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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.3 São Paulo jul./set. 2021

 

RESENHA

 

Oficina dos Sentimentos: clínica extensa e psicanálise no Ateliê Acaia

 

 

Silvia Maia Bracco

Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Coordenadora de saúde do Ateliescola Acaia. smbracco@hotmail.com

 

 

 

Autora: Ana Cristina Cintra
Editora: Appris, 2021, 167 p.
Resenhado por: Silvia Maia Bracco

 

O livro Oficina dos Sentimentos é o resultado da pesquisa de doutorado1 que Ana Cristina Cintra realizou no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, sob orientação de Ana Maria Loffredo. Mais do que isso, porém, este livro é o testemunho valioso de um trabalho a que a autora se dedica há mais de 30 anos, desde que se encontrou com a psicanálise e a potência desse método no cuidado com o outro.

Para além do título, a ilustração que vemos na capa, uma xilogravura feita por um dos meninos que frequentaram o Acaia - um rosto no meio da metrópole e os dizeres "(se) procura-se" -, já nos dá pistas do que iremos encontrar no percurso que a autora nos convida a fazer: de que maneira cresce e se multiplica um trabalho que nasce na impotência e no fracasso do ambiente, conduzindo para outros caminhos, de potência e transformação. Não por acaso, o termo acaia quer dizer "útero" em tupi-guarani, lugar de nidação, crescimento e impulsão para o mundo.

As reflexões propostas no livro partem especificamente da experiência desenvolvida no Ateliê Acaia, ong que oferece acolhimento e possibilidade de desenvolvimento a crianças, adolescentes e famílias que vivem em situação de grande vulnerabilidade social na zona oeste da cidade de São Paulo, "população que, para além da pobreza, está imersa em um caldo de violência, invisibilidade e abandono por parte do poder público" (p. 25).

A pergunta que orienta Ana Cristina é: "Como a escuta psicanalítica pode alojar-se em um trabalho institucional?" (p. 22). Ancorada nas ideias de Freud e Winnicott e no conceito de clínica extensa cunhado por Fabio Herrmann, a autora apresenta suas reflexões e desafios para, nas palavras de Herrmann, levar a psicanálise onde ela se faz necessária. Outros autores importantes a acompanham nesse diálogo/percurso, como Ana Maria Loffredo, José Moura Gonçalves Filho, Luís Claudio Figueiredo e Maria Lúcia Castilho Romera, além de autores oriundos de outros campos do conhecimento, como Ecléa Bosi, Simone Weil e Andrei Tarkovski.

No prefácio do livro, Luís Claudio Figueiredo afirma que, no Ateliê Acaia, testemunhamos a vocação civilizatória e ética da psicanálise. Lá, portanto, ela não se reduz a um método, mas inclui "uma sensibilidade e valores referentes à vida dos indivíduos e das coletividades" (p. 12). Integrada a uma equipe e a um projeto transprofissional, a psicanálise compõe o que Figueiredo chama de dispositivo Acaia.

Por meio de muitas histórias que emocionam, revoltam e abrem novos caminhos, num diálogo sempre vivo entre experiência, teoria e técnica, Ana Cristina revela como o instrumental psicanalítico é útil em trabalhos fora do setting tradicional. E vai além, mostrando-nos como a própria psicanálise se transforma nesse tipo de experiência: "É preciso entender o que se passa quando ela [a psicanálise] é levada a espaços coletivos ou situações que demandam reflexão enquanto acontecem; e, também, como ela vai se refazendo a partir dessas vivências" (p. 55).

Desde o início, o Acaia se sustentou em dois pilares fundamentais e fundidos: espaços de escuta e de fazeres. A Oficina dos Sentimentos, que dá nome ao livro, é um dos vários ateliês livres que funcionam na instituição e oferecem escuta, acolhimento e cuidado. Valoriza-se muito a troca de experiências entre os profissionais que trabalham nos diversos espaços do Acaia. A ideia é que todos estejam preparados para uma escuta atenta, que acolham situações que necessitem de contorno e, assim, favoreçam processos de transformação subjetiva.

Ao mesmo tempo, acompanhamos no alicerce de trabalhos como este a necessidade de nos colocarmos como aprendizes. A equipe tem que estar aberta a compreender as lógicas e os códigos de um ambiente regulado por leis próprias, ambiente que na maioria das vezes expõe os sujeitos a experiências banhadas por excessos de toda ordem, como vivências de humilhação, racismo, abusos e desamparo - ingredientes indigestos, que produzem falhas no tecido representacional. Vemos que, quando a segurança comunitária falta, quando o ambiente traumatiza e retraumatiza, essas falhas se revelam em ato.

Na primeira parte do livro, com uma escrita sensível e criativa, Ana Cristina apresenta uma espécie de peça imaginária, que fala da violência e dos seus efeitos nos sujeitos e na equipe da instituição. Entre atos e contra-atos, busca luz e sentido nos afetos gerados pelo impacto das histórias: "No convívio com a população que o Acaia atende, fica claro que há uma necessidade ética a ser atendida. Se desejamos entender a humilhação social, temos que estar dispostos a viver transferências, transmissões de angústias demolidoras e curadoras" (p. 37).

A autora abre uma importante discussão sobre as diversas formas de compreensão da violência e da desordem que transbordam desse outro, marcado de maneira traumática pelo ambiente em que está imerso. Violência e desordem não são banalizadas ou simplesmente reprimidas. Pelo contrário: no Acaia, buscam-se estratégias e ferramentas para encontrar outros destinos, por meio de uma rede de sustentação em que a palavra e as demais modalidades de expressão vão abrindo clareiras de humanização.

Em histórias como a de Pedro, um menino que não cabia dentro de si, acompanhamos o processo de transformação da angústia: o que antes transbordava cotidianamente vai encontrando caminhos de continência e significação.

É difícil interpretar muitas das questões com as quais nos deparamos, porque a angústia é o mais indeterminado dos afetos. Ela é desencadeada pela exposição a enigmas: experiências não simbolizadas, pouco elaboradas, que não completam o caminho da significação. A angústia que nos invade - de morte, desintegração, colapso - é fulminante. Carrega memória traumática e, muitas vezes, gera somatização, mal-estar físico e moral. É um fenômeno intersubjetivo: a criança angustiada pede ajuda de um modo estranho. Quer atenção e hospitalidade, ser percebida como pessoa, em sua singularidade. Pede rosto, escuta e voz. (p. 69)

Nessa direção, o brincar, a atenção, o olhar e a escuta ganham espaço privilegiado nas reflexões de Ana Cristina, e Winnicott é um nome importante nesse percurso. Contudo, a autora avança ao incluir as ideias de Green sobre o brincar como algo não exclusivamente ligado à saúde, mas também como uma atividade pervertida, um jogo sujo, num desejo de dominação, um tipo de brincar impregnado de destrutividade.

Para Green, a especificidade do brincar é que ele é capaz de transmutar uma realidade insuportável, interna ou externa, ou parte dela, transformando-a em outra coisa. Como Winnicott, ele localiza o brincar no limite entre as realidades interna e externa, mas acha que [Winnicott] deixou de abordar a ligação entre realidade e horror. (p. 44)

Marcelo Viñar diz que "não há humanidade sem esta faculdade de compartilhar experiência mediante a linguagem. O horror gera espanto e não experiência comunicável" (2005, p. 72). E é exatamente como antídoto ao horror e ao espanto que Ana Cristina busca entender a violência e seus efeitos devastadores, colocando-nos diante de um desafio fundamental nesse tipo de intervenção: as tarefas de tradução e interlocução.

Apesar de dizer que não pretende realizar uma discussão de cunho metapsicológico, acaba por fazê-lo e, de forma muito profunda, nos ajuda a construir sentidos possíveis em meio a situações que por vezes beiram o caos e ver o método psicanalítico em operação fora do enquadre padrão. Temas como trauma, sublimação, transferência, angústia e outros pilares da psicanálise aparecem nas suas palavras como instrumentos conceituais a serviço da discussão dos recortes de experiências e acontecimentos descritos.

No quarto capítulo, acompanhamos os caminhos percorridos por R, Mineira e Mariana, histórias que nos permitem refletir sobre como o sujeito se inscreve no mundo, ou não.

R, cuja guarda não foi definida, que nunca chegou a ser de ninguém. ... Mineira, à espera de sabe-se lá o quê. Mariana, que trilhou o caminho da persistência e está prestes a se fazer ouvir. R e Mineira denunciam o excesso de faltas. Mariana, por razões intrínsecas, e com a ajuda de muitos olhares e cuidados, caminha. (p. 101)

A autora nos alerta que "excesso se cura com excesso. Excesso de descaso se cura com cuidado em excesso" (p. 149).

Na última parte do livro, encontramos um rico registro sobre a história e as transformações de uma instituição que vive em movimento permanente. Na sua visão, "o processo de construção do Ateliê Acaia assemelha-se ao processo de produção de conhecimento em psicanálise, no que toca à convergência entre método de investigação, tratamento e construção teórica" (p. 150).

A educação esteve presente no horizonte do Acaia desde o início, e em 2017 começou a funcionar o ateliescola acaia, uma escola experimental que reúne o conhecimento das práticas investigativas dos ateliês com as exigências do ensino formal, onde saberes e fazeres não se separam. Acompanhamos como o fazer, a arte e os processos de simbolização produzem efeitos radicais na subjetividade e constroem alternativas de ocupar um lugar no mundo. "Um lugar de estar", como o define Elisa Bracher, artista plástica, fundadora e diretora do Acaia. No encontro da arte com a psicanálise, nasceu um projeto que, em sua essência, busca diminuir o abismo social em que vivemos.

Para além do que já foi dito, o livro é lindamente ilustrado com fotos e trabalhos de alunos do Acaia, e sua pesquisa é uma contribuição fundamental para nossa formação como analistas e como cidadãos. Deixemos registrado aqui o desejo da autora de que experiências como a do Ateliê Acaia se tornem referência e modelo de política pública no atendimento de tantas populações que vivem excluídas nas grandes metrópoles.

 

Referências

Viñar, M. (2005). Especificidade da tortura como trauma: o deserto humano quando as palavras se extinguem. Revista Brasileira de Psicanálise, 39(1),59-74.         [ Links ]

 

 

1 Ateliê Acaia e clínica extensa: uma perspectiva psicanalítica na construção de um projeto institucional (2015).

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