensino dentro e fora de instituição. Recebi, então, um convite para participar do Comitê de Educação da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal), no qual permaneci durante cinco anos. O comitê era coordenado por Norberto Marucco, psicanalista argentino brilhante e de incrível generosidade. Foi uma experiência maravilhosa, em que viajamos bastante e participamos de pré-congressos muito interessantes, todos organizados por ele.

Posteriormente, trabalhei durante seis anos no Oversight and Education Committee da IPA, uma comissão de formação, quando Stefano Bolognini era o presidente da IPA.

Também trabalhei dois anos em uma task force criada para estudar e desenvolver a relação entre a ipa e as suas Sociedades constituintes, outro trabalho muito interessante, em que pude aprender bastante sobre diferentes Sociedades em todo o mundo e conhecer vários colegas, alguns cuja amizade conservo até hoje.

Exerci todas essas funções na Fepal e na IPA, fora da nossa Sociedade, em outros países, sempre como representante da América Latina. Na mencionada task force éramos três representantes apenas: um da América Latina, que era eu, um da Europa, Bernard Chervet, e um da América do Norte, Harriet Basseches, além do chair, Franz Wellendorf.

Atualmente, fora da nossa Sociedade, sou membro do board do International Journal of Psychoanalysis.

O que eu percebi durante esses anos, em contato com diferentes Institutos e Sociedades de todo o mundo, é que a história da nossa Sociedade é muito bonita, rica e democrática, com um Instituto único em possibilidades de acesso, pelo candidato (aqui, membro filiado), não só a uma sólida formação em Freud, a uma introdução à obra de Klein e à obra de Bion, a seminários, mas também às mais diferentes teorias psicanalíticas, à livre escolha de variados cursos eletivos, cujos temas e autores são escolhidos pelo próprio docente e constituem parte importante da formação que oferecemos. Somos praticamente os pioneiros nesses cursos eletivos, os quais possibilitam um aprofundamento nos autores que fazem mais sentido para cada um. Sem mencionar a importância da experiência de atendimento à comunidade oferecida pela Diretoria de Atendimento à Comunidade (dac) e a interlocução com a cultura e a universidade através da Diretoria de Cultura e Comunidade (DCC).

Na verdade, eu me orgulho muito da Sociedade na qual, agora, estou na função de presidente.

RBP: Como presidente, poderia falar quais são seus projetos e desafios para sua gestão?

CCM: Bem, diante do momento político, social e cultural que estamos vivendo, em meio a essa pandemia de proporções inimagináveis, são muitos os desafios que temos pela frente.

O primeiro deles é a possibilidade de continuarmos com as reuniões científicas, as jornadas, os simpósios e a própria formação dos membros filiados à distância, por meio do grande e complexo sistema de tecnologia e informação instalado na Sociedade no fim do ano passado, pela diretoria anterior, e que foi implementado para valer no primeiro semestre de 2021. Esse sistema abrange desde o envio e controle de boletos online, referentes às mensalidades, até a organização de webinários, reuniões com convidados estrangeiros, com tradução simultânea, para 500 pessoas. Não é difícil imaginar os inúmeros percalços que surgiram na implementação e na operação dessa tecnologia, à qual todos - diretoria, membros, funcionários - tivemos de nos adaptar rapidamente. Penso, porém, que estamos indo satisfatoriamente graças à dedicação e esforço conjunto de muitos colegas e funcionários inseridos em diversos setores.

Desde o momento em que aceitei o convite para assumir essa empreitada, tenho refletido de maneira profunda sobre nossa instituição - refletido como um outsider, com um passo para trás, porém levando em conta as experiências de um insider.

Em uma instituição como a nossa, que está completando 70 anos, precisamos, enquanto diretoria, estar atentos não só à natureza da sua tarefa primária, que é o cuidado e o desenvolvimento da psicanálise enquanto campo específico do saber, bem como a formação de futuros analistas, mas também, insisto, a uma necessária reflexão sobre sua história e sua estrutura, visto que as instituições se constituem ao longo do tempo, adquirem características próprias que resultam das inúmeras experiências que as formaram. Posso dizer que atualmente, em 2021, permanecem em pauta as mesmas preocupações que existiam em 1993, surgidas na nossa primeira jornada interna, em Valinhos. São questões ligadas à nossa especificidade, como identidade científica e clínica, necessidade de abertura para a comunidade - hoje mais do que nunca - e contato com outras disciplinas no campo da ciência e das artes. Digo hoje mais do que nunca em função da pandemia que estamos vivendo.

Enfim, com o tempo e a idade, constato com Jorge Luis Borges que estamos constantemente a pensar, com maior ou menor complexidade e profundidade, certas questões eternas - no caso, eternas para uma instituição psicanalítica.

Tenho a percepção de que, ao longo da nossa história, acabamos por criar uma espécie de cesura na nossa instituição, envolvendo dois movimentos opostos: a cada movimento direcionado para fora, no sentido de propiciar trocas com a comunidade e com outras áreas do saber e a divulgação da psicanálise e da Sociedade, corresponde um movimento contrário para dentro, em direção ao interno, no sentido de delimitar e fortalecer a identidade e a especificidade da instituição psicanalítica, que se sente ameaçada, e vice-versa. Essa é uma cesura que pode ser tão intensa e intransponível como tantas outras, se não estivermos atentos, se não considerarmos a travessia necessária, a continuidade dinâmica desses movimentos.

Considero essa percepção, que obviamente não é só minha, uma consequência do nosso desenvolvimento e amadurecimento como instituição, que nos propõe a tarefa, o desafio mesmo, de tentar penetrar essa cesura, ou falsa cesura, não sei, em suas diferentes facetas nos grupos e na instituição como um todo. Eu disse falsa porque, do meu ponto de vista, é uma cesura provavelmente iniciada em certo momento traumático da nossa história e que infelizmente continua sendo transmitida de maneira transgeracional, talvez alimentada pela paixão com que nos dedicamos às nossas causas, talvez pelo narcisismo das pequenas diferenças, como tão precisamente apontou Freud. A realidade é que há muito tempo ambos os movimentos já fazem parte da nossa identidade como instituição, em uma conjunção que considero muito saudável.

A SBPSP é uma instituição em constante desenvolvimento e crescimento. É uma instituição forte, doadora de identidade analítica, e sua pertinência é valorizada pelo grupo de seus membros.

Nossa Sociedade, principalmente pela pluralidade que a caracteriza e se mantém ao longo dos anos, fomenta, cria a possibilidade de compartilharmos diferentes experiências e nos obriga a questionar o familiar, o já compreendido, que não consegue encontrar um lugar de conforto, permitindo o desenvolvimento do pensamento psicanalítico de cada um nós.

Nesta gestão, valorizamos o pensamento clínico, que é a nossa tradição e que ocupa um lugar central para a Diretoria Científica atual.

Por meio de nossa Diretoria Regional, cuja diretora é Glaucia Maria Ferreira Furtado, continuaremos a incrementar a participação dos colegas das diversas cidades do interior de São Paulo, das nossas regionais, algo que o desenvolvimento da tecnologia online veio favorecer, aumentando o intercâmbio entre nós.

A Diretoria de Atendimento à Comunidade, cujo diretor é Darcy Portolese, vem promovendo, nos últimos dez anos, um grande desenvolvimento nas suas três vertentes: o serviço de atendimento psicanalítico individual à comunidade, o setor de convênios e parcerias com estratos carentes da sociedade, e o setor de cursos e jornadas para a divulgação da psicanálise - todos eles abertos para a prestação de serviços e para o atendimento, com fins de pesquisa, experiência clínica e supervisão de membros filiados. Existe também a preocupação de que o nosso conhecimento psicanalítico atinja e beneficie diferentes camadas da população, que contemple a saúde mental no alcance possível.

No último semestre ampliamos o atendimento à população mais vulnerável por conta da pandemia. Com a Febrapsi, também participamos ativamente do Projeto sos Brasil (Esclarecer), criado pela colega Alicia Lisondo com a ajuda de outra colega, Marly Verdi. Esse projeto visa ao atendimento gratuito de gestantes, crianças e adolescentes, e suas famílias, atingidos pelas consequências da pandemia. Há pouco tempo começamos ainda uma parceria com o serviço de atendimento social da usp para atendermos os moradores do conjunto residencial da universidade (Crusp).

Junto com Dora Tognolli, diretora do Instituto, o coração da Sociedade, assumimos o compromisso de promover um ensino de qualidade, sério, comprometido com os legados que recebemos e ao mesmo tempo atento às transformações históricas e culturais, que não terminam, que não cessam.

Acabamos de aprovar em assembleia e de implementar a formação integrada de analistas de adultos, crianças e adolescentes, para a nova turma de membros filiados que iniciará sua formação analítica. Um grande passo dado pela Secretaria de Crianças e Adolescentes do Instituto, muito necessário e há muito debatido.

No momento estamos estudando a viabilidade de um projeto de inclusão racial em nossa formação, como muitos outros Institutos no Brasil e na América Latina, através de bolsas oferecidas a candidatos negros, que muitas vezes nem tentam se candidatar à seleção por falta de rendimentos para arcar com a formação. Esse é o embrião de um projeto que ainda está em gestação.

A Diretoria de Cultura e Comunidade, cujo diretor é o nosso brilhante colega João Frayze, propõe uma reflexão sobre a presença da cultura na psicanálise. A partir de uma questão básica, "O que é cultura?", serão interrogadas certas formas de expressão da cultura, como a erudita, a popular e a do espetáculo, assim como certas manifestações políticas da cultura, como o fascismo e a democracia, a fim de pensarmos sobre as possibilidades de uso dos recursos psicanalíticos para uma abordagem dos fenômenos culturais nas suas particularidades.

Na Diretoria Científica, cuja diretora é Ana Maria Vannucchi, visamos estimular o pensamento clínico em seus diferentes enfoques - até mesmo no atendimento online, que nos demanda grande reflexão - e o desenvolvimento da ética psicanalítica, por meio de diálogos clínicos. A partir destes, buscamos favorecer a clínica como um terreno de conversas, convergências e divergências entre diferentes linhas e grupos de pensamento psicanalítico - um estímulo ao debate e à participação de todos os grupos que compõem a diversidade da nossa Sociedade.

Enfim, um debate aberto torna a relação institucional mais transparente, confiável e sólida. Assim, nossa Sociedade poderá continuar na liderança de um fazer psicanalítico que envolve uma atitude permanente de interrogação, de busca, de evolução, com atenção às demandas peculiares deste nosso mundo, que parece cada vez mais insalubre e hostil ao que caracteriza o humano.

RBP: Como vê a formação do psicanalista hoje?

CCM: Difícil pergunta essa. Será possível formar um analista? A primeira vez que me ocorreu esse pensamento, vocês me fizeram lembrar, foi em Bogotá, durante um pré-congresso didático, em 2010. Na época, minha função como secretária-geral do Instituto da SBPSP tinha terminado, e eu fazia parte do Comitê de Educação da Fepal. Um fundo emotivo e muito reflexivo predominava nesse encontro, que foi dirigido por Norberto Marucco. Nessa reunião específica pensei comigo: "Será que aquela célebre dialética exposta por Freud, quando utilizou a antítese que Leonardo da Vinci resumiu, em relação às artes, nas fórmulas per via di porre e per via di levare, não se aplicaria também à formação de um analista?".

As estátuas inacabadas de Michelangelo, como a Pietà Rondanini, constituem uma imagem forte desse modelo: parece que o escultor vai tirando o excesso, e a figura sai da pedra.

Naquela ocasião, em Bogotá, eu participava como coordenadora da última reunião que teríamos em um dos pequenos grupos de discussão. O tema do encontro era exatamente "A formação analítica e a prática clínica atual: formação analítica na atualidade". Discutíamos as vicissitudes da inserção da psicanálise na cultura contemporânea. Frente à solicitação de alguns colegas em formação para que fosse incluído, oficialmente, nos Institutos da Fepal um curso sobre psicoterapia psicanalítica, surgiram questões sobre como formar um analista em uma cultura de superficialidades, que privilegia métodos de evasão e de descarga. Como zelar pela função psicanalítica? Como reafirmar a importância da análise pessoal para o desenvolvimento do instrumento de trabalho dos analistas? E por aí afora. Eram muitas perguntas. Depois de dois dias de trabalho, antes da plenária final, havia se abatido sobre nós um sentimento de tristeza e desesperança - e eu era um dos dois coordenadores. Houve um silêncio carregado de desalento naquele grupo, que era constituído por diretores de Institutos, docentes e candidatos, pois era um pré-congresso. De repente me ocorreu perguntar a uma colega, diretora de um Instituto, que estava sentada ao meu lado (era Marina Altmann, do Uruguai): "Como você se tornou analista?". Quando ela respondeu, algo absolutamente surpreendente ocorreu: à medida que ela contava sua história, seu semblante se modificava, seu rosto começou a se iluminar, os olhos brilhavam; todos os presentes acompanhavam atentamente suas palavras, e eu pude notar uma expressão de reconhecimento em suas faces. Logo em seguida outro colega começou a contar sua história - uma história de amor com a psicanálise. Depois outro, e outro, e se instaurou no grupo uma discussão mais próxima a emoções profundas. Ficamos todos emocionados. O clima afetivo predominante naquele momento acabou possibilitando que uma jovem, uma colega em formação, uma candidata, que estava até então em silêncio, levantasse a mão e dissesse que sentia que o tempo de formação é tão breve, e que a construção da identidade do analista é um processo tão longo e delicado, que não gostaria de ter tempo roubado ao seu desejo de ser analista - ars longa, vita brevis. Vocês me fizeram lembrar dessa reunião, desse episódio.

Atualmente as teorias psicanalíticas são transmitidas nas faculdades de psicologia, medicina, filosofia e sociologia. Certamente elas têm uma extensa e fértil área de utilização nos campos da saúde, da educação, da cultura e da ação social, como temos visto hoje durante a pandemia. No entanto, todo analista praticante sabe que a aplicação da teoria e da terminologia psicanalítica na descrição da relação entre duas pessoas não transforma uma experiência em uma experiência psicanalítica. Feliz ou infelizmente a psicanálise não está contida nas suas teorias, na sua metapsicologia, ou seja, não é necessário um psicanalista para a transmissão das nossas teorias, mas é necessário um psicanalista para a transmissão da psicanálise. Esta é possível apenas por meio da experiência da análise pessoal e de supervisões com outro psicanalista.

Fato é que, histórica e epistemologicamente, a teoria psicanalítica origina-se da experiência. Ela se refere a um método de observação e de aproximação ao psiquismo que implica sempre duas subjetividades: quem investiga está sendo constantemente investigado. Isso também implica um corpo teórico crescente e em constante evolução, que organize essas experiências clínicas, relacionando-as ao desenvolvimento emocional do homem.

RBP: Qual a importância que você atribui à análise pessoal, às supervisões e aos cursos teóricos na formação analítica?

CCM: A formação em psicanálise, desde sua origem, transita entre o saber que se pode avaliar objetivamente, cujos métodos e teorias são objetiváveis e transmissíveis e que inevitavelmente remetem aos conteúdos teóricos e aos campos das ciências, e um outro saber, que envolve a introjeção de um setting: criatividade, intuição psicanalítica, uma transformação pessoal que transcende a teoria e a técnica - uma experiência estética, que nos remete ao campo das artes.

Então, a impossível função, já dizia Freud, a que se propõem os institutos de psicanálise é esta: a de favorecer um vir a ser psicanalista. Um vir a ser porque não envolve só um conhecimento da teoria e do método psicanalítico, mas um projeto de autonomia pessoal, fundado em uma atitude de interrogação e de busca permanente, que jamais termina, que se constitui com uma peculiaridade única no âmbito do saber e do fazer humano. É esse fazer analítico que o nosso Instituto procura favorecer por meio do tripé de formação.

Nosso Instituto em São Paulo se organiza e se constitui de forma coerente com a ideia de que o eixo da formação do analista é a sua análise pessoal, que juntamente com as supervisões, os seminários clínicos e teóricos e a convivência institucional (o assim chamado quarto eixo, atualmente) constitui a base de formação. O reconhecimento do quarto eixo é relativamente recente e tem a ver com o fato de que a formação do analista ocorre em um setting bastante complexo, a que se somam fatores pessoais, históricos e socioculturais que intervêm na formação de sua identidade.

A instituição na qual se dá a formação precede o membro filiado, que de repente se vê inserido em uma espécie de cultura institucional, com seus próprios valores identitários. O membro filiado, quando ingressa, estabelece relações dentro da instituição que vão sustentar e participar da construção da sua identidade analítica. Além disso, nesse quarto eixo, penso que a transmissão da psicanálise não pode deixar de lado o reconhecimento da diversidade dos referenciais teóricos, e esse é um diferencial na formação que o nosso Instituto oferece. As nossas diferenças, a nossa diversidade, acrescentam complexidade e riqueza à formação que oferecemos aos nossos membros filiados, o que possibilita trocas de experiências que favorecem o aprendizado e o desenvolvimento pessoal.

A nossa diversidade é um dos problemas epistemológicos com os quais todo psicanalista tem que se haver atualmente, o que nos demanda reflexão e elaboração constante. Como disse há pouco, essa discussão epistemológica é parte importante do nosso projeto para a Diretoria Científica.

Retomando a experiência em Bogotá, penso que já temos no nosso íntimo o psicanalista que viremos a ser.

Odilon de Mello Franco Filho, analista que foi meu supervisor durante muito tempo na Sociedade, afirmava que a formação analítica não forma um analista, mas oferece condições para que determinadas funções da sua personalidade, entre elas a função analítica, possam se expressar e se desenvolver no contato emocional com o outro, no campo analítico. Do ponto de vista dele, com o qual concordo inteiramente, o principal instrumento de trabalho do analista é a sua personalidade.

Na verdade, vemos hoje que a noção da pessoa ou da subjetividade do analista está no centro da psicanálise contemporânea, permeando os debates na atualidade. De maneira muito profunda e bonita, Luiz Carlos Uchôa Junqueira toca nessa questão quando observa que o psicanalista, na busca por sua identidade, precisa estar preparado para suportar o mistério da feiura interna, matizada pela beleza da procura da verdade. Ele diz que "é necessário enfrentar seu amor e seu ódio pela psicanálise".

A análise do analista durante a sua formação é que vai capacitá-lo a tolerar essas experiências emocionais e outras, que envolvem o confronto com a incoerência, a não compreensão, sentimentos de dúvida ou de persecutoriedade, contratransferências.

Não é fácil o caminho do psicanalista. Viver um processo contínuo de aprendizado e desenvolvimento só é possível enquanto o analista mantiver sua paixão pela investigação, pela exploração das profundezas do inconsciente, do desconhecido. Foi essa paixão que emergiu naquele encontro em 2010 e que nos deixou a todos emocionados. Éramos quase 30 pessoas - 30 analistas - naquela sala. Quero ressaltar também a questão da reanálise do analista, que Freud recomendava que fosse feita a cada 10 anos e cuja importância, de forma tocante, nossa fundadora, Adelheid Koch, deixou patente, conforme relatei antes, ao falar da história da nossa Sociedade. É mesmo uma bonita história, não é?

 

 

1 Analista didata e presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
2 Moretzsohn, M. A. G. (2014). De Berggasse à Villa Nova: uma aventura vienense na Pauliceia desvairada. Jornal de Psicanálise, 47(87),251-260. https://bit.ly/3gwBZyP
3 Médico pesquisador russo. Pioneiro da neuropsicologia, estudava as interações entre o cérebro e as funções mentais superiores.
4 Centro de Pesquisa Clínica em Saúde Mental, Departamento de Psiquiatria, Hospital da Universidade de Iowa, EUA.

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