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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021

 

ENTREVISTA

 

Entrevista1

 

 

Ignácio Paim Filho

Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA).

 

 

RBP: Ignácio, fale-nos sobre sua trajetória profissional e sua inserção na Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre.

IPF: Estudei medicina na Universidade Federal de Pelotas e depois psiquiatria na Clínica Pinel, de Porto Alegre, onde na época havia residência - fui da última turma. Posteriormente descobri a psicanálise, por meio das minhas análises e do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEPdePA), instituição não vinculada à Associação Psicanalítica Internacional (IPA) e que forma psicanalistas. Foi quando descobri o pensamento freudiano e comecei a me dedicar ao trabalho teórico e à escrita, bem como à clínica.

Temos duas Sociedades em Porto Alegre: a Psicanalítica (SPPA) e a Brasileira de Psicanálise (SBPdePA). A SPPA é bem mais antiga, data dos anos 1960. A Sociedade à qual pertenço, SBPdePA, começou a ser gestada em 1992-1993. Iniciei a formação em 1996, na segunda turma. Meu objeto de estudo básico sempre foi o pensamento freudiano. A questão do racismo apareceu mais tardiamente.

RBP: Conte-nos um pouco sobre a história dessas duas Sociedades.

IPF: Inicialmente existia a SPPA. No final dos anos 1970, início dos anos 1980, vários colegas que haviam feito formação na Argentina - na Associação Psicanalítica Argentina (APA) e na Associação Psicanalítica de Buenos Aires (APdeBA) - passaram a retornar ao Brasil. Eles tinham a opção de se vincularem ou não à SPPA. Por questões da época, resolveram não se vincular à Sociedade que tínhamos aqui. Seguiram vinculados à Argentina e fundaram, em 1984, o CEPdePA, no qual se deu a minha primeira formação. Em 1992, esse grupo de psicanalistas sentiu o desejo de formar uma instituição vinculada à IPA. A esses colegas juntaram-se outros, de Porto Alegre, que haviam feito sua formação na SPPA e estavam pensando em uma nova Sociedade, em um novo modelo. Surge, então, a partir de 1992, a SBPdePA, união desses "estrangeiros" que retornavam da Argentina e de brasileiros que fizeram formação aqui.

RBP: Você trabalha com a formação de candidatos. Como vê a formação na instituição hoje?

IPF: Nos dias de hoje, falando especificamente da minha Sociedade, já avançamos bastante. Temos uma formação mais ampla, que transita por vários autores, além dos clássicos. Foi uma mudança significativa, pois sou de uma época em que trabalhávamos com a ideia de turmas de formação, em um modelo preestabelecido. Há aproximadamente 10 anos, mudamos esse processo. Hoje temos um modelo semelhante ao da universidade, com maior liberdade curricular. Os membros do Instituto (candidatos) escolhem que seminários querem fazer e com quem. No início de cada semestre, os colegas que estão habilitados a dar seminários oferecem uma temática. A partir dessa oferta, uma grade se forma, e os membros do Instituto fazem sua escolha. Na mesma turma vamos ter colegas de diferentes tempos de formação teórica, alguns que estão começando e outros que estão terminando. Essa mescla permite a interação de gerações diferentes em tempos diferentes, o que acho interessante e rico. Sou de uma época em que a gente estudava Freud de modo cronológico. Fiz as minhas duas formações nesse modelo: do "Projeto" até o Esboço de psicanálise. Esse era o percurso, tanto na técnica quanto nos textos metapsicológicos. Hoje trabalhamos com Freud de forma temática. Não existe cronologia preestabelecida. Posso oferecer um seminário sobre A interpretação dos sonhos (1900), e outro colega oferecer um seminário sobre o Esboço de psicanálise (1940). Esses seminários vão circular, e os membros do Instituto fazem seu próprio esquema de formação, sua própria linha do tempo, com suas múltiplas maneiras de interação, já que partimos do pressuposto de que não é possível estudar Freud sem uma linha do tempo. Essa metodologia pode ser complicada, mas penso ser mais produtiva. É um modelo que permite maior personalização. Sempre que nos referimos a Freud, dizemos: "Em 1920 Freud disse isso, mas em 1930 ele modificou essa ideia". Antes tínhamos uma linha do tempo dada por um programa previamente estruturado pelo Instituto. Hoje essa linha do tempo existe, mas cada um vai formando a sua. Estamos há mais de 10 anos utilizando esse formato com bons resultados. Acho que passamos por momentos mais formalizados, mas atualmente estamos muito mais flexíveis no processo de formação dos membros do Instituto, introduzindo conhecimentos filosóficos e antropológicos ao lado dos seminários regulares.

Cada Sociedade tem um modelo. Na nossa, o exercício e a chegada à função didática ocorrem com relativa amplitude. A maioria dos colegas que cumprem as exigências chega à função didática. Isso nos facilita ter uma gama mais ampla de analistas didatas, com opções e possibilidades bastante significativas para uma Sociedade relativamente jovem, se comparada com as de São Paulo ou do Rio, ou mesmo com a SPPA.

RBP: Quando você diz que a grade de formação está mais aberta, mais flexível, o que isso significa?

IPF: A nossa Sociedade tem uma forte herança freudiana. Metade dos seminários teóricos são sobre Freud, nas suas mais variadas facetas: técnica, psicológica e social. Atualmente, se não me engano, são no mínimo 32 seminários obrigatórios. Como disse, metade deles são sobre Freud. A outra metade está dividida entre autores como Winnicott, Bion e Lacan. Além de autores clássicos e contemporâneos, introduzimos outros, que conversam com diversos segmentos da cultura. São cursos que valem como créditos nas áreas de filosofia e antropologia. Temos preocupação com essas interações. No último ano, fizemos um trabalho intenso de inserção da cultura afro-brasileira. Estamos em outro momento, que tem a ver com todo esse movimento e com o meu livro que apresenta a ideia de uma psicanálise implicada. Estamos trabalhando arduamente em seminários de formação para os membros do Instituto, bem como para os membros associados e efetivos, focalizando a questão do racismo, problemática que não pode e não deve seguir sendo negligenciada pela psicanálise e pelos psicanalistas.

RBP: Fale-nos um pouco mais sobre a constituição da função didática, que você diz ser mais aberta.

IPF: A respeito da função didática, temos algumas particularidades. Todo colega que é membro associado está habilitado a se candidatar para dar seminários. Já a função didática está restrita à supervisão, à análise dos membros do Instituto em formação e aos seminários clínicos. Todo titular não didata que tiver um analisando que venha a fazer formação pode ter uma concessão para exercer a função didática, sem estar no uso pleno dela, para que não haja interrupção das análises.

A proposta da minha Sociedade sempre foi que esse processo de vir a ser, de chegar ao topo da pirâmide, fosse o mais democrático possível. Devemos ter o mínimo de exigências institucionais. Só as necessárias para que as pessoas exerçam a plenitude do que a Sociedade oferece. Desde o início a proposta era de que fosse algo o mais livre possível, arcando com o ônus e o bônus de estarmos em uma instituição. Trabalhamos em prol de uma psicanálise que tenha como horizonte o estímulo ao livre pensar e tudo o que implica essa proposição. Defendemos a ideia de ter o mínimo de trabalhos e de que estes sejam representativos da trajetória institucional dos membros. Os trabalhos podem estimular a criação ou, quando em excesso, matar a criatividade dos membros do Instituto ou dos membros associados. Devo muito da minha escrita à psicanálise. Passei a escrever a partir do momento em que as instituições me exigiram, mas penso que devemos exigir na dose ideal. Advogo a importância de que os Institutos desenvolvam processos de estímulo à escrita, como forma de solidificar o conhecimento. Penso que é uma complicação quando os trabalhos são feitos sob demanda, para cumprir requisitos. Freud dizia que não gostava de escrever sob demanda; gostava de escrever pelo desejo. Óbvio que a vida não é assim. A gente não escreve só por desejo. A gente escreve sobre as coisas que estão acontecendo. Atualmente, tenho escrito muito sobre racismo. Tenho tido a demanda de vários colegas, e isso é importante. Acho que na formação de um analista a escrita também é fundamental. É uma espécie de quarto eixo. Mas reafirmo: as instituições precisam ter cuidado para que as demandas de trabalhos não se tornem somente tarefas burocráticas. Toda escrita dá trabalho. Toda escrita dá angústia. Mas também toda escrita é uma potencialidade inesgotável de prazer.

RBP: Ignácio, você tem uma produção teórica bem importante. Acompanhamos seus escritos e palestras que versam sobre diferentes temas, com foco na metapsicologia e na metodologia freudianas.

IPF: Tenho uma história longa e interessante com a escrita. Não sou alguém que escreve desde sempre. Eu sou um psicanalista que escreve, não um escritor. Comecei a escrever a partir da minha formação psicanalítica. Na medicina e na psiquiatria, fiz os trabalhos estritamente necessários. Naquela época, não cobravam tanto que se fizessem trabalhos teóricos. A meta era privilegiar o apreender trabalhando. A minha escrita tem um percurso por vários segmentos do pensamento freudiano: a metapsicologia, o método e os textos sociais. Circulo relativamente bem por esses temas. Gosto de me aventurar num diálogo interrogativo pelas suas narrativas. Comecei a publicar desde muito cedo também na rbp. Um dos primeiros trabalhos que publiquei na revista foi nos anos 2000. Fui transitando por todo esse universo, até que a partir de 2017-2018 se deu a virada. "Tornar-se um psicanalista em busca da sua negritude" começa a ficar mais efetivo e ganha outras conotações. A psicanálise me deu muitas coisas importantes: a minha análise, a minha formação como analista, a profissão, o trabalho, o viver e, agora, o reencontro com a minha história individual e coletiva como homem negro.

Sou de uma família negra, com uma longa história, transitando entre o saber e o não saber o que significa ser negro numa cultura racista. Não é de um saber objetivo, enquanto fenótipo, que falo. É de um saber subjetivo: o que implica ser negro. Claro que esse meu universo foi um tanto quanto facilitador para que uma certa desmentida se fizesse. Sou oriundo de uma grande família de classe média baixa. Sou o 10.º filho. Meus irmãos mais velhos, evidentemente, passaram por situações que eu não passei. Sou o filho mais novo e fui criado para estudar. Eu tive essa prerrogativa. Sou o único da minha família que estudou, do jardim à residência médica, sem nunca ter trabalhado para viver. Eu só estudei. Fiz cursinho e levei dois anos para passar no vestibular de medicina. Quantos negros poderiam passar dois anos só estudando? Tive esse benefício porque meus irmãos se cotizaram para viabilizar esse projeto. O racismo no Rio Grande do Sul tem características muito próprias. Somos uma minoria de negros, em torno de 16% da população. Somos mais solitários. Essa condição faz o racismo na capital gaúcha ser um dos mais intensos do país.

Ser "negro único'' não faz sentido a princípio, mas sim a posteriori. Li o livro da Neusa Santos Souza Tornar-se negro: ou as vicissitudes da identidade do negro em ascensão social (1983) em dois momentos da minha história. Quando eu estava na universidade, por coisas que não sei, me passou batido. Eu me reencontrei com esse livro somente em 2018. Sempre brinco dizendo que a Neusa o escreveu para mim. É meu livro de cabeceira, porque o que ela diz é brilhante, com acento especial nas particularidades decorrentes da ascensão social, que se faz normalmente exilado dos seus.

RBP: Agora fale-nos sobre o tema do seu livro, a questão do racismo, do "tornar-se negro", e não simplesmente "nascer negro". Você considera esse um ponto de virada na sua visão da psicanálise ou uma continuidade?

IPF: Pergunta fundamental. Acredito que é um ponto de virada, entre continuidade e uma boa dose de descontinuidade. O meu encontro com a questão do "tornar-se negro'' passa não só pela minha análise, onde alguns pontos foram abordados e retomados, mas também por um presente que a psicanálise me deu, quando fui eleito diretor científico da Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi). Foi um grande acontecimento na minha vida, pelo qual não esperava. Não sou afeito a atividades políticas e institucionais. Para mim, cargos políticos, embora necessários, sempre foram muito desagradáveis. Quando a Anette Blaya me convidou para ser diretor científico, senti uma grande inquietação. Pensei que não tinha perfil nem habilidade, mas ela me convenceu por um detalhe importante: ser diretor científico da Febrapsi, diferentemente de ser diretor científico da maioria das Sociedades, implica participar de eventos, falar e produzir cientificamente. Isso me seduziu. O diretor científico da Febrapsi, além das funções administrativas, tem a função de divulgar e trabalhar o tema do congresso, em parceria com as Sociedades, organizando encontros científicos. Evidentemente eu produzi muito. Meu livro Inconfidências metapsicológicas é em parte produto dos meus trabalhos sobre o tema do Congresso Brasileiro de Psicanálise de 2019, O estranho: inconfidências.

Voltando à sua pergunta. Em 2018, aconteceu em Cabo Verde o iv Congresso de Psicanálise em Língua Portuguesa, organizado por Portugal e pelo Brasil - pela Sociedade Portuguesa de Psicanálise (SPP) e pela Febrapsi, que são os dois gestores desse congresso, independentemente de onde ele aconteça. Como diretor científico, eu tinha o compromisso de produzir alguma coisa e ir a Cabo Verde. Essa viagem não foi voluntária. Eu não disse: "Eu quero ir à África. Estou com vontade". Até então, não tinha nenhum projeto nesse sentido. Mas ir a Cabo Verde foi um divisor de águas na minha história, como indivíduo e como psicanalista. Encontrar Cabo Verde foi me reencontrar com vivências ligadas à minha história primitiva, que estava soterrada sob o jugo do recalque e, em parte, pela desmentida. Em Cabo Verde, tive vivências muito intensas, muito significativas, e a partir delas a tese do "tornar-se negro" passou a ser uma questão em busca de possíveis respostas. Aqui se dá minha entrada na temporalidade/trauma do nachträglich.

Antes da minha ida a Cabo Verde, houve um marco importante. Quando assumi a diretoria científica da Febrapsi, conheci a Wania Cidade, psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). Essa pensadora negra tem um longo percurso. É uma das pioneiras na abordagem das questões do racismo dentro das sociedades psicanalíticas do Brasil. Devemos a ela todo o trabalho nesse sentido. Ela me ajudou muito com suas indagações sobre o racismo, plantando interrogantes inéditos, para um negro totalmente assimilado à cultura brancocêntrica. Com a minha ida a Cabo Verde, a questão do "tornar-se negro'' começou a ganhar sentido, assim como a minha omissão histórica sobre esse assunto. A partir dessa omissão, começo a me implicar e a pergunta número um emerge: o ponto principal de todas as minhas conversas nas instituições psicanalíticas é a questão do "negro único" e/ou a ausência da população negra dentro das nossas instituições.

Foi a partir desse acordar, desse descobrir-me, que passei a utilizar as ferramentas que tenho, entre elas a escrita. Falo relativamente bem. Então, se tenho que falar, vamos lá. Estou utilizando essa ferramenta para fazer a psicanálise brasileira trabalhar o não trabalhado por ela durante seus 85 anos de história. Quando digo psicanálise brasileira, estou me restringindo às nossas Sociedades, porque existe todo um trabalho de psicanalistas na universidade e em instituições não filiadas à IPA que leva esse tema em conta há muitos anos.

RBP: Ignácio, o seu livro Racismo: por uma psicanálise implicada tem um capítulo chamado "Negros e negras: desafios para tomar posse do território psicanalítico". Nesse capítulo você afirma a urgência das ações reparatórias. Quais seriam essas ações reparatórias?

IPF: Elas já começaram. O movimento negro diz: o povo negro não tem como esperar mais. Não dá para ter calma. Nós vivemos 400 anos de escravidão, e seguimos vivendo sem reparação nesses 130 anos pós-escravidão. Temos um território que há 500 anos está sob o domínio irrestrito da branquitude. As ações reparatórias, ou ações afirmativas, acontecem atualmente nas duas Sociedades onde estão os dois "negros únicos" que resolveram comprar essa luta com mais intensidade: a SBPRJ e a SBPdePA. Nós já estamos na fase de operacionalizar as ações afirmativas. A SBPdePA começou a se ocupar disso a partir de um evento no ano passado, que foi o primeiro que fizemos sobre racismo - deve ter sido em julho de 2020. Nesse evento, lancei a ideia de viabilizar a formação da população negra, que é pobre por excelência e não tem acesso à formação analítica, a qual exige muito investimento. A mais acessível economicamente é cara - pensando em análise e supervisão - para a média da população. Imagina para a população negra! Lançamos a ideia de ações afirmativas para efetivamente viabilizar o acesso dessa população. A nossa presidente, Ane Marlise Rodrigues, assumiu a ideia integralmente, propiciando as condições para a criação da Comissão Ubuntu, com a finalidade de estruturar um projeto nesse sentido. A comissão é composta por Eliane Nogueira (coordenadora), Astrid Ribeiro, Beatriz Behs, Cesar Antunes, Lisiane Cervo, Vera Hartmann e por mim, todos extremamente dispostos a enfrentar o racismo institucional. Em novembro, nós tínhamos um anteprojeto pronto, que visava ações educativas, políticas e econômicas.

As questões educacionais constituem o que chamamos de letramento racial. Todos temos que conhecer o que implica a história, o preconceito e o racismo estrutural que permeia a todo momento a nossa vida, as nossas instituições. A psicanálise é racista por excelência, porque o mundo é racista. A psicanálise carrega isso. Inclusive, eu digo no livro que a psicanálise tem uma dívida com o povo negro, pois sempre tratou o racismo como questão individual, como questão historicamente psicopatológica, como se o racismo fosse um problema de inferioridade do negro em relação ao branco. O negro inveja o branco. O negro se sente inferior ao branco, sendo colocado no lugar do sujeito de segunda linha, de baixo poder intelectual, violento, estuprador etc. A psicanálise tem essa dívida porque forneceu substrato teórico para os movimentos racistas, amplamente falando, e podemos discutir isso por várias eras. Diante dessas constatações, podemos referendar a importância do letramento racial como um dos instrumentos, além da análise, para que cada um venha a tomar consciência do racismo que o habita.

Não tem como não ser racista. Eu sempre digo: o que vou fazer com o meu racismo? Ou seja, não falo só do racismo dos brancos, mas do que habita a mim, Ignácio, enquanto negro. Por que é racismo? Porque eu também fui criado com o ideal do "eu branco". Como é que vou me descolonizar disso? Como é que vou sair disso sendo negro? Como é que vocês, enquanto brancos, vão escutar os eventuais analisandos negros desde essa outra perspectiva? Essa é uma perspectiva diferente da perspectiva histórica que até então os analistas, salvo exceções, costumavam escutar. Quando falamos de racismo estrutural, estamos falando de algo que nos constitui no meio cultural, social e psíquico. O letramento racial consiste em trabalhar a temática do racismo de forma consistente e contínua, e deverá ser incluído no programa dos institutos de psicanálise partindo-se do pressuposto de que a solução que está sendo plantada hoje será efetivada por meio do trabalho que fizermos com os membros dos Institutos. A esses psicanalistas em formação, temos mais condições de dar subsídios para que desestruturem o racismo estrutural. Posso perguntar quantas vezes, nas suas análises, vocês se questionaram sobre as questões racistas? Provavelmente, raríssimas vezes. O racismo cotidiano, o racismo da rua que eu atravesso porque vi um sujeito negro e achei que ele fosse violento. Porque no imaginário popular isso está posto. Há pesquisas muito interessantes. Crianças negras e crianças brancas na sinaleira. Uma criança negra na sinaleira, pedindo esmola, é algo visto como natural. Uma criança branca na mesma situação causa certo desconforto, porque não é esperado que ela esteja naquele lugar.

O letramento racial é fundamental para que as Sociedades venham a desenvolver um olhar e uma escuta antirracista. Temos cursos regulares e grupos de estudos abertos aos membros para tratar das questões coloniais e das questões racistas implicadas em toda essa problemática gerada pela branquitude. Essa é a parte de letramento, a parte educacional. A parte política é quando a Sociedade decide fazer ações afirmativas. Nós aprovamos a acessibilidade de negros, com um programa teórico para todos nós, e aprovamos a bolsa-formação. O que é a bolsa-formação? Quando o fundo foi aprovado, passamos a buscar investimentos na iniciativa privada e a trabalhar com membros dispostos a colaborar financeiramente. Conjuntamente, estamos organizando um grupo com analistas didatas que estejam disponíveis para atender por valores menores a supervisão e a análise dessa população. As ações reparatórias já estão acontecendo em vários segmentos. Temos o projeto de começar com no mínimo duas bolsas no ano que vem, se tudo ocorrer como vem ocorrendo. Nós optamos por negros, negras e indígenas. O curso de psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul também está sendo procurado por indígenas. Então, abrimos igualmente essa possibilidade.

RBP: Você falou do substrato teórico que a psicanálise deu para a questão do racismo. Poderia ampliar essa ideia?

IPF: Onde é que a gente pode encontrar isso? O que os psicanalistas fizeram com a psicanálise? Vamos ampliar um pouco mais. O que os psicanalistas fizeram com a psicanálise freudiana, que é sempre meu referencial maior? Quando os psicanalistas fizeram uma cisão entre psicologia individual e social, começou um problema histórico extremamente sério. Isso foi uma transgressão do pensamento freudiano. Em 1913, o texto Totem e tabu vai legitimar a teoria freudiana do complexo de Édipo. Quem quiser entender o complexo de Édipo tem que ler Totem e tabu. Os outros textos ampliam o seu pensar. Pode-se ler o caso Dora para pensar a clínica, o caso do Homem dos Lobos também, mas o substrato teórico é Totem e tabu. Sem Totem e tabu na sua inter-relação com o texto sobre o narcisismo (1914) não conseguimos entender a complexidade do complexo de Édipo, estruturando o sujeito e a cultura. Os psicanalistas fazem essa cisão entre o individual e o coletivo. Quando a cultura fica de fora, deixamos de lado toda a problemática de como e onde estamos inseridos. A Psicologia das massas, nos seus 100 anos, nos faz um convite para reintegrar isso. É um grande convite. Quando tu me perguntas da pandemia, a pandemia é um convite para pensar essa reintegração.

RBP: Queríamos justamente perguntar se você faz uma relação entre a pandemia que estamos atravessando e as ideias de Freud contidas no trabalho Psicologia das massas.

IPF: Eu acho que é um momento extremamente oportuno, com toda a dramaticidade, com toda a tragédia que é essa pandemia. Essa pergunta é fundamental. Temos tido muitos eventos em função dos 100 anos do trabalho de Freud sobre a psicologia das massas. No capítulo 10, Freud retoma a horda primeva. É um momento fantástico. Fantástico por quê? Porque ele vai conversar com Totem e tabu, mas com uma diferença: vai fazer uma análise vertical do pai da horda, vai aprofundar sua visão metapsicológica sobre esse mito fundador. No texto de 1913, o pai da horda não é o protagonista; é um pouco coadjuvante da história. Freud está mais preocupado com os filhos - o drama da culpa - que matam o pai, o devoram e iniciam a cultura. Estou sendo bastante reducionista. Se vocês não leram, têm que ler, porque é fantástico. O pai da horda são os líderes fascistas da contemporaneidade. O pai da horda reeditado. Freud diz assim: o pai da horda não morre; ele está dentro de cada um de nós. O lado fascista que eu tenho, que tu tens, o lado fascista ressurge como pai da horda. Ele diz: o pai da horda não ama ninguém, a não ser a si mesmo. O pai da horda vai usar o outro de acordo com os seus interesses. Quando ele não quiser mais, vai descartar.

RBP: Freud fala também do pensamento animista, que se opõe ao científico.

IPF: Exatamente. Freud nos dá subsídios para pensar toda a questão do negacionismo. Ele nos mostra o tempo todo a questão do pensamento animista e os recursos para negativar a percepção da realidade. O que é o negacionismo maciço senão uma espécie de Verwerfung, de rejeição? Tu expulsas do psiquismo a realidade incompatível. Eu não quero saber da letalidade do vírus e faço isso. Freud fala em vários momentos sobre esse ponto. Os subsídios freudianos que temos para pensar a questão da pandemia não estão somente na Psicologia das massas; estão também em outro texto, que é muito importante por falar do desamparo humano, O futuro de uma ilusão (1927). Penso que Freud poderia ter escrito isso hoje.

O que tu falavas com relação ao pensamento animista e religioso, nós estamos vivenciando isso neste momento da pandemia, momento em que o pensamento científico está escasso entre nossas lideranças.

Voltando à pergunta de vocês, quando a gente faz essa dissociação, o faz em relação a várias coisas, mas em relação ao racismo isso se torna muito mais emblemático, pois é um fenômeno coletivo e universal. Em nosso meio, por exemplo, temos pouquíssima produção científica sobre racismo. Até 2018, eu nunca tinha escrito nada sobre isso. O meu primeiro trabalho foi um ensaio escrito para o Observatório Psicanalítico da Febrapsi - "Rotas da escravidão: um estranho retorno".

Se não produzimos, não pensamos. E fica a pergunta: como é que a gente não pensa em um país racista como o nosso? A gente anda, e o racismo segue ali, no centro. É o indizível, o não pensado, um trauma que segue sendo reeditado. Se um analisando negro chega ao meu consultório, e eu não estou implicado nesse contexto como um todo, evidentemente vou ter uma escuta muito parcial e, por vezes, tendenciosa. Numa escuta fragmentada não há percepção da amplitude do que é o sofrimento de alguém chegar ao shopping e ter a bolsa revistada, reiteradamente. A Anette e eu somos de Porto Alegre. Viajamos juntos algumas vezes em função das atividades da Febrapsi. Tu tens ideia de quantas vezes revistaram a minha mochila e quantas vezes revistaram a da Anette no aeroporto? A minha, provavelmente, 10 vezes mais. Podes dizer: "Mas foi acaso". Conseguimos ainda acreditar nessa hipótese? Não se trata de pensar: "Este aqui é negro. Eu vou fazer isso. Vou sacanear". É um ato reflexo. Se eu passo por um negro na rua, recolho um pouco a minha bolsa. Esse é o racismo estrutural do qual a gente está falando. Não é uma questão moral, de que o sujeito seja mau por si só. Ele pode até ser mau, mas não é esse o ponto. Esses dias eu estava conversando com defensores públicos, e até então eles nunca tinham se preocupado com o fato de haver apenas dois ou três negros em cargos de relevância. Racismo? Há questões econômicas, questões políticas e questões objetivas. A economia e o capitalismo são gestados nesse modelo, no qual alguém vai ter que ficar à margem. Classicamente, esse alguém é o povo negro, não só no Brasil, mas no Brasil em especial.

RBP: Estamos nos aproximando do final de nosso encontro. Vamos encerrar agradecendo muito sua generosa entrevista.

IPF: Eu que agradeço muito.

 

 

1 Entrevista realizada em 15 de maio de 2021, por Maria Tereza Mantovanini e Regina Lacorte Gianesi, membros associados da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).

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