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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.3 São Paulo jul./set. 2021

 

TEMÁTICOS

 

Estranhezas no campo analítico1

 

Strange things in the field of analysis

 

Extrañezas en el campo analítico

 

Étrangeté dans le champ analytique

 

 

Roosevelt M. S. Cassorla

Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCAMP). Professor titular da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (FCM-Unicamp). Campinas / roocassorla@gmail.com

 

 


RESUMO

O autor discute fatos clínicos que se manifestam como estranhos "acidentes" no campo analítico. O analista se assusta com o surgimento abrupto de descargas, atos, sintomas, imagens e situações que o deixam perplexo e estranho. Tem a impressão de que está participando de situações que correspondem ao estranho inquietante descrito por Freud. Através de material clínico, o autor propõe que esses acidentes indicam a substituição do conhecido, do familiar, pelo não familiar. Mas o desconhecido não é inteiramente desconhecido, porque se refere a experiências primitivas que não foram suficientemente simbolizadas. Essa ambiguidade se manifesta na desorientação do analista, que não sabe se sua função analítica está intacta ou perturbada. É demonstrado que ambas as situações estão de fato presentes. Aspectos teóricos são discutidos.

Palavras-chave: inquietante, estranho, simbolização, ambiguidade, enactment


ABSTRACT

The author writes about clinical facts that happen as strange "incidents" in the field of analysis. The analyst is astonished by the abrupt rise of release, actions, symptoms, images and situations that made him feel perplexed and strange. He has that impression he is part of situations related to Freud's uncanny theory. Through clinical material, the author proposes these incidents are about replacing the familiar for the unfamiliar. What is not familiar is not completely unknown, though. It is related to primitive experiences that haven't been signified enough. This ambiguity manifests in making the analyst disoriented, not sure if his analytical role is intact or disturbed. It is shown that both situations are actually present. Theoretical aspects are discussed.

Keywords: uncanny, unsettling, strange, symbolization, ambiguity, enactment


RESUMEN

El autor discute datos clínicos que se manifiestan como extraños "accidentes" en el campo analítico. El analista se asusta con el surgimiento abrupto de descargas, actos, síntomas, imágenes y situaciones que le dejan perplejo. Tiene la impresión de que está participando de situaciones que corresponden al extraño inquietante descrito por Freud. A través de material clínico, el autor propone que esos accidentes indican la sustitución del conocido, del familiar, por el no familiar. Pero lo desconocido no es totalmente desconocido, porque se refiere a experiencias primitivas que no fueron simbolizadas lo suficiente. Esa ambigüedad se manifiesta en la desorientación del analista, que no sabe si su función analítica está intacta o alterada. Está demostrado que ambas situaciones de hecho están presentes. Aspectos teóricos son discutidos.

Palabras clave: inquietante, extraño, simbolización, ambigüedad, enactment


RÉSUMÉ

L'auteur discute des faits cliniques qui se manifestent comme des « accidents » étranges dans le champ analytique. L'analyste s'étonne du surgissement abrupt de décharges, d'actes, de symptômes, d'images et de situations qui le laissent perplexe et étrange. Il a la sensation qu'il participe à des situations qui correspondent à l'étrange inquiétant décrit par Freud. Au moyen d'un matériel clinique, l'auteur propose que ces accidents indiquent le remplacement du connu, du familier, par le non familier. Mais l'inconnu n'est pas tout à fait inconnu, car il fait référence à des expériences primitives qui n'ont pas été suffisamment symbolisées. Cette ambiguïté se manifeste dans la désorientation de l'analyste qui ne sait pas si sa fonction analytique était intacte ou perturbée. On démontre que les deux situations sont vraiment présentes. On discute des aspects théoriques.

Mots-clés: inquiétant, étrange, symbolisation, ambiguïté, enactement


 

 

Ontem, quando eu estava subindo a escada,
conheci um homem que não estava lá.
Ele não estava lá de novo hoje.
Oh como eu gostaria que ele fosse embora!

Quando cheguei em casa ontem à noite, às três,
O homem estava esperando por mim,
Mas quando olhei ao redor
Não pude vê-lo lá!

Vá embora, vá embora, não volte mais!
Vá embora, vá embora, e por favor, não bata a porta...

Ontem à noite eu vi na escada
Um homenzinho que não estava lá.
Ele não estava lá de novo hoje.
Oh como eu gostaria que ele fosse embora!

W. H. MEARNS, "Antigonish"

Durante um processo analítico pode acontecer de o analista sentir que perdeu o controle sobre si mesmo, que está sendo dirigido por algo estranho, ficando surpreso e assustado com o que está vivenciando. Sua impressão é de que está vivendo algo similar ao que Freud (1919/2010b) chamou inquietante (unheimlich). Outras vezes o analista se dá conta do inquietante num momento posterior, após tê-lo experienciado.

O estudo etimológico do termo unheimlich fez Freud perceber que o fenômeno pode transitar, imperceptivelmente, entre o familiar e o não familiar. E ambos podem coexistir no campo analítico.

Para Freud, "com o animismo, a magia e feitiçaria, a onipotência dos pensamentos, a relação com a morte, a repetição não intencional e o complexo de castração ... esgotamos os fatores que transformam algo amedrontador em inquietante" (1919/2010b, p. 362). Antecipando seu texto de 1920, Freud descreve a repetição involuntária: "compulsão ... vinda dos impulsos instintuais ... que confere a determinados aspectos da psique um caráter demoníaco" (p. 356), percebido como inquietante.

Neste texto me atenho a situações similares às descritas por Freud, que ocorrem quando o analista vivencia estranhos "acidentes" no campo analítico e que fazem com que ele, o analista, se sinta estranho.

Especulo que esses acidentes implicam a substituição súbita do conhecido, do familiar, pelo não familiar. Mas esse não familiar não é totalmente desconhecido, porque remonta a experiências primitivas que foram registradas na mente, de alguma forma. Esse registro, no entanto, não foi suficientemente simbolizado. Como no poema de Mearns, "eu vi na escada um homenzinho que não estava lá".

Por exemplo, a dupla analítica parece estar se comunicando consciente e inconscientemente através de fatos suficientemente simbolizados, como cenas, narrativas e enredos colocados em palavras (sonhos-a-dois). De repente, o analista é surpreendido pelo surgimento abrupto de descargas, atos, sintomas, imagens, situações que o fazem sentir-se perplexo e assustado. Proponho que estamos frente a configurações ambíguas, similares às do poema de Mearns: "não estava lá" e "como eu gostaria que fosse embora".

Essa ambiguidade se manifesta na desorientação do analista, que não sabe se sua função analítica está íntegra ou perturbada. Como tentaremos demonstrar, ambas as situações estão presentes: a aparente perturbação da função é, ao mesmo tempo, sinal de sua potência.

Provavelmente a intensidade do inquietante é proporcional ao contraste entre fatos conhecidos e fatos desconhecidos, ao inesperado de seu surgimento e à maneira como o analista lida com sua capacidade intuitiva. A similaridade com fatos traumáticos se impõe.

Lembremos que símbolos são artefatos que representam a realidade em sua ausência. Caracterizam-se pela atração que exercem uns sobre os outros, constituindo a rede simbólica do pensamento, onde são gerados significados em constante transformação.

Sabemos que em área não psicótica (Bion, 1962) o paciente é capaz de simbolizar, de transformar seus estados emocionais em imagens e narrativas, que se manifestam como sonhos diurnos e noturnos. O analista tenta ressonhar esses sonhos, e se constituem sonhos-a-dois que indicam como a rede simbólica do pensamento é transformada no aqui e agora do campo analítico. Nessa área de mente a triangulação edípica foi, de alguma forma, alcançada, e a dupla está trabalhando sobre as vicissitudes conflitivas dessa configuração.

Em áreas onde a capacidade de simbolização está perturbada - em variados graus - a dupla analítica se encontra frente a configurações em que a triangulação não foi suficientemente adquirida, ou está sendo atacada. Estamos em área psicótica do funcionamento mental, que se amplia para áreas que vivenciaram experiências primitivas que não puderam ser simbolizadas, porque essa capacidade ainda não existia de forma suficiente.

Podemos levantar a hipótese de que todas as experiências são registradas na mente primordial e, quando simbolizadas, também na mente simbólica. Por outro lado, não existe uma oposição dicotômica entre símbolos e registros não simbólicos. A clínica nos mostra uma gama de registros, um gradiente com diferentes graus de simbolização e não simbolização. Num extremo desse gradiente, teremos traços; no outro extremo, símbolos verbais, da escrita e da arte. Entre esses extremos encontraremos variados tipos de signo: ícones, índices e símbolos (Scarfone, 2013), com diferentes graus de fraqueza ou força significante e com diversos graus de concretude e abstração. Equações simbólicas (Segal, 1957), quando símbolo e simbolizado se confundem, resultam em pensamento concreto.2

Essas áreas com déficit de simbolização se apresentam no campo analítico através de fatos clínicos variados, como os descritos anteriormente, além de somatizações, delírios, crenças, alucinações, comportamentos, vazios. Muitas vezes esses aspectos primitivos se revelam por meio da prosódia que acompanha a comunicação simbólica (Bronstein, 2015). Tenho chamado não-sonhos ao conjunto desses fenômenos (Cassorla, 2008). Os não-sonhos coexistem com os sonhos.

Essa coexistência pode transformar-se em perplexidade, porque o observador estará vivenciando ao mesmo tempo objetos vivos e mortos (ou quase vivos e quase mortos), inanimados e humanos, concretos e simbólicos etc. O quase pode ser acrescentado a todos os fatos, pois a certeza vem acompanhada da incerteza.

Frente à manifestação de áreas primitivas de mente, a função continente do analista se vale de sua capacidade de reverie na tentativa de dar figurabilidade ao que o paciente não está podendo comunicar por palavras. A capacidade de reverie envolve um estado alterado de consciência, em que o analista se deixa penetrar por estados de mente de seu paciente, buscando transformá-los em sonho e pensamento. Barros e Barros (2016), Civitarese (2013), Ferro (2009), Ogden (1999), entre outros, têm aprofundando seu estudo. Outros psicanalistas (Botella & Botella, 2003, 2013; Green, 1998, 2005), retomando intuições freudianas, estudam a regressão formal, ou a regrediência, mostrando fatos similares. Portanto, diante desses aspectos com simbolização deficitária, o analista sonha o não-sonho de seu paciente. O analista se sente perplexo se esse não-sonho aparece de forma insólita, dificultando a manutenção da capacidade de reverie.

Quando o analista não tem condições de suportar o insólito até que ele faça sentido, ocorrem algumas possibilidades: 1) ele ignora o que vivenciou, atribuindo-o a uma perturbação momentânea, que acredita não valer a pena investigar; 2) ele descarrega seus sentimentos - por exemplo, em ato; 3) ele dá um sentido apressado e falso ao fato, para tranquilizar-se. Qualquer que seja a solução, o analista intui, de alguma forma, que sua função analítica foi atacada. Desse modo, além do inquietante da situação, o analista sente sua função analítica estranha.

Às vezes o analista toma consciência do estranho após tê-lo dividido, de forma automática, com seu paciente. Esse automatismo acentua o sentimento de inquietante.

Por exemplo, Botella (2003) nos conta de sua surpresa ao final de uma sessão: o paciente, uma criança, não podia ir embora. Vê que ela está imóvel, pálida, com o olhar desvairado. O analista sente que vivencia, dentro de si, uma espécie de pesadelo em que vê um lobo. Descobre-se perguntando à criança: "Você tem medo de lobo?", enquanto faz gestos de morder e arranhar, como se fosse um lobo. Desesperada, a criança lhe faz sinal para que pare, mas sua confusão desaparece e pode ir embora. Isso se repete na sessão seguinte. Posteriormente a criança pode correr pelo corredor, querendo assustar todo mundo, urrando como um lobo.

O pesadelo do analista é inquietante, algo desconhecido que se impôs a sua mente. O fenômeno remete à transmissão de pensamento, ao fenômeno do duplo e à compulsão à repetição. Depois o analista perceberá que estava figurando aquilo que o paciente não conseguia colocar em palavras.

O autor conclui que, em situações de trauma como negatividade, ele se manifesta através de "acidentes", no meio de um pensamento coerente. Esses "acidentes" indicam a presença de uma perturbação devida a uma não representação. Os traumas aparecem como assombrações em sentimento, assombrações em busca desesperada de sentido.

Retomo, neste momento, o espectro etimológico entre heimlich e unheimlich: 1) os sentimentos da criança eram "conhecidos"/desconhecidos, isto é, estavam registrados, mas não podiam ser simbolizados; 2) a imagem do lobo era desconhecida/conhecida para o analista; desconhecida porque não se sabia como havia surgido, e conhecida devido à familiaridade do analista com terrores e lobos; 3) o analista conhecia/desconhecia sua capacidade analítica. A capacidade analítica familiar (atenção flutuante lidando com associação livre) é invadida por outra faceta da mesma capacidade, não familiar, mas fruto da transformação criativa de experiências próprias, também familiares/não conhecidas. Todas as situações descritas - e outras ainda não conhecidas - coexistem.

Portanto, no modelo proposto, o conhecido se refere àquilo que tem significado, isto é, que foi suficientemente simbolizado. O "conhecido"/desconhecido diz respeito a algo que foi experienciado, registrado, mas não suficientemente simbolizado. Por vezes o não suficientemente simbolizado "pega carona" em aspectos do inconsciente reprimido, escondendo-se/manifestando-se nas entrelinhas do discurso aparentemente coerente.

Existe uma outra possibilidade para o surgimento do inquietante. Trata-se de situações em que se constituem conluios resistenciais entre os membros da dupla analítica, sem que ambos percebam o que está acontecendo. A capacidade de simbolização é paralisada, na área do conluio. A clínica mostra não-sonhos-a-dois, matéria-prima do que tem sido chamado enactments crônicos. Quando eles se desfazem, ocorre um trauma, que associado a outros fatos constitui o que é chamado enactment agudo, vivenciado como inquietante pelo analista. Nesse momento, como veremos na próxima vinheta clínica, o analista imagina que perdeu sua capacidade analítica, mas na verdade ele a recuperou.

 

O texto de Ana

Quando Ana termina a sessão, entrega ao seu analista um texto que vai apresentar em um congresso. Durante a sessão Ana dividira com o analista a satisfação por ter tido o trabalho aceito e a gratidão pelo trabalho analítico.

Ao abrir as mãos para receber o texto, o analista se surpreende. Suas mãos não se abrem, e seu dedo indicador assinala uma mesa distante. Ao mesmo tempo pede que Ana deixe o texto sobre aquela mesa. Estranha o tom áspero de sua própria voz. Sente-se perplexo e assustado por perceber que seus movimentos haviam fugido de seu controle e pareciam dirigidos por uma força estranha. Instantaneamente percebe que estava, de alguma forma, rejeitando o texto, ainda que - ao mesmo tempo - o aceitasse. Posteriormente poderá nomear o conjunto da experiência como inquietante.

O analista não costuma aceitar textos de seus pacientes, solicitando que eles os leiam na sessão. Por isso, se sente incomodado com a forma como rejeitou/não rejeitou o texto. Não tem clareza sobre os motivos de seu ato. A primeira ideia que lhe vem à mente é que "já tinha muitos textos para ler". Rapidamente percebe que essa tentativa de dar significado ao ato era falsa.

Sua primeira impressão era de que o ato revelava uma formação de compromisso entre o desejo de receber o texto e o de rejeitá-lo. Mas se sente incomodado com a sensação de ter perdido sua função analítica. O analista prefere não pensar no assunto, em parte para fugir de seus sentimentos incômodos, mas também porque intui que, em algum momento, o significado poderá emergir. No entanto, está triste e culpado, com receio de ter provocado sofrimento em Ana.

No dia seguinte Ana conta um sonho noturno em que ocorre rejeição e sofrimento. O analista imagina a relação do sonho com o episódio da sessão anterior e, enquanto investiga, Ana se lembra de uma amiga que tem artrose e não consegue abrir as mãos. Nesse momento paciente e analista podem conversar sobre o episódio, e essa conversa se amplia para a compreensão da relação que vinha ocorrendo entre os membros da dupla.

O estudo posterior do processo analítico, incluindo o que ocorrera antes e depois do ato, permitiu que o analista percebesse que fora envolvido num enredo inconsciente, dramatizado sem palavras. Como veremos, nesse enredo se escondiam (e se revelavam) situações traumáticas e suas defesas, que se manifestavam tanto no campo analítico como na vida de Ana.

Ana era uma pessoa simpática, delicada e sensível, que expressava, sutilmente, fragilidade e insegurança. Essas características estimulavam sentimentos de proteção similares aos que se sente frente a um bebê gentil desamparado. A vida de Ana era repleta de vínculos desse tipo. O objeto cuidador era inicialmente idealizado. No entanto, diante de frustrações, Ana se sentia violentada. O vínculo idealizado se transformava em persecutório, mas o ódio de Ana era rapidamente atenuado quando conseguia um novo objeto cuidador. E ela tinha facilidade em atraí-lo.

Os sonhos-a-dois entre Ana e seu analista permitiam o trabalho em áreas edípicas, que aparentemente predominavam. Mas, ao mesmo tempo, o analista era recrutado a participar de cenas e enredos do tipo descrito, dos quais não se dava conta de forma suficiente. Posteriormente ele verificará que, em vários momentos, se identificava com o lado necessitado de Ana, sem que sua percepção da identificação fosse clara. Por esse motivo, seu tom de voz era acolhedor, suas intervenções cuidadosas, e havia uma certa vacilação quando interpretava os fatos penosos da realidade. Esses fatos indicavam uma sensibilidade contratransferencial do analista; ao mesmo tempo, porém, poderiam fragilizar sua potência. Quando predominava a segunda alternativa, Ana e seu analista constituíam uma relação fusional, cujo objetivo era evitar o contato penoso com a realidade triangular.

Um observador externo, portanto, poderia perceber que estava ocorrendo um conluio de reasseguramento e idealização mútuos. Esse enredo repetitivo de não-sonhos-a-dois, que chamo enactment crônico, simula sonhos traumáticos, mas há diferenças. A repetição compulsiva não é consciente, e a ansiedade está tamponada. Simultaneamente, em outras áreas, o trabalho analítico se desenvolve.

O ato automático do analista, quando sua mão parece paralisada, não é apenas uma descarga. Ele tem também um componente com significado ambíguo: o analista está e ao mesmo tempo não está disponível para ler e comentar o texto. Inconscientemente o analista se recusa a ser um prolongamento do self de Ana, mas se sente incomodado por desfazer a fusão, isto é, por desfazer o enactment crônico.

Chamo enactment agudo ao conjunto de atos descritos - a entrega do texto por Ana e a recusa ambígua pelo analista - que culminaram no desfazimento do enactment crônico. O enactment agudo revela, "ao vivo", um mix de descargas e trabalho de sonho ocorrendo de modo concomitante. O constrangimento e a culpa do analista decorrem não somente da sensação de ter perdido sua função analítica, mas também da intuição de que seu ato, que rompe o conluio dual, fará com que Ana viva o trauma do contato com a realidade triangular.

O estudo dessas situações mostra que, durante o enactment crônico, o analista imagina que sua função analítica está preservada. De fato, isso não ocorre na área fusional, o que somente será percebido após o enactment agudo. Este, por sua vez, parece indicar comprometimento da função analítica. Na verdade, ela estava sendo recuperada, e é essa recuperação que permite o desfazimento do enactment crônico e a possibilidade de pensar sobre o que havia ocorrido.

A ambiguidade do enactment agudo se revela no mix de fatos que ocorrem ao mesmo tempo: descargas, não-sonhos sendo sonhados, sonhos sendo transformados em não-sonhos, sonhos ampliando sua capacidade simbólica. Essa concomitância, somada ao imprevisto da situação, se revela como inquietante.

Devemos deter-nos no inquietante resultado de o analista sentir-se um autômato, dirigido por forças estranhas. O familiar se manifesta através da manutenção da função analítica, quando o analista se recusa a ler o texto. Ao mesmo tempo surge o não familiar, o movimento involuntário ambíguo do analista. Mas esse não familiar é resultado de algo, de alguma forma, conhecido. Ana transmitiu inconscientemente a seu analista o saber/não saber de que relações fusionais protegem contra o contato traumático com a realidade e que seu desfazimento será sentido como traumático. O analista se transforma em uma espécie de duplo da paciente. A dupla Ana/analista sabe/não sabe que o trauma de exclusão será suportável/insuportável. O analista sabe/não sabe que seu ato indica sua ambiguidade em relação a esse fato.

A sessão seguinte mostrou que Ana fora capaz de efetuar um trabalho de simbolização relacionado a fusão/exclusão através de seu sonho noturno. No campo analítico o sonho é ressonhado pela dupla (sonhos-a-dois), ampliando-se a capacidade de pensar sobre os fatos vividos. Em consequência amplia-se a rede simbólica do pensamento.3

Descobrimos que Ana revelou, no campo analítico, aspectos inconscientes que fazem parte tanto do inconsciente reprimido - surgindo através de sonhos-a-dois - como de aspectos primitivos do funcionamento mental, estes externalizados por meio de uma espécie de "filme mudo" (Sapisochin, 2013), cujo enredo mostra busca caracterológica e também compulsiva por amparo e proteção. Certamente esse enredo inconsciente também sofreu a influência de fatos transgeracionais.

 

Os buracos na mente de Patricia

Supervisionava, por Skype, uma colega de outro país. Embora falássemos a mesma língua, eu tinha dificuldades em compreender algumas palavras, devido a seu sotaque. Conversávamos sobre uma jovem paciente, Patricia, que havia sido enviada, quando criança, para o novo país, supostamente devido a ameaças terroristas. Morava com parentes distantes, que a criaram.

Patricia sentia que sempre vivera de forma solitária e desamparada. Não se sentia bem-vinda na família adotiva. Tentava tornar-se independente, e isso a levou a mudar-se para uma grande cidade, L, onde se mantinha precariamente com trabalhos eventuais. A analista não sabe exatamente qual é o trabalho de Patricia. Esta costuma ligar-se de maneira simbiótica a namorados, tentando preencher seu vazio emocional. Quando frustrada, fica violenta.

A analista, muitas vezes, se sente confusa e não sabe se Patricia está omitindo fatos ou contando mentiras. Já imaginou que ela talvez use drogas e se prostitua. Suas interpretações são aceitas intelectualmente, mas não parecem ser aproveitadas. Outras vezes a analista se sente desconectada, longe do que Patricia está dizendo.

Patricia fazia análise presencial, mas quando se mudou para L passou a usar Skype. No início sentia muita falta da analista e comumente voltava a sua cidade (a três horas de voo de L), às vezes desesperada, para encontrar-se com ela.

A analista relata uma sessão recente, realizada por Skype. Patricia conta que está contente porque consegue ficar mais tempo em L, sem sentir tanta falta das sessões presenciais. Lembra-se de seu desespero anterior, quando tinha que estar com sua analista presente. Em seguida fala de uma situação em que conseguiu ganhar certa quantia em dinheiro comprando determinados produtos e revendendo-os com lucro. A analista tem a sensação de que se trata de algo desonesto. Pergunta detalhes da negociação, e Patricia parece confusa. A quantidade de detalhes faz com que a analista se desligue, deixando de prestar atenção. Percebe que estava desconectada quando ouve Patricia contar que se havia sentido enganada. Comprara uma roupa e depois notou que tinha um buraco. Deveria trocá-la, mas sentia preguiça. A troca só foi feita porque uma vizinha o fez por ela. Diz que sempre consegue que alguém faça as coisas por ela, porque é muito preguiçosa.

Enquanto a colega me conta esses fatos, não compreendo uma frase devido a seu sotaque. Decido não interrompê-la, ficando uma pequena lacuna em minha compreensão. Em seguida ouço a analista me dizendo que, de repente, descobriu que sua mente estava tomada pela imagem de comida. Pensava em qual prato iria preparar na hora do almoço e lhe vinham várias possibilidades. Enquanto isso se sentia desconectada da fala de Patricia. Nesse momento me sinto incomodado e culpado com o fato de não tê-la interrompido quando não compreendi sua fala anterior.

Na sequência a analista interrompe bruscamente a apresentação e me diz que a sessão estava no fim, mas não lembra como acabou. Para minha surpresa me diz que queria que eu a ajudasse a compreender a imagem da comida, porque ficou muito incomodada. Esse incômodo aumentou depois da sessão. Sua sensação era inquietante, como se algo incontrolável, estranho, se tivesse imposto a sua mente, sem que ela pudesse compreendê-lo.

Supervisor e supervisionanda constatam que, no início da sessão, Patricia parece satisfeita por poder manter a representação interna da analista por um tempo maior. Em seguida o clima de desonestidade revela a possibilidade de algo não verdadeiro no campo analítico. A desconexão da analista, enganada e enganadora, faz com que Patricia assinale a percepção do engano. Existe um buraco. Buraco na roupa, buraco na relação com a analista, buracos de representações. O buraco é fruto de fraudes e preenchido por fraudes.

Em outras palavras, a relação entre os membros da dupla analítica permite que surjam os buracos internos de Patricia, que são captados inconscientemente pela analista, fazendo-a sentir-se desvitalizada e dificultando sua função de costura da rede simbólica do pensamento. A preguiça é de Patricia e da analista, que, identificadas, não encontram força libidinal para contrapor às sabotagens destrutivas. A terceirização é estimulada na vizinha-analista, com resultados questionáveis.

Nesse momento surge o inquietante, a imagem poderosa da comida, tomando a mente da analista. A analista se sente desconectada de Patricia. No entanto, paradoxalmente, a imagem da comida indica uma conexão profunda com o vazio ressentido de Patricia. O mesmo ocorre com o supervisor, que preguiçosamente não quis investigar o buraco que ficou em sua compreensão do relato da analista. Paciente, analista e supervisor entraram em contato com áreas esburacadas da rede simbólica.

A imagem insólita da comida revela a necessidade de preenchimento. Mas também representa o seio ausente, objeto primário cujas representações mentais não existiam ou eram fracas. O inquietante manifesta, portanto, vários aspectos ambíguos. O analista desconectado está, num paradoxo, conectado com sua capacidade de imaginar, ainda que essa imaginação pareça imposta. Dessa forma, o analista está com sua capacidade analítica perturbada e, ao mesmo tempo, fortemente potente. A comida representa, em certo nível, o substituto do seio ausente e, em outro nível, a representação do nada - no-thing and nothing, segundo Bion (1965).

O estudo detalhado do caso nos mostrou que a capacidade de representação de Patricia tinha sido perturbada no começo de sua vida. Necessitava do objeto concreto e da relação fusional que era dramatizada com a analista-"comida". O preenchimento fantasiado com drogas, promiscuidade e dinheiro indicavam defesas de mesmo tipo.

O trabalho com pacientes como Patricia exige que a dupla analítica faça construções (Freud, 1937/2018) que deem sentido ao vivido não pensado. Essas construções serão realizadas durante as experiências emocionais vividas e interpretadas no campo analítico, uma costura microscópica fruto dos momentos de encontro e desencontro da dupla analítica, para além de relatos hipotéticos sobre aspectos não representados.

Quando terminou a supervisão, a analista se lembrou do final da sessão. Patricia, antes de desligar o Skype, disse que gostou muito dos braceletes que a analista usava, principalmente dos buracos, que "não eram pequenos nem grandes".

 

Paul e a bizarra caneta do analista

Paul, 35 anos, conta que vivia desde sempre num mundo aterrorizante. Nesse mundo vivia apavorado porque sentia que algo terrível, indefinido, estava para acontecer. No entanto, não tinha a menor consciência de que vivia dessa forma, porque para ele a vida era assim e tinha certeza de que todas as pessoas viviam da mesma maneira. Hoje usa o termo pânico para esse terror sem nome. Ainda que nos últimos anos tenha desenvolvido certa capacidade de tomar distância para observar o mundo, mantém um funcionamento psicótico considerável, em que vive do modo descrito.

Em determinada sessão, que faz sentando-se em frente ao analista, conta que recebeu um brinde, uma caneta, junto com uma carta solicitando auxílio para uma entidade religiosa. Jogou fora a carta porque a entidade pertencia a uma religião diferente da sua.

A partir desse momento a caneta se transformou em algo ameaçador, e sabia que tinha de livrar-se dela. Foi tomado por um pensamento obsessivo, remoendo uma lista de pessoas a quem poderia dar a caneta: seu vizinho, sua empregada, seu primo, determinado colega de trabalho etc. Diz que são pessoas invejosas, têm inveja dele, e imagina que, ao dar-lhes o presente, sua inveja poderia ser aplacada. Mas não consegue decidir se dá ou não e, em caso positivo, para quem dar. Os pensamentos machucam sua cabeça, que parece que vai explodir, e imagina seu crânio se abrindo e seu cérebro escorrendo, como viu num filme, onde um criminoso levou um tiro no olho.

Ao ouvir o relato o analista imagina a cena do cérebro escorrendo e percebe que sente um misto de horror e prazer. O analista percebe que a inveja de Paul o incomoda e lhe inspira raiva. Pensa que a caneta seria um presente carregado de inveja. Mas sabe que dizer isso a Paul, nesse momento, de nada serviria, a não ser para descarregar sua vontade de retaliá-lo.

O analista se surpreende perguntando a Paul se não havia pensado em livrar-se da caneta deixando-a com ele. Paul responde que não o faria porque o analista poderia deixar a caneta sobre a mesa, e isso o faria sentir-se ameaçado. Nesse momento Paul está olhando para outra caneta, do analista, que está sobre a mesa. Seu olhar é desconfiado. O analista lhe pergunta o que está vendo, e Paul responde que essa caneta adquiriu uma textura diferente e a vê crescendo, grande, tomando todo o seu campo visual, e isso o está deixando muito assustado. Afasta a cadeira da mesa. Pede que o analista guarde a caneta. Vendo seu desespero, o analista obedece.

O analista lhe diz que sua caneta se tornou afetivamente similar à caneta que recebeu como brinde. O clima parece perigoso, e o analista continua falando, cuidadosamente, olhando para Paul no intuito de avaliar como ele sente suas palavras. Diz-lhe que ambas as canetas estavam contaminadas por emoções ruins e que por isso se tornaram perigosas. Por esse motivo, Paul se sente ameaçado.

Paul diz que é muito bom ouvir o que o analista disse, que o analista o compreendeu. Mas quer saber por que faz isso. O analista se sente bem por ter despertado alguma responsabilidade e curiosidade em Paul. Mas, ao mesmo tempo, desconfia de sua reação. Tem receio de que Paul esteja apenas tentando agradá-lo.

A situação descrita mostra como a realidade interna se vincula à realidade externa para constituir aglomerados que se manifestam como objetos bizarros. Podemos supor que a caneta buscava representar, através de restos deteriorados de símbolos e equações simbólicas, um complexo conjunto de experiências emocionais relacionadas a culpa, ódio, inveja, voracidade, sexo etc., aglomeradas visualmente. Essas experiências são estilhaçadas assim como partes da mente, e esses complexos se ligam a objetos, pessoas, partes do corpo e ao analista. Os objetos bizarros buscam descarga e, ao mesmo tempo, sonhadores que os simbolizem.

A grande quantidade de interpretações que em seguida vieram à mente do analista lhe pareceram intelectualizadas e envolviam explicações teóricas sobre o ocorrido. Por isso, o analista tinha certeza de que sua capacidade de sonhar estava comprometida. Ficou em silêncio, aguardando.

Paul, então, conta que no bairro onde morava na infância as crianças da escola tinham inveja dele, porque sua família tinha melhores condições financeiras e morava numa casa melhor. No entanto, com base em relatos anteriores, o analista havia criado em sua mente uma imagem da casa de Paul caindo aos pedaços, pobre, suja e construída em nível inferior às demais casas. Essa imagem era resultado de sua tentativa de representar em imagens experiências emocionais relacionadas a deterioração, destrutividade e inferioridade, a vida num mundo empobrecido e decadente. Essa imagem era oposta ao que Paul contava agora, mas indicava o que ele escondia.

As lembranças e associações de Paul pareciam indicativos de algum trabalho de sonho. Nesse momento o analista lhe comunica sua hipótese de que Paul jogou fora a carta que veio com a caneta porque ela lhe lembrou essa situação - a inveja de pessoas mais pobres que considerava diferentes. O analista ainda não se sente à vontade para localizar os sentimentos de inveja dentro de Paul ou entre Paul e o analista.

Em seguida Paul diz que tem medo de morrer. O analista comenta que Paul se sentiu ameaçado ao ouvir, do analista, sobre sentimentos de inveja. Paul responde: "Todos vamos morrer um dia". O analista sente que essa resposta "mata" sua intervenção e diz a Paul que ele, analista, também vai morrer.

Nesse momento Paul está olhando para o analista, sorrindo, e lhe diz ironicamente que o analista vai morrer primeiro, antes dele, porque é mais velho. O analista sente um arrepio dentro de si.

Antes que ele se recuperasse, Paul indica que está na hora de terminar a sessão e se levanta. O analista lhe diz que ainda faltam cinco minutos, já que começou atrasado. Paul responde que está acostumado a que as pessoas se aproveitem dele e, como ele sempre sai perdendo, estava indo antes que o analista o mandasse embora. O analista lhe diz que se ficar os cinco minutos ambos poderão aproveitar e ninguém vai sair perdendo. Paul diz, surpreso, que nunca havia pensado nisso.

O analista sente que, nesse momento, algum avanço pode ter ocorrido, mas receia que ele seja desfeito rapidamente. Sabe também que teve medo de mostrar a Paul como ele atacava o analista e o terror de ser retaliado, o que possivelmente o estimulou a querer interromper a sessão. O analista tem dúvidas quanto a se sua "covardia" reflete controle por parte das identificações projetivas massivas de Paul (não-sonho-a-dois) ou se ela indica a necessidade de dar tempo suficiente à dupla analítica para digerir os fatos de forma que eles não traumatizem (tempo do trabalho de sonho). Tem esperança de que o segundo fator predomine.

No dia seguinte Paul conta que, ontem, percebeu-se olhando para sua esposa de maneira diferente. Chegara da sessão, e sua esposa o recebera como sempre, mas nunca havia percebido como ela era carinhosa e atenciosa com ele, como ela cuidava dele. Relembra que sempre achou que a esposa estava com ele por interesse e que nunca se sentiu amado, até ontem. Complementa dizendo que ele mesmo nunca soube o que era amor. Nesse momento Paul está emocionado. O analista sente que sua emoção é genuína, mas observa que, em área paralela, continua algo desconfiado. Em seguida Paul descreve situações traumáticas vivenciadas na infância que ele mesmo vincula a sua incapacidade em confiar e amar. O analista acompanha os fatos e pode incluir-se no enredo. A sessão se desenvolve predominantemente como sonhos-a-dois. Ao terminar a sessão Paul olha para a caneta sobre a mesa e diz que hoje ela é "apenas uma caneta".

A vinheta mostra como se manifesta no campo analítico um mundo aterrorizante povoado por objetos bizarros. Como nessa área Paul confunde self e objeto, ele também se torna terrorista. O analista é incluído nesse mundo e, ao mesmo tempo que vivencia o terror, tem que dar-lhe significado. Em algum momento Paul pode observar o mundo e a si mesmo discriminados. Os mecanismos da posição depressiva se revelam, e vemos Paul tentando efetuar reparação. Mas a reversão está sempre ameaçando.4

O momento assinalado, evidentemente, deve ter sido fruto de muito trabalho mental, e o analista desconfia de sua permanência porque já viveu situações parecidas que foram revertidas. Haverá que sonhar e re-sonhar as situações traumáticas muitas e muitas vezes, indicando a necessidade de um trabalho elaborativo que se faz aos poucos. Um trabalho elaborativo complementar ocorre, ao mesmo tempo, dentro da mente do analista, e é dessa forma que se vão desfazendo os aglomerados para que as áreas traumatizadas adquiram significado.

 

Comentários

Como vimos, Paul vivia, desde sempre, num mundo aterrorizante. Isso lhe era familiar, e não imaginava que existisse outro tipo de vida. Podemos supor que Paul vivia cercado de alucinações visíveis e invisíveis (Bion, 1959/1967), como assombrações.

A deformação da percepção da caneta, durante a sessão, nos mostra como a realidade interna se vincula à realidade externa para constituir aglomerados que se manifestam como objetos bizarros. A caneta buscava representar, através de restos deteriorados de símbolos, equações simbólicas e partes do aparelho mental, um complexo conjunto de experiências emocionais. Os objetos bizarros buscam descarga e, ao mesmo tempo, sonhadores que os simbolizem.

Durante a sessão algumas experiências emocionais podem ser nomeadas. Áreas familiares verbalizadas como inveja e competição se mesclam com áreas traumáticas, com déficit de simbolização, relacionadas a violência e submissão, que se manifestam como sentimentos sem palavras, memories in feelings (Klein, 1957/1975), atos dramatizados.

Na situação descrita o sentimento de inquietante se revelou principalmente no paciente. Os afetos se manifestaram através do objeto bizarro, tanto um brinde amoroso como um instrumento de revivência dos traumas. O inquietante engloba todos esses aspectos, resultando numa caneta familiar que é, também, um objeto ameaçador.

Nesta vinheta o inquietante não repercute no analista. A imagem do cérebro escorrendo pelo crânio não foi sentida como inquietante, nem o ataque em que Paul se regozijava com a morte do analista, ainda que este sentisse um calafrio.

Penso que o analista escapou do inquietante porque estava familiarizado com o funcionamento mental de Paul e as vicissitudes dos ataques invejosos que se manifestavam no campo analítico. Em outras palavras, ainda que a dupla estivesse lidando com áreas traumáticas, com déficit de simbolização, o analista manteve preservada sua função analítica.

 

Conclusões

Neste trabalho procurei mostrar a fertilidade da intuição freudiana sobre o inquietante e propus que sua presença no campo analítico, deixando o analista perplexo, pode indicar contato concomitante com áreas em que o déficit de simbolização acompanha áreas melhor simbolizadas. Estas incluem o familiar e o desconhecido que faz parte do familiar; aquelas incluem o não familiar, o qual, ainda que não simbolizado, é de alguma forma "conhecido".

Em seu texto, Freud aponta aspectos do funcionamento primitivo:

A análise de casos do inquietante nos levou à antiga concepção do animismo, que se caracterizava por preencher o mundo com espíritos humanos, pela superestimação narcísica dos próprios processos psíquicos, a onipotência dos pensamentos e a técnica da magia, que nela se baseia, a atribuição de poderes mágicos cuidadosamente graduados a pessoas e coisas estranhas (mana), e também por todas as criações com que o ilimitado narcisismo daquela etapa de desenvolvimento defendia-se da inequívoca objeção da realidade. Parece que todos nós, em nossa evolução individual, passamos por uma fase correspondente a esse animismo dos primitivos, que em nenhum de nós ela transcorreu sem deixar vestígios e traços ainda capazes de manifestação, e que tudo o que hoje nos parece "inquietante" preenche a condição de tocar nesses restos de atividade psíquica animista e estimular sua manifestação. (1919/2010b, p. 359)

Certamente esses "vestígios e traços" correspondem a registros psíquicos primitivos. Eles são conhecidos, mas não podem ser pensados. No entanto, emergem como assombrações em busca de sentido, que nos lembram uma das caracterizações de Bion sobre os elementos beta: "Matriz mais primordial de que se supõe surjam os pensamentos. Eles partilham da característica de objeto inanimado e de objeto psíquico, sem qualquer possibilidade de distinção entre os dois. Pensamentos são coisas, coisas são pensamentos; e todos têm personalidade" (1963/1966, p. 141).

Essa ambiguidade, em que - ao mesmo tempo - o objeto é coisa e pensamento, vivo e inanimado, se complica porque, além de existir um espectro de possibilidades entre elementos beta e elementos alfa (sonho ↔ não-sonho), podem existir áreas de ambivalência, que caracterizam aspectos melhor simbolizados.

Resumindo, a diabólica pulsão de morte busca atacar ou impedir que surjam significados. Mas esses significados - mesmo atacados - estão potencialmente registrados, em algum lugar, e tentam manifestar-se, ainda que como assombrações. Essas assombrações, resultantes de ataques, também estão em busca de significado. A ambiguidade se faz presente

O tema da ambiguidade foi estudado por Bleger (1967), que descreve uma posição cronologicamente anterior à esquizoparanoide. Trata-se de remanescentes de experiências primitivas, um conglomerado de grande quantidade de experiências frustrantes e gratificantes, de diversos momentos do começo da vida do bebê, de diferentes graus de intensidade.

Nessas áreas não existe discriminação entre bom e mau, interno e externo, e essa ambiguidade desconcerta o observador. Diferente da ambivalência, em que cada parte cindida é separada da outra, na ambiguidade a percepção é de algo que é, ao mesmo tempo, interno e externo, bom e mau, vivo e morto, total e parcial, animado e inanimado, estranho e familiar. Esses fenômenos se tornam ainda mais complexos porque ao mesmo tempo se está em contato com fenômenos das outras posições, mais integradas.

Bleger afirma que um pequeno grau de ambiguidade produzirá o inquietante em um ego de pouca organização, integração ou maturidade, enquanto algo muito ambíguo, mesmo aparecendo de forma insólita, pode provocar uma sensação de estranheza ou de mistério em um ego mais maduro ou mais integrado.

O ambíguo faz parte de todo o conhecido. Isto é, frente ao familiar ou discriminado, existem partes ou aspectos não conhecidos, que devem permanecer ocultos para que as ocorrências continuem sendo familiares.

A terminologia blegeriana pode ser transcrita em termos de capacidade de simbolização, em que encontraremos um espectro entre sonho ↔ não-sonho que se superpõe ao espectro entre fatos simbolizados ↔ fatos não simbolizados, e onde sonho e não-sonho podem coexistir de forma ambígua, como vimos anteriormente.

Concluindo, por meio do sonho (da noite e da vigília), ou melhor, do relato emocionado do sonho, o analista entra em contato com a rede simbólica do pensamento do analisando. Mas, como sabemos, o analista não vai além do umbigo do sonho. O biológico se manifesta através das pulsões, dos tropismos, das preconcepções (Bion, 1962), fenômenos que buscam a realidade. Nesse encontro vivem-se experiências emocionais que tornarão humano aquilo que era apenas biológico. As experiências emocionais podem instalar-se na mente primordial como registros que não puderam ser simbolizados. Como na epígrafe, eles não estão lá, "subindo a escada", mas também estão. E como seria bom que o que "não estava lá" - não ligado pelo símbolo - "pudesse ir embora", principalmente quando o que "não estava lá" se manifesta como assombrações compulsivas, sob a égide da pulsão de morte.

Espera-se que o analista possa conviver com essas assombrações, sem necessitar que elas "vão embora", sabendo que sinalizam a presença de ausências que buscam transformações em objetos vivos e criativos. A familiaridade com essas assombrações, que podem manifestar-se como inquietante, se faz no trabalho com pacientes com déficit de simbolização e no trabalho com as mesmas áreas do próprio analista.

As especulações feitas neste texto demandam maior confirmação. O fenômeno estudado é suficientemente complexo para que abandonemos qualquer pretensão de uma compreensão que não seja parcial e provisória. O importante é que o analista tente compreender o que está vivenciando no campo analítico, considerando que cada situação é peculiar e tudo o que vivencia está em constante transformação, e sabendo que o observador faz parte do que está acontecendo, influencia os fatos clínicos e é influenciado por eles. Se o analista se paralisa, clínica ou teoricamente, corre o risco de defrontar-se adiante com o inquietante de sua vivência ou teorização.

 

Referências

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Recebido em 22/6/2021
Aceito em 8/7/2021

 

 

1 Trabalho original publicado em 2019: When the analyst becomes uncanny. In C. Bronstein & C. Seulin (Eds.), On Freud's "The uncanny" (pp. 12-27). Routledge.
2 O estudo dos fatos assinalados vem sendo feito por vários autores, como Bion (1962, 1965, 1970), Botella & Botella (2003, 2013), Green (1998, 1999, 2005), Levine (2013), Marucco (2007), Reed (2013) e Scarfone (2013).
3 O estudo detalhado do enactment crônico e das condições que o transformam em enactment agudo pode ser encontrado em Cassorla (2008, 2012, 2017). Descreve-se também uma função alfa implícita que preenche os buracos traumáticos durante o enactment crônico.
4 Não devemos, no entanto, confundir a reversão defensiva para uma ep rígida com a oscilação adequada entre EP↔D, que faz parte do processo de pensar (Bion, 1962).

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