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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.20 Canoas dez. 2004

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Avaliação intelectual de escolares com hipotireoidismo congênito

 

Intellectual evaluation of school children with congenital hypothyroidism

 

 

Cláudia Androvandi 1; Maria Lucia Tiellet Nunes2,I

I Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Faculdade de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O hipotireoidismo congênito (HC) é uma doença endócrina resultante da carência de hormônios tireoidianos no organismo. Os programas de rastreamento neonatal para HC possibilitam evitar a maior parte das conseqüências neuropsicológicas, permitindo que as crianças tenham um desenvolvimento normal. Este trabalho realizou uma avaliação das capacidades intelectuais de 22 crianças com HC em idade escolar, que receberam tratamento até o terceiro mês de idade. O WISC – Escala de Inteligência Wechsler para crianças - foi utilizado para avaliar a capacidade intelectual das crianças. Os resultados mostraram que 18 crianças (81,8% da amostra) apresentam desempenho satisfatório, com classificações na média ou acima, e 4 crianças (18,1%da amostra) apresentaram desempenho abaixo da média. Estes resultados apontam desempenho intelectual compatível com a idade cronológica.

Palavras-chave: Hipotireoidismo congênito, Avaliação intelectual, Criança.


ABSTRACT

Congenital hypothyroidism (CH) is an endocrine disease resulting from lack of thyroidal hormones in the organism. With neonatal screening programs for CH, it is possible to avoid most of the neuropsychological consequences, allowing children to have a normal development. This study carry out an evaluation of the intellectual abilities of 22 schoolchildren with CH, who were diagnosed and treated until the age of three. The Wechsler Intelligence Scale (WISC) was used to assess children’s intellectual ability. The results showed that 18 children (81.8% of the sample) had a satisfactory performance, with median classification or higher, while 4 children (18.1% of the sample) had a performance below the scale median. These results point out that the children’s intellectual ability is compatible with their cronological ages.

Key words: Congenital hypothyroidism, Intellectual evaluation, Children.


 

 

Introdução

O hipotireoidismo congênito é uma das enfermidades endócrinas mais freqüentes do recém-nascido, com a prevalência de aproximadamente 1 em cada 3.500 a 4000 recém-nascidos no exterior (La Franchi, 1982).

O hormônio da tireóide é essencial para o crescimento e tem importância especial para o desenvolvimento do sistema nervoso central. Esta foi a razão que foram introduzidos os programas de triagem neonatal e é atualmente realizado em muitos países. Após o nascimento, o crescimento linear vai se desacelerar anormalmente, a não ser que o tratamento seja instituído (La Franchi, 1995), pois a deficiência hormonal no recém-nascido poderá resultar em manifestações clínicas e conseqüências diversas, que dependerão da maior ou menor precocidade e da sua correção (Kreisner & Camargo Neto, 2001).

A detecção precoce do hipotireoidismo congênito tornou-se possível com um exame simples e fácil, chamado popularmente de teste do pezinho, que deve ser realizado em todos os recém-nascidos (Job & Pierson, 1980; Luajchenberg, 1992, Rodrigues, Monte, Calliari & Longui, 1999).

Os programas de triagem têm prevenido sérias seqüelas neuropsicológicas dessa condição. Segundo Bargagna e cols. (2000), alguns programas de seguimento reportam bons resultados psicométricos, com QIs semelhantes aos de grupos controle e nenhum impedimento aparente no desempenho escolar.

La Franchi (1995) relata que de 10 trabalhos publicados, de crianças entre 4 e 12 anos, 6 mostraram inexistência de diferença de QI global quando comparados ao grupo controle, enquanto 4 mostraram uma redução do QI variando de 6 a 15 pontos, especialmente no subgrupo de crianças consideradas mais severamente afetadas.

Gloriaux e cols. (1983, 1985) relatam estudos prospectivos sobre o desenvolvimento mental em hipotireoidismo infantil: somente 10% das crianças na idade escolar tiveram um coeficiente de desenvolvimento menor que 90, com diferenças significativas nas escalas de execução e raciocínio prático - resultados encorajadores, que justificam realização de programas de screening universal para hipotireoidismo congênito, procurando erradicar o retardo mental desses pacientes com um alto custo/benefício.

Estudo longitudinal, realizado pelo New England Congenital Hypothyroidism Collaborative (1984), com 146 pacientes com hipotireoidismo infantil diagnosticado por screening neonatal e acompanhados por 5 anos, com registros que os QIs dos pacientes mostram resultados idênticos àqueles dos sujeitos-controle.

Tillotson, Fuggle, Smith, Ades e Grant (1994) desenvolveram um estudo com 361 crianças com hipotireodismo e 315 crianças de grupo controle, utilizando a Escala Wechsler para a avaliação da inteligência quando as crianças estavam com 5 anos. Os resultados apontaram que a severidade da doença relaciona-se com o prejuízo intelectual: crianças com baixa severidade clínica do hipotireoidismo apresentaram pouco, ou nenhum, prejuízo intelectual, sendo o oposto verdadeiro.

Rovet e Ehrlich (1995) realizaram um estudo com o objetivo de estudar o efeito da dose hormonal inicial e posterior de tiroxina nas habilidades intelectuais e no comportamento em crianças com hipotireoidismo. As crianças foram avaliadas aos 7 anos de idade, pelo WISC-R – Wechsler Intelligence Scale for Children-Revised, para verificação das habilidades cognitivas e, aos 8 anos, avaliadas para verificação de possíveis problemas de comportamento, com o CBCL – Child Behavior Checklist. As crianças que receberam dosagens mais altas apresentavam performance melhor nas testagens de inteligência, mas também revelaram mais problemas de comportamento. Esses resultados indicam que alta dosagem inicial de hormônio é benéfica para resultados intelectuais, mas pode ser associada com problemas de comportamento.

Rocabayera e cols. (1996) mostram resultados entre crianças com HC, aos 6 anos, examinadas pelo WISC e comparadas com os escores da população geral. Os resultados mostraram uma distribuição dos níveis intelectuais semelhantes aos da população geral.

Um estudo para avaliar o progresso educacional, a área de comportamento e motora aos 10 anos em 59 crianças com HC tratadas precocemente foi realizado por Simons, Fuggle, Grant e Smith (1997). As crianças mais severamente afetadas obtiveram escores menos satisfatórios. Na área de comportamento houve diferença de escores mais notável em dificuldades de atenção, embora menos evidente no grupo de HC moderado, foi observada essa dificuldade nos dois grupos de crianças com HC. Assim, segundo os autores, o HC severo está associado com algumas diminuições moderadas em obtenção motora e educacional e os problemas de comportamento também são comuns, até mesmo em crianças com HC menos severo.

Bargagna e cols. (1999) avaliaram 19 crianças de 5 a 10 anos, freqüentando pré-escola e ensino fundamental, e um grupo controle de crianças não-afetadas emparelhadas com crianças com HC por idade e série. Os resultados mostram que 4 das 19 crianças (21%) com HC mostraram uma desordem generalizada de aprendizagem. Desordens de aprendizagem escolar em crianças com HC foram significativamente relacionados com QI abaixo do limite, pior desempenho de linguagem e nível sociocultural baixo da família, mas não com habilidade motora e concentração hormonal.

Rovet e Ehrlich (2000) em pesquisa de corte longitudinal, com crianças na idade escolar com HC, comparadas com grupo controle, encontraram que os QIs obtidos pelo WISC-R são significativamente reduzidos em crianças com HC, sugerindo que as crianças não têm um risco aumentado de inabilidades de aprendizagem, embora tendam a ser mais fracas em algumas áreas mais seletivas. Além disso, o baixo nível de T4 também correlacionou com pais reportando preocupação com comportamento incluindo fraca concentração que, segundo os autores, é consistente com pesquisas prévias.

Os resultados mais salientes de pesquisa, no sul do Brasil, realizada por Figueiredo (1999), estudando crianças com hipotireoidismo e crianças sem problemas orgânicos em idade pré-escolar e sem déficit cognitivo, não revelaram diferenças quanto a comportamentos interativos mãe-criança e a problemas comportamentais nos dois grupos. Esses resultados apontam para o fato de que um tratamento precoce assegurou-lhes um bom prognóstico mental, assim como a qualidade da interação repercutiu no desenvolvimento dessas crianças, para que não desenvolvessem maiores problemas de comportamento.

A pesquisa realizada por Kreisner, Schermann, Camargo-Neto e Gross (2004) em Porto Alegre – RS, em 31 crianças com HC, avaliadas pelas Escalas Wechsler de Inteligência após um mínimo de 4 anos, mostrou que 8 dos 31 pacientes (25,8%) apresentaram prejuízo no desenvolvimento intelectual, com QIs abaixo da média e uma criança apresentou deficiência intelectual. O prejuízo nesta área foi associado com o nível de T4 inicial, tratamento iniciado após 30 dias de idade, poucas visitas clínicas durante primeiro ano de vida, moradia da família em área rural, pais com ocupação (laboral) não intelectual e pouca escolaridade. Na análise de regressão múltipla, somente escolaridade materna, número de visitas clínicas durante o primeiro ano de vida e dosagem T4 inicial foram significativamente associado com os escores do coeficiente intelectual global da escala.

Derksen e Verkerk (1996) realizaram uma meta-análise para determinar o desenvolvimento neuropsicológico em pacientes tratados precocemente. Sete estudos foram avaliados, incluindo um total de 675 crianças com hipotireoidismo e 570 crianças que formavam um grupo controle, com idade mínima de 5 anos. Quanto à função cognitiva, em todos os estudos, o desenvolvimento intelectual global, verbal e de execução são inferiores no grupo de crianças com hipotireoidismo que no grupo controle, embora a diferença não tenha alcançado significância em todos os estudos. A função motora de pacientes com hipotireoidismo diferiu significativamente do grupo controle em todos os estudos. Os autores concluíram que hipotireoidismo congênito, apesar de detectado e tratado precocemente, resulta em um déficit de QI; a severidade do hipotireoidismo, definida pela tiroxina inicial no momento do diagnóstico, parece ser o mais importante fator individual de risco. Para os autores, embora os fatores de risco biomédicos sejam muito investigados, o peso individual desses fatores ainda é desconhecido.

O objetivo deste estudo foi avaliar as capacidades intelectuais de 22 crianças portadoras de hipotireoidismo congênito e correlação entre capacidades intelectuais da criança e escolaridade dos pais e renda familiar.

 

Método

Seleção de sujeitos

As crianças fizeram parte de uma pesquisa mais ampla realizada desde 1998, em colaboração entre as áreas de Psicologia e Medicina Interna, e foram encaminhadas por médicos endocrinologistas de clínica particular e do ambulatório de Endocrinologia Pediátrica do Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas. Essas crianças representam uma amostra de crianças com HC do Estado do Rio Grande do Sul. Foi feito contato por telefone com a família de todas essas crianças para obter autorização para realização das avaliações. Formou-se um grupo com 25 crianças em idade escolar, porém 3 foram excluídas do presente estudo por apresentarem diagnósticos tardios (após 3 meses de idade). Não foi possível realizar contato com todas as famílias por diversos motivos, dentre eles, mudanças de endereço ou telefone e famílias que não puderam comparecer à avaliação no período de coleta de dados.

Amostra

A amostra do presente estudo foi então composta de 22 crianças na faixa etária de 6 anos a 12 anos e 9 meses, sendo 13 meninas e 9 meninos. Todos os participantes tiveram diagnóstico e tratamento de hipotireoidismo congênito realizado entre 0 a 90 dias.

Instrumentos

Escala Wechsler

Para investigar as capacidades intelectuais dessas crianças, foi utilizada a Escala de Inteligência Wechsler para Criança (WISC), usada dos 6 aos 15 anos de idade para avaliar a inteligência geral do sujeito. A escala é organizada em Escala Verbal e de Execução, cada uma consistindo em um mínimo de cinco e um máximo de seis subtestes, produzindo resultados separados referentes ao QI. Os escores individuais em todos os dez subtestes regularmente aplicados são combinados em um QI de Escala Global (Anastasi & Urbina, 2000).

 

Entrevista

Além desse instrumento foi utilizado um questionário, que era preenchido pelos pais da criança durante uma entrevista. O instrumento era composto por itens que investigavam condições pré e perinatais, desenvolvimento neuropsicomotor inicial e nível educacional dos pais.

Procedimentos para coleta de dados

As crianças foram encaminhadas pelo médico e contatadas por telefone para o agendamento da coleta de dados. As avaliações foram preferencialmente marcadas no mesmo dia em que seria realizada a consulta de acompanhamento ao médico, pois são acompanhadas geralmente com uma consulta a cada semestre.

Nesse encontro foram administrados os instrumentos de investigação em uma sala ampla, cuidadosamente preparada para a realização das tarefas. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido havia sido obtido no contato da pesquisa mais ampla.

 

Resultados

Caracterização da amostra

Das 22 crianças que compõem a amostra, 13 (59,1%) são do sexo feminino e 9 (40,9%) são do sexo masculino. As idades são de 6 anos a 12 anos e 9 meses, distribuídas da seguinte forma: 7 crianças com 6 anos, 9 crianças com 7 anos, 3 crianças com 8 anos, 2 crianças com 9 anos e uma criança com 12 anos de idade. Predominam na amostra as idades mais baixas, ou seja, 16 crianças com 6 e 7 anos, faixa etária do início da escolarização formal. A média do grupo é 7 anos e 2 meses (DP = 1,42). Quanto ao grupo diagnóstico a maioria das crianças 18 (81,8%) foi diagnosticada por screening e 4 (18,2%) foram diagnóstico clínico precoce, descoberto por sinais clínicos, ambos realizados entre 1º e 3º mês de vida, ou seja, todas as crianças foram diagnosticadas e tratadas entre 0 e 90 dias, considerado precocemente (tabela 1).

 

 

A idade das mães das crianças é de 27 a 51 anos, sendo a média de 36 (DP = 5,24). A idade dos pais é de 32 a 57 anos e a média 40 (DP = 6,60).

Em relação à atividade exercida pelos pais, os dados obtidos mostram, com exceção de um pai que não foi revelado e outro que se encontrava desempregado na ocasião da entrevista, 20 exercem atividade laboral remunerada, enquanto as mães, 15 exercem atividade remunerada e 7 exercem atividades do lar.

Resultados referentes à avaliação intelectual

No teste WISC foram obtidos coeficientes de inteligência (QIs), aos quais foram atribuídas classificações do desempenho intelectual: QI £ 69 = deficiência mental (DM); QI 70 – 79 = inteligência limítrofe (L); QI 80 – 89 = inteligência média inferior (MI); QI 90 – 109 = inteligência média (M); QI 110 – 119 = inteligência média superior (MS); QI 120 – 129 = inteligência superior (S); QI ³ 130 = inteligência muito superior (MuS) (tabela 2).

 

 

A avaliação realizada com o WISC para examinar os coeficientes de inteligência e compreender o funcionamento intelectual das crianças mostra que, no desempenho global das crianças, mais da metade (59,1%) das crianças tiveram um desempenho com classificação na média.

Agrupando-se as classificações pode-se observar que 81,8% das crianças alcançaram um bom desenvolvimento intelectual global, classificadas nos níveis médio, médio superior e superior e 18,1% das crianças apresentaram desenvolvimento intelectual abaixo da média, classificadas nos níveis médio inferior, limítrofe e deficiente. Quanto aos desempenhos da área verbal e de execução, mais da metade das crianças obtiveram resultados classificados como médio. Considerando-se as classificações médio, médio superior e superior nas duas áreas, pode-se observar que 81,8% na área verbal e 77,2% na área de execução da amostra alcançaram desempenho satisfatório e 18,1% e 22,7%, respectivamente, com desempenho classificado nos níveis médio inferior, limítrofe e deficiente (figura 1).

 

 

A média do QI Global da amostra foi 98,68 (DP=15,01); a média do QI Verbal da amostra foi 98,50 (DP=16,88) e a média do QI Execução da amostra foi 99,09 (DP=13, 48). O grupo não apresentou diferença estatística no desempenho nas duas áreas que compõem a escala (p = 0,828).

 

Resultados das análises estatísticas inferenciais

Relação entre variáveis demográficas e capacidade intelectual

A análise de correlação (coeficiente de Spearman) foi utilizada para verificar a relação de diferenças entre as variáveis demográficas e os escores gerais obtidos da escala WISC. As variáveis demográficas selecionadas para examinar as diferenças foram escolaridade da mãe, escolaridade do pai e renda familiar. As correlações estatisticamente significativas constam na tabela (tabela 3).

 

 

Referente à variável escolaridade da mãe e escolaridade do pai, em ambas, houve correlação com os resultados do WISC, na Escala Global (QI Global), área verbal (QI Verbal), área de execução (QI Execução): crianças cujos pais possuíam maior escolaridade, obtiveram escores mais altos.

Referentemente à variável renda familiar, os resultados demonstram uma correlação com a Escala Global (QI Global) e área de execução da escala (QI Execução): crianças cujas famílias apresentavam renda maior, obtiveram escores mais altos.

 

Discussão

Todas as crianças avaliadas foram diagnosticadas e tratadas entre 0 a 90 dias. Esse fator é um dos aspectos para alcance de um bom prognóstico no desenvolvimento das crianças portadoras de HC. Existe um consenso geral de que tratamento o mais precoce possível é um objetivo a ser buscado e avaliação e tratamento de um recém nascido com HC deveriam ser vistos como uma emergência pediátrica (Fisher, 2000; Vliet, 1999), pois a deficiência mental resultante de HC é o maior problema de saúde pública e clínica em vista da freqüência dessa condição: 1 em 4000 recém nascidos, a segunda desordem endócrina mais freqüente em crianças, depois insulino-dependentes diabetes mellitus (Vliet, 1999).

A avaliação psicométrica intelectual das crianças realizada com o WISC demonstrou que 18 crianças (81,8%) obtiveram resultados classificados na média ou acima, ou seja, com QIs acima de 90; apenas 4 crianças (18,1%) demonstraram desempenho abaixo da média. Os resultados não mostraram diferença entre a área verbal a área de execução que compõe a escala. A média de QI Global do grupo foi 98, a média do QI Verbal foi 99 e a média do QI Execução foi 99. O fato de não haver diferença de resultados entre os desempenhos de QI Verbal e QI Execução demonstra que não há discrepância manifesta entre as diversas capacidades medidas pela testagem.

Jardim, Leite, Silveira, Barth e Giugliani (1992) citam as estimativas esperadas baseados em pesquisas internacionais: 50% dos pacientes que iniciam o tratamento entre 3 e 6 meses de idade atingem QI superior a 90, enquanto esse alvo é atingido por 75% daqueles que iniciam o tratamento até os 3 meses de idade. As estimativas mais atuais, com tratamento realizado nas primeiras semanas, apontam que o tratamento mais precoce possibilita um desenvolvimento intelectual normal, com 90% dos pacientes apresentando um QI superior a 90.

Quanto aos coeficientes de inteligência obtidos neste estudo, considerando que nem todas as crianças iniciaram tratamento dentro do primeiro mês, como na maioria dos estudos citados, parece não haver defasagens de acordo com outras pesquisas com crianças nessas idades. Nos achados da pesquisa de seguimento de Gloriaux e cols. (1985) na avaliação com o WISC-R em 25 crianças com HC aos 7 anos, a média obtida foi de 100 (alcance de 74-133) e somente 10%das crianças obtiveram desempenho menor do que 90. A pesquisa de seguimento de Bargagna e cols. (2000), realizada em crianças na idade escolar, não foi encontrada diferença significativa entre as 24 crianças com HC e o grupo controle na avaliação com o WISC-R aos 7 anos e a média encontrada de QI foi 104 (DP=10,06). Rovet e Erlich (2000) relatam que, nas suas pesquisas com crianças com HC em idade escolar, mesmo com o tratamento precoce, as crianças atingiram uma inteligência normal medidas pelo WISC, porém quando comparadas com grupo controle em QI Global (105x112); QI Verbal (103x109) e QI Execução (107x111), as crianças com HC obtiveram escores mais baixos.

No presente estudo houve relação significativa entre as variáveis de escolaridade dos pais e os QIs da escala: crianças cujos pais possuíam maior escolaridade puderam demonstrar as capacidades medidas pela escala melhor desenvolvidas, provavelmente por estarem inseridas em um ambiente em que a convivência com esses pais e os estímulos recebidos influenciou na aquisição das funções avaliadas.

Quanto à renda familiar, houve correlação com a área de Execução (QIE) e com a Escala Global (QIG). O item máximo para avaliar a renda no questionário era “mais de 4 salários mínimo”. Os resultados demonstraram que as crianças que pertenciam a essas famílias, tiveram desempenhos melhor nas áreas avaliadas. Como não foi possível averiguar mais exatamente a renda dessas famílias, pode-se supor que essas famílias possuem uma condição mínima favorável que possivelmente contribuiu para um melhor desenvolvimento intelectual: provavelmente são famílias que possuem mais recursos ambientais que estimularam as habilidades medidas nessas áreas. Estes resultados mostram que o desenvolvimento das capacidades intelectuais da criança está relacionado com o seu contexto. Os resultados da pesquisa de Maturano (1999), sobre recursos no ambiente familiar e dificuldades de aprendizagem na escola, sugerem que o progresso na aprendizagem escolar está associado à supervisão e à organização das rotinas no lar, a oportunidades de interação com os pais e à oferta de recursos no ambiente. Nesse sentido, é importante salientar que a condição socioeconômica e conseqüentemente mais recursos ambientais (assim como o nível de escolaridade dos pais) podem contribuir para o desenvolvimento das capacidades da criança.

Esses achados também são evidenciados pelo estudo de Bargagna e cols. (1999), que referem ser o nível sociocultural da família fator adicional que influencia a aprendizagem. Uma educação familiar de experiência e estimulação contínua pelos pais pode produzir progresso na escola e pode favorecer a aprendizagem. Os autores avaliaram o desempenho escolar de crianças com HC tratadas precocemente e evidenciaram que o baixo nível sociocultural da família afetou negativamente a aprendizagem nas crianças. Segundo os mesmos, esse fato pode resultar de um insuficiente fornecimento de estímulo durante o desenvolvimento ou de dificuldade em providenciar cuidados na esfera afetivo-relacional.

 

Considerações finais

A realização deste estudo permitiu corroborar estudos internacionais sobre o desenvolvimento intelectual de crianças portadoras de hipotireoidismo congênito tratadas até 3 meses de vida, que se encontravam em idade escolar, na época da pesquisa. A capacidade intelectual encontra-se preservada para a maioria das crianças, que demonstraram apresentar bom potencial intelectual. Entre as áreas Verbal e Execução medidas pela escala, não houve diferenças estatística de desempenho (QIV e QIE), demonstrando que as crianças encontram-se com a capacidade de se expressar verbal e não-verbal (habilidades mais motoras visuais) em equilíbrio. O QI global, resultou no nível médio. Estes dados mostram que essas crianças encontram-se bem, tendo o tratamento realizado repercutido de maneira positiva no desenvolvimento das áreas avaliadas.

Embora não tendo sido objetivo do presente estudo, durante as avaliações, mesmo que a capacidade intelectual para a maioria das crianças estava preservada, as queixas dos pais sobre aproveitamento escolar eram comuns sobre algumas crianças, principalmente as que se encontravam no início da escolaridade formal, ou seja, no primeiro ano escolar. Portanto, sugere-se que futuras pesquisas investiguem o aproveitamento escolar e fatores emocionais, para entender melhor outras relações entre HC, QI, personalidade da criança e aproveitamento escolar.

Outro fato importante a ser considerado é a falta de pesquisas nacionais sobre avaliações psicométricas e psicológicas dessas crianças para corroborar e comparar os achados deste estudo. Em relação às pesquisas internacionais, percebe-se um maior avanço em avaliações neuropsicológicas das crianças com hipotireoidismo congênito.

 

Referências

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Endereço para correspondência
e-mail: claudia.androvandi@uol.com.br

 

Recebido em 09/2004
Aceito em 11/2004

 

 

1 Cláudia Androvandi – Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Especialista em Avaliação Psicológica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
2Maria Lucia Tiellet Nunes – Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade Livre de Berlim, Professora Titular da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Av. Ipiranga, 6681 CEP 90619-900 – POA/RS

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