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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021

 

TEMÁTICOS

 

Entre o verdadeiro e o falso self psicanalítico: a importância da supervisão na formação de um analista

 

Between the true and the false psychoanalytic self: the importance of supervision in training an analyst

 

Entre el verdadero y el falso self psicoanalítico: la importancia de la supervisión en la formación de un analista

 

Entre le vrai et le faux self psychanalytique: l'importance de la supervision dans la formation d'un analyst

 

 

Marlene Rozenberg

Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). São Paulo / marlene.rozenberg@gmail.com

 

 


RESUMO

Neste trabalho, a autora aborda questões acerca do self analítico usando a teoria de verdadeiro e falso self para abarcar os movimentos mentais do analista, presentes na experiência de supervisão. Está implícita a importância da transmissão da psicanálise, considerando os aspectos da função do analista e de seu contínuo processo de vir a ser.

Palavras-chave: análise, falso self, função analítica, supervisão, verdadeiro self


ABSTRACT

In this work, the author approaches questions about the analytic self, using the theory of the true and false self to encompass the analyst's mental movements present in the supervision experience. The importance of the transmission of psychoanalysis is implicit, considering the aspects of the analyst's function and their continuous process of being.

Keywords: analysis, false self, analytic function, supervision, true self


RESUMEN

En este trabajo, el autor aborda preguntas sobre el self analítico utilizando la teoría del self verdadero y falso para abarcar los movimientos mentales del analista presentes en la experiencia de supervisión. La importancia de la transmisión del psicoanálisis está implícita considerando los aspectos de la función del analista y su continuo proceso de devenir.

Palabras clave: análisis, self falso, función analítica, supervisión, self verdadero


RÉSUMÉ

Dans ce travail, l'autrice aborde des questions sur le self analytique en utilisant la théorie du vrai et du faux self pour embrasser, les mouvements mentaux de l'analyste présents dans l'expérience de supervision. L'importance de la transmission de la psychanalyse y est implicite considérant les aspects de la fonction de l'analyste et de son processus continu de devenir.

Mots-clés: analyse, faux self, fonction analytique, supervision, vrai self


 

 

 

É importante que o êmbrio-analista, o candidato, possa ousar usar sua imaginação e articulá-la numa supervisão. Essa é uma das razões do porquê eu considero uma supervisão como sendo possivelmente valiosa: se pelo menos aqueles que me procuram ousarem dizer o que pensam, e usarem essa ocasião como forma de se exercitarem na articulação daquilo que pensam, através da terminologia verbal, ou qualquer outra que descubram, eu já me dou por feliz.
WILFRED R. BION

 

Como nos tornamos analistas? Como desenvolvemos a função psicanalítica? Como cada analista cria seu próprio estilo, método e identidade?

A função analítica nos propõe inúmeras questões. Qual a finalidade da análise? E da supervisão? Que tipo de objeto é o analista? E o supervisor? Essas indagações estão presentes e implícitas na experiência de supervisão, já que através dela, além da própria análise, se dá a transmissão da psicanálise. Cada analista tem incorporado dentro de si suas teorias, experiências analíticas e elaborações pessoais. Tem ainda, incorporada dentro de si, toda a história da psicanálise, que é descoberta e redescoberta na sua prática clínica. E sua própria história, banhada por suas teorias encarnadas, também se faz presente.

Segundo André Green (1972/1988), o analista não é um objeto real nem imaginário. Tampouco é um objeto simbólico. Ele é um objeto potencial, que induz transformações, sonhos e expansão do mundo imaginativo. Juntamente com o analisando, forma o objeto analítico, que só existe se for um objeto entre, uma relação intersubjetiva. A postura do analista (holding e continência) ajuda o paciente a se libertar de sua carga alienante, e o leva a compartilhar uma verdade suposta possível entre analista e analisando, cujo reconhecimento auxilia na emancipação mútua. O objetivo da análise, diz Green, é preparar o paciente para a autoanálise, e ainda capacitar o paciente a usar um objeto que deve sobreviver após sua destruição, alcançando a capacidade para estar só. Esse percurso acontece primeiro na presença do analista e depois sem ele, como se estivesse potencialmente presente. Essa é uma das possíveis abordagens do percurso a trilhar, no qual o processo é mais importante do que qualquer posição a ser alcançada.

E a supervisão do analista? O que podemos pensar sobre o seu percurso? Cabe incluir as questões transferenciais nas relações com a instituição? Independentemente do aspecto formal, precisamos considerar que é a experiência vivida nesse enquadre que importa no processo de formação.

Esse enquadre funciona como uma rede de sustentação para o analista, que precisa do outro para compartilhar e elaborar suas experiências clínicas.

O analista é continuamente questionado através do encontro com seus analisandos. Suas reações contratransferenciais, que terão oportunidade de ser elaboradas na sua própria análise, fazem parte da evolução de sua função analítica.

O supervisionando, aquele que procura supervisão para pensar junto com outra mente, que se supõe mais experiente, busca-a para criar novos campos de pensamento. Cria-se, assim, um vínculo entre supervisor e supervisionando, em um enquadre específico que sofrerá influências do vértice teórico, das personalidades envolvidas e do afeto presente. O vínculo transferencial e contratransferencial que ocorre nessa dupla não é objeto de análise na supervisão, mas é elemento útil para compreender o que o supervisionando está comunicando de sua experiência. Essas vivências não se descolam da concepção antropológica de mente e do aspecto humano do supervisor, pois sentimentos conscientes e inconscientes estão mobilizados. Os estilos pessoais de um e de outro se encontram e criam um espaço de troca e questionamento. Para que esse jogo aconteça, a liberdade de ambos é fundamental. É essa liberdade que permite que supervisor e supervisionando produzam entre eles um campo fértil, tanto quando se trata de aspectos ligados à constituição do self como quando se trata de aspectos mais desenvolvidos, que dizem respeito a áreas edipianas.

Winnicott se preocupava com a questão do falso self psicanalítico. No seu texto sobre o uso do objeto, comenta de maneira magistral a importância de o analista alcançar áreas psicóticas no seu analisando.

É na análise do caso de tipo fronteiriço que se tem a oportunidade de observar os delicados fenômenos que apontam para a compreensão dos estados verdadeiramente esquizofrênicos. Pela expressão "caso fronteiriço" quero significar o tipo de caso em que o cerne do distúrbio do paciente é psicótico, mas onde o paciente está de posse de uma organização psiconeurótica suficiente para apresentar uma psiconeurose, ou um distúrbio psicossomático, quando a ansiedade central psicótica ameaça irromper de forma crua. Em tais casos, o psicanalista pode ser conivente, durante anos, com a necessidade do paciente de ser psiconeurótico (em oposição a louco) e de ser tratado como tal. A análise vai bem e todos manifestam satisfação. O único inconveniente está em que a análise jamais termina. Pode ser concluída e o paciente pode mesmo mobilizar um falso eu (self) psiconeurótico para finalizar o tratamento e expressar gratidão. De fato, porém, ele sabe que não houve alteração no estado (psicótico) subjacente e que analista e paciente tiveram êxito em conluiar-se para provocar um fracasso. Mesmo esse fracasso pode ser valioso se analista e paciente o reconhecerem. (1969/1975, p. 122)

A identidade psicanalítica ou o self psicanalítico está em movimento ininterrupto. Podemos fazer uma analogia com o processo de desenvolvimento do self na vida de uma pessoa que está em contínuo estado de vulnerabilidade. O self se refere à unidade oscilante conquistada a partir de experiências que conduzem a pessoa à realização do que é eu. Uma sequência de experiências de encontro conduz o self rumo à unidade. Usando esse processo como analogia, um supervisionando que tem a psicanálise como objeto de trabalho e de experiência entra em contato com as teorias, com os supervisores e com seu analista, além de conhecer vários modelos de concepção do desenvolvimento humano com seus referenciais particulares. Esse nosso supervisionando imaginário vivencia, de início, um estado de não integração, por vezes confuso na formação do self analítico. No entanto, com vivências e capacidade de elaboração, o processo de integração vai se tecendo. O trabalho clínico, a análise e a supervisão dão oportunidades de fazer as articulações teórico-clínicas que determinarão o método de trabalho do supervisionando. Cria-se um espaço potencial interno e externo ao qual supervisor e supervisionando recorrem para transitar e sonhar suas vivências e pensamentos.

Esse é o espaço em que se cria o lugar a partir do qual se pode pensar a vivência clínica e o desenvolvimento da identidade psicanalítica.

Seguindo o pensamento de Rodulfo (2009), quando digo verdadeiro e falso self psicanalítico, não estou me referindo a instâncias psíquicas, e sim a vivências paradoxais implícitas na função analítica e na criação de um self pessoal. O falso self é tão verdadeiro quanto o verdadeiro - não há nada mais verdadeiro que o falso self. "O chamado verdadeiro self é nada, em termos de substância maciça" (Rodulfo, 2009, p. 247).

Quando Winnicott fala da importância do se sentir vivo enquanto analista, ele se refere à autenticidade e à necessidade de libertar-se de dogmas e verdades considerando a singularidade de cada um na dupla. Penso que essa afirmação é preciosa quando consideramos a dupla supervisor-supervisionando. O cuidado para não banalizar e não usar ingenuamente a espontaneidade, e não retirar o valor dos conteúdos teóricos que permeiam o crescimento, faz parte da delicadeza dessa relação. Tem papel fundamental a questão do que é verdadeiro em cada um dessa dupla. O self verdadeiro é atópico, ou seja, sentir-se real não depende de um tópos, nem é função de instância psíquica. O self está diretamente amalgamado ao sendo.

O processo de integração entre o falso e o verdadeiro self se dá no espaço potencial interno do supervisor e do supervisionando, processo paradoxal sem fim.

Essas experiências se revelam nas relações transferenciais e contratransferenciais, que podem caminhar em direção a situações em que se desenvolvem formas artificiais de trabalhar. Se houver submissões inconscientes do supervisionando aos seus pares e à instituição, sua singularidade, seu estilo pessoal e sua criatividade ficarão submetidos. Essas submissões interferem na percepção, na intuição e no estreitamento da capacidade analítica. A falta de liberdade de usar a própria percepção e o apego a ideologias psicanalíticas desvirtuam a identidade psicanalítica. Questões persecutórias e narcísicas também podem impedir o uso da autenticidade do supervisionando.

Por vezes, observo em minha experiência que, na supervisão, quando o supervisionando fala de seu paciente, ele descreve muito do que não foi verbalizado na sessão, o que frequentemente já contém uma compreensão baseada em sua contratransferência. O contato com o supervisor, se existe confiança e amizade, legitima sua espontânea intuição e sua função psicanalítica em curso de se estabelecer.

Podemos dizer, com base no olhar de Bollas (1992a), que o analista - e incluo aí o supervisor - tem funções múltiplas, entre as quais está aquela cuja finalidade é liberar o idioma pessoal do supervisionando.

Como estou fazendo analogia entre o processo de expansão do self e as várias funções que o supervisor tem, penso ser importante destacar que o estilo de cada analista precisa ser descoberto, e que a troca e a experiência de dois analistas trabalhando juntos implicam uma rede de relações presentes e silenciadas. O sofrimento inerente a esse processo permite abrir brechas de liberdade pessoal, com as quais é possível exercer o trabalho clínico que visa o processo de subjetivação fundado na experiência e na abertura, para que a singularidade do analista seja participante ativa. Um saber sobre si mesmo através da análise pessoal é um dos fundamentos. Cada ser elabora um conhecimento e um tornar-se si mesmo em suas relações.

Outro aspecto que o supervisor precisa enfrentar é a escolha entre abordar a experiência relacional do paciente (escolhido) com o seu analista (o supervisionando), a experiência centrada no paciente, ou a experiência centrada no supervisionando e na interação dele com o supervisor.

Em todos esses casos, precisamos considerar os atravessamentos possíveis quando a questão está ligada à instituição. A pressão do superego psicanalítico e a preocupação com a instituição e com a escrita de relatórios estão fortemente presentes, desviando frequentemente o supervisionando de sua autenticidade e da proximidade com as repercussões do material clínico em sua mente.

Baseada em minhas experiências de supervisão, tenho verificado as angústias do supervisionando quanto a estar exercendo sua função analítica de forma "correta", além de se fazer presente a resistência do supervisionando à própria análise (Boraks & Rozenberg, 1999). Desde as primeiras entrevistas se faz visível a hesitação do analista/supervisionando em propor análise ao paciente com um enquadre em que o número de sessões é um dos requisitos. Conversar sobre a criação de um espaço analítico torna-se imprescindível, e a resistência, a culpa e a própria dificuldade em lidar com o objeto analítico merecem atenção da dupla. O método de trabalho é diretamente influenciado pelas concepções teóricas do analista/supervisionando em questão, pela sua análise, elementos presentes em suas escolhas e em suas resistências. O setting interno do supervisor e do supervisionando determina a qualidade do vínculo com a psicanálise. Inclui a hospitalidade do analista, a escuta e a manutenção da função analítica, com sua atenção flutuante e abertura para o desconhecido.

A perda da função analítica é algo que assombra e preocupa o supervisionando. O superego analítico pode ser confundido com a instituição, e muitas vezes funciona de forma coercitiva, impedindo que o supervisionando use o espaço para expressar suas angústias no trajeto de vir a ser psicanalista. A normalização do supervisionando é um risco. Outro risco nessa situação é o de estar presente um falso self supervisor analítico, levando o analista/supervisor a realizar uma falsa supervisão. Utilizando o conceito de falso self, de Winnicott, estendo a questão da falsa supervisão para cada um de nós. Esse falso self está vinculado à crença de que, para o supervisor, a supervisão é um momento de relaxamento, o que favorece o uso do supervisionando como continente para as angústias e o cansaço do trabalho cotidiano do analista/supervisor. As pressões internas do supervisor, em todos os níveis, podem levá-lo, sem ter consciência disso, a inverter a relação continente-contido, criando uma situação de pouca hospitalidade e escuta, na qual a questão ética também é importante de ser considerada. As condições éticas estão sempre presentes na situação clínica e na situação de supervisão, ou seja, a importância do setting, do holding e da escuta necessita estar presente. O termo supervisão poderia ser substituído por intervisão, já que o supervisor não ocupa um lugar de superioridade.

Freud afirma:

Os analistas são pessoas que aprenderam a praticar uma arte específica; a par disso, pode-se conceder-lhes que são seres humanos como quaisquer outros. ... Parece que certo número de analistas aprende a fazer uso de mecanismos defensivos que lhes permitem desviar de si próprios as implicações e as exigências da análise (provavelmente dirigindo-as para outras pessoas), de maneira que eles próprios permanecem como são e podem afastar-se da influência crítica e corretiva da análise. Tal acontecimento poderia justificar as palavras do escritor (Anatole France: La révolte des anges) que nos adverte que, quando se dota um homem de poder, é difícil para ele não utilizá-lo mal. (1937/1969, p. 283)

Quando o supervisionando apresenta seu material clínico, faz comentários sobre sua experiência com determinado paciente que frequentemente apontam para o não dito na sessão. Ele espera que o supervisor apresente alguma outra verdade sobre seu paciente, não percebendo que tem seu próprio raciocínio e percepção a partir da experiência que viveu. Espera uma legitimidade que venha de fora de si mesmo. É por meio desse encontro que surge a oportunidade de o supervisionando entrar em contato com seus sentimentos e pensar sobre eles, criando uma compreensão que faça sentido para o caso em questão.

Mannoni observa:

Se os analisandos se interessam com frequência por outras formas de terapia, é porque os analistas falharam em manter nos candidatos o interesse pela psicanálise. E se há uma crise, ela está no nível das análises didáticas e supervisões. O ensino da psicanálise deixou de ser privilégio das sociedades de psicanálise, mas o que compete às sociedades é oferecer uma formação especificamente analítica, diferente dos efeitos do discurso universitário. (1988/1989, p. 34)

O olhar e a escuta do supervisor devem estar sensíveis a essa rede emocional, inclusive às suas próprias emoções. As reações contratransferenciais do supervisor são fundamentais, já que este pode favorecer (ou não) o desenvolvimento da identidade do supervisionando. A psicopatologia do supervisor, com seus conflitos e angústias pessoais, por mais que ele tenha suas experiências de análise pessoal, pode emergir, uma vez que seu inconsciente é sempre dinâmico. Suas camadas mais primitivas estão acionadas e podem vir à tona em função de suas identificações com o supervisionando ou com o paciente apresentado.

Consideremos a identidade psicanalítica do supervisor, com seu idioma pessoal, objetos internos, história, análises, leituras, experiências de vida, bagagem, hospitalidade e respeito à alteridade. O supervisor é geralmente procurado pelo supervisionando em razão de aspectos pré-transferenciais, ou seja, aqueles que contêm alguma identificação.

Uma das funções do supervisor é ajudar o supervisionando a reconhecer quais teorias estão implicadas no seu manejo do processo com o paciente. Essa explicitação favorece a ampliação do espaço psicanalítico interno que ele pode frequentar e utilizar. Além disso, ponto fundamental, o supervisor precisa auxiliar o supervisionando a identificar seus sentimentos contratransferenciais e a pensar profundamente sobre eles.

Assim, a supervisão é uma experiência que contribui para o desenvolvimento de recursos pessoais na formação do supervisionando. Fazendo uma parceria mais próxima com Winnicott, é possível o supervisor ajudar o supervisionando a pensar sobre o lugar que o objeto ocupa e o manejo que se propõe em cada caso.

Segundo Safra, o manejo do analista precisa ser levado em conta. O autor menciona três possibilidades:

O analista pode ser analista-objeto, sem presença. Perspectiva que preocupou Winnicott, quando discutia situações nas quais a análise levava o analisando ao estabelecimento de um falso self psicanalítico. O analista precisa estar no campo psicanalítico realizando as intervenções demandadas pelo processo. Nessa posição o analista pode estar disponível como objeto, mas precisa também ser presença. Ele só será presença se puder ser silêncio, que acolhe a singularidade do outro. Essa interface entre intervenção analítica e silêncio-presença é aspecto ético e fundante da situação analítica. Complicado é também o analista que só é presença, só silêncio. Nesse caso ele acaba convidando o analisando a cair em um abismo insuportável. A experiência de encontro do objeto possibilita a ação no mundo, a constituição de objetos favorecendo a abertura para a realidade. A experiência de presença possibilita o estabelecimento do estado de quietude e o encontro do silêncio na interioridade do si mesmo. O silêncio na interioridade do si mesmo oferta morada ao núcleo do self que jamais se comunica. (2009, p. 78)

Enquanto o supervisionando escuta seu paciente, ele o faz com seu self total e sua singularidade, o que torna cada encontro único. Quem aceita uma pessoa para tratamento analítico está assumindo uma enorme responsabilidade, que exige visão, habilidade, empatia, intuição e capacidade de identificação para compreender o outro. Todos esses aspectos também estão presentes na experiência de supervisão. É uma experiência compartilhada. Fundamental aqui é a capacidade de uso de identificações cruzadas, ou seja, a capacidade de colocar-se no lugar do outro.

Grinberg oferece uma abordagem interessante quando afirma: "O terapeuta troca seu papel de relatar a experiência que teve com seu paciente pelo 'experimentar' a experiência de seu paciente, ou seja, o supervisor pode encontrar evidências de que o supervisionando 'atua' uma identificação com seu paciente" (1975, p. 39).

Como diz Ogden (1994/1996), a psicanálise é a criação de um sujeito analítico que não existia antes. O analista é um permanente vir a ser, e a supervisão contribui para tal, permitindo que se observe a função analítica do supervisionando ao sentir, conversar e pensar sobre o seu paciente.

Podemos considerar que o paciente é um objeto interno do supervisionando? Quem é o paciente na experiência da supervisão? Essas são questões que caberiam na análise do supervisionando. Mas supervisão não é análise. Entre supervisor e supervisionando se estabelece um espaço de paradoxo, que contém um vetor em direção à análise e um vetor que mantém a direção para fora desse horizonte. A função do supervisor é ficar atento às manifestações contratransferenciais sem invadir o campo da análise pessoal. Assim, na mente do supervisionando, pode se formar uma triangulação em que analista e supervisor constituem um casal, com fantasias e coloridos transferenciais.

O processo analítico e a função analítica contêm dois elementos opostos, afirma Bollas (1992b), um desconstrutivo e outro elaborativo. Penso ser possível estender isso para a supervisão. É fundamental conviver com esses opostos, os quais não devem ser resolvidos, pois a apropriação do viver criativo pela subjetividade humana depende do encontro com o outro e do uso da destrutividade, sem a qual essa realização não se dá. Por vezes, essa vivência pode trazer sofrimento e desilusão ao supervisionando, mas o processo consiste em agregação e assimilação, já que ele está em busca de realizar seu estilo pessoal. Na supervisão está incluída essa experiência de análise e síntese, desconstrução e reconstrução, para que ocorra evolução rumo à simbolização e a novas representações de si mesmo e de suas experiências com o paciente apresentado.

Segundo Akhtar (2016), escutar se dá pela mente, e ouvir é uma função corporal. Ouvir e escutar podem ser afetados por interferências e ruídos externos e internos. A supervisão precisa considerar o que não pôde ser escutado no encontro do analista/supervisionando com seu paciente e esclarecer as identificações e contraidentificações tanto com seu analista quanto com seu paciente.

Roussillon (2012) aprofunda essa questão dizendo que, quando o analista escuta seu paciente, se preocupa com a articulação no interior dele, ajudando-o com o que o paciente mostra, mas não vê, o que não ouve dele mesmo, mas faz o analista ouvir. E o analista deve sempre questionar o método analítico que está usando para tal.

Quando eles [os psicanalistas] fazem supervisões nas formações analíticas, será que não é preciso falar não apenas sobre o que eles devem ou não devem dizer, mas também sobre como, com que voz, com que tom, com que ritmo, com qual postura psíquica? Será que é dito nas supervisões se eles devem falar de cima, com um tom que fala de cima ou com um tom perto do outro, perto da emoção do outro? Quando se está face a face, será que as supervisões fazem com que o gestual seja trabalhado? ... Será que o nosso corpo, a nossa aparência, o nosso cheiro... toda a nossa expressividade não suscita algo no modo de relação? (Roussillon, 2012)

Toda comunicação presente é expressão a ser considerada. Na experiência de supervisão o corpo também se faz presente, e a escuta revela as diferenças que apontam para a complexidade da experiência.

A tarefa do supervisor é tornar conscientes as teorias vacilantes do supervisionando e examiná-las à luz do que outros analistas já colocaram à nossa disposição. A intenção é focalizar a possibilidade de a prática se estereotipar e se manter num plano teórico.

Segundo Bollas,

a análise se satisfará no "conhecer" a solicitação transferencial predominante, respondendo a ela apropriadamente e lhe fornecendo um "objeto". Creio que muito dessa habilidade é aprendida operacionalmente por meio da análise de si próprio, e em um sentido menor, mas não menos significativo, na supervisão. O analista fomenta o desenvolvimento, internalizando regras para ser um analista, em relação a um paciente, por meio de experiências de sua própria análise. Como o paciente, ele aprende mediante essa dialética dos paradigmas operacionais dos egos (o seu próprio e o ego analítico do seu analista) para o processar psicanalítico dos elementos da vida humana: fantasias, sentimentos, estados de espírito, pensamentos, comportamentos, estados somáticos, e assim por diante. (1992a, p. 125)

A posição do supervisor, com seus objetos internos e suas teorias, é uma questão polêmica. Cada abordagem cria objetos psicanalíticos diferentes. A função analisante oferece sentido e significado ao mundo interno, e cria ou restabelece as potencialidades da dupla.

Assim como na análise o paciente desenvolve o self verdadeiro usando partes diferentes da personalidade do analista, também na supervisão o supervisionando usa partes da personalidade do supervisor que se revelam em seu estilo e em sua forma de ser.

Bion (1967/1977) fala do "analista que é" e do "analista que não é", o qual, por isso mesmo, corre o risco de se tornar um pseudoanalista. Refere-se a Melanie Klein quando afirma que em todos os analisandos seria possível detectar mecanismos psicóticos, e que estes precisariam ser evidenciados para que a análise fosse satisfatória. Concorda com a ideia de que não há postulante à análise que não tema os elementos psicóticos em si mesmo. Compreende haver quem busque lidar com esse medo tornando-se candidato, e o perigo está em acreditar que ser aceito para a formação oficial seja garantia de imunidade. Com a ajuda do próprio psicanalista, poderá seguir fugindo do seu temor e terminar por ser um pseudoanalista.

Todos esses aspectos evidenciam a profundidade das necessidades dos cuidados éticos envolvidos. A relação supervisor-supervisionando em que há interação de subjetividades implica que ambos tenham um self em contínuo processo de ser ao exercer essas funções. O espaço potencial se cria e a comunicação se dá, o objeto analítico se faz presente e o self analítico de cada um está em ação no seu vir a ser.

Viver criativamente implica atitude ativa em relação à realidade e às submissões despersonalizantes que exercem forças contrárias, estagnando e impedindo a função criativa analítica. Usar a criatividade do objeto (supervisor ou analista) não significa uma passividade enfraquecedora de si mesmo, como se restasse somente a submissão, a normatização e a adaptação, levando a um trabalho mecanizado e dessensibilizante. Esse seria o falso self analítico do analista, que está continuamente em tensão dialética na busca da forma mais verdadeira e consistente de exercer psicanálise e de ser si mesmo. A criatividade pessoal implica poder destruir continuamente os objetos subjetivos e idealizados para se apropriar e se autorizar de seu pensamento psicanalítico.

 

Referências

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Recebido em 29/11/2021
Aceito em 6/12/2021

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