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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.3 São Paulo jul./set. 2021

 

TEMA LIVRE

 

Uma poética do desligamento: a contemporaneidade de Além do princípio do prazer

 

A poetics of disconnection: the contemporaneity of Beyond the pleasure principle

 

Una poética de la desconexión: la contemporaneidad de Más allá del principio del placer

 

Une poétique de la déconnexion : la contemporanéité de Au-delà du principe du plaisir

 

 

Adriana Barbosa Pereira

Psicanalista. Mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP). Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do Grupo Brasileiro de Pesquisas Sándor Ferenczi / dribp@terra.com.br

 

 


RESUMO

Em uma articulação entre psicanálise e arte, este trabalho toma a obra de Pedro Moraleida (1977-1999) como objeto transubjetivo que evoca a contemporaneidade do texto freudiano Além do princípio do prazer. A presença de imagens menos integradoras e de críticas desconstrutivas na obra mostra as forças de Tânatos, ainda que ligadas pela plasticidade. A participação do desligamento pulsional na sublimação é destacada não apenas na obra como também no reconhecimento da desfusão pulsional e de uma toxidez que pode interromper tanto o processo criativo quanto a vida do artista. Está presente a proposição de que a arte vasculha profundezas e convive com fortes intensidades pulsionais, mas ainda assim é capaz de fazer o sujeito sobreviver em objetos transnarcísicos.

Palavras-chave: psicanálise, arte, além do princípio do prazer, sublimação


ABSTRACT

This work, in an articulation between psychoanalysis and art, takes Pedro Moraleida's work (1977-1999) as a transubjective object that evokes the contemporaneity of Freud's Beyond the pleasure principle (1920). The presence, in the work, of less integrating images and of deconstructive criticisms, show the strengths of Tanatos even though linked by plasticity. The participation of drive disconnection in sublimation is highlighted in the artist's work as well as in the recognition both of drive diffusion and of a toxicity that can interrupt not only the creative process as well as the artist's life. In spite of this, one proposes that art searches depths and coexists with strong instinctive intensities, but is still capable of allowing the subject's survival in trans narcissistic objects.

Keywords: psychoanalysis, art, beyond the pleasure principle, sublimation


RESUMEN

El presente trabajo, en una articulación entre el psicoanálisis y el arte, toma el trabajo de Pedro Moraleida (1977-1999) como un objeto transubjetivo que evoca la contemporaneidad del texto freudiano Más allá del principio del placer (1920). La presencia de imágenes menos integradoras y críticas deconstructivas en el trabajo muestran las fuerzas de Tanatos aún cuando unidas por la plasticidad. La participación de la desconexión pulsional en la sublimación se destaca tanto en la obra como también en el reconocimiento de la disfunción pulsional y de una toxicidad que puede interrumpir no solo el proceso creativo sino también la vida del artista. A pesar de esto, está presente la proposición de que el arte busca las profundidades y coexiste con intensas intensidades pulsionales, pero que también es capaz de hacer que el sujeto sobreviva en objetos transnarcisistas.

Palabras clave: psicoanálisis, arte, más allá del principio del placer, sublimación


RÉSUMÉ

Ce travail, dans une articulation entre la psychanalyse et l'art, prend l'œuvre de Pedro Moraleida (1977-1999) comme un objet transsubjectif qui évoque la contemporanéité du texte freudien Au-delà du principe du plaisir (1920). La présence d'images moins intégratrices et de critiques destructives dans l'œuvre montre les forces de Tanatos, même si liées par la plasticité. La participation de la déconnexion pulsionnelle à la sublimation est mise en évidence pas seulement dans l'œuvre, mais également dans la reconnaissance de la défusion pulsionnelle - désintrication - et d'une toxicité qui peut interrompre soit le processus créatif, soit aussi la vie de l'artiste. Malgré tout cela, on propose que l'art explore les profondeurs et coexiste avec de fortes intensités pulsionnelles, mais qui est tout de même capable de faire le sujet survivre dans des objets transnarcissiques.

Mots-clés : psychanalyse, art, au-delà du principe du plaisir, sublimation


 

 

Que ousadia a nossa ao não nos esquivarmos, humildemente, diante da interrogação sobre o que produz a intricação e a separação entre as forças de ligação pela arte e as forças de desligamento da morte! Desde o mais profundo e mórbido silêncio, que reconhece a força de um além do princípio do prazer, em direção à vitalidade da sexualidade, a curiosidade nos movimenta. Pois a pluralidade das manifestações da pulsão de morte e até do ato fatal da solução suicida na morte prematura do artista plástico mineiro Pedro Moraleida (1977- 1999) em sua obra é mais inquietante do que inibidora. Porque mesmo quando de um lado vence a pulsão de morte, de outro sobrevivem as forças de ligação.

A obra é o resultado de uma transferência da existência. ... Há uma transferência do narcisismo do criador para um objeto transnarcísico. ... Pois a arte é essa tentativa desesperada de fazer o sujeito durar. ... O imperecível da arte supera a inelutável mortalidade dos seres. (Green, 1994b, pp. 260 e 264)

Em uma investigação de fronteira entre psicanálise e experiência estética, a obra de Moraleida provoca não só os críticos de arte, a cada ano de maneira renovada, mas também os psicanalistas a pensar o além do princípio do prazer na sublimação e seus limites na desfusão pulsional. A contemporaneidade de Além do princípio do prazer (Freud, 1920/1980a) se refaz diante da obra de Moraleida, que vem sendo exposta intensamente no Brasil e no exterior. Em 2017, a exposição Faça você mesmo a sua Capela Sistina, em Belo Horizonte, foi alvo de ataques de grupos conservadores. Em 2018, sua obra esteve no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, na exposição Canção do sangue fervente e participará da Bienal de Berlim em setembro de 2020.

Nossa intenção não é tomar a obra como fenômeno que exemplifica conceitos psicanalíticos. Seguindo as pistas de Rancière (2001/2012), a obra deve ser vista mais como testemunho dos processos subjetivos do que como um exemplo. Interessa-nos pensar o que nos dizem as figuras da obra sobre as forças de desligamento da pulsão de morte, não apenas aquelas que se referem ao possível desejo de morte do artista, ao qual não temos acesso, mas as forças de desligamento do além do princípio do prazer que compõem nossa experiência também em sua dimensão social.

A obra aqui funciona como objeto transubjetivo, ou seja, objeto cultural capaz de dar forma à subjetividade social, incluindo suas forças de vida e de morte. São imagens metaforizantes de experiências psíquicas tanto singulares quanto coletivas. As experiências de desconstrução e ressignificação abertas por experiências estéticas colocam em operação processos de significação e/ou inquietações tão intensas quanto as de um sonho.

O artista é aquele que viaja nos labirintos ou nos subsolos do mundo social. Ele recolhe os vestígios e transcreve os hieróglifos pintados na configuração mesma das coisas obscuras ou triviais. Devolve aos detalhes insignificantes da prosa do mundo sua dupla potência poética e significante. (Rancière, 2001/2012, p. 36)

A leitura das relações entre vida e obra exige uma complexidade capaz de nos proteger do risco de análises psicobiográficas rasteiras do artista, ou seja, "rebaixar a criação ao nível da patologia" (Green, 1994a, p. 37). Essa complexidade também nos permite não ceder ao modelo de interpretação por desvelamento de um suposto conteúdo que independe da relação com o intérprete ou dos elementos formais da obra. Será preciso pensar a obra como uma convocação que não seja propriamente de deciframento, que não apague a força da imagem.

 

Deixar cair

Moraleida era para mim um desconhecido muito próximo. Circulávamos no mesmo grupo. Tive a oportunidade de ir a sua casa ver suas pinturas. Muitas cores, tamanhos grandes e suportes rústicos. Trabalhos figurativos traziam em seu material e sua forma as marcas de um fazer rápido, bruto, incessante. Impressionou-me o número de quadros, pinturas, desenhos e colagens que ele produzia. Moraleida foi um artista extremamente produtivo: aos 22 anos de vida, ele já tinha 1.450 desenhos, 450 pinturas, 250 textos, entre outros trabalhos. Tive a chance de ir a três de suas exposições antes de sua morte. Estranhamento e atração. O conflito entre a sexualidade e os jogos sociais de poder está ali escancarado. São figuras antagônicas coladas lado a lado. Em uma fase de sua obra, símbolos religiosos estão grudados a imagens da genitália masculina e feminina, pintadas ou extraídas de revistas pornográficas. A força está na apresentação urgente do contraste e do conflito entre, por um lado, símbolos religiosos e políticos que mostram a contenção e o encobrimento do sexo e da sexualidade e, por outro, produções sociais marginais que se empenham em tirar o véu, em despir-se de tudo aquilo que, em nome de um pudor social, vestimos. A sexualidade é figurada como impulso desordenado e parcial em imagens de corpos fragmentados ou híbridos, meio homem, meio bicho. A associação de Gastão Frota é precisa ao reconhecer no trabalho de Moraleida a influência do pensamento de Deleuze. Sua obra é uma tradução em imagens de "um mundo de objetos parciais introjetados e projetados, comidos e cagados, que chamamos o mundo do simulacro" (Frota, 2004). Há outros trabalhos, no entanto, como os desenhos em grafite, cuja delicadeza é surpreendentemente contrastante com as formas mais brutas, explícitas e provocativas da produção já descrita.

O que se tornou inevitavelmente um grande enigma foi o fato de ele ter se jogado da sacada de seu apartamento, de baixa altura, o que o deixou vivo minutos suficientes para dizer o quanto se arrependera do feito. Infelizmente, nem a baixa altura nem o arrependimento por se deixar cair impediram sua morte. A expressão se deixar cair não aparece aqui para diminuir a intenção do ato suicida, pois não me parece duvidosa sua intencionalidade; mesmo que essa vontade tenha durado uma fração de segundo, sua força foi suficientemente intensa para não ter sido contida. Essa expressão serve para colocar lado a lado as palavras se deixar cair - não se deixar cair, a fim de ressaltar as forças contrárias atuantes no psiquismo e o limite tênue entre uma e outra. O que difere esses termos é apenas uma negatividade. Se deixar ou não se deixar dirá sempre da possibilidade de fazer um corte ou não no impulso cair, na pulsão desintricada do além do princípio do prazer. Uma das coisas mais assustadoras no ato suicida é o fato de este explicitar a proximidade, por demais estreita e para todos, entre viver e morrer, entre o princípio do prazer e um além do princípio do prazer, entre Eros e Tânatos.

 

Vida, morte e obra

É por demais perigoso olhar a obra de artistas suicidas como um testemunho do suicídio do artista, tentando encontrar nela os rastros do desejo de morte, e neste a chave para a abertura explicativa de toda a obra. Esse tipo de análise está em busca de um conteúdo recalcado ou de um elemento que aponte para traços psicopatológicos do artista, levando equivocadamente a obra à psicopatologia. Tal perspectiva pode perder de vista a obra se a investigação sobre o desejo de morte, isoladamente, funcionar como causa do efeito - a obra. Não se trata, porém, em outro extremo, de manter a vida do artista e a obra de arte separadas. Vida e obra são indissociáveis, a ponto de a poética, o estilo e a formatividade da obra levarem o artista a uma saída suicida, pois seu fazer está imbricado em sua vida. O processo criativo implica um risco no qual a existência da obra pode vir a ser maior que a existência do ser, pois ela traz uma toxidez, como aponta Carvalho (1998) em análise da poesia de Sylvia Plath. É também através desse trabalho que o psiquismo tenta controlar sua intensidade.

Na esteira da formulação freudiana, percebemos que a arte precede a psicanálise na investigação dos fatos psíquicos singulares e coletivos, o que inclui a pulsão de morte. Vida e obra imbricadas são a vida do artista, mas também aquilo da vida do artista que representa os dilemas sociais.

Sobre esse tema, Merleau-Ponty, ao analisar Cézanne e sua pintura, afirma:

É certo que a vida não explica a obra, porém certo é também que se comunicam. A verdade é que esta obra a fazer exigia esta vida. Desde o início, a vida de Cézanne só encontrava equilíbrio apoiando-se na obra ainda futura, era seu projeto, e a obra nela se anunciava por signos premonitórios que erraríamos se os considerássemos causas, mas que fazem da obra e da vida uma única aventura. (1948/1984, p. 122)

O filósofo acredita que obra e vida estão interligadas, mas que a obra a fazer exige uma vida. "Pode-se, pois, ao mesmo tempo dizer que a vida de um autor nada nos revela e que, se soubéssemos sondá-la, nela tudo encontraríamos, já que se abre em sua obra" (Merleau-Ponty, 1948/1984, pp. 125-126). Se há reciprocidade entre vida e obra, parece necessário reconhecer que também haverá entre morte e obra. Entre as várias provocações de Moraleida está a desconstrução do simulacro social. Existem situações nas quais criadores ultrapassam o interdito do conhecimento inconsciente e "pagam com a própria vida esse saque dos sepulcros do inconsciente para alimentar a criação" (Green, 1994b, p. 254).

Quando nos aproximamos da obra de artistas que se suicidaram, um efeito é evidente: a sombra da morte na obra. Esse tema é trabalhado por Ana Cecília Carvalho (1998) em sua tese de doutoramento sobre a poética literária de Sylvia Plath, autora que se matou aos 30 anos de idade. A psicanalista se propõe a pensar sobre o conflito entre as forças destrutivas e construtivas que agem na criação artística, a qual coloca quem cria "diante de uma escolha terrível: escrever [criar] ou morrer - possibilidade surpreendente, pois indicadora da presença de forças destrutivas no centro do processo de criação" (Carvalho, 1998, p. 12). O processo de sublimação está articulado a um além do princípio do prazer.

Uma das noções clássicas da sublimação define-a como uma transformação não patogênica das pulsões sexuais em atividades não diretamente sexuais, uma derivação da repressão dos elementos perversos da sexualidade. O narcisismo participa como uma passagem intermediária da libido sexual para o eu no mecanismo de sublimação. Há uma afirmação mais difundida em psicanálise de que a sublimação está prioritariamente associada a Eros em suas características de unir e ligar. É uma noção que tende a escapar da lógica conflitiva de toda a teoria freudiana, o que é restritivo, especialmente a partir da radicalidade da dualidade entre pulsões de vida e de morte. No ponto em que sublimação e forças desconstrutivas não são excludentes, podemos pensar numa poética do desligamento. Porém,

a obra enquanto elaboração da angústia e do luto, a obra em sua relação com a morte, é o contrário da morte, pois escolhe a ilusão do ruído da vida contra a certeza da morte, escolhe o prazer, mesmo sendo um prazer - podemos usar a palavra certa - masoquista, ao invés da simples alegria. (Green, 1992/1994a, p. 55)

A análise da sublimação se modifica a partir do reconhecimento da pulsão de morte, proposta por Freud em Além do princípio do prazer (1920/1980a), assim como a noção de narcisismo é revista a partir da melancolia, sendo o eu identificado com o objeto morto, o que é exemplificado no título do livro de Green Narcisismo de vida, narcisismo de morte (1983/1988). O desligamento está presente nos processos criativos tanto em sua potência criativa de ruptura, que permite a inovação, quanto no fato de certos conteúdos sublimados serem explicitamente ligados à morte. A morte exige trabalho psíquico contínuo, por sua irrepresentabilidade, e a força de Tânatos tem uma dimensão constitutiva, capaz de se desligar de objetos e/ou transformá-los. Ela também está presente nas imagens que figuram a morte, o terror, a violência e a destruição. No entanto, nessas imagens ela está amarrada, ligada a uma força de vida. O que faz falhar essa ligação, que faz morrer a criação e que a criação faz morrer?

No catálogo da exposição Coisas para fazer hoje (Dardot, 2002), ocorrida após a morte de Pedro Moraleida, pude rever várias de suas obras. Tomei duas para análise, as quais eu já conhecia antes de sua exposição póstuma. Entrelaçá-las, extrair suas semelhanças e diferenças, parece-me uma rica possibilidade de apreciação. Esse encontro pode permitir que um elemento interno, outra obra do mesmo artista, construa aberturas interpretativas mais significativas.

 

"O amor não existe": a poética surrealista e o além do princípio do prazer

O surrealismo, poética que tem algumas semelhanças com o dadaísmo inaugurado por Duchamp, foi encabeçado por Breton, especialmente interessado nos estudos de Freud sobre o inconsciente. Fundamentou-se como "teoria do irracional ou inconsciente na arte" (Argan, 1992, p. 360). Seu manifesto é de 1924, vejam só, depois de Além do princípio do prazer. Trata-se do

automatismo psíquico puro, através do qual nos propomos exprimir tanto verbalmente quanto por escrito ou de outras formas o funcionamento real do pensamento; ditado do pensamento com ausência de todo o controle exercido pela razão, além de toda e qualquer preocupação estética e moral. (Breton, 1924/1991, p. 157)

As descobertas clínicas e teóricas da psicanálise foram extremamente atraentes para artistas que tinham como paradigma o pensamento inconsciente na produção de imagens. "No inconsciente, pensa-se por imagens". A arte, nessa poética, permite que o inconsciente seja visto como uma "dimensão da existência estética, como a própria dimensão da arte" (Argan, 1992, p. 360). A força da experiência onírica é capturada também pela arte. Os objetos surrealistas, assim como os oníricos, são deslocados de suas significações usuais e subvertidos em seus usos. Essa lógica dos processos inconscientes é perseguida no surrealismo. De Micheli sugere que, descoberta a importância do sonho para a vida psíquica, faz-se necessário, então, forjar possibilidades de encontro entre o pensamento do sonho e o de vigília a fim de criar uma realidade absoluta, uma surrealidade; tenta-se assim criar "um reino do espírito onde ele se liberte de toda gravidade e inibição, de todo complexo, atingindo uma liberdade inigualável, incondicionada" (1991, pp. 156-157), através de uma fusão entre sonho e realidade, permitindo a existência de um homem restituído de sua integridade. Para o artista surrealista Ernst, ou a identidade é convulsiva ou ela não será, conforme Frayze-Pereira (2005).

O movimento surrealista também explicitou a fratura entre arte e sociedade, entre arte e vida, entre mundo externo e mundo interno, entre fantasia e realidade, a fim de encontrar uma mediação entre essas duas margens. É uma revolta contra os bons costumes, o bom senso e o decoro burgueses. A psicanálise e o surrealismo puderam fazer o mundo reconhecer os conteúdos e as formas pouco ortodoxos, não racionais e sem pudor que compõem o mundo psíquico, o que inclui as forças da pulsão de morte a serviço de "demonstrar que as enaltecidas virtudes da classe no poder não passam de uma fachada" (Argan, 1992, p. 361). Segundo De Micheli (1991), o movimento surrealista respondia com mais violência e verdade do que qualquer outra tendência à pergunta que os intelectuais se faziam em toda parte na Europa: como sair da angústia da crise?

A obra de Moraleida pode ser aproximada da poética surrealista: o fazer incessante, bruto, gestual, visceral, típico de seu estilo, sem apego a uma técnica, o que garante a potência da formatividade de sua obra; o uso de imagens coladas, retiradas de seu contexto usual; a explicitação dos conflitos do poder e dos lugares instituídos da cultura erudita com a sexualidade do mundo psíquico; o emprego da escrita epistolar ou por associação livre. No entanto, o trabalho desse artista não tem uma intenção mediadora. Bem ao contrário, seu trabalho coloca no mesmo plano, na mesma tela, o conflito, o desligamento e a impossibilidade da síntese. A poética de Pedro Moraleida está marcada pelas forças da pulsão de morte em uma não síntese produzida pela presença marcante da fragmentação.

 

 

Em uma parte da obra Sentindo um cansaço mortal por representar o humano sem fazer parte do humano, da série Capela Sistina, projeto artístico de Moraleida de 300 pinturas, que não foi concluído, há uma junção de símbolos antagônicos. Em outra tela aparece um tridente, menção simbólica ao diabo, com uma figura de chifres que se repete, uma figura humana cuja cabeça é uma caveira, imagens de sexo entre humanos e animais, outra figura com duas cabeças. Na parte central da tela há cruzes. Soldados armados, representantes da repressão, do poder e dos bons costumes, têm o sexo à mostra em posição masturbatória e o rosto inexpressivo. Essa ligação visual entre símbolos de posições opostas, ou desviados de sua concepção mais comum, que parece de início excessivamente explícita, produz uma sensação de estranhamento e mal-estar acompanhada de uma atração justamente pela junção entre essas imagens antagônicas. Concordamos com a sugestão de Loureiro de que o estético é uma modalidade de experiência que, "embora tenhamos a expectativa de que se 'resolva' ou redunde em (ou contenha) algum tipo de prazer, pode ter no desprazer sua tonalidade dominante" (2005, p. 102), incluindo em si o além do princípio do prazer.

 

 

Na série Presidentes Americanos e Líderes Comunistas Vendem Anúncios Pornográficos, Mao Tsé-Tung, Fidel Castro, George Washington, Abraham Lincoln e John Kennedy aparecem quase todos de pernas abertas, mostrando o sexo, uns masculinos e outros femininos, conforme as mensagens escritas nos balões. Ironicamente, os grandes representantes do poder fazem apelos pornográficos. Há outras obras, de técnica mista, nas quais pinturas e colagens de revistas associam imagens sacras, de arte erudita, a imagens pornográficas, em um uso irrestrito e de denúncia da reprodução comercial e incessante de imagens, sejam elas quais forem. As pinturas-colagens são desconcertantemente explícitas e carregadas de forte representação simbólica, gestualidade bruta e intensa, muitas cores, figuras deformadas e rostos assustados, conduzindo ao mesmo efeito de atração e estranhamento. Um efeito sarcástico também se produz, numa espécie de chiste político-pornográfico jovial, quando essas imagens, parecidas com desenhos de banheiro, ganham as paredes de museus e galerias - a sexualidade atravessada pelas forças da pulsão de morte, que pode ser simultaneamente desconstrutiva e irreverente.

O modo como Moraleida forma sua obra se parece com o que Max Ernst (1948/1970) define como a força do objeto encontrado (objet trouvé). O encontrado estimula a imaginação erótica (e não a dessexualização da pulsão) e não tem compromisso com uma síntese poética. Seu maior fim é a irritabilidade do espírito. Para que tal força alcance seu alvo, Max Ernst propõe como "modo de formar" surrealista não apenas o uso subvertido de objetos comuns, mas também outros procedimentos capazes de alcançar o automatismo surrealista, técnica inspirada no automatismo psíquico e na associação livre forjada por Freud. O automatismo surrealista tem como ideal construir uma surrealidade no encontro entre sonho e realidade. A fotomontagem, um dos recursos criados por Ernst, também é utilizada por Moraleida, que ainda faz uso intenso da escrita automática com palavras na tela. Além disso, ele escreve trechos de Freud, Lacan, Deleuze etc. É uma escrita fabricada pelo fluxo incessante de pensamentos sobre o corpo, que aponta para o uso mercadológico dos textos e das ideias. O paradoxo é que, nesse processo criativo, a dimensão de destruição aparece numa denúncia que em seu extremo é metalinguística. Na denúncia do simulacro, da ilusão enganadora e denegatória representada pela Igreja e pelo Estado, a ilusão constitutiva (Pontalis, 1977/2005) do brincar e da arte é também enfraquecida. Essa denúncia pode tirar a potência de transformação na arte e alcança implicitamente a formulação de que a Arte, com A maiúsculo, como lugar de exceção e de crítica, é igualmente um campo de ilusão falaciosa.

A escrita automática de Pedro Moraleida nos textos dos catálogos das exposições tem um tom sarcástico, como mostra o título de um deles: "Os 4 'conceitos' fundamentais do 'meu trabalho'", ou "O conceito fala por sim mesmo", ou "O que não se pode falar deve se calar". Nesse texto o artista propõe um irônico diálogo entre a bola esquerda e a bola direita de seu saco, misturando descrição da materialidade corporal, seus fluxos, suas dores, seus prazeres e gozos, com termos abstratos e complexos vindos da literatura, da linguística, da história da arte e da psicanálise. Em alguns momentos sua escrita encontra sínteses:

ler livros ou fazer obras de arte será sempre
menos complicado do que amar-e-ser-amado.
morrer ou sangrar flui sem complexos d(e)
frustrações ao contrário do amor:
as páginas escritas ou por escrever,
as obras pintadas ou não,
as mortes vividas ou não,
o sangue na veia ou chão,
tudo isso existe
bombeia o coração
o amor não existe

O trabalho formativo é incessante como tentativa de contenção da intensidade da pulsão, o que é possível ver nas últimas exposições do artista. As pinturas são enormes, em conformidade com seu conteúdo e expressividade, e as imagens em pequena dimensão, retiradas de seu lugar de origem, de revistas e livros diversos, de seu uso habitual, provocam um conflito no foco. O trabalho de Moraleida é muito bem-sucedido em sua formatividade, tal como definida por Pareyson (1966/2001) - na medida em que conteúdo e forma estão entrelaçados, não há um sem o outro.

Já o desenho O beijo, assim como os outros da série da qual faz parte, pode ser associado a alguns desenhos de Picasso,1 mais um artista que contribuiu para o projeto surrealista e tomou a deformidade das imagens como um recurso estético. Ao contrário dos outros trabalhos, esse desenho quer especialmente ser visto com calma, sem desconcerto. A expressividade das linhas, das poucas cores, surpreende pela simplicidade. Ainda assim é possível reconhecer nele aspectos conflitivos entre a calmaria e a tensão. Há um traço marcante e explícito em várias obras, a penetração de um corpo no outro, que parece estar presente (apesar de se chamar O beijo, a posição das duas figuras é a de um ato sexual) na sobreposição das linhas, no fato de uma conter, dentro de si, outras. Essa série tem outro tipo de resolução expressiva, menos inquietante para o espectador.

Cabe perguntar quanto uma obra "contamina" de maneira decisiva a leitura da outra e, nesse caso, se a obra mais intensa se sobrepõe à imagem clara, nítida e despretensiosa da outra. Mas estará nas obras a sobreposição, por conterem ambas conteúdos expressivos semelhantes, apesar de formas muito diferentes? Ou estará em mim, na projeção do meu olhar, eu que, depois de impactada pela força da obra mais inquieta, vejo também o conteúdo de uma na outra, apesar de O beijo ser um trabalho no qual há uma despretensiosa síntese poética?

Na obra de Moraleida a impregnação da imagem dos órgãos genitais masculinos e femininos e das inúmeras imagens de penetração de um corpo em outro sugere que elas são representantes de um enigma insolúvel da obra. A repetição dessas imagens é capaz de provocar no apreciador uma sensação mais complexa, universal e menos explícita, que diz do enigma inconsciente da diferença entre os sexos, das hipóteses infantis calcadas na ideia de castração, da convivência conflitiva entre forças psíquicas de associação (vida) e dissociação (morte) e, finalmente, do extenso problema subjetivo e social de como se dá, entre o amor e a agressão, a relação entre um humano e outro.

A poética surrealista permitiu, através da aproximação com o conceito de inconsciente psicanalítico, que formas menos integradoras fossem expostas e sensações menos apaziguadoras fossem expressas. O ideal surrealista do encontro entre sonho e realidade, porém, nega as fraturas constitutivas; já o reconhecimento de uma poética do desligamento propõe uma solução menos ingênua.

É importante ressaltar o inevitável efeito nefasto da exaltação das forças psíquicas disruptivas. A dor, o mal-estar, os conflitos, a repetição, as contradições foram excluídos por muitas correntes artísticas. As obras oriundas de um imaginário perverso, contendo corpos deformados, cenas de sadismo e masoquismo, a obscenidade e o mortífero, efeitos de um além do princípio do prazer, por muito tempo não tiveram lugar na história da arte, em especial por causarem no espectador rapidamente o desprezo no lugar da perplexidade, da surpresa e do enigma, que permitem a apreciação.2 A força do belo, do prazer, no fazer artístico e na apreciação e a ideia da arte como um fazer bem-sucedido das forças psíquicas de restituição e reparação foram mais aceitas por uma ótica artística tão otimista quanto idealizada.

Se há aproximações possíveis entre a obra de Moraleida e a poética surrealista, é preciso reconhecer que a arte abjeta também oferece alguns elementos de análise. Essa "poética conduziria do ilusionismo ao encontro derradeiro com o real, a ponto de instaurar torções que o transformariam numa arma contra si mesmo. Aqui, já não há mais espaço para encobrir o real com 'superfícies de simulacro'" (Dionísio, 2012, p. 218). Considerações de Green sobre a obra literária podem ser ampliadas para outras manifestações artísticas e, com uma ou outra ressalva, se aproximam muito da formulação de Dionísio, com a qual concordamos.

Parece que em certa literatura contemporânea essa angústia, esse luto aumentam ao nível do texto da escritura. Ou seja, o luto agora é o da escritura atuando. Escreve-se para questionar sobre a morte da escritura. O escritor fica preso numa situação impossível, onde se trata de escrever sobre a morte da escritura, mas não para adiá-la, e sim para apressá-la, como se essa morte fosse considerada inevitável e a única maneira de ultrapassá-la fosse submeter-se e contribuir. (Green, 1992/ 1994a, p. 54)

Ou seja, na obra de arte contemporânea a angústia e a melancolia,3 as forças de desligamento, são reconhecidas no processo criativo. Uma dimensão melancólica do luto pode estar atuando na subjetividade do artista, não mais ficando restrita ao seu conteúdo. A obra vem questionar a própria morte da obra. O artista está aprisionado num impossível. Cria-se sobre a morte da criação, não mais para adiá-la, contorná-la, impedi-la, mas para intensificá-la, como se esse fosse o caminho mais fiel para a denúncia de sua impossibilidade, diante da qual só resta submeter-se.

Contudo, qualquer projeto artístico que leve isso ao extremo estará fadado à inibição ou à morte, já que a obra exige alguma formatividade, mesmo quando está no limite do disforme e nos territórios do sublime.

O trabalho de Moraleida não tomou o próprio corpo e seus dejetos como matéria para a obra, como é comum na arte abjeta. O suporte do gesto, do desenho, da pintura e da escrita no papel, na tela e nos livros nunca perdeu em sua obra um lugar privilegiado, ainda que não fosse para conduzir ao ilusionismo, servindo antes à exibição de processos inquietos e mais espontâneos de produção. O corpo violado e partido, no trabalho do artista mineiro, é uma figura na tela. O visceral4 está pintado.

A morte está presente na arte, nos artistas e em suas obras, tanto nos processos criativos quanto no conteúdo das obras. Não é isso, porém, que leva os artistas a interromper sua vida, pois, obviamente, não é uma poética que isoladamente impele à morte. Vale resgatar a formulação paradoxal de Merleau-Ponty de que a obra não explica a vida, e a vida não explica a obra, mas se soubermos sondá-la, tudo encontraremos. Pensemos que onde está a vida está também a morte. Assim, a obra não explica a morte, e a morte não explica a obra de Moraleida. O corpo da obra e o corpo do artista sofrem sua crítica à existência. A força intensa que levava ao trabalho inquieto se desliga e sucumbe na promessa de apaziguamento do além do princípio do prazer. A força exigida para escancarar as censuras e o pudor, para denunciar os simulacros, tem efeito artístico potente na desconstrução dos véus que nos constituem e nos coloca sem parapeito em investigações sobre a sexualidade, a morte e o pudor, mas no caminho desconstrói também as defesas de quem se oferece com sua subjetividade e seu corpo para tal denúncia.

O inconsolável está no fato de que, com a morte, se perdem tanto as repetições quanto as transformações daquela vida e daquela obra, ambas marcadas por tocar de perto as forças de desligamento e religá-las plasticamente. A formatividade se desliga no radical retorno ao além do princípio do prazer.

As poéticas contemporâneas exigem uma atualização da noção de sublimação, a partir de sua proximidade com o desligamento pulsional. Por consequência, a noção freudiana de Unheimliche se reatualiza, não apenas no campo da apreciação, mas também no campo da criação, em seu paradoxo de estranha familiaridade, em sua relação com o sublime, o que inclui a força de desligamento e da morte.

 

Referências

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Recebido em 19/3/2020
Aceito em 5/8/2020

 

 

1 Essa associação foi feita por Gastão Frota, comentador do trabalho artístico de Pedro Moraleida e empreendedor do projeto que acolheu sua exposição póstuma.
2 Essas ideias foram expostas por João Frayze-Pereira no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), em maio de 2003, e estão presentes em seu livro Arte, dor (2005).
3 Parece-nos mais preciso metapsicologicamente, nesse contexto, o uso da palavra melancolia do que luto, pois estamos sustentando que o brincar e a sublimação são um trabalho constitutivo de luto da falta da satisfação imediata e direta, da perda do objeto, da identidade e da completude. São processos psíquicos de transformação da falta em ausência simbolizante ou, de outro modo, de reconhecimento do negativo, de sua não negação.
4 Termo usado com frequência por Paulo Miyada, curador da exposição realizada em São Paulo, em 2018, no Instituto Tomie Ohtake.

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