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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021

 

TEMAS LIVRES

 

Lacan, esteta? Anotações sobre a clínica do real

 

Lacan, aesthete? Notes about the clinic of the real

 

Lacan, ¿esteta? Notas sobre la clínica de lo real

 

Lacan, esthète ? Notes concernant la clinique du réel

 

 

Marcos de Jesus Oliveira

Docente da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Foz do Iguaçu / oliveiramark@yahoo.com.br

 

 


RESUMO

O objetivo deste ensaio é desenvolver a hipótese segundo a qual é possível ouvir uma estética na proposta ética da psicanálise lacaniana. Para tanto, será discutida a clínica do simbólico tal como delineada, sobretudo, no seminário A ética da psicanálise, para em seguida apresentar a clínica do real desde o seminário O sinthoma, na qual a problemática da escrita do gozo se radicaliza. No desenrolar do debate, pretende-se destacar como, progressivamente, Lacan aprofunda a experiência analítica enquanto poiesis, ato de criação, um gesto de abandono de uma "vontade de poder", no sentido foucaultiano, para a afirmação de uma "vontade de criação", para dizê-lo nietzschianamente, própria às artes, e portanto como o avesso da biopolítica, de uma ordem de controle dos corpos e da subjetividade.

Palavras-chave: clínica do real, sinthoma, estética, Lacan


ABSTRACT

The aim of this essay is to develop the hypothesis according to which it is possible to hear an aesthetic in the ethical proposal of Lacanian psychoanalysis. In order to do so, the symbolic clinic will be discussed as outlined in the seminar The ethics of psychoanalysis to then present the clinic of the real since the seminar The sinthome in which the problem of writing of jouissance is radicalized. In the course of the debate, it is intended to highlight how, progressively, Lacan deepens the analytical experience as an act of poiesis, creation, a gesture of abandonment of a "will of power", in the Foucauldian sense, for an affirmation of a "willingness to create", to put it in a Nietzschean way, as the reverse of biopolitics, of an order of control over bodies and subjectivity.

Keywords: clinic of the real, sinthome, aesthetics, Lacan


RESUMEN

El objetivo de este ensayo es desarrollar la hipótesis de que es posible escuchar una estética en la propuesta ética del psicoanálisis lacaniano. Con este fin, se discutirá la clínica de lo simbólico, sobre todo, como se describe en el seminario La ética del psicoanálisis, y luego presentaremos la clínica de lo real desde el seminario Le sinthome en el que se radicaliza el problema de la escritura del goce. En el transcurso del debate, se pretende destacar cómo, progresivamente, Lacan profundiza en la experiencia analítica como poiesis, acto de creación, un gesto de abandono de una "voluntad de poder", en el sentido de Foucault, para una afirmación de una "voluntad de crear", en el sentido de Nietzsche, propio de las artes y, por lo tanto, como el reverso de la biopolítica, de un orden para controlar los cuerpos y la subjetividad.

Palabras clave: clínica de lo real, sinthoma, estética, Lacan


RÉSUMÉ

L'objectif de cet essai est de développer l'hypothèse selon laquelle il est possible de s'entendre une proposition éthique de la psychanalyse lacanienne. Pour cela, on discutera de la clinique du symbolique telle qu'elle a été délinéée surtout pendant le séminaire L'éthique de la psychanalyse pour ensuite présenter la clinique du réel depuis le séminaire Le sinthome, dans laquelle la problématique de l'écriture de la jouissance se radicalise. Pendant le déroulement du débat, on a l'intention de souligner comment Lacan approfondit progressivement l'expérience analytique en tant que poïétique, ou poiesis, un acte de création, un geste d'abandon d'une « volonté de pouvoir » dans le sens foucaldien, vers une affirmation d'une « volonté de création » pour le dire à la façon nietzschéenne, propre aux arts et, donc telle que l'inverse de la biopolitique, d'un ordre de contrôle des corps et de la subjectivité.

Mots-clés: clinique du réel, sinthome, esthétique, Lacan


 

 

Introdução

Com Hegel (2014), o desejo se tornou uma categoria fundamental na compreensão das relações entre sujeitos e objetos, sobretudo porque a modernidade inauguraria, em sua leitura, uma era cuja marca seria a busca incessante e infindável por uma satisfação impossível. Na esteira deste, Jacques Lacan (1999) estabeleceu uma diferença entre necessidade, demanda e desejo, posicionando a primeira no reino da biologia, a demanda na ordem do amor, e o desejo, na do simbólico. Ao ser situado na dimensão do significante, o desejo se tornou inteligível no nível das lutas por reconhecimento e suas trocas de sentido. O desejo passa a ser compreendido como o desejo do Outro, pois só se aprende a desejar no seio de uma comunidade humana a partir da qual seus limites e alcances se estabelecem em uma estabilidade precária e instável.

Esse aspecto também foi, amplamente, explorado por Gilles Deleuze e Félix Guattari (2001), para quem uma das primeiras tarefas do socius é codificar o desejo, determinando as linhas de seu reconhecimento, embora a ideia do desejo como falta lhes parecesse insuportável.

O papel atribuído ao simbólico informará, em larga medida, a discussão do desejo na chamada primeira clínica de Lacan, conforme se vê no seminário intitulado A ética da psicanálise (Lacan, 1986). No referido seminário, Lacan trabalha o conceito de fora-do-significado, uma espécie de causa primeira, o objeto pequeno a, a causa do desejo. É, pois, esse fora-do-significado que anima a cadeia metonímica pela qual o desejo desliza incessantemente sem encontrar uma ancoragem para sustentá-lo. Realizar um desejo seria, paradoxalmente, o próprio fim do desejo. O desejo é sempre da ordem de um movimento contínuo, e seu nomadismo dá a medida - ou a desmedida - da moral humana, estando aí enraizada. Tal leitura fará Lacan enfatizar o caráter perverso da experiência analítica e sua tendência a ser o avesso da civilização e suas promessas usuais de felicidade.

No entanto, ao aprofundar a problemática do gozo na chamada clínica do real, Lacan complicou a produção desejante, não a abandonando inteiramente, como sugerem alguns, mas situando-a em outro lugar (Miller, 2009). Afinal, o gozo, ainda que não esteja totalmente no real, é aquilo que resiste à simbolização e, resistindo a esta, faz furo, impedindo consistência ou estabilidade e gerando uma espécie de "eterno retorno do mesmo". A clínica do real deixa de ser uma mera clínica estrutural centrada no nome-do-pai e na interpretação dialetizante para se centrar no falasser, nas relações entre fala e corpo (Miller, 2009). Tal problemática será, extensamente, desenvolvida no seminário O sinthoma, dedicado a James Joyce (Lacan, 2007). O final de análise se pauta, então, por um identificar-se com o próprio sinthoma, com aquilo que há de mais singular e irredutível à constituição do sujeito. O inconsciente, estruturado como linguagem, é rearticulado como um inconsciente real.

No desenrolar do breve debate apresentado, é possível formular uma hipótese, qual seja, a de que o pensamento lacaniano se encaminha, progressivamente, para a experiência analítica enquanto poiesis, ato de criação, cujos germes já aparecem no seminário A ética da psicanálise, ainda que de forma limitada dado seu caráter estrutural, sendo reconfigurada no já citado seminário dedicado a James Joyce. A referência à escrita e à literatura parece o aprofundamento da psicanálise como um gesto de abandono de uma "vontade de poder", no sentido foucaultiano (Foucault, 1988), para uma afirmação de uma "vontade de criação", para dizê-lo nietzschianamente (Nietzsche, 2007), própria às artes, e portanto como a avesso da biopolítica (Laurent, 2016). Dito de outro modo, é possível ouvir uma estética (da existência e também a injunção de um cuidado de si) na proposta teórica lacaniana, nas articulações entre escrita e gozo.

 

O simbólico e sua clínica: uma ética do bem-dizer

O seminário A ética da psicanálise está inserido nos desenvolvimentos da clínica do simbólico. Nessa época, a neurose é tratada como uma estrutura clínica, uma "atemporalidade sobredeterminante e como tal não possui história, ela é trans-histórica; nela domina a absoluta necessidade lógica" (Dunker, 2016, p. 194). Do mesmo modo que a neurose, a psicose e a perversão são consideradas estruturas clínicas. As três são definidas, respectivamente, por seus mecanismos que as põem em marcha: recalque, foraclusão e desmentido. As estruturas clínicas também são formas de organizar o laço social e, portanto, as maneiras de gozar em sua relação com a linguagem. Histeria e obsessão como duas das três categorias incluídas no espectro da neurose representariam, por exemplo, modos distintos de o sujeito se colocar frente ao gozo, de tentar dominá-lo.

Ao preferir tomar a via da inexistência de um objeto que satisfaça o desejo, Lacan acentuou o desejo como falta, como aquilo que não tem objeto. Há uma causa do desejo. Essa elaboração teórica é, em alguma medida, uma resposta à escola das relações de objeto, cuja tendência, na visão lacaniana, era enfatizar certa adaptação à ordem social existente através do estabelecimento de um "objeto suficientemente bom" encontrável na concretude da realidade empírica. Com Lacan, o desejo se tornou algo sem substância, um movimento perpétuo, incessante, incansável, deslize metonímico. A clínica do desejo é uma clínica centrada no simbólico, na interpretação e em suas leis que conformam a produção do sentido e da realidade socialmente compartilhada. Daí a centralidade da normatividade antropológica que o nome-do-pai assume nessa clínica, já que se apresenta como o ponto de basta a partir do qual a neurose, a psicose e a perversão serão teorizadas.

No já referido seminário, Lacan apresenta seu programa como uma discussão sobre a singularidade da contribuição freudiana à ética. Tal singularidade resulta de uma leitura estrutural em que a constituição do sujeito implica uma perda de gozo, do gozo absoluto, instituindo uma falta, célula mínima que fará o sujeito retornar a um mesmo lugar sem jamais encontrar o que perdeu, já que, de fato, nunca possuiu o objeto perdido. Criticando o "ideal do amor humano", o "desmascaramento" e o "ideal de não-dependência", tão comuns às reivindicações de certos analistas, Lacan dirá que a originalidade de Freud está em afirmar a gênese da experiência moral no desejo. O fora-do-significado funciona como um furo (trou), um traumatismo (troumatisme). Para dizê-lo com Lacan,

Das Ding é originalmente o que chamaremos de o fora-do-significado. É em função desse fora-do-significado e de uma relação patética a ele que o sujeito conserva sua distância e constitui-se num mundo de relação, de afeto primário, anterior a todo recalque. ... O recalque, não esqueçamos, constitui ainda um problema para Freud, e tudo o que ele dirá sobre o recalque em seguida não pode ser concebido, em seu extraordinário refinamento, senão como que respondendo à necessidade de compreender a especificidade do recalque em relação a todas as outras formas de defesa. (1986, p. 71)

Com isso, Lacan situa a psicanálise não tanto como uma terapêutica, mas, sobretudo, como uma ética, uma prática teórico-clínica cuja singularidade aduz reflexões sobre a ética para além das formas pelas quais foi tradicionalmente pensada. Não haveria na psicanálise um furor curandi, e o terapêutico viria como que por acréscimo. O "desejo do analista" é o de fazer o analisando se engajar na análise, querer saber de algo que não quer saber, o recalque. O recalque funciona como uma força psíquica que afasta o sujeito de sua verdade e o faz repetir aquilo que, aparentemente, não pretende repetir. Por essa razão, o desejo do analista significa implicar o sujeito no seu sofrimento, no seu gozo, no seu desejo, no seu sintoma. Fazê-lo desse modo supõe aprofundar a experiência simbólica em detrimento da influência, por vezes muito forte, do imaginário no modo de gozar do neurótico, cuja tendência parece bloquear a metonímica do desejo.

O objetivo da clínica do simbólico passa a ser a dialetização do desejo, cujo movimento parece bloqueado pelo imaginário, reino das consistências e das certezas. A perda das ilusões e dos grandes ideais perpassa a produção desse período como parte da função do analista, de seu desejo. A dúvida obsessiva, por exemplo, expressa a impossibilidade do desejo, já que é através dela que se mantém o desejo como inalcançável. Essa dúvida está muito bem representada no ser ou não ser de Hamlet, na culpa que o faz hesitar na vingança de seu pai envenenado. A dúvida de Hamlet diz respeito ao adiamento de seu desejo, é uma dúvida sobre a morte, sobre estar vivo ou morto. É como se o obsessivo acreditasse que a realização de seus desejos implicasse seu desaparecimento, sua consumação final. Para não desaparecer, o sujeito busca manter o desejo a distância. Se na histeria o Outro é capaz de responder ao apelo do sujeito, mas representa a impotência do poder, na neurose obsessiva ocorre o inverso: o Outro representa o poder absoluto e a incapacidade para responder a seu apelo (Quinet, 2017). A impossibilidade do desejo do obsessivo se deve, portanto, ao fato de que, no mundo, se depara com uma disjunção em relação a sua demanda.

Para a psicanálise, não há um bem absoluto ou supremo, como concebe a ética aristotélica; tampouco parece totalmente apropriado supor o prazer como um eixo orientador a uma proposta ética, tal como sugere o utilitarismo. O universalismo de um imperativo categórico de Kant assim como o universalismo de um gozo absoluto de Sade (Lacan, 1998) apresentam problemas semelhantes. A ideia de um valor absoluto ou o de um gozo absoluto produz aniquilação e não gera, necessariamente, uma vida de felicidade, já que supõe uma vivência colonizada pelo imaginário. Algo assim ocorre porque a ética da psicanálise está situada no desejo, ou melhor, numa compreensão bastante singular do desejo, numa ideia de que o sujeito não deve "ceder a seu desejo" e, portanto, ceder a ser sujeito cuja existência depende do simbólico.

O desamparo ontológico, socialmente acentuado pela modernidade ocidental, resulta do fato de que, como seres falantes, somos sujeitos barrados, divididos, marcados por um gozo impossível. Conforme a leitura de Michel Foucault em As palavras e as coisas (1968), o advento da modernidade representou o momento em que a ordem divina, o mundo real concreto ou a representação deixou de ser o fiador da verdade e da linguagem. A linguagem se abriu para o jogo: eis, pois, a aposta da ética da psicanálise. É no jogo do significante que a pulsão pode encontrar sua transformação diferencial, na repetição. A clínica do simbólico não pode oferecer outra coisa senão o próprio reconhecimento do desamparo, da falta, da incompletude do ser humano, de sua castração. É do reconhecimento da castração como inevitável ao surgimento do sujeito que torna possível a criação como um fenômeno humano. Tal aspecto aparecerá, de forma renovada, na clínica do real, na clínica da disjunção entre o real do corpo e a fala.

 

O real e sua clínica: uma ética mal-dita

Conforme visto, a clínica do simbólico supõe uma recusa à moral dos bens, reafirmando a direção da análise - e não do analisando - como um "não ceder de seu desejo". Ceder do desejo significa viver o desejo do Outro, viver no imaginário, na ilusão egoica, em sua estrutura paranoica, já que o desejo do Outro é uma ficção por não ser objetivável, por ser metonímico. A ética da psicanálise pressupõe o desrecalcamento, a assunção de um "não querer saber", para que desse trabalho se deem outros destinos à pulsão, outras formas de satisfação, ou ainda a sublimação. Isso é possível graças à intervenção nos mecanismos de resistência e ao trabalho sobre a transferência. O fazer falar, bem dizendo, é uma forma de operar uma outra relação do sujeito do inconsciente com seu gozo.

O dito lacaniano segundo o qual o desejo é sua interpretação (Lacan, 2016) é bastante revelador dos modos pelos quais a clínica do desejo é uma clínica calcada na linguagem, no significante. Por outro lado, a clínica do real privilegiará a escrita e a letra, que já apareciam desde o início do percurso lacaniano (Nancy & Lacoue-Labarthe, 1991). No seminário De um discurso que não fosse semblante, Lacan afirma que a "escrita, a letra, está no real, e o significante, no simbólico" (2009, p. 114). De tal compreensão será possível retirar inúmeras consequências importantes. De acordo com Eric Laurent,

[a] letra é perturbação lógica e a escrita, para Lacan, o sistema de notação das perturbações da língua, do fato de que a língua escapa à linguagem, e que há sempre, no que se diz, o que fica reservado, o que não chega a se dizer e que, no entanto, se escuta [entend]. A escrita permite levar isso em conta. Se ela aparece mais propícia a dizer o íntimo, não é porque é primeira, mas sim pode notar o indizível. Essa perspectiva, portanto, ao mesmo tempo recusa a "impressão primeira" e anuncia lalíngua. (2016, p. 27)

A letra é traço cuja ligação com a coisa se perdeu se considerarmos, por exemplo, o ideograma como a escrita na qual, em alguns casos, havia, por meio do traço, a imitação do que se pretendia representar. A escrita diz respeito, portanto, a uma inscrição, traços que perderam sua relação com o referente. A clínica da escrita é joyciana, pois, no lugar de tomar o nome-do-pai como momento fundador do sujeito, tende a abrir espaço a uma clínica da suplência, pluralização do nome-do-pai. A pluralização do nome-do-pai não deixou de reconhecer a importância desse significante na constituição da subjetividade, mas, ao destroná-lo de seu lugar estrutural, passou a dar-lhe outro estatuto. Para dizê-lo de outra forma, a pluralização acarreta a possibilidade de um jogo, uma circulação infinita do gozo, cuja renúncia se fez pela culpa como decorrência do mal-estar na civilização. O gozo da letra se situa além do sentido, no corpo do significante, ou seja, na articulação e disjunção entre inconsciente e gozo.

Essa perda da relação entre a coisa e sua representação é o que torna impossível a fixação do gozo. Se, na trajetória lacaniana do significante, a ênfase recai na destruição das identificações narcísicas de onipotência, fazendo o sujeito aceitar sua falta, reconhecer-se como faltante, a instância da letra expressa a necessidade de o sujeito reconhecer que seu gozo é uma tentativa de responder à disjunção entre corpo e fala. Identificar-se com o sinthoma se torna uma atitude ativa, de ser o que se é. Ecce homo. Se a psicanálise, sobretudo a lacaniana, foi inúmeras vezes acusada de dar continuidade à metafísica cristã da renúncia, da castração, com a ênfase na letra, afirma-se a potência de o sujeito existir em suas infinitas possibilidades, não como um gozo narcísico de si, mas como criação de formas de gozar, dada a própria impossibilidade de um gozo total ou absoluto. Parece já não se tratar de um desejo como falta, mas de um desejo a que falta a injunção da repetição do gozo.

A letra é, portanto, a tentativa faltosa da escrita da relação sexual, de fixação do gozo, da ordem da repetição. A re-petição, sendo repetição do mesmo, desloca a clínica do simbólico ou da representação. Quando, na introdução, aludimos à doutrina do eterno retorno, foi porque, por meio dela, Nietzsche tentou ultrapassar os limites da metafísica calcada na ideia de representação, o que, em uma aproximação aos termos lacanianos, seria o simbólico (cf. Nietzsche, 1998). A hipótese é a de que a falta não representa uma negatividade pela qual a positividade do real se afirma, mas é a positividade do real que se afirma pela negatividade do simbólico. O gozo como ato criador, libertação das forças ativas, potência estética à qual o sujeito é lançado em ex-sistência e à qual não pode se furtar sob a injunção de pagar o preço de uma histeria ou de uma obsessão, ou ainda de uma psicose.

A letra pretende fixar o gozo, dando-lhe uma materialidade. No entanto, esta não cessa de se escrever por causa da impossibilidade da relação sexual. Para dizê-lo de outro modo, vê-se aí um sujeito cujo deslize contínuo ocorre em decorrência de sua disjunção. O falasser é "um ser de fala que goza de seu inconsciente por meio do sinthoma" (Quinet, 2009, p. 167). Quer dizer, a não correspondência entre fala e corpo opera um movimento em que o sujeito busca sua amarração pelo sinthoma. Dessa maneira, a clínica do nó borromeano realça as novas modalidades de pagar a dívida que torna possível ao sujeito escapar à neurose ou à psicose. A escrita joyciana no seminário que leva seu nome revelaria o dinamismo de uma clínica voltada para aquilo que, na trajetória singular de cada sujeito, lhe permitiu lidar com o despedaçamento entre corpo e fala. A linguisteria joyciana nomeia, de forma mais apropriada, o campo do gozo como campo lacaniano, via régia para o real do gozo.

A importância do conceito de lalíngua (lalangue) será fundamental para situar a singularidade do sujeito frente a outros sujeitos. A invenção do termo busca captar o fato de que há satisfações que não estão condicionadas pela exigência do sentido. Nem tudo se torna interpretável na clínica. Se o desejo é deslize metonímico, conforme já colocado, o gozo representa algo imóvel, da ordem da repetição: "O gozo, contrariamente ao desejo, é um ponto fixo. Não é uma função móvel, é a função móvel da libido" (Miller, 2011, p. 53). A clínica do gozo penetra na subjetividade como um fenômeno-limite, um acontecimento que ameaça ocasionar o despedaçamento do sujeito. A ideia de uma identificação com o sinthoma está, portanto, ancorada na seguinte compreensão:

Acho que isso não tem o sentido de se identificar ao seu sinthoma, mas ser seu próprio sinthoma. Identificar-se a isso é reconhecer seu ser de sintoma, quer dizer: depois de tê-lo percorrido, livrar-se das escórias herdadas do discurso do Outro. Tomo a precaução de seguir precisamente seus enunciados. Identificar-se, diz ele, tomando suas garantias. Aqui, a palavra garantia pode surpreender, já que parece pertencer ao registro dos dois, no qual o Outro figuraria como garantia. (Miller, 2009, p. 143)

O objetivo da clínica do real já não é tanto como o da clínica estrutural, em que se supunha uma verdade decifrável em torno do sintoma e cuja interpretação contribuiria para fazer o recalcado emergir. Se a clínica do simbólico é aquela interessada em trazer à tona o recalcado, aquilo que o sujeito não quer saber, a clínica do real consiste em fazer o sujeito se haver com seu não querer fazer ou, ainda, seu não querer saber/fazer. O desejo do analista se torna, portanto, o de sustentar a experiência pela qual o sujeito deverá se identificar com seu fazer, com o singular de sua existência, com o irrepetível da condição humana. Para dizê-lo com Colette Soler, "identificar-se com o sintoma ... é parar de se fiar nele e, depois de reduzi-lo ao indecifrável, pôr uma suspensão definitiva na questão que ele suscitava" (2005, p. 204). Trata-se, portanto, de fazer o sintoma se desdobrar em sinthoma, de aceitá-lo como possibilidade de uma certa maneira de gozar.

A clínica do real não é um espaço privado cuja função, por vezes, se configurou como aquela que pretende inscrever o nome-do-pai ou dar consistência a esse significante-mestre quando supostamente mal estruturado. O pai se torna um sintoma, um modo de gozo. A clínica do real constitui uma potência política ainda que tudo esteja se passando em um espaço fechado, um lugar onde se confessam situações escandalosas ao ouvido público. Neurose e psicose deixam de ser meras manifestações de lugares estruturais para serem situadas também como formas de crítica social. Afirmar a potência do sinthoma como singularidade do sujeito é afirmar a potência contra as formas hegemônicas pelas quais o sujeito se vê limitado e construindo para si um mundo de ilusões, promessas de que a felicidade poderá ser encontrada no mercado, por exemplo.

A clínica do real é uma clínica da borda na medida em que e à medida que esta representa o limite, o lugar onde algo se manifesta de forma intensa, marcando o campo de tensão entre uma coisa e outra coisa. A borda como algo que sempre pode estar mais para lá de onde a colocamos põe em cena a análise como uma experiência-limite, de um sujeito descentrado de seu próprio gozo. O gozo fora do corpo, a experiência do fora, de uma disjunção entre corpo e fala, supõe uma crítica aos manuais sociais que dizem como gozar, aos bens que dizem tamponar o desamparo, a falta ou a castração. Nesse sentido, a clínica do real não é uma positividade ou uma mera negatividade, mas uma disjunção entre as duas via imaginário, produzindo o nó borromeano, cuja amarração é dada pelo sinthoma.

 

O gozo como criação: um sinthoma todo seu

Pensadores como Friedrich Nietzsche (2007), Gilles Deleuze (1991) e Michel Foucault (2001) fazem parte de uma tradição interessada na estética como vontade de criação e, como consequência, na subversão das formas hegemônicas de representação e de poder que imputam ao sujeito limites a sua realização como sujeito desejante. Tais autores desenvolveram, cada qual a sua maneira, desdobramentos teóricos importantes à discussão sobre a transformação da realidade e do próprio ato de pensar. Em que pesem as diferenças entre eles, dado o contexto histórico e teórico de suas obras, destacaram-se por seu esforço em tensionar a tradição filosófica ocidental, que, na visão de Alfred North Whitehead (1978), era uma sucessão de notas de rodapé de Platão. A crítica ao platonismo operada por Nietzsche, Deleuze e Foucault tentou contornar os problemas das filosofias pautadas pela busca dos fundamentos últimos ou primeiros de toda a realidade, encontrando na arte a potência para tal subversão.

Michel Foucault (2011), por exemplo, pela discussão do cuidado de si, pretendeu apontar alternativas aos impasses da modernidade ocidental, cuja singularidade estaria, conforme assinalam seus trabalhos da década de 1970, na governamentalidade como uma forma estatal de gerir as multiplicidades, incidindo sobre o homem-corpo e homem-espécie. A forma triangular soberania/disciplina/biopolítica (Foucault, 2008) das sociedades ocidentais modernas ensejou dispositivos de saber/poder cuja arquitetura visa a tornar o homem "dócil e útil". O cuidado de si foucaultiano, um ocupar-se de si mesmo, surge como uma aposta para deslocar os regimes de saber/poder pelos quais a existência humana se tornou limitada. Implica uma atitude reflexiva que, ao reconhecer o caráter histórico da ontologia, ultrapassa a si mesma em um movimento contínuo de reformulação.

Para cruzá-lo com a problemática lacaniana, é possível dizer, o cuidado de si teorizado por Michel Foucault não implica um sujeito solitário e entregue a seu próprio gozo, já que este estaria fadado à ilusão imaginária de um gozo onipotente. A clínica do real lacaniana é uma clínica que, embora acentue a experiência da criação como fundamental ao sujeito para responder às injunções de seu próprio corpo, envolve um cuidado de si que é indissociável ao cuidado do outro. Isso porque o sujeito se constitui irremediavelmente no campo do outro e sua reconstituição, transformação, ou, se quisermos, os desdobramentos de seu gozo, se dá pela relação com o outro. Algo assim se alinha às críticas realizadas por Lacan em Televisão (1993), em que desenvolve a ideia de que o discurso capitalista oferece a ilusão fetichista de uma vida plena através do consumo.

Nesse sentido, é possível ouvir uma estética da existência assim como a injunção de um cuidado de si nas articulações lacanianas entre escrita e gozo, proposta que ainda estamos por fazer ressoar. A clínica do real traz a positividade do real pela negatividade do simbólico (Miller, 2011). Tal entendimento restaura a crítica não apenas como aquela que nega, mas como aquela que promove deslocamentos, o movimento e a transformação em uma ordem social que tende a bloquear os processos de mudança, já que orquestrada pelo fetichismo que ilude com sua falsa dialética. A psicanálise como uma injunção ao cuidado de si é, portanto, aquela que insta o sujeito a se colocar na condição daquele que quer saber de si, não apenas para reafirmar uma ordem hermenêutica do desejo (Foucault, 2006), mas para afirmar a disjunção entre gozo e fala, entre saber e fazer, contribuindo para que o sujeito se veja implicado, duplicado e complicado pelas injunções da singularidade da escrita de seu gozar.

Se o sinthoma é aquilo que amarra o real, o simbólico e o imaginário, uma espécie de conciliação impossível, precária e instável, identificar-se com ele significa aceitar a ex-sistência do real do gozo, que o imaginário, por sua vocação à con-sistência, tende a querê-lo em um formato definido específico, e para o qual o simbólico, por dizer respeito a lugares socialmente impostos, in-siste em estabelecer fronteiras e limites que não devem ser ultrapassados. Parece não haver dúvidas de que a clínica do real é um convite a uma maior flexibilidade do eu (imaginário) e da ordem do sentido (simbólico) como forma de facilitar o gozo em sua repetição infinita e, portanto, como potencialidade, em seu eterno retorno. A vida em sua leveza, em sua imanência radical, pura criação, o sujeito como uma obra de arte, tudo isso indicando a afirmação de uma poiesis, de uma escrita de si, de um sinthoma todo seu por estar desde sempre no campo do Outro.

 

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Recebido em 27/5/2020
Aceito em 15/12/2020

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