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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021

 

TEMÁTICOS

 

O supervisor suposto saber: perspectivas lacanianas sobre a análise de controle

 

The supervisor supposed to know: Lacanian perspectives on control analysis

 

El supervisor supuesto saber: perspectivas lacanianas sobre el análisis de control

 

Le superviseur supposé savoir: perspectives lacaniennes concernant l'analyse de contrôle

 

 

Raul MoncayoI; Tradução de Mariana Ali Mies

IPh.D. Analista supervisor e membro fundador da primeira Escola Lacaniana de Psicanálise nos Estados Unidos, fundada há 26 anos. Foi também diretor de formação de uma grande clínica psiquiátrica em São Francisco, Califórnia, por muitos anos, professor adjunto em várias universidades locais e professor convidado por universidades norte-americanas, europeias, asiáticas e sul-americanas. É autor de sete livros, o mais recente intitulado The practice of Lacanian psychoanalysis (Routledge, 2020). El Cerrito, CA / drraulmoncayo@gmail.com

 

 


RESUMO

De forma a preservar o ímpeto evolutivo e o alcance da psicanálise, a tarefa da análise de controle é prevenir o estabelecimento da inércia que busca o menor denominador comum e a degeneração de ideias e práticas em evolução na direção de banalizações e preconceitos. A uma instituição psicanalítica é necessário manter padrões mínimos e simultaneamente preservar-se como ambiente vibrante e dinâmico para o contínuo desenvolvimento e regeneração da psicanálise enquanto estrutura viva e simbólica. Através de uma análise de controle, cada analista adquire um estilo analítico único, que não se refere a preferências e idiossincrasias egoicas, mas a uma singular e nova articulação subjetiva dos elementos preexistentes na estrutura tradicional. Sem a realização de uma análise pessoal, a análise da contratransferência e da identificação projetiva em supervisão pode operar como resistência à análise pessoal, essa última o mais importante fator para a autoautorização do analista dentro da organização psicanalítica. O analista não é autorizado pela supervisão ou pelo supervisor, mas pela experiência analítica pessoal com o inconsciente, o sintoma e seus efeitos pós-analíticos sob a forma do que Lacan nomeia de sinthoma. Lacan diz que, ao término da análise, o analisando ou futuro analista não se identifica com o analista, mas sim com seu sinthoma.

Palavras-chave: análise de controle, supervisão como resistência, sinthoma, autorização, supervisor suposto saber


ABSTRACT

The task of control analysis is to preserve the evolutionary impetus and edge of psychoanalysis and prevent the inertia towards the lowest common denominator, and the degeneration of evolved ideas and practices into common assumptions and prejudices. A psychoanalytic organization needs to maintain standards while also preserving the organization as a vibrant and dynamic site for the continuing development and re-invention of psychoanalysis as a living symbolic structure. Through a control analysis every analyst acquires a unique analytical style that does not refer to ego preferences and idiosyncrasies, but to a singular and new subjective articulation of the pre-existing elements of a traditional structure. Without a personal analysis, the analysis of the countertransference and of projective identification in supervision can function as a resistance to the personal analysis which is the most important factor for the self-authorization of the analyst within a psychoanalytic organization. The analyst is not authorized by supervision or the supervisor, but by the personal analytical experience with the unconscious, the symptom, and its post-analytical effects in the form of what Lacan calls the sinthome. Lacan said that at the end of analysis, the analysand or the future analyst does not identify with the analyst, but rather with his/her sinthome.

Keywords: control analysis, supervision as resistance, sinthome, authorization, the supervisor supposed to know


RESUMEN

Con el fin de preservar el ímpetu evolutivo y el alcance del psicoanálisis, la tarea del análisis de control es evitar el establecimiento de inercias que buscan el mínimo común denominador y la degeneración de ideas y prácticas en la evolución en la dirección de trivializaciones y prejuicios. Para una institución psicoanalítica es necesario mantener estándares mínimos y simultáneamente preservarse como un entorno vibrante y dinámico para el desarrollo continuo y la regeneración del psicoanálisis como una estructura viva y simbólica. A través de un análisis de control, cada analista adquiere un estilo analítico único que no se refiere a preferencias del ego e idiosincrasias, sino a una singular y nueva articulación subjetiva de los elementos preexistentes en la estructura tradicional. Sin realizar un análisis personal, el análisis de la contratransferencia y la identificación proyectiva en la supervisión puede operar como resistencia al análisis personal, este último el factor más importante para la auto autorización del analista dentro de la organización psicoanalítica. El analista no está autorizado por la supervisión o el supervisor, sino por la experiencia analítica personal con el inconsciente, el síntoma y sus efectos posanalíticos en forma de lo que Lacan llama sinthoma. Lacan dijo que al final del análisis, el analista o analista futuro no se identifica con el analista, sino con su sinthoma.

Palabras clave: análisis de control, supervisión como resistencia, sinthoma, autorización, supervisor supuesto saber


RÉSUMÉ

De façon à préserver l'élan évolutif et l'étendue de la psychanalyse, la tâche de l'analyse de contrôle est celle de prévenir l'établissement de l'inertie qui cherche le plus petit dénominateur commun et la dégénération d'idées et de pratiques en évolution dans la direction des banalisations et des préjugés. Il faut qu'une institution psychanalytique maintienne des étalons minimaux et simultanément se préserver en tant qu'une ambiance vibrante et dynamique pour le développement continu et régénération de la psychanalyse considérée comme une structure vive et symbolique. Par l'intermédiaire d'une analyse de contrôle, chaque analyste acquiert un style analytique unique qui ne se réfère pas à des préférences et des idiosyncrasies égoïques, mais à une nouvelle articulation singulière et subjective des éléments préexistant dans la structure traditionnelle. Sans mener une analyse personnelle, l'analyse du contre-transfert et de l'identification projective en supervision peuvent opérer en tant que résistance à l'analyse personnelle, cette dernière le plus important élément pour l'auto autorisation de l'analyste chez l'organisation psychanalytique. L'analyste n'est pas autorisé par la supervision ou par le superviseur, mais par l'expérience analytique personnelle du surmoi, du symptôme et de ses effets postanalytiques, sous la forme de ce qui Lacan nomme sinthome. Lacan dit que, à la fin de l'analyse, l'analysant ou le futur analyste ne s'identifie pas à l'analyste, mais à son sinthome.

Mots-clés: analyse de contrôle, supervision en tant que résistance, sinthome, autorisation, superviseur supposé savoir


 

 

História da supervisão

A supervisão clínica enquanto exigência na formação de psicanalistas foi formalizada com o desenvolvimento da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) e da criação do Instituto de Berlim. Inicialmente a prática da supervisão, assim como a prática da análise, não era o padrão. A supervisão era entrelaçada com a relação professor-aluno e com as relações entre colegas e pares da profissão. Para Freud, Breuer era seu professor e supervisor, enquanto Fliess era seu supervisor, confidente e colega. Por sua vez, Freud era professor/supervisor para Stekel e Jung (Safouan et al., 1995/1997).

Max Eitingon, responsável pela inauguração da primeira clínica psicanalítica em Viena, efetuou de maneira singular sua análise didática com Freud, realizada enquanto caminhavam pelas ruas da cidade. Eitingon concebeu sua clínica psicanalítica a partir de três funções: terapêutica, formativa e de pesquisa. A função inicial da supervisão não era somente fornecer serviços profissionais adequados ao público, mas também preservar a integridade e a coerência interna da psicanálise. O Congresso Internacional de Psicanálise de 1925 procurou evitar a prematura amalgamação e síntese da psicanálise com outros campos de estudo, métodos de pesquisa e práticas clínicas. Por conta da série de problemas iniciais que Freud experimentou com alunos que se desviaram de seus ensinamentos, o ainda jovem movimento psicanalítico internacional estava preocupado em preservar e evitar a destruição da teoria e da prática freudianas. Diante dessa perspectiva, a supervisão era considerada uma maneira de garantir a autenticidade da prática psicanalítica. Somada à análise pessoal ou didática, a análise de controle ou supervisão tornou-se peça-chave na formação de analistas.

 

Convenção institucional e padronização versus experiência transformativa e transgeracional

O processo de crescente institucionalização e padronização da autoridade dentro da psicanálise gerou críticas e questionamentos desde o começo. Hanns Sachs apontou que, onde quer que haja organização e hierarquia, a descoberta do novo e a possibilidade de mudança e transformação tornam-se suprimidas e reprimidas (Safouan et al., 1995/1997). Toda instituição é conservadora por natureza e tem como objetivo sua própria sobrevivência e autopreservação. Assim, tem baixa tolerância a mentes e sujeitos criativos e inventivos.

A questão central levantada por essas considerações pode resumir-se na importância em diferenciar a garantia de transmissão de certo conhecimento (savoir ou sabedoria) e da prática terapêutica - para que determinado padrão seja alcançado - do desenvolvimento de definições rígidas e estáticas.

Por um lado, a fim de preservar o ímpeto evolutivo e o alcance da psicanálise, é preciso prevenir o estabelecimento da inércia que busca o menor denominador comum e a degeneração de ideias e práticas em evolução na direção de banalizações e preconceitos. Por outro lado, a uma instituição psicanalítica é necessário manter padrões mínimos e simultaneamente preservar-se como ambiente vibrante e dinâmico, para o contínuo desenvolvimento e regeneração da psicanálise enquanto estrutura viva e simbólica.

Novos sentidos para a psicanálise não evoluem externamente a ela, por substituição indiscriminada de um edifício teórico por outro inteiramente diferente, mas internamente à coerência e organização de ideias e práticas psicanalíticas. A organização psicanalítica deve dar suporte a novas formas de articulação, combinação e permuta de elementos tradicionais: tanto novas garrafas conceituais, para conter o vinho antigo da experiência psicanalítica, quanto novo vinho e novas experiências, para enriquecer o vinho antigo e fornecer à antiga garrafa/estrutura um renovado esplendor e significado.

É a psicanálise que necessita reinventar-se e autorregenerar-se a cada nova geração. A transmissão, porém, não é meramente uma repetição do mesmo, mas a repetição do mesmo com uma nova diferença. Assim, o que é verdade para a vida da instituição é consistente com o que é verdade para a prática que deu vida à estrutura da teoria. Na prática da análise, a significação tem um efeito similar na compulsão à repetição em operação no sintoma. Uma interpretação repete algo, cita a fala do analisando, mas com uma diferença que faz toda a diferença. Uma interpretação retira algo do real do inconsciente e fornece-o ao simbólico e à linguagem. De maneira similar, os sintomas e problemas da instituição operam de forma a impulsionar a regeneração das teorias e práticas psicanalíticas, através de novas formulações do ensino.

 

Supervisão, análise pessoal, análise didática e análise de controle

Tipicamente, a supervisão é ingrediente-chave à formação profissional do analista. A partir do que o supervisor pode ouvir na fala do supervisionando sobre os sintomas, a história e o discurso do analisando, procura discernir como o analista trabalha com o analisando, dando suporte e transmitindo os elementos que caracterizam o método psicanalítico como algo distinto de outras abordagens, derivadas do senso comum, ou de outras orientações, internas ou externas à psicanálise. No entanto, dado que a psicanálise não é uma estrutura abstrata estática que existe de modo independente de um sujeito humano ou de sua subjetividade, inevitavelmente conterá o estilo único de cada analista.

Estilo único não se refere a uma questão de preferências e idiossincrasias egoicas, mas a uma singular e nova articulação subjetiva de elementos preexistentes na estrutura tradicional. Contido no campo das identificações do ego, o estilo do futuro analista será encontrado por imitação/identificação ou por identificação ao oposto daquilo que o ego pensa ser o que o outro espera dele. O supervisor deve ajudar seu supervisionando a encontrar o próprio estilo, além da imitação/identificação/conformidade, além do repúdio/desafio à autoridade, e além da identificação com seu oposto. Decerto será em sua análise pessoal, em última instância, que o supervisionando encontrará a estreita passagem a conduzir-lhe além dessas identificações.

Outro aspecto tradicional da análise de controle é a análise da contratransferência. Essa última refere-se aos determinantes inconscientes do próprio analista, ativados em transferência para o analisando. Na forma clássica, duas conhecidas posições foram cristalizadas em relação ao manejo da contratransferência em análise (Safouan et al., 1995/1997). A primeira foi a posição vienense, que argumentava que a análise da contratransferência deveria ser trabalhada com o ex-analista, que a partir de então tornava-se o analista de controle do analisando. A escola de Berlim, por sua vez, enfatizava as deficiências dessa posição. De acordo com ela, a posição vienense tornava menos definida a diferença entre supervisor e analista, focalizando demasiadamente a supervisão na análise pessoal e insuficientemente questões de técnica e prática. Mais ainda, limitava a exposição do supervisionando a diferentes estilos de trabalho, maximizando a dependência em relação a uma única pessoa. Finalmente, pontos cegos do analista em seu trabalho com o supervisionando podiam ser reforçados em supervisão.

A escola de Berlim enfatizou a função de controle da supervisão. O supervisor é responsável pelos pacientes do supervisionando e exerce a função de vigilância e proteção do público em relação a tratamentos de baixa qualidade. Atualmente a supervisão, na maioria das vezes, envolve combinações variadas de ambas as escolas, de Viena e de Berlim. É focada na contratransferência assim como em questões técnicas e teóricas. Além disso, a escola de relações de objeto, com sua perspectiva de que a contratransferência do analista representa os conteúdos inconscientes do analisando através dos efeitos da identificação projetiva, posiciona a contratransferência diretamente no escopo da análise de controle.

Entretanto, uma importante dimensão da análise da contratransferência - ou da transferência do analista, como Lacan preferia chamá-la - refere-se à análise pessoal do analista enquanto estrutura fundamental do trabalho analítico. Caso essa última não fosse considerada, a supervisão da psicoterapia ou a supervisão realizada fora do campo da psicanálise seriam quase idênticas à supervisão em psicanálise. Tratamentos não analíticos também são centrados na contratransferência do terapeuta, e a psicoterapia psicanalítica não exige de um terapeuta a análise pessoal de longa duração. A partir dessa perspectiva, a noção de contratransferência enquanto identificação projetiva do paciente também evita a questão da análise pessoal do analista. Psicoterapeutas psicanalíticos que não passaram por análise trabalharão sua contratransferência através de supervisão em vez de fazê-lo em análise pessoal.

Por outro lado, se a supervisão estivesse focada na experiência subjetiva do analista, aproximar-se-ia muito mais da análise didática do que da análise pessoal. Por vezes, utilizam-se esses dois termos de maneira intercambiável, embora a palavra didática tenha outra conotação. Ela refere-se à formação e à análise pessoal de um analista em formação. Entretanto, também poderia dizer respeito a outras duas coisas: 1) avaliar a análise pessoal em supervisão, incluindo ajudar o supervisionando a entender o que se passou em sua análise, de uma perspectiva didática; e 2) compartilhar com o supervisionando a teoria e a prática envolvidas na interpretação da transferência para com o supervisor e sua relação com o entendimento do supervisionando da transferência para com seu próprio analista.

O uso da palavra didática para a análise pessoal pode levar à crença equivocada de que o futuro analista está realizando sua análise pessoal com o propósito único de sua formação, e não por conta de experiências e dificuldades subjetivas e pessoais em relação ao sofrimento humano. Mais ainda, se o analista pessoal for didata ou agir como supervisor com o analista em formação, essa situação poderá conduzir a um encerramento da análise que coincide com a identificação ao analista, e não com a elaboração do objeto envolvido na identificação. Em última instância, o que autorizará o analista será a relação com seu sintoma revelada em sua análise pessoal. Retornarei a esse ponto mais adiante.

 

Supervisão lacaniana: a transferência para o supervisor suposto saber

Na França, na Itália e na Inglaterra tem-se debatido se o Estado deve controlar a psicoterapia clínica enquanto tratamento para transtornos mentais. Não foi instituída a obrigatoriedade de obtenção de licenças de funcionamento para clínicas, como foi feito nos Estados Unidos, mas atualmente estão exigindo comprovação de graduação profissional e de filiação a associações/organizações psicanalíticas. Uma licença de funcionamento não é garantia das melhores práticas psicoterapêuticas, já que somente determina o conhecimento em diagnóstico psiquiátrico, a avaliação de fatores de risco e a escolha de uma ou outra modalidade de tratamento. Exames para a obtenção de licenças não medem o nível de habilidade em psicoterapia ou psicanálise.

O mais importante para a formação de analistas é sua análise pessoal, e aqueles que avaliam a concessão de licenças de funcionamento para clínicas não a requerem de forma alguma. A subjetividade simplesmente não é incluída na equação de avaliação profissional ou de pesquisa empírica. Uma licença representa a autorização contida naquilo que Lacan denominou discurso do mestre (o Estado) e discurso da universidade. Essas exigências não garantem o que é essencial para a qualidade do tratamento psicanalítico.

Assim, a questão de o que ou quem autoriza o analista é fundamental para a psicanálise. É o próprio analista, o supervisor ou grupos de analistas pertencentes à comunidade psicanalítica? E devem essas funções estar contidas em uma única organização? Na psicanálise, o alicerce da autorização para um analista é o trabalho com sua subjetividade no contexto de sua análise pessoal. As funções de controle e da comunidade psicanalítica contêm uma estrutura de interdependência que necessita ser consistente com princípios de teoria e prática, mas não necessita estar contida em um único grupo ou organização. A consistência quanto à teoria e à prática não tem a ver com um modelo único dentro da psicanálise, mas com a relação entre (e através de) diversos modelos.

Nos Estados Unidos, onde licenças de funcionamento são exigidas, todo o peso e a autoridade do Estado são investidos na autoridade do supervisor clínico. No campo psicanalítico há um consenso de que comumente, talvez sempre, a transferência para com o supervisor difere da transferência para com o analista na análise pessoal. Em uma análise de controle, o supervisor ocupa não só o lugar do Outro do inconsciente, mas também, e de maneira ainda mais importante, do Outro da lei da cultura e do público.

O grande Outro representa, na obra de Lacan, tanto o inconsciente quanto a ordem social simbólica em geral (o inconsciente dinâmico e descritivo da obra de Freud). Esse fato é ainda mais reforçado quando a supervisão se torna uma exigência legal para a prática clínica submetida à autorização do Estado. O supervisor deve fornecer alguma forma de garantia em relação ao conhecimento de seu supervisionando. Nesse contexto, o supervisor pode ser visto como sujeito/supervisor suposto saber. Assim, a não ser que o supervisionando tenha realizado sua análise pessoal, o supervisor é o alvo principal das projeções superegoicas do supervisionando. Aqui o supervisor torna-se algo da ordem da figura de um educador e representante do discurso da universidade e do discurso do governo (do mestre).

Julien (Safouan et al., 1995/1997) escreveu que, durante as supervisões, Lacan evitava transmitir um saber total e encapsulado. Recusava-se a dizer a seus supervisionandos o que fazer e como proceder.

Não é incomum encontrarmos um analista em análise de controle que, por exemplo, em um ponto específico de seu desenvolvimento profissional, prefira deitar-se no divã de outro analista em vez de prosseguir em sua análise de controle. Nesses casos, frequentemente notamos que, se o analista prefere deitar-se no divã, sob a regra da associação livre, é como se estivesse livre da responsabilidade sobre a própria fala. O analista, enquanto analisando, pode agora falar sem o peso da responsabilidade. Um analisando pode acreditar nisso por algum tempo, até o dia em que descobre que no divã segue tendo que responder por aqueles significantes em relação aos quais não pensava ter alguma percepção de responsabilidade. Talvez nesse dia o passe comece a se revelar no horizonte do analisando, porque poderíamos dizer que, naquele momento, ele não é mais discípulo de Lacan ou de Freud, mas sim discípulo de seu sintoma. O analisando finalmente se permite ser ensinado pelo próprio sintoma. (Lacan, 1976-1977)1

Lacan (1968) articula sua posição em relação à supervisão em torno da questão da autorização. Em outubro de 1967, ele propôs que "o analista é autorizado por si mesmo", ao término de sua análise. De acordo com Lacan, o que é crucial para a autorização é a análise pessoal. Ele acreditava que, caso um supervisionando abordasse um analista com a proposta de supervisão, o analista deveria convidar o supervisionando a continuar sua análise pessoal. A partir dessa perspectiva, a demanda de supervisão é interpretada como resistência à análise pessoal.

Durante o congresso de Roma, em 1974, da Escola Freudiana de Psicanálise (efp), construía-se um consenso no campo lacaniano de que a supervisão, enquanto exigência burocrática, institucionalizaria uma resistência à análise. A supervisão, exigência institucional que compreende tantos anos e horas de dedicação, tem a função de defesa obsessiva contra o lidar com dificuldades inerentes à prática da análise e ao campo da transferência. Lacan acreditava que obrigações em relação à posição do analista eximem ou desculpam o sujeito de sua própria responsabilidade sobre suas decisões de fazer ou não fazer algo. Nessa perspectiva, problemas que surgem durante uma análise devem conduzir o analista de volta à análise pessoal, não à supervisão. A contratransferência, como transferência do analista para o paciente ou analisando, necessita ser endereçada através da análise, em vez de ser controlada através de uma análise de controle. Adicionalmente, em situações onde o supervisionando já está em análise, um pedido de supervisão pode representar uma "transferência lateral" para o supervisor de questões e problemas sob resistência ou não endereçados em análise pessoal.

Por outro lado, em situações onde a supervisão e a análise estão ocorrendo simultaneamente, um problema que emerge em supervisão pode também facilitar movimentos e avanços na análise pessoal do analista. Se o analista e o supervisor não são a mesma pessoa, então a supervisão pode dar apoio à análise pessoal ou funcionar como uma forma de supervisão da análise pessoal do analista, mas sem encorajar uma regressão ou uma neurose de transferência direcionada ao supervisor. Os problemas são levados à análise pessoal em vez de interpretados em supervisão. Caso contrário, se o supervisor aparentemente operar como um melhor analista do que o próprio analista (enquanto sujeito que realmente sabe) e for percebido como crítico do analista do supervisionando, então a neurose de transferência direcionada ao supervisor será estabelecida e a transferência direcionada ao analista será prejudicada. A perspectiva oferecida pelo controle enquanto apoio, e não enquanto resistência à análise pessoal, impede a dependência exclusiva de um analista, dependência que incorre no risco de convertê-lo em uma figura monolítica que também opera como avaliador ou supervisor clínico.

 

O problema do passe

Se a análise pessoal é o que é fundamental para a formação do analista, como avaliá-la? Para endereçar essa questão, Lacan fez experimentos com o que chamava de o passe. O futuro analista falava de sua experiência em análise para dois colegas, que por sua vez apresentavam o que ouviram da análise do analista para um grupo de juízes, ou um comitê de passe composto por analistas daquela escola. O comitê de passe então decidia se uma análise se realizou ou não. Lacan por fim decidiu que esse processo não funcionava, pois os colegas introduziam nele vários tipos de distorção, e um grupo de juízes não se revelou uma melhora nas práticas da IPA.

Lacan nunca abandonou a ideia do papel privilegiado da análise pessoal para a prática de análise, mas deixou de lado a tentativa de avaliá-la de qualquer forma institucional ou objetiva. Em vez disso, voltou sua atenção para a questão teórica do sinthoma como aquilo que, em última instância, autoriza um analista.

Atualmente, a organização lacaniana dirigida por Jacques-Alain Miller, genro de Lacan, continua a empregar o procedimento do passe, mas somente como ferramenta de pesquisa sobre a análise. Analistas não precisam "passar" para praticar a análise. Entretanto, essa versão modificada do passe produziu novos problemas. Por exemplo, o fato de que alguns analistas clínicos tenham "passado", enquanto outros não, cria um dilema informal quanto a reputações clínicas e relações com a instituição. Os indivíduos ou grupos que não "passaram" acabam diminuídos ou com menor status dentro da instituição e diante do público, através das informações disponíveis a esse último.

Na maioria dos grupos fora da escola de Miller, identificados com o grande movimento lacaniano, não há procedimentos formais ou padronizados para a avaliação da análise pessoal, além da exigência de que ela seja realizada. No entanto, o conceito lacaniano de transferência enquanto sujeito suposto saber e enquanto metáfora do amor forneceu dois importantes critérios para a determinação da autorização do analista no contexto de sua análise pessoal. As duas seções a seguir examinarão esses dois critérios.

 

O sujeito suposto saber

Lacan redefiniu o conceito psicanalítico clássico da transferência em torno do saber (savoir em francês, saber em espanhol). A análise de controle ou supervisão avalia ou examina aquilo que o analista não percebe sobre a própria posição vis-à-vis sua transferência em relação ao sujeito suposto saber.

Assim, o supervisor deve ajudar o analista em formação a estabelecer sua credibilidade com base no conhecimento da psicopatologia, das estruturas psíquicas/desenvolvimentistas/caracterológicas e dos processos psicoterapêuticos. Essa forma vertical de credibilidade é o fundamento da transferência positiva e de uma aliança de trabalho com o sujeito/analista suposto saber. O supervisor ajuda aquele em formação a aprender e articular o que sabe e colocá-lo em uso na relação terapêutica com seus analisandos. Essa dimensão da supervisão psicanalítica não é tão distinta da supervisão exigida para a obtenção de uma licença de funcionamento concedida pelo governo para a prática da psicoterapia ou da psicanálise. O supervisor representa a lei pública e o supervisor suposto saber. Adicionalmente, esse último deve também monitorar o risco de hospitalização involuntária dos analisandos, seu nível de funcionamento e incapacidade, e supervisionar a aplicação da lei em relação a essa descoberta, além de reportar várias modalidades de abuso físico e sexual.

O que estou chamando de credibilidade vertical do analista também carrega uma dimensão transferencial, que representa a primeira fase da transferência para a relação terapêutica. Dentro da relação supervisional, a aliança terapêutica é uma aliança entre o conhecimento do supervisor, o supervisionando e o ego do analisando. Digo o ego do analisando porque a demanda de tratamento inicia-se com a apresentação do sintoma pelas defesas do ego do analisando. Pacientes querem que seus sintomas sejam removidos, mas sem experimentar a dor ou os desejos inconscientes e os pensamentos e formações de linguagem que os causam.

Adicionalmente, analisandos não querem mudar as crenças e traços de personalidade que mantêm reprimidos os aspectos antes mencionados. O supervisor deve ajudar o supervisionando a estabelecer uma aliança terapêutica com os sintomas como apresentados pelo analisando, para que o conhecimento do analista não esteja em direto e imediato confronto com as crenças do analisando. Às vezes, o analista pode realizar confrontos iniciais com as defesas do paciente para avaliar sua habilidade em beneficiar-se do tratamento analítico, mas estes não podem ter tal magnitude ou qualidade a ponto de prejudicar o amor inicial ou a predisposição positiva direcionada ao analista. Assim, na primeira fase do tratamento o analista deve ser benquisto pelo analisando, mas esse bem-querer é resultado de intervenções estratégicas contidas na transferência, não de um desejo contratransferencial de ser querido por parte do analista.

Por outro lado, a análise apropriada é regulada pelo desejo do analista em não ser idealizado ou desejado/amado enquanto sujeito suposto saber. Caso contrário, a análise não seria diferente de outras formas de tratamento externas à psicanálise. O desejo do analista representa o fruto subjetivo da análise pessoal, uma transformação de gozo [jouissance], e não uma forma objetiva de neutralidade, abstinência e anonimidade que pode se estabelecer por conta de regras de conduta morais ou profissionais.

Em virtude do desejo do analista, o terapeuta/analista abre mão do poder e do privilégio concedido a ele por suas diferenças educacionais, de classe e profissão, assim como da transferência do paciente/analisando. Aqui o fator curativo não decorre do conhecimento do analista (discurso do mestre e da universidade), mas sim de um saber inconsciente, não baseado na educação formal, de que o sujeito que sofre (o analisando) não sabe que sabe. Agora a credibilidade do analista é alcançada por um nivelamento horizontal simbólico da autoridade egoica do terapeuta/analista, em favor do poder transformativo do inconsciente. Essa forma horizontal de credibilidade é particularmente importante para o trabalho analítico com analisandos de outras culturas.

Na segunda fase da transferência, o analista é um sujeito a quem o analisando atribui seu próprio saber inconsciente. O analisando percebe o analista não como profissional bem preparado, mas como representação e significação de seus objetos inconscientes. A redefinição da transferência apoiada na questão do saber clarifica o problema de como resolvê-la e dissolvê-la para que haja direção no tratamento e término à análise. Análises que duram tempo demais, estão estagnadas ou nunca se findam são exemplos de um lugar de dependência do analisando em relação ao conhecimento ou ao amor do analista, em oposição ao encerramento de uma análise em virtude do poder textual de seu próprio saber não sabido.

O saber não sabido é também importante para a supervisão porque comumente supervisionandos não sabem que já sabem a respeito de questões de seus analisandos. No discurso do supervisionando acerca do analisando, o supervisor deve ouvir aquilo que não foi reconhecido ou que o supervisionando não sabe que sabe. As respostas para as perguntas do supervisionando encontram-se em seu próprio inconsciente ou discurso desconhecido em relação a seu analisando. O supervisor meramente aponta aquilo que o supervisionando já sabe inconscientemente (saber não sabido).

A manifestação geral da transferência humana é identificar-se e amar o outro enquanto sujeito suposto saber ou seu reverso, o outro enquanto sujeito da falta, que é como Lacan define a transferência negativa. Eu odeio quem despojo ou deponho do lugar de sujeito suposto saber. Aqui o outro é percebido como incompetente e faltante; mas encontrar os buracos no outro ou revelar sua incompetência não constitui um verdadeiro ato de conhecimento/cognição ou reconhecimento.

O efeito ilusório de constranger o outro, ou revelar sua falta, é produzido porque o outro ocupava anteriormente o lugar de sujeito suposto saber. Assim, qualquer analista, supervisor ou supervisionando que é humilhado necessita usar a transferência negativa a seu favor, não contra si. Se um sujeito é ofendido ou humilhado, isso acontece precisamente porque é percebido como aquele que sabe, e não o contrário. Na transferência positiva, o sujeito suposto saber encobre ou esconde a falta no outro ou no sujeito, enquanto a transferência negativa revela a falta, mas somente no outro, não no próprio sujeito. A posição subjetiva da psicanálise consiste em aceitar e levar em conta a falta no outro e no sujeito. Esse é um ato ético de verdadeira compaixão simbólica, que vai além de natural bondade e juízo.

 

Transformações na metáfora do amor e as etapas da análise

Lacan usava as categorias gregas erastes e eromenos para dar conta do que ele chamava a metáfora do amor ocorrente no tratamento psicanalítico. Lacan dizia que, no início da análise, o analista está no lugar de erastes (amante) e daquilo que chama sujeito suposto saber. É assim que Lacan combina e articula o clássico tema do amor transferencial com sua teoria do sujeito suposto saber.

Entretanto, também noto que a metáfora do amor e a transferência para o sujeito suposto saber são um tanto discordantes. Na primeira fase da análise, o analisando está no lugar do amado porque é digno do interesse e da atenção incondicionais do analista e é o objeto e propósito da operação analítica. Por outro lado, o analista está no lugar do sujeito suposto saber que sabe algo sobre o sofrimento psíquico. Aqui o analista aparenta ser aquele que está na posição de amado, e não simplesmente na posição de amante. Isso parece contraditório porque tanto analista quanto analisando aparentam estar no lugar do amado. No entanto, no começo da análise, o sujeito suposto saber não é ainda objeto maciço da transferência, porque tanto analista quanto analisando ainda não sabem o que falta no analisando ou o que seu Outro inconsciente quer/deseja. O analisando primeiro ama o analista pelo que ele sabe, mas isso inicialmente toma a forma de uma aliança terapêutica consciente com o conhecimento racional, consciente e profissional do analista.

Na primeira fase da análise, a relação amante-amado representa uma relação entre quatro termos em vez de dois. O analista é amante em primeiro plano e amado em segundo plano (enquanto sujeito suposto saber), e o inverso é verdadeiro para o analisando. No primeiro plano o analisando é amado pelo interesse consciente do analista, e no segundo plano o analisando, enquanto amante e sujeito da falta, espera de forma latente para emergir e manifestar-se. Quando o saber do analista vem a coincidir com o objeto de desejo inconsciente do analisando, então a transferência (para o sujeito suposto saber) propriamente dita estabeleceu-se, junto com a segunda fase, ou fase intermediária, da análise. O analista está no lugar da presença do objeto. Está agora na posição do amado, e o analisando, de amante. Mas obviamente esse não pode ser o fim da história, porque assim não haveria o fim ou etapa terminal da análise. Adicional e paradoxalmente, estar no lugar da presença do objeto pode disparar desordenada quantidade de ansiedade e fazer com que o analisando interrompa o tratamento, deixando sem resposta as questões levantadas pelo trabalho feito até então.

Na primeira fase da análise, um supervisor deve supervisionar vários elementos. Primeiro, se o analista se estabeleceu como sujeito suposto saber amado por seu conhecimento. Segundo, se o analista está nessa posição por estratégia para a transferência, e não porque ele quer/precisa ser querido e amado. Terceiro, se o analista está operando como aquele que entende o sofrimento do analisando. Finalmente, o analista de controle monitora o processo através do qual o analista, enquanto "amante amado" do analisando, transforma-se em objeto a e objeto fálico do analisando. É essa transformação que inaugura a segunda fase da análise.

Dado que o desejo do analista tenha regulado o tratamento desde o início e que a metáfora do amor tenha consistido de estratégia de tratamento contida na transferência, na terceira e última fase da análise o analista não ocupa mais o lugar de amado, e o analisando não ocupa mais o lugar de amante do analista. Em vez de oferecer aquilo que tem, o analista deve oferecer aquilo que não tem e ocupar o lugar da falta ou do objeto a ausente do sujeito. É o desejo do analista, ou o desejo de não ser desejado enquanto o amado, que opera como pivô fundamental do final e da meta da psicanálise em seu inteiro rigor.

Durante a segunda fase, o analisando quer que o analista seja o objeto a de sua fantasia ou que lhe conceda o falo imaginário. No entanto, em vez da decepção de oferecer-lhe um objeto que não existe, o analista oferece ao analisando aquilo que vem de sua própria falta do falo simbólico. Ao mostrar ao analisando que aceita a falta contida no desejo, o analista aponta para o vazio contido no desejo, e não para um desejo de ser desejado enquanto objeto fálico. Isso conduz a uma permutação da posição do analisando enquanto amante e sujeito do desejo. Apesar de durante a primeira fase o amado analista ajudar a curar algumas das feridas do sujeito, é sua final remoção da posição do amado e a desmistificação e desconstrução desse objeto nas vicissitudes de um objeto fálico narcísico que conduzem o analisando ao término da análise.

 

O amor e as etapas da supervisão analítica

A relação de supervisão analítica também é caracterizada pela relação transferencial e pela transposição dos papéis de erastes e eromenos. O supervisor ocupa o lugar do sujeito suposto saber e enquanto tal será o objeto do amor do supervisionando. Apesar de Lacan utilizar-se d'O banquete [de Platão] para elucidar a função da transferência em análise, n'O banquete a relação entre Sócrates e Alcibíades refere-se precisamente à relação professor-aluno. A relação do supervisor com o supervisionando está em algum lugar entre a relação de professor-aluno e a de analista-analisando. Dentro de limites, a relação de supervisão também envolve uma exploração da subjetividade do supervisionando. Isso, combinado ao fato de que a relação de supervisão é colegial e não terapêutica, pode levar a uma forma de intimidade mais típica das relações de amor e amizade.

Por outro lado, uma lei de proibição também regula a relação de supervisão, e tal lei pode causar um desejo/fantasia sexual/agressiva que não será explorada em detalhes, já que isso normalmente é feito na relação transferencial com o analista. Apesar de haver maior simetria entre supervisor e supervisionando do que entre analista e analisando, ainda assim há um poder diferencial temporário que pode ser percebido como colocando o supervisionando em posição vulnerável frente ao supervisor. Dentro da psicanálise essa relação de poder é concebida como função da transferência ao sujeito suposto saber, o que já mencionei como algo de que o analista deve abrir mão.

 

Conclusão: o analista é autorizado pelo sinthoma do sujeito e por alguns outros

Lacan (1968) argumentou que o analista é autoautorizado ou não autorizado por ninguém mais além de si mesmo. O analista não é autorizado pela supervisão ou pelo supervisor, mas pela experiência analítica pessoal com o inconsciente e o sintoma. Entretanto, a assim chamada autoautorização do analista deve ser distinguida da ego-autonomia e da atitude desafiadora e narcísica em relação à autoridade. Adicionalmente, não pode ser explicada sendo reduzida de forma simplista aos problemas de Lacan com a IPA, o que culminou em sua exclusão dessa organização. Através da prática da análise, os sintomas do sujeito, ou da instituição, devem ser considerados como o sinthoma (definido adiante) que possibilita ao sujeito e à instituição regenerar-se a cada nova geração.

A fim de distanciar-se de uma posição de desafio narcísica e obsessiva, e a partir da noção de ego-autonomia que rejeitou, Lacan foi forçado a qualificar sua afirmação em relação à autoridade. A autoautorização só poderia ser verdade se o analista fosse um analista que tivesse realizado sua análise pessoal. Adicionalmente, o analista também precisaria da participação de outros membros da comunidade psicanalítica. O analista não está autorizando a si mesmo na forma de um desgarrado individualista e idiossincrático, excluindo ou isolando os outros.

Lacan (1968) propôs que o "psicanalista somente autoriza a si mesmo por si mesmo [lui-même]", mas isso não significa "por si mesmo" no sentido de isolamento, e sim dentro de sua própria experiência do sinthoma. Há uma transformação interna/externa que necessita se passar na consciência e ser contida na experiência subjetiva e intersubjetiva do inconsciente. Adicionalmente, o analista é autorizado não só em si mesmo, mas também na organização. Um analista nunca autoriza a si mesmo sem a referência do terceiro, porque o terceiro, no caso da ausência de uma instituição, seria a voz e o texto do próprio Lacan. O ditame ou aforismo de Lacan não pode ter o sentido de um analista "feito por si próprio", como uma versão lacaniana do self-made man, pois isso entraria em contradição com aspectos centrais e muito conhecidos do corpus lacaniano. No máximo o analista é uma função do sujeito; é o sujeito que faz o analista. O analista "feito por si próprio" sem a função do terceiro resultaria em uma construção narcisista de ego ideal.

 

O sinthoma

Ao longo do tempo, o entendimento de Lacan em relação ao conceito de sintoma na clínica psicanalítica alterou-se. A princípio, assim como Freud, reconheceu o sintoma como metáfora. Pela influência da linguística, passou a tratá-lo como significante, representando uma forma de significação. Entretanto, mais tarde interessou-se pelo aspecto do sintoma que é imune à interpretação simbólica, e que explicaria uma precária reação ao tratamento ou a tratamentos excessivamente longos. Lacan passou a pensar o sintoma como uma forma de gozo que não pode ser interpretada. O sintoma enquanto gozo é aquilo que passou a chamar de sinthoma. Jouissance é um termo que foi deixado sem tradução nas edições de língua inglesa da obra de Lacan. Representa algo prazeroso e doloroso, sexual e assexual ao mesmo tempo. Como o sintoma é um elemento significante contido em uma cadeia significante e, portanto, enraizado no simbólico, gozo e sinthoma estão enraizados no real. O real é a dimensão da experiência humana que se encontra tanto aquém quanto além da linguagem e da lógica formal. A realidade social é organizada pelo imaginário e pelo simbólico e, portanto, não é o real.

A obra de Lacan contém três diferentes tipos de gozo. Há o gozo do Outro, que é a forma mais primitiva de gozo, resultante do desejo e amor da mãe e da experiência diádica de ser o objeto fálico do desejo da mãe. O gozo do Outro representa a primeira fase do Édipo com a mãe e envolve experiências de prazer e dor na relação com o seio. A primeira fase é também triádica, pois o objeto inconsciente do desejo da mãe representa um terceiro contido na díade mãe-criança.

Em seguida há o gozo fálico, que está ligado à intervenção do pai, à função da castração e à diferenciação entre os gêneros. Usufruir do gozo fálico requer passar por perdas ligadas às diferenças de gênero e à proibição ao incesto. A castração simbólica retroativamente ressignifica perdas anteriores associadas ao desmame e ao controle dos esfíncteres. Se as condições de gozo fálico não são aceitas (como visto em casos de incesto, adições, perversão etc.), então o sujeito regride à busca de gozo com a mãe e com o Outro que não envolve o pai simbólico ou a estrutura edípica apropriada. Finalmente, há o gozo Outro, enraizado na relação com a mãe e o pai simbólicos, que incluem e superam o gozo fálico e o gozo do Outro. Lacan também associou o gozo Outro ao gozo do sentido, ao gozo do místico e ao gozo feminino.

A palavra sinthoma é um neologismo inventado por Lacan para designar algo da ordem do trabalho do saber contido no inconsciente. Não representa simplesmente uma irrelevante e patológica idiossincrasia de sua parte. O inconsciente usa a homofonia (similaridade sonora) para estabelecer possíveis sentidos entre palavras. Sinthoma [sinthome] soa como sintoma e também como sainthomme - em francês, um homem sagrado ou santo. Em vez de reduzir a santidade à psicopatologia, Lacan aponta para uma positiva ou "saudável" dimensão contida no sintoma ou no sofrimento humano. Isso também se diferencia de práticas sadomasoquistas, pois o sujeito não procura, no sintoma, a dor, conscientemente ou deliberadamente. Há algo no sinthoma que ajuda e ensina/autoriza o sujeito.

Na teoria lacaniana, o sinthoma refere-se a duas coisas: primeiro, a um aspecto incurável do sintoma, uma sobra do sintoma que permanece enraizada no real e imune aos efeitos da interpretação ou de qualquer forma de tratamento; segundo, ao sentido do sintoma, que ensina algo ao sujeito sobre o inconsciente. O sinthoma é esse aspecto do sintoma que pode ser tanto veneno quanto antídoto, que mata ou cura o sujeito. No segundo sentido, o sinthoma representa o crescimento pelo conflito, uma doença como oportunidade para o esclarecimento e o bem-estar, a flor de lótus que cresce na lama.

Não há esclarecimento, crescimento ou bem-estar sem os problemas, a dor e os obstáculos associados ao sinthoma. Assim, as duas perspectivas sobre o sinthoma, tanto como doença quanto como remédio, convergem na compreensão de que o sintoma deve permanecer no real para que o sujeito tenha realização. Como na teoria lacaniana o real é o registro que se localiza tanto aquém quanto além da simbolização racional e significa o inconsciente no sentido do desconhecido e do não conhecível, isso explica por que um sintoma alojado no real não pode ser facilmente removível por intervenção simbólica ou racional.

Na teoria lacaniana o sinthoma também se refere ao término da análise, àquilo que Lacan chama de travessia do fantasma (fantasia inconsciente). Como mencionado anteriormente, o analista deve evitar cair na armadilha ou na sedução do sujeito suposto saber. Caso contrário, ele funciona como um objeto do impulso do analisando e repete suas fantasias e traumas inconscientes, satisfazendo o gozo ou o prazer/dor ligados ao sintoma, sem insight sobre a natureza do objeto fantasioso, e sem conseguir interromper o gozo em jogo na doença ou no sintoma.

Nesses casos, o analista aprecia ser a transferência fantasmática ao sujeito suposto saber. O analista não interpreta, e sim provê algum alívio contraindo a doença do analisando. Para o analista, o paciente agora representa o gozo do Outro, definido como ligação inconveniente ou fusão com o primitivo objeto de fantasia do outro. Se o analista se identifica com os objetos de prazer/dor do analisando, então o analisando torna-se um objeto do analista.

Em contraste, o desejo do analista tem por objeto um não objeto, a presença do objeto a (causa do desejo) enquanto ausência, em vez de um objeto parcial específico (seio, fezes, falo etc.). A presença do analista incorpora as letras do vazio e a face luminosa do vazio (do objeto a). Se o analista conseguir manter-se aterrado no gozo Outro do desejo do analista e de seu sinthoma, então o gozo Outro do analista, enquanto suplemento da prática da interpretação, também pode ajudar a interromper o gozo do Outro em operação nos objetos da fantasia do analisando.

Nesse sentido, o sinthoma também se refere à questão da sublimação. O sujeito é na realidade a história da passagem do litoral do sofrimento (gozo do Outro), através do leito do phantasma (gozo fálico), ao litoral Outro da sublimação e ao princípio de nirvana corretamente compreendido (gozo Outro). Uma nova interpretação lacaniana da fórmula freudiana da sublimação, "Onde havia id, que haja ego", não seria somente o lacaniano "Onde isso estava, eu devo tornar-me", mas também, eu argumento, "Onde o gozo do Outro e o sintoma estavam, o gozo Outro do sinthoma deve estar".

A cura psicanalítica não somente transforma o id, como gozo do Outro intersubjetivo e projetivo, um núcleo de sofrimento não afetado pela organização simbólica, no imaginário "ser alguém" do sujeito suposto saber. Esse "ser alguém" ainda representa uma sombra do ego fantasmático enquanto objeto narcísico. O gozo do Outro e os problemas ligados ao gozo fálico precisam ser transformados em um núcleo de prazer e bem-estar do sujeito (do real) e do sinthoma. Esse gozo Outro, enquanto núcleo de prazer e bem-estar do sujeito, localiza-se dentro mas também além da causalidade do simbólico e do significante linguístico.

Lacan disse que, ao término da análise, o analisando ou futuro analista não se identifica com o analista, mas sim com seu sinthoma. Caso contrário, a análise poderia ser simplesmente reduzida à substituição de um traço de personalidade identificatório e sintomático derivado de um dos pais por um melhor, derivado da personalidade do analista. Adicionalmente, a identificação com o sinthoma não representa a identificação com o sintoma como quando o paciente declara: "Sou um alcoólatra, ou um filho adulto de alcoólatras, ou um sobrevivente do incesto etc.".

Nesses casos, o sintoma complementa a ausência ou o repúdio do não e do nome-do-pai. O sintoma preenche a lacuna do ser e da identidade em vez do nome-do-pai. Por exemplo, o nome do sintoma (sou um adicto) interrompe o gozo do Outro embutido na adição. A dificuldade em controlar impulsos, ou em limitar o gozo do Outro (adição, incesto etc.), pode ser atribuída a problemas na função paterna. Onde o pai falhou em representar seu não e seu nome (nom), seja através de seus próprios atos, seja através dos atos da mãe e dos filhos, então o gozo do Outro e o desejo da mãe tornam-se a base da identidade. A adição ou a violação da proibição do incesto representam a busca por um gozo impossível, em vez da aceitação da falta e da falta contida no desejo preso à lei e ao nome-do-pai.

Durante e depois da separação em relação à mãe, seu desejo e o gozo do Outro, a ausência do objeto deixa um buraco no sujeito. O buraco torna-se a base do desejo regulado pela lei e pelo gozo fálico. Do ponto de vista do sujeito/eu, do sujeito-objeto/relação eu-outro, o buraco é preenchido não pelo objeto fálico, mas pela dimensão imaginária do nome-do-pai. Apesar de essa formação imaginária ser um passo necessário ao desenvolvimento individual e cultural, por fim ela se torna sintomática e necessita ser abandonada. A falta de ser e do desejo precisa ser aceita enquanto vazio do pai e da mãe simbólicos, em vez de encoberta pelo pai imaginário ou pelo significante do mestre. Ao nomear/rotular uma adição e simbolizar um gozo inconveniente, a identificação com o sintoma procura reparar a falha da função paterna, provendo um significante do mestre substituto para a dimensão imaginária do nome-do- pai: "Olá. Meu nome é Mary, e eu sou uma alcoólatra".

A identificação com o sinthoma também tem outro sentido. O sinthoma corresponde àquele lugar e momento de transição do gozo do Outro, que existe anteriormente à intervenção do pai simbólico, para o gozo que significa a presença do pai (gozo fálico), e finalmente para o gozo que incorpora não a ausência ou a presença, mas o vazio do Outro/pai (gozo Outro). O gozo Outro usa o nome-do-pai para ir além das defesas associadas com as identificações rígidas e os usos imaginários da metáfora paterna. Traços de personalidade tornam-se traços de gozo contidos e libertos na natureza da personalidade como uma letra ou como um nome. Em vez de o sintoma funcionar como um nome para o sujeito, o nome do sujeito e o do pai tornam-se um sinthoma, um velho significante com novo sentido. O nome não funciona mais como paliativo para a falta no Outro ou no sujeito, nem como significante da falta enquanto forma imaginária de castração. O nome como sinthoma torna-se um significante do vazio simbólico e da independência do Outro (gozo).

Finalmente, Lacan declara que o analista é autorizado por si mesmo e por alguns outros. Ele não diz "em si mesmo" e com um mestre ou uma instituição-mestra. Esses alguns outros são analistas, e não necessariamente oficiais de uma instituição. O analista, mais do que identificado com a profissão ou com o nome e os ganhos associados à perícia profissional, é uma metáfora para o sujeito que sabe sobre não saber. O analista sabe sobre o inconsciente enquanto o não conceitual, ou além do conceitual, e assim sobre aquilo que nunca é totalizado em uma teoria. Um vão ou vazio sempre se mantém como espaço entre o sujeito ou o analista e a doutrina e instituição da psicanálise. O Outro da teoria simbólica e da instituição deve manter-se um Outro barrado (Ø) para que a psicanálise continue a evoluir enquanto teoria e prática. O real, enquanto vazio, nunca é totalizado em uma teoria ou em uma estrutura simbólica. Isso força o simbólico a manter-se um sistema aberto, em perpétua construção e permutação.

Da mesma maneira, ao término da análise, o sujeito mantém-se um ego barrado ($), mas por razões diferentes. Nesse ponto, talvez o oito do infinito (8), na forma de uma fita de Moebius, seria uma melhor representação do sujeito. Em vez de dividir o sujeito, a barra no sujeito ($) torna-se um laço, um elo ou um fio flexível entre o sujeito e o Outro (8). A estrutura determina o sujeito, e o sujeito permuta a estrutura. Agora o sujeito é barrado não por conta de uma divisão neurótica, mas porque o sujeito em si não tem uma identidade inerente além daquela provida pela estrutura simbólica. Por outro lado, a autonomia é preservada na medida em que o sujeito se torna o agente da autonomia do simbólico. Um sujeito singular representa uma instância da permutação da estrutura simbólica geral.

 

Referências

Lacan, J. (1968). Proposition du 9 octobre 1967 sur la psychanalyse de l'École. Scilicet, 1,14-30.         [ Links ]

Lacan, J. (1976-1977). [Sessão 6]. In J. Lacan, Le séminaire, livre 24: l'insu que sait de l'une-bévue s'aile à mourre. https://bit.ly/3pPm1mZ        [ Links ]

Safouan, M., Julien, P. & Hoffman, C. (1997). Malestar en el psicoanálisis: el tercero en la institución y el análisis de control. Nueva Visión. (Trabalho original publicado em 1995)        [ Links ]

 

 

Recebido em 12/10/2021
Aceito em 26/10/2021

 

 

1 nt: a tradução do original em francês para o inglês foi feita pelo autor do artigo.

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