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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.21 Canoas jun. 2005

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Crenças, valores e visões: trabalhando as dificuldades relacionadas a sexualidade e gênero no contexto escolar

 

Beliefs, values and visions: working with difficulties related to sexuality and gender in the educational context

 

 

Adriano Beiras1; Grazielle Tagliamento2; Maria Juracy Filgueiras Toneli3

Universidade Federal de Santa Catarina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Visando estimular a reflexão sobre questões referentes à sexualidade e ao gênero nas escolas, realizamos uma capacitação com educadoras do Fórum do Maciço do Morro da Cruz, na cidade de Florianópolis. O programa ocorreu através de oficinas, com o objetivo de estimular a discussão de temas de interesse das participantes, além de serem trabalhadas situações de impasses enfrentadas por estas educadoras. Tal processo favorece a incorporação pelos sujeitos do que foi apreendido em sua vida cotidiana, além de promover a aprendizagem de uma metodologia que possa ser utilizada no contexto escolar. Sugere-se a incorporação pela escola de uma discussão sobre estes temas, acompanhada de um processo contínuo de formação e debate com as educadoras que atuam no contexto escolar.

Palavras-chave: Educação sexual, Educadoras(es), Capacitação.


ABSTRACT

Intending to stimulate the reflection on questions referring to sexuality and gender in schools, we did a training program for school teachers of the Maciço do Morro da Cruz Forum at the city of Florianópolis. The program occurred through workshops with the objective of stimulate discussion on themes of interest of the participants, and also work on predicaments confronted by those educators. This process favors the incorporation of what was learned by the subjects on their daily lives, besides promoting learning of a methodology that may be used on the school context. It is suggested for the school to incorporate discussion on those themes, accompanied by a continual process of formation and debate with the educators that act on the school context.

Keywords: Sexual education, Educators, Capacitation.


 

 

Introdução

A partir de nossa experiência com alunas(os) da rede pública de ensino, por meio de projetos de extensão e estágios curriculares4 , que consistiram em ações integradas com as disciplinas de Ética e Cidadania e Educação Sexual, parcerias com o posto de saúde de cada comunidade e oficinas extracurriculares com as(os) estudantes, percebemos a necessidade de ampliar o trabalho com sexualidade5 e gênero6 para as(os) professoras(es). Assim, nossa intervenção não seria apenas pontual e abrangeria um maior número de estudantes, ganhando maior eficácia. Pensando nisso focamos, no ano de 2004, o nosso projeto de extensão “Psicologia e cidadania: construindo formas mediadoras através da intervenção em escola pública de ensino noturno”, nas(o) educadoras(es), uma vez que entendemos que estas(es) são multiplicadoras(es) e podem constantemente trabalhar estes temas com as(os) alunas(os), além de contemplar as diretrizes dos Parâmetros Curriculares Nacionais.

A partir dos anos 90, a demanda por trabalhos na área da sexualidade nas escolas aumentou devido à preocupação das(os) educadoras(es) com a alta incidência de gravidez na adolescência e o crescimento preocupante dos índices de contaminação do vírus HIV. Se no início houve resistência por parte dos pais quanto à abordagem destas questões no âmbito escolar, atualmente observa-se que eles “... reivindicam a orientação sexual nas escolas, pois reconhecem não só sua importância para crianças e jovens, como também a dificuldade de falar abertamente sobre esse assunto em casa” (Brasil, 1998, p. 111). Desta maneira, segundo Sayão (1997, p.101), são as(os) professoras(es) que poderão contribuir “para que seus alunos tenham uma visão positiva e responsável da sexualidade”, isto devido à relação de grande proximidade que mantêm no dia-a-dia do contexto escolar.

O advento do HIV/aids também leva a uma preocupação por parte do governo com a veiculação de campanhas de informação sobre os riscos de contaminação e suas formas de prevenção. Diante de todo esse quadro histórico e cultural, no qual a sexualidade passa a figurar como um tema de debate público, o governo viu-se impelido a lidar com a questão, tanto no âmbito da educação quanto no da saúde. Uma das ações empreendidas no âmbito das políticas públicas no sentido do combate à disseminação do vírus HIV e da gravidez na adolescência foi, a partir de 1998, a criação dos Parâmetros Curriculares para o Ensino Fundamental (PCNs). Neste documento, a chamada Orientação Sexual passou a ser assumida pelo Governo Federal como um dos “temas transversais” – assunto que perpassa e que deve ser trabalhado por todas as disciplinas curriculares – que integram a programação pedagógica, a qual deve ser articulada com outras disciplinas e temas como ética, cidadania, saúde, meio ambiente e pluralidade cultural.

Para que as educadoras e os educadores possam trabalhar com a perspectiva da transversalidade e os temas propostos nos PCNs, elas(es) necessitam de capacitação adequada, sistemática e contínua. De acordo com Sayão (1997), cada professor acaba fazendo o que pode, tentando responder às demandas que surgem sobre sexualidade, o que faz com que acione sua experiência pessoal de acordo com sua disponibilidade. No entanto, seu repertório, em geral, é composto por informações adquiridas em breves cursos, palestras ou leituras realizadas por interesse próprio, que, apesar de contarem com boas intenções, nem sempre engendram uma orientação adequada.

Nossa atuação contemplou um curso de capacitação para professoras(es) da rede pública de ensino da região do Maciço do Morro da Cruz e outro para estudantes do curso do magistério de um grande colégio da rede pública estadual, no município de Florianópolis. Do primeiro participaram 30 agentes escolares, como professoras, diretoras e orientadoras pedagógicas, representando doze escolas, incluindo as creches da região. No segundo atingimos, também, em torno de 30 alunos.

Ambas as frentes de trabalho tiveram como objetivo fundamental proporcionar, no contexto escolar e em sala de aula, atividades relacionadas à sexualidade e atributos de gênero que levassem à formação de um sujeito questionador, ativo na construção de sua própria história. A idéia era a de criar um espaço de reflexão, debate, informação e aprendizagem sobre os temas de seus interesses, raramente encontrados nas instituições de ensino.

Nestas atividades, tivemos como objetivos específicos: 1) Capacitar estas(es) educadoras(es) e futuras educadoras(es) para situações de sala de aula referentes à sexualidade; 2) Trabalhar os conceitos de sexualidade, sexo, gênero, homossexualidade, educação sexual, entre outros; 3) Discutir situações do dia-a-dia que já tenham vivenciado; 4) Desenvolver uma maior habilidade para lidarem com situações inesperadas de sala de aula; 5) Trabalhar os valores e preconceitos destas(es) educadoras(es); 6) Estimular a aprendizagem de formas de atuação que possam ser utilizadas no contexto escolar.

Procuramos utilizar como referencial teórico a matriz histórico-cultural em Psicologia, que leva em conta a cultura e o tempo histórico no qual os sujeitos estão inseridos. Esta matriz considera que as experiências vividas pelos indivíduos são plurais, bem como os sentidos conferidos a tais experiências, sendo que o processo de constituição dos sujeitos está atrelado a uma multiplicidade de fatores tais como a etnia, classe social, tradições culturais e religiosas, orientação sexual, gênero, entre outros que singularizam cada pessoa. Assim, os processos singulares de constituição dos sujeitos ocorrem em meio às relações sociais mediadas semioticamente que, de forma dialética, são produzidas/produtoras pelos/dos sujeitos (Vygotski, 1995). A partir disso, buscamos uma maneira de intervenção adequada a esses sujeitos, possibilitando que estes construíssem o conhecimento dos temas propostos, de forma que fossem vistos como ativos, conscientes de suas possibilidades e limites da sua atuação no contexto escolar.

 

Método

Inicialmente, em ambas as atuações, realizamos um questionário com o intuito de verificar quais temas as(os) participantes gostariam de trabalhar durante os encontros, bem como quais os conhecimentos que possuíam sobre sexualidade, gênero e educação sexual e quais eram as dificuldades enfrentadas para realizarem projetos voltados à educação sexual em suas escolas e/ou creches.

A partir deste levantamento, elaboramos o planejamento dos encontros seguintes. Estes ocorreram através de intensivos mensais de oito horas de duração cada, devido à disponibilidade das(os) professoras(es) das unidades pertencentes ao Fórum do Maciço da Cruz, totalizando quarenta horas no primeiro semestre de 2004. Com as(os) alunas(os) do magistério a nossa intervenção consistiu em três observações iniciais do grupo, durante as aulas de Psicologia da Educação, e as oficinas ocorreram em quatro encontros quinzenais com a duração de duas horas cada um. Esta frente de trabalho ocorreu durante o segundo semestre de 2004.

Ao final dos encontros realizamos uma avaliação das oficinas, em ambas as atuações, com o intuito de verificar a eficácia ou não do trabalho realizado junto a estes sujeitos, assim como, se a metodologia utilizada foi adequada.

As oficinas promoveram a discussão e a reflexão dos seguintes temas: diferenças entre os conceitos sexo, sexualidade e gênero; sexualidade infantil; situações e dúvidas trazidas pelos integrantes do grupo e situações de impasse enfrentados pelas(os) educadoras(es) e futuras(os) educadoras(es) no seu dia a dia. Nas atividades procuramos trabalhar os temas sem desvinculá-los do contexto social e vivencial dos atores sociais com os quais nos relacionávamos.

Nas oficinas buscamos utilizar uma metodologia participativa e envolvente, que remetesse às experiências próprias dos participantes. As técnicas principais utilizadas foram debates e jogos especialmente adaptados para o contexto. Desta maneira, utilizamos diferentes canais comunicativos como alternativas de expressão, considerando que essas dinâmicas ultrapassam a compreensão lógica dos temas, fazendo com que os sujeitos se apropriem destes conceitos incorporando-os em suas vivências coletivas e modificando suas práticas cotidianas.

As oficinas permitem, conforme Rena (2001), a desconstrução de preconceitos e tabus, bem como a reconstrução social dos valores e das crenças, social e historicamente construídos. O grupo proporciona a possibilidade real de experimentação de novos padrões de relacionamento, da problematização e relativização dos seus modos de vida. Afonso (1997, p. 03), também considera que a “elaboração que se busca na oficina não se restringe a uma reflexão racional, mas envolve os sujeitos de maneira integral, seus sentimentos, formas de pensar e de agir”.

As oficinas não possuem um caráter apenas pedagógico, embora uma dimensão pedagógica sempre se faça presente. A postura pedagógica utilizada nelas é crítica e transformadora. Desta maneira, as oficinas constituem-se como uma metodologia válida para ações educativas em sexualidade junto a grupos, proporcionando a problematização de questões sociais e sexuais, além de contribuir para a constituição de sujeitos ativos da sua história.

 

Resultados e análise

A importância de trabalhar questões referentes à sexualidade e gênero com educadoras(os) e futuras educadoras(es)

Conhecimentos sobre sexualidade e educação sexual

Em nossa intervenção pudemos verificar o quanto aquelas(es) profissionais desconhecem ou possuem dúvidas relacionadas ao tema sexualidade. Isto foi verificado a partir do questionário aplicado no primeiro encontro, no qual uma das questões era “O que é sexualidade e Educação Sexual?”. A maioria das respostas não foi considerada satisfatória em relação a estes conceitos. Exemplos disso foram: “sexualidade é ser homem – ser mulher”, “sexualidade é o que define o gênero”, “Educação sexual eu acho que é ensinar o tipo de sexo que cada um tem, sendo que engloba todo o assunto”, “sexualidade para mim é a definição do sexo como opção, não ser por você ser, homem e mulher, mas opção tua”, “Educação sexual é ajudar um indivíduo no que diz respeito ao sexo (lado bom e ruim)”, “sexualidade, cada um decide sobre a sua”, “educação sexual é uma orientação para a preparação para a vida sexual”, “educação sexual – métodos de ajuda e prevenção de DST”, “educação sexual é um meio de esclarecer a vida sexual de cada um”, “educação sexual é a relação entre os ambos os sexos”. Podemos identificar, a partir destas respostas, insuficiências, equívocos e lacunas que nos levaram a constatar a necessidade de se trabalhar melhor estas questões.

A mesma constatação quanto à insuficiência da formação das(os) professoras(es) para trabalharem com educação sexual ocorreu no desenvolvimento das oficinas, como na atividade de perguntas e respostas, proposta no segundo encontro. Nesta atividade constatamos que havia uma incoerência com as respostas que haviam dado no questionário sobre as dificuldades em trabalhar sobre sexualidade na escola. A princípio todas(os) responderam que elas não existiam. No entanto, na atividade de perguntas e respostas, verificamos que elas se faziam presentes no conteúdo das verbalizações. A técnica consistia em dividir o grupo em duplas de modo que estas efetuassem perguntas (anônimas) referentes à sexualidade, as quais eram colocadas em uma caixinha. Posteriormente cada integrante deveria tirar uma pergunta e tentar respondê-la, abrindo a discussão para os demais. Alguns exemplos de perguntas foram: “se um aluno de séries iniciais vier me perguntar o que é sexo, o que eu falo?”, “Numa situação em que um menino deita sobre a menina e faz movimentos parecendo ser um ato sexual, como agir?”, “Por que as crianças começam a se masturbar cedo?”, “Que atitude devemos tomar quando deparamos com uma criança com mais ou menos dois anos de idade, que não se interessa em brincar com objetos de meninos, e não consegue se socializar/ interagir com outras crianças de sua idade e sempre se fantasia com roupas femininas?”, “O que fazer quando na sala de aula tiver algum aluno com a sexualidade aflorada, criando uma situação constrangedora para o professor?”, “Se eu notar que a criança está com algum comportamento estranho, e que relata a vida sexual de seus pais, o que devo fazer?”. É importante destacar que todas as questões referiram-se a situações concretas que devem ser enfrentadas pelas(os) professoras(es) em seu cotidiano de trabalho.

A partir desta estratégia pudemos entrar em contato com as dúvidas mais recorrentes destes sujeitos em relação à sua prática no contexto de sala de aula. Foi uma oportunidade para que trouxessem conteúdos e situações do seu cotidiano, tanto nas perguntas quanto nas respostas, bem como para proporcionar uma troca entre os integrantes do grupo.

Nessa atuação pudemos verificar que o trabalho com o tema sexualidade nas escolas ainda é revestido de polêmica, devido à multiplicidade de visões, crenças e valores de alunas(os), pais, professoras(es) e diretoras(es) relacionadas à temática. As dificuldades começam com a própria sexualidade destas(es) educadoras(es) que se sentem pouco à vontade para estabelecerem um diálogo franco com as(os) alunas(os) sobre determinados temas, tais como: o início da atividade sexual, masturbação, virgindade, gravidez, sexo seguro, uso de camisinha, orientação sexual, métodos contraceptivos, aids e Dsts (doenças sexualmente transmissíveis), dificultando o enfrentamento de situações inesperadas que constantemente surgem no ambiente escolar. A dificuldade parece ser ainda maior quando estas(es) educadoras(os) trabalham com educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental, onde parece haver mais dúvidas acerca da sexualidade infantil.

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, os conceitos acerca da sexualidade infantil – e a própria aceitação de sua existência –, apesar de provirem do início do século XX, ainda não são integralmente conhecidos e assimilados pela maioria das(os) educadoras(es) que trabalham com crianças. Muitos destes profissionais consideram as crianças como “assexuadas”, “puras” e “inocentes”, além de tratarem a manifestação da sexualidade destes sujeitos como algo “feio”, “sujo”, “pecaminoso”.

Neste sentido, acreditamos ser importante salientar, parafraseando Sayão (1997) que é, na realidade, desde o nascimento que ocorre a educação sexual, sendo que as primeiras noções e valores relacionados à sexualidade ocorrem predominantemente no contexto familiar, ainda que de forma não explícita.

O comportamento dos pais entre si, na relação com os filhos, no tipo de recomendações, nas expressões, gestos e proibições que estabelecem, tudo isso transmite os valores que a criança incorpora. O fato de a família possuir valores conservadores, liberais ou progressistas, professar alguma crença religiosa ou não, e a forma como o faz, determina em grande parte a educação das crianças. (Sayão, 1997, p.112)

Segundo esta mesma autora, é importante que a escola saiba reconhecer que cada família tem seus valores, que são transmitidos para os filhos, não cabendo à educação formal competir com a família nem ocupar o lugar dela. No entanto, a escola deve ter o seu papel claramente diferenciado e definido.

De acordo com Castro, Abramovay e Silva (2004) ocorre, entre os atores da escola, uma tendência forte de considerá-la como um lugar ideal para o trabalho com temas referentes à sexualidade, porém muitas propostas e idéias acabam ficando no plano da intenção ou de palestras. Estas últimas, enquanto atividade planejada ou trabalhos isolados, acabam por serem criticadas pela monotonia e falta de continuidade. O que também ocorre, muitas vezes, são apenas algumas conversas informais, sendo a sexualidade um tema tratado principalmente nas aulas de ciências, associando-se à constituição do corpo humano. Em relação à prevenção, de acordo com esta mesma autora, as falas nas escolas centram-se na maioria das vezes em cuidados biomédicos, sendo que os alunos reclamam que já estão saturados de terem ouvido por diversas vezes este discurso tornando o trabalho ineficiente.

A este respeito Bernardi (1985) citado por Dall'Alba (1998), discute a questão da escola promover uma falsa educação sexual que,

em vez de trazer à luz as contradições do sistema, acaba contribuindo para a coisificação do sexo, na medida em que, por meio de seus programas educativos, apresenta uma imagem desagradável e distanciada da sexualidade, destituindo-a de todo o conteúdo emotivo, lúdico e gratificante. (Bernardi, 1985 citado por Dall'Alba, 1998, p. 180)

Barroso e Bruschini (1990) apontam também, o fato de muitas escolas focalizarem programas excessivamente biologizantes ou preventivos. Mediante este quadro, chamamos a atenção para a formação destas(es) professoras(es) de forma a permitir que a(o) educador(a) conduza as atividades de uma maneira mais dinâmica, aplicando estratégias diversas e que vão ao encontro das necessidades de seus alunos. Esta formação deve ser contínua e presente no dia-a-dia da escola.

Desta forma, como salienta Lorencini (1997, p. 94),

Cumpre, ainda, dar oportunidade aos alunos de participar das atividades, problematizando os diferentes pontos de vista que eventualmente surjam durante as discussões, e, sobretudo, possibilitar que a sala de aula seja um ambiente de descontração onde os alunos se sintam a vontade para expressar suas opiniões com sinceridade e honestidade; em suma, um ambiente possível para a busca constante e renovada dos sentidos da sexualidade.

Para isso, cabe à(o) professor(a) criar um clima de confiança com os alunos, sem fazer uso de juízos de valores, procurando estabelecer uma relação dialógica, de maneira a permitir que o(a) aluno(a) expresse sua angústia e se aproprie dos conhecimentos produzidos coletivamente.

 

Crenças, valores e visões...

As práticas de educadoras e educadores são, por vezes, pautadas em crenças, valores e preconceitos oriundos de suas trajetórias singulares e, sobretudo, inscritas em contextos culturais e históricos determinados. Desta maneira, as diferenças de gênero que pautam, no cotidiano, muitas explicações de comportamentos, papéis e valores, geram (e são geradas por) uma série de suposições de definições do que é ser mulher e homem, masculino e feminino.

É importante lembrarmos que os discursos normativos7 do que é certo e do que é errado, do que é normal e do que é patológico, são constituídos por práticas discursivas. Entendemos aqui práticas discursivas como práticas sociais que instituem ou o “objeto” de que falam – o discurso – ou o comportamento aprendido pelo visível – o não-discursivo (Foucault, 1979). Estas práticas discursivas, segundo este mesmo autor, inscrevem-se nas relações de saber/poder8.

A pedagogia é um sistema em que se articulam práticas discursivas implicadas em relações de poder que se disseminam por toda a rede social, em cujas “malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão” (Foucault, 1979, p. 183). Estas relações ao construírem conhecimentos, desejos, valores, encontram-se implicadas na constituição das subjetividades.

Nesta intervenção buscamos trabalhar os valores, crenças e preconceitos das próprias educadoras(es), em conformidade com o que os Parâmetros Curriculares Nacionais propõem como sendo:

(...) necessário que o professor possa reconhecer os valores que regem seus próprios comportamentos e orientam sua visão de mundo, assim como reconhecer a legitimidade de valores e comportamentos diversos do seus. Sua postura deve ser pluralista e democrática, o que cria condições mais favoráveis para o esclarecimento e a informação sem a imposição de valores particulares. (Brasil, 1998, p. 153)

Com o intuito de trabalhar os próprios valores e a sexualidade das(os) participantes, utilizamos dramatizações. Para tanto solicitamos, por exemplo, que fechassem os olhos e tentassem lembrar de cenas de infância a partir da seguinte consigna: “o que o adulto me ajudou e também como me atrapalhou no meu entendimento sobre sexualidade”. Uma das cenas que surgiu foi a seguinte: duas garotas mostrando suas genitais uma para a outra e aprendendo a se tocar, tocando uma na outra, quando uma vizinha as vê e conta para a mãe de uma delas. Esta proíbe as garotas de brincarem juntas alegando que aquilo era feio, era pecado. Trabalhamos os desdobramentos desta cena com as diversas possibilidades de (re)ação que a mãe poderia ter tido e no que estas influenciariam nos seus valores e crenças atuais. Esta atividade proporcionou reflexões das participantes sobre os seus próprios preconceitos, juízos de valor e discurso moralizante que influenciam suas atitudes em sala de aula.

Pensamos, a partir de situações como essas que relatamos aqui, que antes de educarmos as(os) alunas(os), temos que educar sexualmente as(os) educadoras(es) ou futuras(os), de forma a que os discursos normatizadores possam ser criticados e haja espaço para a constituição da consciência de si e para a escolha dos sujeitos sobre a condução da própria vida. Concordando com Sayão (1997, p.113), pensamos que,

Se, por um lado, os pais exercem legitimamente seu papel ao transmitirem seus valores particulares aos filhos, por outro lado, o papel da escola é o de ampliar esse conhecimento em direção á diversidade de valores existentes na sociedade, para que o aluno possa, ao discuti-los, opinar sobre o que lhe foi ou é apresentado. Por meio da reflexão poderá, então, encontrar um ponto de auto-referência, o que possibilitará o desenvolvimento de atitudes coerentes com os valores que ele próprio elegeu como seus.

Assim, a incorporação pela escola de uma discussão sobre questões relacionadas ao sexo e à sexualidade precisa ser acompanhada por um processo contínuo de formação e debate com as(os) educadoras(es) que já atuam ou ainda estão se preparando para atuarem no contexto escolar, visto que por mais que exista espaço nas escolas para atuações em Educação Sexual, pouco se tem realizado, além de faltar conhecimento às(aos) professoras(es) sobre o tema.

Na própria avaliação sobre as oficinas, realizada com as professoras, foi possível notar a necessidade e importância deste tipo de trabalho, pois segundo elas:

“estes encontros ajudaram não só eu, como também minhas colegas, a esclarecer e desmistificar alguns pré-conceitos que estão introjetados em nossa formação”,

“as técnicas que foram apresentadas são bem interessantes, gostaria que o tempo tivesse sido maior, pois gostaria de aprender mais. É o primeiro curso que faço nesta área...”,

“penso que é trazendo os problemas, discutindo e ouvindo outras opiniões que a gente pode refletir e enxergar outras alternativas”

“no geral, o trabalho foi ótimo e interessante e sinto pelos colegas que perderam mais uma oportunidade de dialogar, trocar idéias e experiências. Parabéns e continuem seus trabalhos”

“o curso foi proveitoso, consegui expressar alguns de meus sentimentos que estavam guardados. Vi o quando somos despreparados para lidar com algumas situações e que devemos sempre que possível se reciclar.”

 

Considerações finais

Nossas experiências evidenciaram a necessidade de trabalhar com métodos de ensino que contemplem o sujeito de forma mais plena, a partir de seu contexto, valores e de sua história, para que o conteúdo esteja mais próximo da sua realidade, assim havendo uma maior identificação com os mesmos.

É importante ressaltar que as intervenções realizadas não tiveram o intuito de culpabilizar as(os) professoras(es) pela ineficiência e limitações com que a Educação Sexual tem se mostrado nas escolas, mas demonstrar a necessidade de capacitação destas(es) profissionais.

Nossa proposta, portanto, visou problematizar e ampliar as possibilidades que as(os) educadoras(es) e alunas(os) do magistério possuem para trabalhar com o tema sexualidade, através de discussões da prática, dinâmicas e vivências, de acordo com o que propõem os PCNs: “A Orientação Sexual não-diretiva aqui proposta será circunscrita ao âmbito pedagógico e coletivo, não tendo, portanto caráter de aconselhamento individual de tipo psicoterapêutico” (Brasil, 1998, p. 83). Procuramos fornecer informações relacionadas às diferentes temáticas, de forma a considerar a sexualidade em todas as suas dimensões (biológica, psíquica e sócio-cultural), constituindo um projeto educativo que “exerça uma ação integradora das experiências vividas pelo aluno e que inclua a sexualidade como algo ligado à vida, à saúde e ao bem-estar de cada criança ou jovem” (Sayão, 1997, p.114).

Com as oficinas, as(os) participantes puderam, de uma forma prazerosa, participar efetivamente do seu próprio processo de aprendizagem, deixando de serem meras(os) receptoras(es) de informação para se tornarem sujeitos mais ativos, que constroem um raciocínio próprio e questionam as informações que recebem e/ou buscam. Isto não ocorre nos métodos tradicionais de ensino e aprendizagem, por não permitirem uma construção e sim uma assimilação dos conteúdos de uma forma mais genérica, que muitas vezes não correspondem à sua realidade.

Pudemos verificar a importância de trabalhar estes temas com estas(es) educadoras(os) e futuras(os) educadoras(es), considerando o número de dúvidas relacionadas a estes assuntos, bem como a relevância de abordar o tema sexualidade de uma maneira que transcenda a mera transmissão de informações.

Portanto, é importante capacitar as(os) educadoras(es) para que possam trabalhar estes temas com os jovens de modo que eles consigam refletir sobre questões que fazem parte do seu cotidiano e tomarem decisões mais consistentes no sentido da condução da própria vida (Heller, 1992). Ademais, trata-se de oportunizar sua desnaturalização e a compreensão histórico-social da sexualidade e do gênero, levando em conta a complexidade dos mitos, valores e crenças que estão envolvidos nesta questão.

Muitos outros pontos deveriam aqui figurar. Entretanto, parece-nos fundamental registrar que as atitudes da escola frente à inclusão e à integração dos assuntos relativos à sexualidade, dependem essencialmente da concepção de homem e de mundo que seus membros concretizam nas relações que estabelecem dentro e fora do ambiente escolar.

É evidente que a falta de capacitação das(os) professoras(es) pode ser solucionada com a implementação de políticas públicas mais eficientes nesta direção e a conseqüente educação de seus educandos. Neste sentido são de grande valia projetos de extensão universitária, como este que realizamos, pois além de capacitarem as(os) acadêmicas(os), proporcionam uma maior interação da universidade com a comunidade, bem como a prestação de serviço a esta e a conseqüente fomentação de novos projetos públicos. Isto é, nas palavras de Bock (1999, p.17).

a universidade precisa ser defendida como um lugar sem muros, que olha para a realidade, que a deixa entrar, ou melhor, que percebe que a realidade está lá, na sala de aula, no estágio, nos corredores, nas mesas de bar onde professores e alunos usam pensar em algo novo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Rua Capitão Romualdo de Barros, 776/405B - Carvoeira
88040600 Florianópolis, SC
E-mail: adrianobe@ibestvip.com.br
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E-mail:juracy@cfh.ufsc.br

Recebido em 03/2005
Aceito em 06/2005

 

 

1 Adriano Beiras – Psicólogo, Mestrando do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina
2 Grazielle Tagliamento – Psicóloga, Mestranda do Curso de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina
3 Maria Juracy Filgueiras Toneli – Professora Dra. do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina
4 Estas atuações fazem parte das atividades de pesquisa e extensão universitária vinculadas ao Núcleo de pesquisa: “Modos de vida, família e relações de gênero” do Departamento de Psicologia da UFSC
5 Entendemos sexualidade como “uma dimensão ontológica essencialmente humana, cujas significações e vivências são determinadas pela natureza, pela subjetividade de cada ser humano e, sobretudo, pela cultura, num processo histórico e dialético (...) que deve ser empreendida, em sua totalidade e globalidade, como uma construção social que é condicionada pelos diferentes momentos históricos, econômicos, políticos e sociais” (Figueiró, 2001, p. 39)
6 Gênero é compreendido aqui como “um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e ainda como “uma forma primária de dar significação às relações de poder” (Scott, 1990, p. 86)
7 Segundo Butler (1993, p.154), “as normas regulatórias do ‘sexo' trabalham de uma forma perfomativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual”
8 A expressão saber/poder, está sendo utilizada no sentido foucaultiano, em que poder e saber estão diretamente implicados, isto é, “Não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder” (Foucault, 1979, p.27)

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