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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.3 São Paulo jul./set. 2021

 

TEMÁTICOS

 

Luna, uma personalidade flagelada: relato e comentários sobre um caso clínico

 

Luna, a stricken personality: report and comments on a clinical case

 

Luna, una personalidad flagelada: informe y comentarios sobre un caso clínico

 

Luna, une personnalité flagellée : récit et commentaires concernant un cas clinique

 

 

Maria Cristina Possatto

Membro filiado do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes, Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Caetano do Sul / cristinap@uol.com.br

 

 


RESUMO

A proposta deste trabalho é relatar e comentar uma experiência clínica na qual o estado mental invejoso, como manifestação externa da pulsão de morte, teve lugar de destaque. O fio condutor escolhido pela autora destaca o predomínio dos impulsos destrutivos, os quais, além de causarem muito sofrimento à analisanda, se manifestaram através de ataques ao vínculo psicanalítico. A autora conjectura que o malogro da continuidade da relação terapêutica decorreu da intolerância à dependência receptiva, uma vez que a ligação era experimentada como humilhação. Discorre sobre a implicância e a obscuridade do conceito de pulsão de morte, subjacente aos conceitos utilizados para a compreensão do caso.

Palavras-chave: pulsão de morte, masoquismo moral, inveja, ataques à ligação, dependência receptiva


ABSTRACT

The purpose of this paper is to report and comment on a clinical experience in which the envious mental state, as an external manifestation of the death drive, had a prominent place. The common thread chosen by the author highlighted the predominance of destructive impulses, which, in addition to causing much suffering to the analysand, manifested themselves through attacks on the psychoanalytic bond. She conjectured that the failure of the continuity of the therapeutic relationship was due to an intolerance to receptive dependence, since the connection was experienced as humiliation. The author commented on the implication and obscurity of the concept of death drive, underlying the concepts used to understand the case.

Keywords: death drive, moral masochism, envy, attacks on linking, receptive dependence


RESUMEN

El propósito de este trabajo es informar y comentar una experiencia clínica en la que el estado mental envidioso, como manifestación externa de la pulsión de muerte, tuvo un lugar destacado. El hilo conductor elegido por el autor destacó el predominio de los impulsos destructivos, que además de causar mucho sufrimiento al analizando, se manifestaron a través de ataques al vínculo psicoanalítico. Conjeturó que el fracaso de la continuidad de la relación terapéutica se debía a una intolerancia a la dependencia receptiva, ya que la conexión se vivía como una humillación. La autora comentó sobre la implicación y oscuridad del concepto de pulsión de muerte, subyacente a los conceptos utilizados para entender el caso.

Palabras clave: pulsión de muerte, masoquismo moral, envidia, ataques al vínculo, dependencia receptiva


RÉSUMÉ

Le but de cet article est de narrer et de commenter une expérience clinique dans laquelle l’état mental envieux, en tant qu’une manifestation externe de la pulsion de mort, a pris une place prépondérante. Le fil conducteur choisi par l’autrice a mis en évidence la prédominance des pulsions destructrices, ce qui, en plus de causer beaucoup de souffrance à l’analysant, s’est manifesté par des atteintes au lien psychanalytique. L’autrice a conjecturé que l’échec de la continuité de la relation thérapeutique a été dû à une intolérance à la dépendance réceptive, puisque la connexion était vécue comme une humiliation. Elle a commenté l’implication et l’obscurité du concept de pulsion de mort, sous-jacent aux concepts utilisés pour comprendre le cas.

Mots-clés: pulsion de mort, masochisme moral, envie, attaques contre les liens, dépendance réceptive


 

 

Este trabalho aborda o atendimento clínico realizado com Luna e as reflexões teóricas que essa experiência me suscitou. Durante o processo houve avanços e recuos, na direção de um possível desenvolvimento da paciente, que culminaram numa situação de impasse: o abandono da análise.

Normalmente, o clima emocional das sessões era bastante intenso, com muitos ataques ao vínculo, o que exigia de mim um alto grau de esforço e disciplina para me manter, nem sempre com sucesso, na função psicanalítica.

Nesse atendimento o que mais me impactou foi a força da pulsão de morte, suas consequências na personalidade de Luna e na relação analista-analisanda. Uma das hipóteses que levantei foi de que o predomínio dos impulsos destrutivos se manifestou por meio da dificuldade de formar um par que pudesse criar e pensar coisas novas.

Esse foi o recorte que fiz dessa experiência, mas outros aspectos poderiam ser abordados. Alguns nem consegui relatar, pois, como é sabido, o encontro psicanalítico é inefável e, no fim das contas, ainda permanece o desconhecido, com suas infinitas perguntas.

 

Caso clínico e comentários

Primeiros meses

A queixa principal era de que a filha - Julia, de 13 anos - tinha dificuldades emocionais e Luna se percebia incapaz de educá-la. Repetia que fazia mal à filha e cogitava enviá-la para morar com o ex-marido, embora não apresentasse motivos justificáveis para isso. Luna também se dizia incapaz de manter relacionamentos de maneira geral, de estabelecer laços com amigos e familiares, e sentia-se muito só e desamparada.

Demonstrava vivenciar estados emocionais permeados de confusão, desespero e desamparo. Seu relato era denso, truncado e desconexo; evidenciava sentimentos de intensa angústia. Falava de modo veloz e ininterrupto, expressando o desejo de ser ouvida e compreendida em suas dores psíquicas, o que configurava um clima em que eu captava, simultaneamente, projeções evacuativas e considerável adesividade.

As sessões eram transcrições de acontecimentos externos, impactantes, frente aos quais solicitava orientações, respostas e explicações teóricas. Parecia estar muito centrada no desejo de cura e condicionada ao raciocínio de causa e efeito. Dessa forma, atribuía a mim a autoridade para arbitrar e fazer afirmações de ordem "científica", estimulando a perversão do vínculo analítico.

Eu percebia que o mais importante no momento era acolher aquelas "evacuações", que pareciam não ter fim; me esforçava em conter a sua intensa angústia confusional, pois, com frequência, ela duvidava completamente das suas percepções e do seu juízo crítico, sem conseguir discriminar a realidade externa das suas fantasias.

As sessões transcorriam de um modo que eu precisava fazer grande esforço para não sair do setting analítico. O pedido de orientação e aplacamento de suas angústias era permanente, bem como o apelo para que a sessão não terminasse no horário ou que eu agendasse outra sessão além daquelas pré-combinadas.

Nos primeiros encontros, já foi possível perceber que eu lidava com uma pessoa cuja parte psicótica da personalidade era muito extensa e atuante e, com o decorrer das sessões, essa primeira impressão se confirmou. Os principais aspectos percebidos em Luna me remeteram ao conceito de Bion sobre a parte psicótica da personalidade:

A saber: preponderância tão grande de impulsos destrutivos, que mesmo o impulso de amar é por eles impregnado e se transforma em sadismo; ódio à realidade, interna e externa, que se estende a tudo que contribua para a percepção dela; pavor a uma iminente aniquilação; e finalmente a formação prematura e precipitada de relações de objeto (entre as quais se destaca a transferência), cuja tenuidade contrasta acentuadamente com a adesividade com que se mantêm. (1957/1994b, p. 56)

Autoflagelamento

Luna se considerava uma pessoa má, e qualquer tentativa da minha parte para que ela considerasse a excessiva autocrítica ou se questionasse, frequentemente, era rebatida quase que com fúria. A culpa que apresentava me parecia de natureza persecutória, alucinada e impregnada de fantasias de onipotência.

Em relação ao processo terapêutico, Luna oscilava entre a total dependência e a agressividade. Ela se sentia muito frágil e desemparada, e na relação comigo transformava tais sentimentos em ódio. Esse comportamento tinha um caráter compulsivo.

A autodepreciação era constante e muito intensa. Seu comportamento era tão repetitivo, e de natureza tão violenta, que o associei ao conceito de masoquismo moral, descrito por Freud em "O problema econômico do masoquismo" (1924/2011b). Segundo o autor, esses pacientes apresentam uma necessidade inconsciente de punição e com frequência fazem coisas inadequadas, agem contra os próprios interesses e arruínam as perspectivas que se abrem, para provocar assim os castigos de que se acham merecedores.

Desse modo, o masoquismo moral vem a ser testemunha clássica da existência da mistura de instintos. Seu caráter perigoso se deve ao fato de proceder do instinto de morte, correspondendo à parte deste que escapou de ser voltada para fora como instinto de destruição. Por outro lado, tendo ele a significação de um componente erótico, também a autodestruição do indivíduo não pode ocorrer sem satisfação libidinal. (Freud, 1924/2011b, p. 202)

O manejo terapêutico com Luna consistiu em apontar esses autoataques, e gradativamente ela começou a dar sinais de que podia fazer alguma reflexão. Durante meses, contou vários episódios importantes de sua história de vida, talvez motivada por uma tentativa de organização. Começou a olhar para o seu mundo interno e, embora este fosse muito incipiente e de natureza bastante oscilante, parecia que havia dado um passo em direção ao seu desenvolvimento.

Retrocesso

Luna retornou das férias bastante modificada. Parecia um pouco aérea, como se a alteração da rotina tivesse produzido um efeito desorganizador. Durante as sessões, o principal assunto que trazia era o temor projetado na saúde mental da filha e sua incapacidade de cuidar dela. Novamente, as questões externas se tornaram o centro de suas narrativas, e o clima emocional das descrições era carregado de intensa ansiedade persecutória.

Luna estava muito assustada e via inimigos por toda parte: a psicóloga da filha era incompetente, os amigos da escola eram problemáticos, os professores e os coordenadores da escola eram inadequados, o ex-marido era negligente e, finalmente, ela própria, que se percebia totalmente incapaz.

Nas sessões Luna se apresentava com muita ansiedade, idealizava que se a filha frequentasse a igreja poderia fazer amizades com pessoas do "bem" e ser "curada". Dessa forma, Luna estimulava a filha a participar de eventos religiosos, porém não obtinha êxito. Esse comportamento me parecia uma atividade alucinatória, uma vez que Luna estava à procura de um lugar que a "salvasse de todo o mal". O seu mundo parecia estar dividido em objetos bons ou maus, e ela se sentia muito perseguida por esses últimos.

Em relação ao ex-marido, Luna também tinha dúvidas cruéis, ideias polarizadas, prontas, que não se permitia questionar. Experimentava um verdadeiro impasse. Quando estava mais fragilizada, dizia que iria desistir de tudo e entregar para o ex-marido o cuidado do seu patrimônio e da sua filha. Outras vezes, não confiava em sua idoneidade e o atacava violentamente.

Nesse período, ficou evidente o quanto Luna parecia se encontrar de acordo com a posição esquizoparanoide e fazer uso da identificação projetiva excessiva (Klein, 1946/1991b). Durante as sessões, ela falava sem parar, solicitava conselhos e, ao terminar o tempo da sessão, não queria ir embora. Muitas vezes dizia se sentir perseguida pelas agressões realizadas, pedindo desculpas e sessões extras.

De alguma forma, eu percebia que o espaço interno que havia sido construído nos meses anteriores, e servia para pensar sobre sua subjetividade, tinha sido ocupado novamente por fortes sentimentos de ansiedade. Tive a nítida impressão de que havia ocorrido um retrocesso, e essa observação me remeteu ao conceito da reação terapêutica negativa, descrito por Freud em "O eu e o id" (1923/2011a), quando os pacientes se apegam aos seus sintomas e não desejam renunciar ao castigo de sofrer. É uma resistência muito difícil de ser trabalhada.

Psicanálise versus aconselhamento

Luna solicitou orientação da pediatra da filha e recebeu a recomendação de que ela deveria ser tratada com medicação. Segundo Luna, além do remédio, a médica também sugeriu outra abordagem psicoterapêutica para Julia, alegando que a psicanálise não era indicada para adolescentes.

Luna atacava a psicanálise e expressava estar insegura em relação a qual tratamento proporcionar para a filha. Eu procurava oferecer uma continência para suas angústias e percebia a importância desse assunto, que parecia pôr em xeque a credibilidade do trabalho desenvolvido por nós duas.

Durante as sessões, eu notava que Luna fazia um esforço muito grande para que eu me sentisse responsável pelos danos que viessem a ocorrer, me desesperasse, sentisse dó ou raiva, concordasse com ela e acreditasse que ela era uma pessoa completamente incapaz para pensar por si própria. Por não atender as suas solicitações, ela me atacava de diversas formas, até mesmo atrasando o pagamento das sessões.

Eu observava ainda que sua dificuldade para decidir era uma expressão de intolerância. Ela não suportava lidar com o desconhecido, não ter certezas, se frustrar com a realidade imperfeita, e também denotava avidez. Além disso, demonstrava o desejo de que eu fosse "sua mãe", decidisse por ela e provesse todas as suas necessidades.

Em alguns momentos, Luna expressava a fantasia de que eu sabia o que fazer, ou o que era melhor, mas não dizia para ela, "segurava o leite". Questionava a minha conduta e, como retaliação, ameaçava procurar um profissional de outra linha, alegando que precisava receber conselhos.

Esses comportamentos me levaram a conjecturar que ela revivia, na relação comigo, intensos sentimentos de inveja primária. Klein (1957/1991a) afirmou que os bebês efetuam ataques destrutivos ao seio materno determinados por avidez e inveja. Se a inveja for excessiva, haverá um aparecimento prematuro da culpa, pois o ego ainda não é capaz de tolerá-la. A culpa é sentida como perseguição, e o objeto que a desperta transforma-se num perseguidor, dificultando a assimilação do objeto bom.

Klein também refere o papel que a inveja primária e as defesas contra ela desempenham na relação analítica, interferindo negativamente na construção de um objeto bom na situação transferencial. Partindo da hipótese de que o bom alimento e o objeto bom originário não puderam ser aceitos e assimilados, isso é repetido na transferência.

Penso que nesse período a minha atitude de permanecer no aqui e agora da sessão, sem me identificar com os ataques que ela fazia, de alguma forma parece ter contribuído para que Luna finalmente tomasse uma decisão quanto ao tratamento da filha.

Um vislumbre de desenvolvimento

Após essa decisão, pareceu ter se acalmado um pouco e começou novamente a lembrar muitas coisas do passado, o que no seu caso evidenciava que podia fazer algumas associações. Durante todo o atendimento, Luna manifestou a característica de culpar-se excessivamente, porém, nesse momento, me ouvia mais. Eu ressaltava como essa repetição (o autoflagelamento) era destrutiva e mostrava que era responsabilidade dela decidir buscar outras alternativas.

Num determinado momento, foi possível relacionar todas as lembranças trazidas por ela com o presente; apontar como ela se sentia frustrada, rejeitada; e assinalar que talvez ali, na análise, também se sentisse "inferior", me invejasse e desejasse que eu a atendesse de graça. Parece que esse apontamento fez muito sentido para ela, que efetuou o pagamento atrasado e se manteve em dia nos meses seguintes.

Numa das sessões, Luna contou um sonho e conversamos sobre os sentimentos que pareciam estar explicitados nele: desejo de ser o centro das atenções, inveja, ódio e rejeição. Penso que Luna percebeu que podíamos entrar em contato com suas fantasias e estava colaborando com a análise.

Anorexias

Luna me telefonou solicitando uma sessão extra. Ao perceber o seu desespero, agendei um horário. A sua filha havia passado mal, não estava conseguindo comer, teve enjoo e vontade de vomitar. Luna percebeu que Julia estava desenvolvendo anorexia e não sabia o que fazer. Tinha muito medo da gravidade da situação e me inundava de perguntas objetivas.

Julia foi piorando, e Luna começou a pensar que levaria a filha ao psiquiatra. Disse estar contente com a psicanálise, mas que para Julia seria melhor outro tipo de abordagem. Passou a se culpar por não ter concordado com a recomendação de que Julia tomasse medicação antes. Sentia-se muito sozinha e, a partir de então, o estado psicológico da filha voltou a ser o assunto central das sessões.

Parecia viver em identificação projetiva com a filha, não conseguia perceber que Julia tinha outra mente, era outra pessoa; e também comigo, não podia suportar o que eu lhe dizia, não aceitava que eu não opinasse sobre o estado mental da sua filha e que a natureza do trabalho psicanalítico não era lhe dar conselhos. Tudo isso se mostrava muito frustrante para ela.

Segundo Luna, o psiquiatra a responsabilizou pelo estado de Julia. Tentei trabalhar a questão, mas o clima das sessões era muito tenso. Ela me atacou verbalmente inúmeras vezes, me culpando pela situação em que se encontrava. Eu percebia que Luna queria que eu tomasse um partido, ficasse contra ela ou contra o psiquiatra.

Luna nutria fortes sentimentos de ódio e parecia transferi-los para a análise. Queixou-se de que tomava as decisões "baseada na cabeça dos outros" e que "tinha errado porque tinha me ouvido", mas ao mesmo tempo me perguntava o que devia fazer. Quando apontei que ela tinha vindo à sessão e estava ali por conta própria, pareceu que ela entrou em contato com algo verdadeiro e pudemos conversar.

Nesse momento, eu percebi que todos esses acontecimentos impactantes estavam acima das condições de elaboração de Luna, e novamente o uso dos mecanismos de defesa esquizoides, como a cisão e a identificação projetiva, se intensificou.

A impressão que eu tinha era de que a ansiedade persecutória voltou a dominar o clima das sessões e que, na fantasia de Luna, a análise era um seio mau, que lhe oferecia comida estragada.

Segundo Klein (1946/1991b), a impossibilidade de pacientes esquizoides vivenciarem ansiedades depressivas cria um círculo vicioso. Quando não é possível elaborar a posição depressiva, o ego regride para a posição esquizoparanoide e reforça os medos persecutórios anteriores.

Apesar de Luna ter me atacado pessoalmente e o trabalho realizado inúmeras vezes, naquele momento solicitou uma sessão extra toda semana. Desse modo, eu lhe ofereci um quinto horário, e ela aceitou. Temia muito que Julia piorasse e fez um comentário que me pareceu muito importante: "Eu penso que não posso ficar bem se ela não estiver bem".

Embora trouxesse muitas lembranças e fizesse algumas reflexões, eu pensava que ela procurava obsessivamente a resposta para a pergunta inicial: se ela era nociva ou não para a filha. Também percebia que o nosso casamento analítico estava ameaçado.

O definhar da análise

A filha não estava melhorando como o esperado. O tratamento ficou mais intenso e tomava muito tempo de Luna, que a acompanhava em todas as consultas. Assim, começou a apresentar dificuldade de comparecer às sessões no horário combinado. Eu compreendia a situação e aceitava o pedido de reposição das faltas, mas apontei que ela estava pondo sua análise em segundo plano.

Conversei com Luna sobre esse assunto algumas vezes, mas não foi possível manter a frequência de cinco sessões, e parece que a perda dessa sessão teve um efeito muito negativo e importante para ela. Embora fosse a seu pedido, ela sentiu a situação como um abandono. Minha ausência foi transformada em uma presença má, e mais uma vez reagiu atacando o vínculo analítico.

Luna se comportava de uma forma que indicava que eu deveria me submeter aos seus horários disponíveis, assim como ela estava abrindo mão das suas sessões por causa de Julia. Demonstrava ficar bastante frustrada quando eu não atendia seus pedidos e, muitas vezes, mostrava-se furiosa com o fato de eu não estar tão desesperada como ela. Ela me tratava como se eu fosse insensível ao que estava acontecendo, embora eu tentasse me adaptar às suas necessidades, dentro do possível.

Luna fez muitas críticas, disse que eu deveria tê-la aconselhado, pois Julia era um caso muito grave, que eu tinha ficado numa postura "alheia", como se eu não me importasse com o sofrimento dela. Essa reação me remeteu a um trecho do artigo "Ataques à ligação", de Bion:

Os ataques ao elo de ligação, portanto, são sinônimos dos ataques à paz de espírito do analista e, originariamente, da mãe. A capacidade de introjetar é transformada pela inveja e ódio do paciente em avidez que lhe devora a psique. Analogamente, a paz de espírito se converte em indiferença hostil. A essa altura surgem problemas analíticos em razão do emprego que faz o paciente (para destruir a paz de espírito tão invejada) de "atuações", atos delinquentes e ameaças de suicídio. (1959/1994a, p. 122)

O sonho

Eu percebia que a diminuição da frequência da análise fazia muita diferença. Quando lhe apontei isso, Luna me atacou duramente, dizendo que eu não estava preocupada com ela, mas comigo, com os meus honorários, que o mais importante era a sua filha e que faltaria sempre que fosse necessário. Depois de alguns dias, na tentativa de evitar faltas, fizemos uma nova combinação de horários, considerando a rotina de tratamento da filha. Numa das sessões posteriores, Luna contou um sonho:

Eu segurava um bebê, que era a Julia, magrinha. Estava numa casa com a namorada do meu ex-marido, que fazia um doce. Eu pensei: "Julia não pode comer o doce que a namorada está fazendo". Daí a namorada ficou no teto, como num filme de exorcismo.

Luna conseguiu fazer algumas associações em relação a esse sonho: a namorada do ex-marido era jovem, e Luna temia que ela pudesse engravidar, bem como agradar mais a Julia do que ela própria. Chorou muito, pois se percebia endiabrada, cheia de ódio e inveja. Conversamos sobre como essa cena representava explicitamente o ataque invejoso que fazia ao casal que podia engravidar e alimentar Julia, e como ela se percebia incapaz de alimentar a filha, que estava magrinha.

Além disso, me pareceu que a namorada do ex-marido podia representar a analista, que oferecia a Luna atenção e alimento (fazia um doce), oferta que ela não podia desfrutar (a frequência havia diminuído). A Julia magrinha também podia representar a própria Luna, que não estava alimentada. O sonho descrito representava ainda os ataques de Luna aos seus aspectos criativos, aqueles que podiam alimentar, receber, engravidar e gerar ideias novas e desenvolvimento. Todo o clima do sonho parecia ser de ódio, inveja e persecutoriedade.

O fim

Luna cancelou várias sessões seguidas, e eu percebi que algo muito grave tinha acontecido. Quando pôde comparecer, contou que Julia havia tentado suicídio e que estava muito envolvida com o tratamento da filha. Por conta disso, passou a ter ainda mais dificuldade para comparecer às sessões.

Eu percebia que Luna não conseguia se desligar da análise, mas também não conseguia vir. Após Luna cancelar as sessões pelo período de um mês, entrei em contato para formalizar o desligamento e lhe disse que, assim que pudesse retornar as sessões, eu estaria à disposição.

 

Comentários finais

Em "Análise terminável e interminável", Freud observa que, durante o trabalho analítico, há a impressão de que existe uma força que se defende por todos os meios e busca se apegar à doença e ao sofrimento. Parte dessa força foi identificada como consciência de culpa e necessidade de castigo, e foi localizada na relação do eu com o supereu. O autor complementa:

Mas essa é somente a parte que se acha, por assim dizer, psiquicamente amarrada pelo supereu e se torna reconhecível, portanto. Outros montantes da mesma força podem estar em ação, de forma livre ou vinculada, não se sabe bem onde. Se tivermos presente, em sua totalidade, o quadro composto pelos fenômenos do masoquismo imanente de tantas pessoas, da reação terapêutica negativa e do sentimento de culpa dos neuróticos, não poderemos mais sustentar a crença de que o funcionamento psíquico é governado apenas pela ânsia de prazer. Tais manifestações apontam inequivocamente para a existência de um poder, na vida psíquica, que denominamos instinto de agressão ou destruição, de acordo com seus fins, e que derivamos do original instinto de morte da matéria viva. (1937/2018, pp. 311-312)

Nessa passagem, Freud parece deixar clara a importância da pulsão de morte, embora com atuação muitas vezes desconhecida. Fala sobre a relação entre o sentimento de culpa, o masoquismo moral e a reação terapêutica negativa, que, conforme demonstrei, foram manifestações evidentes em Luna.

De acordo com Klein (1957/1991a), a inveja primária seria a manifestação externa da pulsão de morte, e a criatividade, a causa mais profunda da inveja. Seguindo essa linha de raciocínio, John Steiner, no artigo "The repetition compulsion, envy, and the death instinct" (2008), fez uma conexão entre a compulsão à repetição, a inveja e a pulsão de morte. A rejeição ao novo e a algo que seja particularmente criativo pode ser pensada como uma intolerância à dependência receptiva de objetos bons.

Segundo o autor, é possível esclarecer o papel da pulsão de morte na compulsão à repetição se ela for entendida como uma pulsão antivida, que representa ódio e intolerância por todas as coisas que representam vida. Steiner complementa dizendo que a pulsão de morte é difícil de entender, mas a realidade de suas manifestações é evidente. Quando formulada como uma pulsão antivida, sua relação com a inveja torna-se mais clara, e as duas podem revelar diferentes aspectos da mesma coisa.

Klein (1946/1991b) afirma que uma boa relação do bebê com o seio é fundamental para o estabelecimento de um bom objeto interno e fornece a base para os relacionamentos futuros, porém, quando a ansiedade persecutória é intensa, ocorre o excessivo emprego da cisão e da identificação projetiva. Bion (1959/1994a) reconhece isso e descreve um estado mental que se opõe e destrói qualquer elo de ligação, desde o mais primitivo até o mais sofisticado, resultando em consequências relevantes devido ao ódio às emoções. Toda essa situação pode ser revivida na relação transferencial.

No meu entender, as manifestações com as quais me deparei no atendimento de Luna ilustram as formulações teóricas descritas. O processo psicanalítico vivenciado com ela me parece demonstrar os intensos ataques feitos ao vínculo. Eu lhe oferecia uma parceria para que pudéssemos pensar juntas e, em contrapartida, ela me pedia aquilo que eu não podia dar.

Freud destacou que pacientes com intenso sentimento de culpa inconsciente intentam colocar o analista no papel de profeta, salvador de almas, redentor, o que confere "um novo limite à ação da psicanálise, que afinal deve proporcionar ao eu do paciente a liberdade de decidir de uma ou outra maneira, e não tornar impossíveis as reações patológicas" (1923/2011a, p. 63). Nesse sentido, reconhece um impasse e questiona os limites da psicanálise.

Segundo Barison (2020), o conceito de pulsão de morte fez, e ainda faz, muito alvoroço no posicionamento tanto teórico quanto terapêutico dos psicanalistas. Propõe ser um conceito mais vinculado à clínica dos não neuróticos, que é uma demanda importante, porém ainda é um conceito pouco entendido ou utilizado no quotidiano da clínica psicanalítica, além de provocar posicionamentos divergentes. Sua tentativa de classificação das várias abordagens, tanto do fenômeno quanto do conceito de pulsão de morte, exposta em seu artigo, é bastante elucidativa.

O autor reforça a radicalidade do conceito de pulsão de morte, caso seja compreendido como uma movimentação pulsional que aponta para o inorgânico e que se manifesta no sentido da não constituição da mente e da destruição dos recursos para o adiamento das satisfações. Finaliza afirmando:

O difícil é entender e aceitar cada uma dessas características como atávicas ao humano. Se for assim, não haverá reformas políticas ou evoluções psicanalíticas e culturais que nos livrarão do que somos. Quem sabe a superação da espécie possa resolver isso. (p. 96)

Conforme Freud (1937/2018), a pulsão de vida e a pulsão de morte se combinam para realizar diversas funções vitais, mas em algumas condições essas uniões se afrouxam ou se desfazem. No entanto, a compreensão psicanalítica ainda é muito incipiente.

Esse conflito inerente à condição humana, entre pulsão de vida e pulsão de morte, amor e ódio, impulso de ligar/construir e de separar/destruir, parece ser uma preocupação da humanidade desde os seus primórdios, representado de diversas formas, principalmente no campo religioso, por meio das interações entre o bem e o mal e os seus deuses. Na cultura ocidental, judaico-cristã, parece ser representada pela luta entre Deus e o Diabo.

Segundo Klein (1957/1991a), o estragar a criatividade, próprio da inveja, é ilustrado no Paraíso perdido de Milton, onde Satã, invejoso de Deus, decide tornar-se usurpador do céu. Ele faz guerra a Deus na tentativa de estragar a vida celestial, e cai do céu. Caído, ele e seus outros anjos caídos constroem o inferno como rival do céu e tornam-se a força destrutiva que tenta arruinar o que Deus cria.

Para finalizar, transcrevo um trecho do poema de Milton (1667/2018, p. 160) no qual Satã reflete sobre si mesmo, demonstrando ter consciência da sua miséria, da sua destrutividade - que o leva a um abismo cada vez mais fundo - e do inferno que vive dentro de si.

Mas não!... Maldito eu seja porque injusto
Livremente escolhi contra meu senso
O que tão justamente agora eu sofro.
Quanto sou infeliz! Por onde posso
Fugir de sua cólera infinita
E de meu infinito desespero?
Só o inferno essa fuga me depara:
Eu sou inferno pior; o outro, cavando
No fundo abismo, abismo inda mais fundo,
E ameaçando engolir-me em tais horrores,
Para mim fora um céu se o comparasse,
Com este inferno que em mim mesmo sofro.
Ai de mim, que afinal ceder me cumpre!
E como hei de mostrar que me arrependo?
Por que modo o perdão obter eu posso?
Só pela submissão... Palavra horrível!

 

Referências

Barison, O. L. (2020). Cântico negro: o uso clínico do conceito de pulsão de morte. Revista Brasileira de Psicanálise, 54(1),85-98.         [ Links ]

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Bion, W. R. (1994b). Diferenciação entre a personalidade psicótica e a personalidade não psicótica. In W. R. Bion, Estudos psicanalíticos revisados (W. M. M. Dantas, Trad., pp. 55-77). Imago. (Trabalho original publicado em 1957)        [ Links ]

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Recebido em 15/7/2021
Aceito em 5/8/2021

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