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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.22 Canoas dez. 2005

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Inclusão: pontos cegos de um discurso pedagógico

 

Inclusion: blind points of a pedagogical discourse

 

 

Sueli Souza dos Santos 1

Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esta pesquisa discute efeitos de sentidos produzidos em uma classe de crianças cegas e deficientes visuais, e a educação inclusiva como formadora da subjetividade desses alunos. Com base teórica em Freud (1976), Lacan (1964) e Nasio (1995), entre outros autores, fundamenta-se o modo como vão se construindo as representações mentais decorrentes de formações do inconsciente, tanto de crianças cegas como em videntes. Aponta para as questões da linguagem e do discurso, fundamentados na análise de discurso (AD), desenvolvida por Pêcheux (1997) e Authier-Revuz (1998), trabalhando os conceitos de heterogeneidade discursiva que compõe o complexo campo das questões de identidade, singularidade e subjetividade. A análise utiliza seqüências discursivas produzidas por alunos deficientes visuais. As conclusões revelam alguns pontos cegos no processo inclusivo dessas crianças, o que nos leva a questionar o discurso pedagógico e sua contribuição para a inclusão na constituição da subjetividade dessas crianças.

Palavras-chave: Discurso, Inclusão, Inconsciente.


ABSTRACT

This research discusses sense effects produced in a classroom of blind and visually deficient children, and the inclusive education forming the subjectivity of these students. Based on Freud (1976), Lacan (1964) and Nasio (1995), among other authors, evidences are given to explain how are built mental representations deriving from unconscious formations of blind as well as of not blind children. Points to language and discourse questions based on the discourse analysis (DA), developed by Pêcheux (1997) and Authier-Revuz (1998), working the concepts of discoursive heterogeneity that composes the complex field of the identity, singularity and subjectivity. The analysis takes discoursive sequences produced by students visually deficient. The conclusions show some blind points of the inclusive process of these children, making us question the pedagogical discourse and its contribution to the inclusion in the constitution of the subjectivity of these children.

Keywords: Discourse, Inclusion, Unconscious.


 

 

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo evidenciar como ocorre a inclusão de crianças cegas e deficientes visuais na escola regular, tendo em vista o atravessamento do discurso pedagógico de professores videntes, que por sua condição de professores, são um elemento referencial para a constituição da subjetividade dessas crianças.

Inicialmente, é preciso considerar que, do ponto de vista da psicanálise, a introdução do sujeito, numa realidade qualquer, não pode ser pensada a partir da experiência direta com qualquer objeto. Considera-se como fundamental o fato de que existe o significante; assim a fala é essencial como mediação para a compreensão da realidade.

Nesse sentido, segundo Freud (1920/76), entendemos que antes mesmo que a aprendizagem da linguagem seja elaborada, tanto do ponto de vista motor como auditivo, ou seja, antes mesmo que compreenda as palavras, já existe a simbolização, que é estabelecida na díade mãe/bebê, como um objeto. A criança, em sua relação primordial, já está considerando a mãe enquanto objeto, introduzida no processo de simbolização, porque este objeto materno está imerso no mundo do significante. A precocidade desse processo aponta para o fato que, ao começar a emitir dois fonemas, para a criança, estes fonemas já são vocábulos. Nessa interação mãe / bebê, o que é emitido pela mãe ao seu bebê, estabelece virtualmente uma combinatória propícia à organização significante.

Quando Lacan (1973) afirma que o inconsciente é estruturado como uma linguagem (p.23), aponta para essa experiência que inaugura as marcas pulsionais, arcaicas, determinantes constitutivas do que vai, enquanto significante, estar presente na vida do sujeito. Antes de qualquer dedução individual, antes de qualquer necessidade social, algo se inscreve como experiência coletiva, como marcando linhas de força iniciais no psiquismo.

Essas linhas de forças iniciais, podemos pensar, prendem-se à natureza que fornece significantes, os quais inauguram a relação humana, lhe dando estrutura. Essas marcas são como cicatriz do inconsciente, ou seja, uma marca de que algo aí se inscreveu e que jamais será reencontrado, desvelado como, quando e quem o inscreveu.

Exatamente, essa cicatriz é que dará condição de instalação da linguagem, na tentativa de buscar dar sentido, criar representações que dêem conta da inscrição do sujeito na cultura. É aí que se funda o inconsciente , nessa hiância, nesse espaço, nessa falha, no tropeço onde o que se revela é aquilo que triunfa enquanto recalcado, aquilo que não se pode dizer diretamente, que não encontra a palavra definitiva que dê um único sentido.

O que a teoria Freudiana vai nos ensinar, relativo ao inconsciente, é que os pensamentos inconscientes, se revelam como aquilo que se mostra em ausência, como nos sonhos. Para esse autor, o inconsciente é esse lugar que ele chama do eu penso, onde o sujeito do inconsciente se revela, ou seja, penso onde não sou, opondo-se definitivamente à certeza cartesiana.

 

A pulsão escópica

Para compreensão da estruturação do psiquismo na psicanálise, torna-se necessário considerar que o conceito de pulsão é fundante do aparelho psíquico, aquilo que marca esse eu penso onde não sou, isso que não posso nomear, mas que insiste em apontar que algo busca sentido. A pulsão, por não ter um objeto próprio de satisfação, um lugar topológico determinado, caracteriza-se por pura intensidade que pode estar ligada ou desligada das representações. Antes de haver qualquer representação, e a partir da primeira experiência de satisfação da necessidade, está a pulsão. Para nosso estudo, a pulsão escópica, ou seja, a pulsão do olhar, é de fundamental importância para entendermos como as representações de coisa e de palavras se instalam, tanto em crianças cegas como videntes, sem qualquer distinção das possibilidades de enxergar os objetos da realidade.

Ver não é olhar, nos afirma Nasio (1995), apontando para a diferença entre o ato perceptivo de fitar que envolve o movimento ativo e o ato de olhar, carregado de tensão, e implica em satisfação no próprio ato. Uso aqui ato no sentido grego do termo, ou seja, de ruptura, descontinuidade, onde o olhar se perde da visão consciente, onde o pulsional é o motor e mantém a tensão do olhar. Este olhar está determinado pelo imaginário, pela fantasia, pois o que vemos são imagens, não a coisa em si. O que vemos está marcado pelo pulsional apreendido pela fascinação do objeto.

O que vemos está marcado, imaginariamente produzido pelo eu, e não pelo olho enquanto órgão do sentido. Dizemos, então, que quem opera é o eu, ou seja, quem enxerga é o eu (moi) do imaginário que dá atribuições ao objeto. Ver é uma operação do eu imaginário em relação à coisa que está fora.

Pensando sobre o olhar, o processo é o contrário, pois o olhar é despertado, sinalizado fora de nós como uma intensa luz que se mostra e nos ofusca, apreende, captura, deslumbra, não podemos fugir do olhar. Há um estado de fascinação que nos liga e provém do Outro; quando isso se dá, não estamos na dimensão do eu imaginário, mas no plano da pulsão escópica, que prende desde fora, de um quadro, de uma cena, de um som, de um Outro olhar.

 

Encontros e desencontros: as não-coincidências do dizer

Aqui podemos fazer algumas relações desse inconsciente da psicanálise, que se opõe às certezas, posto que penso onde não sou, marcado pelo pulsional e os equívocos do olhar, com a Análise de Discurso (AD), no que diz respeito ao encontro e representação das não–coincidências do dizer, conceito desenvolvido por Authier-Revuz (1998).

Segundo essa autora, com relação ao sujeito do dizer, pode-se estabelecer quatro campos de ‘não coincidência’ ou de heterogeneidade, que o dizer se representa e que estão presentes no discurso, quais sejam: a) não-coincidência interlocutiva entre dois co-enunciadores; b) não-coincidência do discurso consigo mesmo, onde estão presentes em si outros discursos; c) não-coincidência entre as palavras e as coisas; d) não-coincidência das palavras consigo mesmas, onde outros sentidos, outras palavras, no jogo polissêmico afetam a homofonia.

A não-coincidência interlocutiva deve ser entendida como constitutiva da enunciação que nos remete à relação dual, em espelho. Nessa relação de espelhamento, o outro, de acordo com a psicanálise, aparece como reflexo do mesmo, mas se mostra na distância estrutural irredutível, pelo inconsciente, marcando a singularidade que revela os dois sujeitos, não simétricos. A assimetria entre os sujeitos demarca, que as diferenças jamais serão preenchidas.

Em sua diversidade, as formas de não-coincidência do dizer se apresentam de maneira variada nas respostas, onde os interlocutores, partindo de um ponto imaginário de domínio comunicativo, promovem um total desencontro. Os fatos e a maneira de dizê-los são inteiramente diversos, sendo impossível compartilhá-los em uma só voz.

Podemos pensar que as imagens dadas pelo enunciador não vão encontrar sua equivalência no jogo discursivo, pois está marcado, aprioristicamente, pela impossibilidade de encontro, como um reflexo exato acessível diretamente ao real da enunciação. O dizer é sempre afetado pelos quatro campos de não coincidências (a,b,c,d) .

Essas não-coincidências, para Authier-Revuz (1998), apontam para uma abordagem teórica que marca o caráter constitutivo do não-um, ou seja, a não existência de um só sentido do discurso. As imagens metaenunciativas do não-um e a AD, nos dão a possibilidade de análise, quer do ponto de vista quantitativo, isto é, o número de pontos onde esse não–um é representado, quanto no plano qualitativo, o tipo de figuras apresentadas.

Na possibilidade de articulação entre os dois saberes, Psicanálise e Análise do Discurso, buscamos fundamentos para análise das dificuldades estabelecidas no campo da educação, seja ela formal ou inclusiva de pessoas portadoras de necessidades especiais, posto que as dificuldades não se dão pelas deficiências que possam apresentar, alunos ou professores. A própria constituição dos sujeitos, sejam estes alunos ou professores, enquanto sujeitos psíquicos, estão assujeitados ao inconsciente.

 

Sobre o ‘corpus’: aspectos metodológicos

O ‘corpus’ aqui apresentado é parte da gravação extraída de uma hora de observação de classe de um grupo de crianças de pré escola, entre 6 e 12 anos. Estas crianças apresentavam deficiências visuais diversas. Algumas eram cegas de nascença, outras distinguiam alguma luz, sendo que uma delas ficou cega a partir dos dois anos. Dentre elas, ainda havia aquelas em que a deficiência visual estava associada a problemas psíquicos ou algum tipo de retardo mental.

Cabe aqui salientar que, segundo a OMS – Organização Mundial da Saúde (1972), os cegos são aqueles que apresentam acuidade visual de 0 a 20/200, ou seja, enxergam a 20 pés de distância aquilo que sujeitos de visão normal enxergam a 200 pés, no melhor olho, ou que tenham um ângulo visual restrito a 20 graus de amplitude.

A visão subnormal é aquela em que a acuidade visual é de 20/200 pés a 20/70 pés no melhor olho. Além disso, alguns sujeitos cegos possuem deficiências visuais diversas, com diferenças na utilização dos resíduos visuais, o que aponta para a necessidade de uma concepção educacional de cegueira que vai além da ênfase na eficiência visual.

A observação em sala de aula foi feita com o consentimento da direção da escola, do serviço de psicologia, da professora e das crianças, assim como a gravação em fita de áudio, sendo que posteriormente à gravação, as crianças ouviram o que havia sido gravado em sala de aula.

A partir desse material gravado e transcrito, fizemos um recorte do diálogo estabelecido em sala de aula entre os alunos e a professora, seguindo alguns fundamentos da AD. Esta permite trabalhar o discurso de sala de aula, tomando a escola como uma instituição social, sendo que a educação tem aí o lugar privilegiado, onde os conflitos se explicitam, desconstruindo homogeneidades.

A AD é uma disciplina interpretativa que, segundo Pêcheux (1998), tem um real próprio, constitutivamente estranho à univocidade lógica; a AD é um saber que não se transmite, não se aprende, não se ensina, e que no entanto, existe produzindo efeitos.

Seguindo essa idéia, podemos pensar nos deslizamentos possíveis entre o discurso do professor vidente, no que concerne ao discurso pedagógico oficial, que nessa medida, não é tão livre como se pensa, mas que fala de acordo com uma determinação histórica, que constitui o sujeito professor, ou seja, implicado nos conflitos, reconhecimentos, relações de poder, constituição de identidades, tudo que implica o ato social. Os desdobramentos do dizer, que compõem a configuração enunciativa, revelam a suspensão do sentido evidente, natural, daquilo que parece óbvio em uma nomeação.

A linguagem, como ato de fala, é também manifestação de poder, assim como o lugar do possível, da ambigüidade, do equívoco, do polissêmico, o lugar de luta do sujeito. A partir desta multiplicidade potencial de deslizamento de sentidos, tomemos como ponto de partida da análise alguns seguimentos discursivos, onde os enunciados da professora estão apresentados em negrito. A interlocução entre as crianças e a professora no corpus transcrito para análise é antecedido por nomes fictícios.

(1) Leo: Professora, cego pode ser motorista?

(2) Professora: Não sei, o que tu achas?

(3) Leo: Pode, eu sei. Quando crescer vou ter uma Kombi.

(4) Flora: Eu não sou cega.

(5) Professora: Não és Flora ? Tu enxergas?

(6) Flora: Eu enxergo.

(7) Professora: O que tu enxergas?

(8) Flora: Eu enxergo luz.

(9) Professora: Ah! e a luz aqui da sala está acesa ou apagada?

(10) Flora: (pensa) Apagada. (Está acesa)

(11) Professora: Ah! E tu me enxergas?

(12) Flora: Enxergo Professora, sei como estás vestida.

(13) Professora: E como é?

(14) Flora: De calça amarela e blusa azul. (A professora está toda de vermelho)

(15) Leo: Prof. eu quero falar. Cego pode dirigir?

(16) Professora: Então vamos falar sobre isso. Acho que não, porque como vai saber quem está na frente, dos lados?

(17) Leo: Eu sei, vou bem devagarzinho.

(Alguns dizem que pode, outros que não, alguns só escutam)

(18) Professora: O que precisa para dirigir um carro?

(19) Flora: Chave

(20) Joana: Carteira

(21) Aline: Botar as crianças no carro.

 

Análise do “corpus”: recorte de alguns efeitos de sentido que se produzem

Tomando como elemento de análise esse corpus, pensemos que os enunciados tanto dos alunos como da professora apresentam, em seu próprio dizer, uma não-coincidência que constitutivamente afeta esse dizer, ou seja, a relação interlocutiva, a relação de não-coincidência das palavras com as coisas revela o atravessamento do discurso outro, das palavras implicadas, jogadas em outras palavras, evidenciando duas ordens heterogêneas que a nomeação superpõe.

A comunicação como produção do ‘um’, aqui, não se sustenta, posto que o imaginário de uma co-enunciação, pelo mal-entendido, aponta para uma impossibilidade de coincidência no dizer, entre a professora e os alunos. A questão, colocada por Leo não encontra ressonância na escuta da professora.

(1) Leo: Professora, cego pode ser motorista?

(2) Professora: Não sei, o que tu achas?

(3) Leo: Pode, eu sei. Quando crescer, vou ter uma Kombi.

Seguindo nossas referências teóricas, a não coincidência interlocutiva se dá em função da não-simetria entre os sujeitos na sua possibilidade de comunicação e a impossibilidade de se produzir o ‘um’ entre os enunciadores.

O que significa para Leo ser cego, o que lhe falta? Ser motorista implica enxergar. Parece que esta questão, posta por Leo, tem um saber implícito de sua capacidade de realização, embora negue essa evidência.

Dizendo de outra forma, Leo depara com as não coincidências que constitutivamente afetam esse dizer. Aqui falta algo a dizer, a palavra justa. Seguindo Authier-Revuz (1998), o que se abre na nomeação, o desdobramento metaenunciativo não é apenas o que falta no dizer; mas, também, o que retorna do dizer, que se volta sobre si mesmo. Leo espera uma resposta que o autorize a poder dirigir, apesar da limitação de enxergar. Como não tem esse retorno, toma pra si essa afirmação negada: (3) pode, eu sei. Quando crescer, vou ter uma Kombi.

Tomando em princípio os enunciados da professora, podemos apontar para alguns efeitos de sentido que emergem desse discurso. Um dos pontos de partida que propomos dessa análise são as intervenções da professora, marcadas por interrogações sobre a fala das crianças.

Se pensarmos psicanaliticamente, temos que nos situar a partir do ponto que há em comum entre as crianças e a professora, a relação inter-humana. Nessa perspectiva há duas dimensões diferentes, mesmo que se enlacem, de um lado a dimensão do imaginário, de outro a do simbólico. É preciso saber em que dimensão nos situamos em relação ao sujeito. Se acreditamos que o imaginário e o simbólico vão dar numa coisa só, como se elas se confundissem no fenômeno observável, ou descrito, estamos redondamente enganados. Há uma total impossibilidade de uma comunicação mágica onde se possa construir uma analogia universal.

Assim, discursivamente, as interrogações que se apresentam apontam para dúvidas, que podem ser tomadas como descrédito sobre as afirmações das crianças, por parte da professora: (2) Não sei, o que tu achas? (5) Não és Flora? Tu enxergas? Outras vezes, como negativa velada, da afirmação das crianças: (7) O que tu enxergas?(9) Ah! e a luz aqui da sala está acesa ou apagada? (11) Ah! E tu me enxergas?

Uma terceira forma de questionamento é colocada, revelando dúvida, como forma de dar elementos para que as crianças possam desenvolver uma argumentação própria sobre os temas que elas mesmas propõem: (13) E como é? (16) Então vamos falar sobre isso. Acho que não, porque como vai saber quem está na frente, dos lados? (18) O que precisa para dirigir um carro?

Do ponto de vista pedagógico, a posição assumida pela professora aponta para um modo de produção social, mantém uma posição de domínio e controle, reproduzindo o lugar de um saber que lhe é outorgado pela função que ocupa. Essa reprodução se dá através da força e da ideologia. Ela faz com que os sujeitos assumam para si, idéias e atitudes de outros, mas que lhes são impostas de forma tão sutil que eles as defendem como suas, ou seja, faz a interpelação do indivíduo em sujeito pela ideologia.

Segundo Althusser (1985), “o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para livremente submeter-se às ordens do Sujeito, para aceitar, portanto (livremente) sua submissão, para que ele realize por si mesmo os gestos e atos de sua submissão. Os sujeitos se constituem pela sua sujeição Por isso é que caminham pro si mesmos”. (p.104)

Isso implica no fortalecimento das relações de produção. Um sujeito assujeitado age como se fosse dono de suas ações, senhor absoluto de todos os seus atos”. A professora está no lugar de um saber, ou seja, ela sabe aquilo que os cegos podem ou não podem saber ou fazer. Ao interrogar o aluno sobre a questão colocada por ele mesmo, ou seja, quando é interpelada se cego pode ou não dirigir: (1) Leo: Prof., cego pode ser motorista? a professora responde:

(2) Não sei, o que tu achas?

(3) Leo: Pode, eu sei. Quando crescer, vou ter uma Kombi.

A resposta de Leo pode revelar que sua questão serve apenas para que possa falar de sua fantasia de poder dirigir, ter uma Kombi, ao mesmo tempo em que sabe dessa impossibilidade, por isso posterga para quando crescer. Aqui, a denegação da cegueira aponta para a heterogeneidade entre o que é dito e o que é revelado.

Podemos pensar que é nesta idéia de interpelação do sujeito pela ideologia que emergem as formações imaginárias, onde cada um assume um lugar determinado, faz uma imagem de si mesmo. Em suas fantasias, Leo se vê com a possibilidade de dirigir, quem sabe acredite que o crescimento lhe proporcionará outras condições, afinal adultos podem fazer coisas que as crianças não podem.

Além disso, Leo se sabe cego e isso lhe impõe limitações ou interdições, que o colocam em posição de submissão frente a uma formação social, sem compreender que tal sentido ‘vem de fora’, do mundo dos videntes e por sua condição de cego. Algo que lhe aconteceu, mas seu eu imaginário lhe dá um olhar que aponta para uma realidade interna, uma imagem de si que está fora da condição de cego.

Aqui gostaríamos de voltar à questão da não-coincidência do discurso consigo mesmo. Outras palavras habitam a fala de Leo, revelando outros discursos, ou seja, se revela o interdiscurso, onde o ‘eu falo’ traz o conhecimento da fala de outro lugar, ou seja: cego não pode dirigir. No entanto, Leo não se ‘vê’ cego. Antes de ser cego, Leo é uma pessoa como outra qualquer, que sonha, deseja, fantasia, espera conseguir, conquistar coisas no futuro, entre elas, dirigir sua ‘Kombi’. Em suas palavras insiste na interdiscursividade, uma fronteira interior/exterior. Sabe, desde um discurso outro, o que lhe é interditado, ser motorista; no entanto, afirma seu desejo, desde uma imagem de si mesmo, como ser desejante, que sim, terá sua ‘Kombi’, denegando sua limitação.

Uma outra questão a ser levada em consideração é que o sujeito social, mesmo na sociedade capitalista, pode ser um instrumento dialético de transformação das relações de poder. A questão posta por Leo à professora impõe a ela a condição de não saber o que responder, de ficar à espreita, ou à deriva, como esperando que Leo formule, desde seu lugar de aluno, de cego, de ser desejante, qual a saída que ele tem, para seu próprio saber esquecido, cegos não podem dirigir carros; entre tantas outras impossibilidades, trata-se de uma verdade que está no esquecimento do dizer, mas que se revela como interdiscurso.

A pergunta de Leo insiste, pois algo ficou por dizer, encoberto pela opacidade dos silêncios dos colegas em relação a sua questão, ou quem sabe, em relação à condição de ser cego de cada um. Há um ponto cego no discurso pedagógico, algo não se pode dizer diretamente pela professora. Assim, ele volta a questão: (15) Leo: Professora, eu quero falar. Cego pode dirigir?

Frente à insistência do discurso de Leo, ou do retorno do reprimido, para usar um termo que está ligado ao inconsciente, posto que o tema dá voltas como que fazendo ressonância, como buscando saída que não pode ser dito de forma definitiva, sempre deixando um resto, a professora se rende.

Há uma mudança de posição, pois a interpelação de Leo mostra que ao ter uma resposta definitiva: ‘Pode, eu sei. Quando crescer, vou ter uma Kombi’, Leo, enquanto manifestante da forma sujeito, põe em cheque a posição de autoridade e saber da professora. Então, ela fala como se a decisão de levar adiante o tema fosse sua:

(16) Professora: Então vamos falar sobre isso. Acho que não porque como vai saber quem está na frente, dos lados?

Poderíamos dizer que sua afirmativa é duvidosa, ou seja: Acho que não. Ela aponta para o interdito, o ambíguo, o polissêmico, até porque o nexo é falso: porque como vai saber quem está na frente, dos lados?

A ambigüidade da resposta dá margem para que Leo continue defendendo seu direito de se apropriar de sua própria sorte.

(17) Leo: Eu sei, vou bem devagarzinho.

Assim como Leo se locomove entre os colegas em sala de aula, nos espaços compartilhados nas dependências da escola, isso lhe garante que pode, como uma extensão de seu próprio corpo, dirigir sua Kombi.

A mudança de posição da professora não sustenta, no fio do discurso, uma condição de saber que lhe garanta o argumento. Por submissão à condição de poder da professora, alguns dizem que cegos não podem dirigir, sem, no entanto estarem no lugar de apropriação do discurso, mas por submissão ao interdiscurso. Outros aderem ao discurso de Leo e acreditam que sim, cegos podem dirigir; outros se calam num silêncio espectante do ponto final da polêmica; e, então, quem sabe possam saber de seus limites, incluídos na condição de cegos.

A professora propõe uma nova questão que pode delimitar as dificuldades da empreitada: (18) Professora: O que precisa para dirigir um carro?

Ao que as crianças respondem a partir das ‘falas’, do interdiscurso, dos discursos familiares, de tantas outras vozes que perpassam sua relação com sair ou não poder sair de carro; as crianças parecem apostar que esse saber que sabem, lhes dá uma saída do impasse. Parece que dirigir um carro não é problema de cegueira, mas de outras tantas questões, que afinal, são dos videntes.

(19) Flora: Chave

(20) Joana: Carteira

(21) Aline: Botar as crianças no carro.

Aqui podemos pensar na não-coincidência entre as palavras e as coisas, que segundo Authier-Revuz (1998), está claramente colocada como constitutiva, na dupla perspectiva onde o contínuo, as infinitas singularidades do real a nomear, que inscreve um jogo inevitável na nomeação, e de outro lado, em termos lacanianos, do real como radicalmente heterogêneo à ordem simbólica, isto é , da falta (constitutiva do sujeito como falho) de captura do objeto pela falta da letra que habita essa separação .” (p.23)

De qualquer forma, essas respostas não orientam a professora nas dificuldades que ela apresenta em trabalhar os temas que as crianças estão propondo. A professora trabalha um pouco esta idéia, que a chave é diferente da chave da porta. Uma chave do carro passa por eles. A professora fala ainda do crachá que é diferente da carteira de motorista. Fala sobre a direção do carro, que é redonda, que o carro tem pedais.

Todas essas novas informações, introduzidas sem qualquer fundamento, parece fazer sentido à professora, como se falando de carteira, chaves, pedais e direção, ficasse explicado um repertório de todas as dificuldades que envolvem dirigir um carro. Ou quem sabe, pretendia que esses novos elementos discursivos oportunizassem às crianças criar uma representação do carro (ou seria da Kombi?), e tudo seria entendido. Ficaria evidente, aí, as dificuldades de um cego dirigir um carro. Assim, imaginariamente, a professora dirigia-se a crianças cegas, ou com graves deficiências visuais, sem saber de seus saberes sobre o significado de diferenças entre chaves de portas (qual porta?) e chave de carro (da ignição, do tanque de gasolina?), da carteira de motorista, do crachá.

Voltando ao que havíamos mencionado anteriormente, não podemos esquecer que, do ponto de vista da psicanálise, a introdução do sujeito numa realidade qualquer não pode ser pensada a partir da experiência direta com qualquer objeto.

Talvez possamos pensar que no fio do discurso da professora, nesse momento, revela-se uma total impossibilidade de perceber as diferenças entre seu discurso de vidente, do discurso das crianças. Assim como, ao elencar todos esses novos objetos, talvez na tentativa de dar elementos para que as crianças entendessem a dificuldade que implicava o dirigir carro, descuidasse do fato de que é impossível o encontro das partes com o todo da questão.

Dizendo de outra forma, é impossível o encontro com o real do carro, do dirigir o carro, considerando que essas crianças podem ter uma representação de carro que seguramente não é a de um vidente. Assim, falar de carteira, chave, pedal, direção, parece totalmente sem sentido, não respondendo à questão, além de não oportunizar a que as crianças criem suas representações sobre cada um desses elementos por ela enumerados, que parecem totalmente descontextualizados. A professora parece perdida, não conseguindo ouvir de outro lugar a não ser o do vidente, o que não garantiria, não obstante, que sua argumentação com crianças videntes teria maior êxito.

Outro ponto que parece interessante analisar, com relação a pouca clareza dos enunciados da professora vidente, que estamos chamando de pontos cegos do discurso pedagógico, está no seguimento enunciado de Flora, ao tentar mostrar que, como a professora, é vidente, aderindo ao seu discurso dominante, quando afirma que enxerga luz. Como a professora não parece convencida, pergunta: (9) Professora: Ah! e a luz aqui da sala está acesa ou apagada?

Mais uma vez, Flora adere ao discurso dominante: (10) Flora: (pensa) Apagada (está acesa). Segue afirmando que enxerga, pois sabe como a professora está vestida. (14) Flora: De calça amarela e blusa azul (a professora está toda de vermelho).

Mais uma vez, a questão da cegueira está denegada, Flora diz que enxerga, vê luz. Em seu imaginário pode ver cores, o amarelo, o azul. O que são cores para ela? Como representá-las? Como será que as cores foram ensinadas a essas crianças e com que sentido?

De qualquer forma, Flora afirma que sabe, que enxerga, usa um referencial que supõe ser o esperado, ou seja, sabe cores, as coisas do mundo dos videntes são coloridas. Tem que dar conta disso, demonstrando que faz parte do mundo vidente, para fazer parte desse mundo, é assim que deve ser.

Aqui nos reportamos a Nasio (1995) quando afirma que “o eu-imaginário, que enuncia seqüências intradiscursivas, se define como uma estratificação incessante de imagens continuamente inscritas em nosso inconsciente” (p.166).

(4) Flora: Eu não sou cega.

(6) Flora: Eu enxergo.

(8) Flora: Eu enxergo luz.

Esses seguimentos discursivos nos fazem pensar que Flora, ao afirmar que não é cega, porque enxerga luz, parte do princípio que a luz é o suficiente para não corresponder a não sei que representação de cego. Ao mesmo tempo o que significa luz para ela? Embora não se saiba o que a criança entende por luz, isso que ela nomeia, ou seja, a luz é interpretado pela professora como lâmpada, já que testa a veracidade da afirmação de Flora quando pergunta:

(9) Professora: Ah, e a luz aqui da sala está acesa ou apagada?

Flora submetida ao discurso da professora, que assume o lugar do poder, e determina que luz quer significar apagada ou acesa, responde submetida a esse saber do discurso pedagógico. (10) Flora: (pensa) Apagada (está acesa).

Na seqüência do discurso de poder instituído pelo saber da professora, Flora afirma que ela está com calça amarela e blusa azul. O que faz com que Flora tenha que dar cor para a roupa que supõe enxergar? Por que tem de apontar cores? Usa assim, sem saber, um discurso apropriado de outros dizeres, outras vozes instituídas pelo discurso pedagógico, pensando ser dona do seu dizer.

Pensando sobre o ensino do conhecimento de cores: o que é a cor? É uma designação? Uma qualidade? É uma forma de ensinar a reconhecer diferenças entre os objetos ou elementos?

Como, no discurso pedagógico, se pode atingir um desenvolvimento de conhecimentos, habilidades, percepções, que respeitem as diferenças entre crianças videntes e aquelas com necessidades especiais, sejam quais forem as especificidades dessas dificuldades?

(12) Flora: Enxergo. Professora, sei como estás vestida.

(13) Professora: E como é?

(14) Flora: De calça amarela e blusa azul. (A professora está toda de vermelho).

A posição da professora é de colocar em dúvida, o que leva a aluna a buscar, imaginariamente, argumentos que a convençam, submetida ao discurso pedagógico, mostrando que tem um saber, ou que aprendeu bem o que lhe foi ensinado.

Flora reitera seu saber suposto, descrevendo o tipo de roupa e suas cores, tentando talvez convencer a professora e a si mesma, negando o lugar daquela que está em falta, frente ao que a professora espera ou aceita ouvir, sem notar a diferença entre o que imagina e a realidade, mas tenta manter, numa relação de espelhamento com a professora o mesmo tipo de representação da realidade que supõe ser o da professora.

Fica aqui claro a não-coincidência entre as palavras e as coisas, onde é “impossível a captura do objeto pela letra”(p.23) , no dizer de Authier-Revuz (1998). Não há obviedade entre as palavras e as coisas, as palavras são ncertas, posto que porosas, carregadas de discursos que trazem outras ressonâncias, multifacetados, imprevisíveis. As palavras não falam por si, mas pelo Outro, introdutor da exterioridade interdiscursiva interna, intersubjetiva, apontando para o sujeito dividido da enunciação. Quanto à professora, o que dizer de seu pretenso discurso pedagógico? Nada parece mais distante do discurso pedagógico do que a intervenção da professora nesse pequeno corpus.

Quando pensamos no tema da inclusão de crianças portadoras de necessidades especiais, consideramos que a inclusão implica todas as formas de reapropriação do sentido de educação, e não numa normatização de afirmações dogmáticas sobre como interpretar o saber e as coisas do mundo, posto que as coisas do mundo não são em si, mas têm existência a partir de atribuições que lhes damos, que são faladas desde um discurso; portando, submetidos à polissemia que a linguagem oferece.

A investigação de crianças cegas ou com deficiências visuais e como se dá sua inclusão na escola, a partir do discurso pedagógico dos videntes, atravessando a construção da subjetividade dessas crianças, aponta que as mesmas dificuldades apresentadas com essas crianças podem ser pensadas com relação às videntes. Quando o espaço de conhecimento está submetido a saberes dados como absolutos, sem considerar a necessidade de ouvir a compreensão de mundo que as crianças vão construindo em suas hipóteses sobre o que vêem, ouvem, pensam, sentem, rompe-se a possibilidade de deixá-las criar, fantasiar; enfim, buscar suas próprias referências que possam ser comparadas com o saber instituído como formal. A escola e a educação devem ser sempre inclusivas, posto que devem oportunizar que cada um, a seu modo, possa aprender o instituído, a partir do seu potencial e limitações, impregnado dos saberes outros, interdiscursivo. Os meios social, cultural, familiar compõem o interdiscurso, o que permite trabalhar o discurso de sala de aula, tomando a escola como mais uma instituição social, sendo que a educação tem aí o lugar privilegiado, onde os conflitos se explicitam desconstruindo homogeneidades, como dizíamos inicialmente.

A educação deve hierarquizar os objetivos filosóficos, ideológicos e pedagógicos da educação especial, onde sujeitos portadores de necessidades especiais não sejam vistos como pessoas educativamente incompletas, mas como os videntes com potenciais distintos que precisam de espaço e oportunidade para expressar sua compreensão do mundo.

 

Referências

Althusser, L. (1918/1985). Aparelhos Ideológicos de Estado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 8a edição.        [ Links ]

Authier-Revuz, J. (1998). Palavras Incertas: As não Coincidências do Dizer. São Paulo: Editora da Unicamp Campinas.         [ Links ]

Bakhtin, M. (1981). Marxismo e Filosofia de Linguagem. São Paulo: Hucitec.        [ Links ]

Freud, S. (1920/1976). Psicologia de grupo e a Análise do Ego. Rio de Janeiro: Editora Imago ESB, v.XVIII.        [ Links ]

Lacan, J. (1964/1973). Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise.Livro XI: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Nasio, J. D. (1995). O olhar em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.         [ Links ]

Pêcheux, M. (1998). Semântica e discurso crítica à afirmação do óbvio. São Paulo: Ed. Unicamp Campinas.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail:areiapa@terra.com.br

Recebido em maio de 2005
Aceito em julho de 2005

 

 

Autora: 1 Sueli Souza dos Santos – Psicóloga pela PUCRS; Psicanalista; Membro Pleno do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre. Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS; Doutoranda em Educação pela UFRGS; Membro do Grupo de Pesquisa em Educação e Analise de Discurso da UFRGS.

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