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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.55 no.4 São Paulo out./dez. 2021

 

RESENHAS

 

Tempos de encontro: escrita, escuta, psicanálise

 

 

Bettina Schaefer

Especialista em psicossomática psicanalítica. Membro do Departamento de Psicossomática Psicanalítica do Instituto Sedes Sapientiae. São Paulo / psico.bettina@gmail.com

 

 

Autor: Rubens M. Volich
Editora: Blucher, 2021, 524 p.
Resenhado por: Bettina Schaefer

 

 

A psicanálise nos mostra que a vida é um jogo no qual, para poder ganhar, é necessário, antes de tudo, reconhecer que perdemos. É a partir das experiências mais primitivas de perda e das angústias mais precoces que se estrutura o desejo de curar. Tratar o outro é antes de mais nada poder entrar em contato com o próprio sofrimento e com as experiências que ele evoca em nosso foro mais íntimo. É efetuar o trabalho permanente de reparação de nossas próprias feridas, reencontradas nas dores daqueles de quem cuidamos.
RUBENS M. VOLICH

Tempos de encontro: escrita, escuta, psicanálise, livro recém-lançado de Rubens M. Volich, reúne artigos publicados nos mais variados formatos ao longo do percurso profissional do autor.

Nas páginas iniciais da coletânea, Volich justifica a seleção desses textos, que em conjunto mostram um itinerário psíquico possível para aqueles que se aventuram na função do cuidar. Em suas andanças por topografias psíquicas, paisagens remotas e geografias distantes, o autor narra seu percurso profissional, além de importantes momentos de sua carreira acadêmica, tanto no Brasil como no exterior. 

O livro fascina já nas primeiras páginas, ao permitir ao leitor acompanhar a jornada do autor em suas aventuras no começo da carreira, constituindo um verdadeiro testemunho de suas peregrinações psíquicas, revelando acontecimentos pessoais que implicaram mudanças na sua postura terapêutica e mostrando o quanto o movimento coletivo influenciou pensamentos e comportamentos em sua trajetória. 

Nesse exercício de revisitar o passado para criar o futuro, Volich mostra que é preciso reconhecer no presente o permanente trabalho de reparação. A psicanálise ensina que a posição privilegiada de escuta, observação e descoberta do inconsciente são velhas-novas terras que permanentemente se oferecem a novas expedições. Dessa maneira, o autor convoca aquele que o lê em Tempos de encontro a trilhar com ele a nova geografia de suas descobertas, por meio de artigos atravessados pela escuta, pela escrita e pelo encontro.

Segundo Volich, o livro reúne uma homenagem às experiências que o constituíram, inspiraram e enriqueceram como pessoa e como psicanalista. O autor frisa que toda forma de escrita é, em última instância, um recurso para a elaboração. Os artigos selecionados reiteram a coragem e também a difícil, mas necessária, combinação entre rigor e liberdade de pensamento, características presentes em todos os que se propõem a estudar a psicanálise.

A coletânea se divide em três partes, que a meu ver visam ao movimento de individuação do leitor. A primeira parte, "Eu, outro, coletivo", fala sobre o desenvolvimento do complexo de Édipo, que segundo a psicanálise permite a instauração e a legitimação das instituições. No campo psicanalítico, a instituição caracteriza-se pelo saber específico que engendra as estruturas de poder. Questionar as entidades de poder no Brasil, como tem sido feito, aponta não apenas para o mau funcionamento do desenvolvimento psicoemocional, mas também para a fixação em um tempo arcaico no desenvolvimento emocional infantil.

Ao discorrer sobre o fascismo, o autor aponta que no Brasil não foi só o ódio à corrupção que levou sujeitos genocidas ao poder, mas também o saudosismo de costumes conservadores e nacionalistas. Entretanto, em vez de tecer lamúrias sobre o cenário político atual, o autor retoma os estudos de Wilhelm Reich sobre as raízes do fascismo. Reich postula que, antes de se configurar como corrente política, o fascismo é uma organização subjetiva. No artigo "O fascismo nosso de cada dia", Volich considera a resultante da impossibilidade de expressão e satisfação das necessidades básicas (biológicas, afetivas e relacionais) das pessoas com atitudes, comportamentos e ideias fascistoides, apontando para aquilo que Reich denominou de peste emocional.

"Segundo Reich, o fascismo ideológico é consequência de uma personalidade reprimida, e não o contrário" (p. 62). Portanto, cabe pensar sobre a vida e as necessidades não atendidas daquele que hoje nos governa, para compreender as bases do fascismo que nos impede atualmente de conviver e pensar coletivamente em uma organização de sociedade mais justa e equilibrada.

Nessa árdua atmosfera, a principal arma na luta contra o fascismo é a afirmação da vida, diz Volich.

A partir da educação não repressiva das crianças, do reconhecimento e proteção das necessidades da sexualidade infantil e adolescente na sociedade, do respeito e tolerância à diversidade e às diferenças criam-se novas possibilidades de relação entre o sujeito e seus semelhantes. (p. 66)

Com o advento da pandemia de covid-19, em muitas esferas da sociedade ouviu-se falar do cansaço promovido pelo trabalho no modelo home office. Numa entrevista presente no livro e datada do ano 2000, Christophe Dejours aponta para a realidade contemporânea do adoecimento pelo excesso de trabalho, em que o aumento de imposições de ritmo, produção, produtividade e qualidade paralisa o funcionamento psíquico. Quando o funcionamento psíquico sofre uma distorção em nome da conservação do trabalho, por exemplo, o ato de pensar é paralisado, o que torna o corpo muito mais suscetível ao adoecimento.

Fazer algo excessivo no âmbito profissional é trair a si mesmo, pondera Dejours. Não poder rebelar-se, recusar ou censurar determinada estrutura de funcionamento injusta e desigual pode ser compreendido como indicativo de que ainda estamos distantes da lei simbólica, de uma relação mútua entre direitos e deveres, individuais e coletivos, nossos e daqueles que nos governam, daqueles que nos educam e daqueles que nos empregam.

A segunda parte do livro, "Escutar, escrever, encontrar", trata do movimento psicanalítico no Brasil, das suas origens. Nos capítulos "Os dilemas da tradução freudiana" e "Os postulados da razão tradutora: entrevista com Jean Laplanche", Volich assinala que, no Brasil, a princípio, os textos de Freud não foram vertidos diretamente do original alemão, mas da tradução inglesa coordenada por James Strachey, a Standard edition, o que produziu dificuldades de compreensão por haver termos traduzidos de maneira confusa.

Entre divergências teóricas e compreensões filológicas distintas, muito se aprendeu com o trabalho executado na realização de uma tradução única das obras completas. Nesse sentido, e funcionando como modelo possível, Jean Laplanche pensa na questão tradutora a partir da comparação com uma cebola: a tradução também tem camadas, e a cada re-tradução uma compreensão mais aprofundada se apresenta.

Ainda na segunda parte, Volich apresenta uma compilação de artigos que falam de teorias a respeito de estruturas psíquicas - como a histeria e a perversão - e das implicações históricas na construção dessas narrativas e do olhar médico e psicanalítico sobre esses sujeitos.

É preciso rever esse olhar patologizante sobre o sujeito e compreender como este se posiciona diante do desejo. Baseado num livro de Flávio Ferraz, o artigo "Nas teias da perversão" aponta que é possível, através do fio da transferência, realizar o diagnóstico transferencial. Esse fio permite associar o mecanismo de defesa à estrutura clínica. Percebe-se uma sutil diferença entre o tipo de transferência causado pela neurose e aquele criado pela perversão.

Utilizar-se dos mecanismos de defesa para compreender a dinâmica psíquica do sujeito e sua dimensão pulsional permite observar a subjetividade do paciente, principalmente perante a relação objetal. Em uma nota de rodapé na página 238, Volich diz que, além de analisar a transferência no setting terapêutico, é aconselhável observar a contratransferência correspondente às diferentes organizações de economia psicossomática, ou seja, a observação cautelosa da contratransferência cabe não só na neurose, mas em todas as modulações do enquadre terapêutico. Dessa maneira, viabiliza-se o trabalho terapêutico e evitam-se impasses e efeitos iatrogênicos.

Cabe ao analista observar o vínculo terapêutico, fazer sua escuta diferenciada, dar atenção permanente aos movimentos transferenciais e contratransferenciais no acompanhamento de dinâmicas primitivas. Os movimentos de comunicação primitiva - comunicação marcada pelo vazio, pela violência, pelo ódio e pela destrutividade - frequentemente levam a desorganizações psicossomáticas e doenças graves, sugere o autor. Considerar esses adventos, aquém das narrativas e dos discursos representativos, ao lado dos sintomas e exames complementares, é essencial para poder sintonizar com outras dinâmicas que também participam dos processos de adoecimento.

Assim, chegamos à compreensão da psicossomática psicanalítica: indivíduos com alta intensidade afetiva, impossibilitados de metabolizar ou representar tais angústias em pensamento, promovem desorganizações da economia psicossomática, o que leva a uma possível enfermidade.

O cuidado e a qualidade do vínculo que se estabelece na relação terapêutica são fatores que podem ajudar na reorganização ou mesmo na constituição de uma trama psicossomática mais consistente e integrada.

Aprofundando os estudos sobre os processos psíquicos destrutivos, André Green ocupou-se do tema destacando-o como fundamental na gênese do aparelho psíquico e na clínica dos assim denominados casos-limite. Green revelou o lugar central da pulsão de morte e da destrutividade nas organizações-limite. A destrutividade é oriunda do excesso, da urgência pulsional não atendida, do desligamento, do desinvestimento, e assim promove falhas na constituição das experiências de ausência e de continência, o que por sua vez impossibilita a manutenção e a preservação das relações, afirma Green através leitura de Volich. A dificuldade do analista frente a esse tipo de paciente é sobreviver ao ódio e à destrutividade, ao mesmo tempo que se põe à disposição, oferecendo/nomeando representações e pensamentos que podem estar no universo mental do sujeito. Segundo Volich, essa "é a maior prova de amor que poderia ser dada ao paciente" (p. 341). De alguma forma, isso significa dar representação e linguagem ao sujeito, possibilitando a constituição de um aparelho mais consolidado.

Pacientes que não correspondem às indicações clássicas de análise, estudados e apresentados por André Green e Joyce McDougall como casos-limite, dificilmente suportam condições regressivas e frustrantes ou a neutralidade do analista, podendo por isso desorganizar-se e regredir a vivências mais primitivas. Nesses casos, Volich afirma que a contratransferência é um meio privilegiado para compreender dinâmicas pulsionais aquém das representações. Foi Joyce McDougall quem alertou sobre a não existência de pacientes difíceis, mas sim de encontros difíceis, resgatando nessa inversão de nomenclatura a dimensão viva entre analista e analisando. Em "Remotas paisagens", o autor apresenta um panorama geral da vida e obra dessa grande psicanalista e contribui para que a sensibilidade dela toque todo o endurecimento que encontramos em nome de uma suposta normopatia.

Na terceira e última parte do livro, "Clinicar, transmitir, cuidar", quem se apresenta é Rubens Volich, o analista. Transita entre os artigos como se fossem trilhas, apontando para as pedras no caminho. Tal qual Drummond em seu poema "No meio do caminho", Volich mostra que as pedras das quais se faz um analista nem sempre estão no meio do caminho; estão na história do caminho, na trilha tangente que se criou a partir da pedra e até mesmo na pedra fundante assentada do outro lado do oceano, que percorreu o caminho para o Brasil e fez novos caminhos para analistas tropicais. "Ensinar psicanálise é um ato psicanalítico" afirma Regina Chnaiderman, citada por Volich. Nesse sentido, percebemos profundas contradições quanto ao ensinamento. Precisa ser realizado por uma instituição oficial? Pode ser feito em um curso de especialização? Quem não é médico ou psicólogo tem direito ao saber psicanalítico? Entre tantas questões contraditórias, Volich postula que um certo não saber é importante no fazer psicanalítico. Trata-se de um projeto de desalienação - de si, do discurso de poder, de padrões de pensamento e de comportamento. Vale a pena ler o artigo "O psicanalista em busca de sua alma" para encontrar alívio da angústia quanto à escolha do percurso teórico, bem como para se fortalecer no desejo de diferenciar-se, situar-se e reconhecer-se enquanto autônomo, com um caminho que apresentará pedras diferentes daquelas encontradas pelos mestres da psicanálise. Precisamos sonhar, afirmava Winnicott, citado por Volich; precisamos sonhar inclusive para acreditar em nós mesmos, nos outros e no mundo que nos rodeia, e assim poder continuar vivendo.

Em "Do poder da cura à cura do poder", o autor apresenta a clínica dinâmica, na qual o analista tenta reparar fora de si aquilo que, muitas vezes, já não consegue suportar dentro de si. Na relação com os pacientes, ouvi-los para além do pedido de curá-los de seus sintomas revela-se uma sutil arte de reconhecer que nós, terapeutas, também somos carentes, faltantes, e enfrentamos perdas e pedras. Essa constatação pode tanto aproximar paciente e terapeuta quanto nos guiar para o que buscamos: o próprio desejo.

O investimento do analista, através de sua presença, suas palavras e em alguns momentos inclusive seu gesto, é o que propicia a aproximação dessas dores para possibilitar a constituição, talvez pela primeira vez, de outra experiência, que permita ao sujeito-paciente sair de sua própria roda repetitiva e interromper a desenfreada pulsão de morte.

São nas preciosas páginas finais (com mais de cinco dedicadas só aos agradecimentos!) que o autor divide com o leitor a essência da existência humana: o prazer em relatar experiências; o valor das trocas, da transmissão e das vivências coletivas; a amizade e a solidariedade; a luta contra as desigualdades e por um mundo melhor.

Para além dos princípios nos quais pautar uma existência digna e significativa, Volich mostra indubitavelmente um caminho interessante a trilhar no campo dos encontros humanos.

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