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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.23 Canoas jun. 2006

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Construindo e desconstruindo a supervisão de estágio com o devir-imperceptível das sensações mínimas do corpo

 

Composing and decomposing the training supervision with the minimal body sensations imperceptible turn out

 

 

Nara Lúcia Girotto1

Universidade de Santa Cruz do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo problematiza questões apresentadas por uma supervisora de estágio no seu esforço em desestabilizar as imagens cristalizadas que impedem de ver o real em sua novidade. Algumas perguntas como: quais são as imagens petrificadas que ela e seus alunos carregam da escola? Que invenções são possíveis para desfocar, ultrapassar os mesmos contornos, os mesmos códigos, as mesmas imagens clichês da escola? O que a inteligência não vê, sente, percebe no campo de estágio? Como fazer o aluno olhar com o corpo, utilizando o plano das sensações, das intuições? As perguntas circunscrevem as problemáticas levantadas bem como os caminhos teóricos encontrados para produzir uma faceta visionária no supervisionar.

Palavras-chave: Supervisor, Visionário, Desaprender, Corpo.


ABSTRACT

The article puts in doubt issues presented by a training supervisor in her effort to unstabilize the crystallized images that prevent us seeing the real in its novelty. Some questions as: What are the petrified images that her students and herself bring from school? What creations are possible to take the school focus, over coming the same contours, the same school common-place? What does not the intelligence see, feel in the training field? How to make the student look with the body, using the intuitions, the sensations circumscribe the raised issues as well as the theoretical ways found to produce a visionary facet on supervising.

Keywords: Supervisor, Visionary, Unlearning, Body.


 

 

Introdução

A existência de um fotógrafo cego chamado Evgen Bavcar, bem como sua exposição fotográfica ‘Noite: minha cúmplice’ desencadeou perturbações nas formas de olhar o percurso de alunos estagiários. Bavcar, ao prescindir da necessidade de olhos para fotografar, acaba questionando, paradigmaticamente, as concepções sobre o que significa olhar/ver. Bavcar cria um método para ver e registrar imagens em películas e, com os olhos no coração da noite, desenvolve a sensibilidade da pele-película do seu corpo para fazer uma fotografia epidérmica.

Bavcar, pelo fato de ser cego, consegue permanecer com o olhar da primeira vez, isto é, constrói suas imagens fotográficas a partir de um começo virginal, original e imaculado.

Os videntes, diferentemente, são convocados a realizar um descentramento do olhar, precisando antes desaprender a ver, para ver novamente com frescura, originalidade, com luz de aurora.

A palavra supervisão aglutina os vocábulos super e visão. A acepção fica evidente: trata-se de alguém com uma visão ampliada e superior. Parece, contudo, pertinente estar atento às armadilhas sedutoras dos significados atribuídos a esta função para não embarcar em posturas arrogantes, formatando a visão do aluno na (super) visão do orientador, professor. O foco deste trabalho é mostrar que a capacidade do supervisor, de engendrar questões, pensamentos diz respeito mais a sua capacidade de cegar-se, desaprender, aproximar-se do olhar da primeira vez, do que da sua quantidade de saber. Como exercício reflexivo, supúnhamos que uma supervisora de estágio em Psicologia quisesse ter uma visão singular e objetiva sobre os acontecimentos do campo de estágio e, para começar a alcançar seu objetivo, ela começa perspectivando sua visão assentada na lógica, na inteligência, nos saberes acadêmicos, científicos.

A crônica ‘Das desvantagens de ser bobo’, de Clarice Lispector, nos mostra a diferença entre os bobos e os inteligentes. A partir de um fato cotidiano, ter comprado um ar-condicionado usado, mostra como a boa fé e a confiança dos ‘bobos’ operam diferentemente dos critérios dos inteligentes. Diz Clarice:

Ser bobo às vezes oferece um mundo de saídas porque os espertos só se lembram de sair por meio da esperteza, e o bobo tem originalidade, a espontaneidade lhe vem a idéia. (...) o bobo tem oportunidade de ver as coisas que os espertos não vêem. (...) Aviso: não confundir bobos com burros. O esperto vence com úlcera no estômago. O bobo nem nota que venceu. (Lispector, 2004, p. 166)

A situação analisada por Clarice faz a supervisora perguntar-se o que a inteligência não vê, sente, percebe no campo de estágio? Como fazer o aluno olhar com o corpo, utilizando o plano das sensações, das intuições?

Certa vez, querendo um pouco de ar fresco, a supervisora comprou um livro sobre Espinosa, buscando compreender sua originalidade em atribuir a filosofia como a ciência dos efeitos, como filosofia prática.

O filósofo artesão, polidor de lentes, afirma que ninguém sabe o que pode um corpo (Deleuze, 2002, p. 23). A declaração de Espinosa é intencionalmente provocativa e tem como objetivo desenvolver seus argumentos para instituir o corpo como modelo. Diz Espinosa, no seu livro sobre a Ética, o que é ação na alma é também necessariamente ação no corpo, o que é paixão no corpo é por sua vez e necessariamente paixão na alma (Deleuze, 2002, p.24). Quando o filósofo nos convoca a tomar o corpo como modelo, o que está sendo questionado é a consciência como fonte, lócus, sede da racionalidade, do sentir, querer e imaginar. A consciência, originária da necessidade de comunicação, é uma ferramenta que recolhe apenas os efeitos do processo que acontece no corpo e no espírito. Desta forma, a consciência é vista como ilusão, pois o seu refinamento, seu progresso, seu alargamento não garante que essa se torne inteiramente transparente. Se a consciência não é plena, absoluta e objetiva, guardando sempre dimensões ignoradas, o ponto de partida não será mais a consciência e, sim, o corpo. E o que encontramos no corpo? As intensidades, as pulsações, as afecções. Espinosa define afecções como sendo partes vivas que se compõem ou decompõem conforme a disposição das forças encontradas nos corpos. Sentimos alegria, quando um corpo se encontra com o nosso e com ele se compõe e, inversamente sentimos tristeza, quando um corpo ameaça nossa coerência. Uma intensidade se conecta com outra intensidade e, somente o corpo vai explicitar se houve encontro de paixões tristes (impotentes) ou alegres (afirmação da potência). A supervisora e seus alunos vivem diariamente paixões tristes nas escolas, uma vez que porções descomunais de burocracia e pragmatismo de mercado minam os pequenos espaços de sabor e saber.

A consciência aglutina todo um universo psicológico que está associado à memória, à inteligência, à percepção, aos sentimentos, contudo esta não explica suficientemente a relação da subjetividade com o mundo. Rolnik (2002), de uma forma original, convoca o corpo vibrátil para acessar esta outra dimensão da subjetividade. Segundo a autora, a sensação não funciona como a percepção e o sentimento, ambos remetidos ao visível e ao eu. A sensação vem acompanhada de um estranhamento, uma vez que é um signo a decifrar. Para fazer a sensação vivível, precisamos inventar um sentido para algo que não estava no repertório subjetivo, por isso a subjetividade faz-se obra (devir de si mesmo e do mundo) como resultado do trabalho de construção de um sentido para um signo.

Mas o que vem a ser uma sensação? (...) sensação é precisamente isso que se engrendra em nossa relação com o mundo para além da percepção e do sentimento. Quando uma sensação se produz, ela não é situável no mapa dos sentidos de que dispomos e, por isso, nos estranha. Para nos livrar do mal-estar causado por esse estranhamento nos vemos forçados a ‘decifrar’ a sensação desconhecida, o que faz dela um signo. (Rolnik, 2002, p. 270)

A supervisora, para driblar as seduções interpretativas, arrogantes e inteligentes da (super) visão encontrou em Larrosa um aliado, quando esse distingue três formas nas quais pode-se transitar para encontrar o outro: o reconhecimento, a apropriação e a experiência. No reconhecimento, o outro não aparece porque aquele que procura apenas enxerga a si mesmo, reencontra sua imagem e semelhança. O da apropriação, como o nome sugere, vampiriza tudo que encontra, fazendo o outro se adequar aos seus critérios de valor e medida. O da experiência, por sua vez, consegue acolher o outro como diferença, isto é, nem apropriação e nem reconhecimento, mas entrega legítima para o desconhecido e, nesse processo, se transforma verdadeiramente (Larrosa, 2002). Estas três formas descritas acima e seus efeitos podem ilustrar a diferença entre a experiência psicológica e a experiência estética. A experiência psicológica centrada na percepção e no sentimento necessita do reconhecimento e da apropriação para garantir a identidade, a vigência dos sentidos. A experiência estética, por sua vez, realiza-se no outramento, na afirmação da vida como força criadora, na desobstrução do corpo vibrátil, na criação da diferença. O pintor Cézanne, quando perguntado sobre o que pintava, dizia que pintava a sensação, ou seja, a pintura como materialização do modo como um signo do mundo sofreu uma prática de problematização capaz de inventar um outro mundo no mundo. O mesmo pode ser proposto para a sustentação de uma subjetividade estética, isto é, uma prática que coloca a subjetividade como resultante do aprendizado dos signos decorrentes da ativação das sensações, desobstrução do corpo vibrátil, como potência de expansão e, fazendo emergir o devir-outro de si e do mundo, transformar a realidade a semelhança dos artistas - inventar um pedaço de realidade (de problematização) que não existia antes no mundo (Rolnik, 2002).

Alguns dispositivos técnicos, a vídeo-arte, produzem uma diferença vivencial na subjetividade, resultando uma desnaturalização do olhar. André Parente construiu um sistema chamado visorama, isto é, um dispositivo de produção de realidade virtual capaz de provocar no espectador o rompimento perceptivo de esquemas aprendidos. Seu objetivo é provocar uma espécie de desnaturalização do olhar, ao desestabilizar as imagens petrificadas que impedem de ver o real em sua novidade. Parente produz uma proposta conceitual e técnica (visorama) para fragilizar os esquemas psicológicos do espectador a fim de levá-lo a acessar o real como diferença, como produção de efeitos outros.

A supervisora e seus alunos se perguntam quais são as imagens petrificadas que eles carregam da escola e que invenções são possíveis para desfocar, ultrapassar os mesmos contornos, os mesmos códigos, as mesmas imagens? Quando acontece uma experiência que desarticula com as mesmas histórias escolares, os mesmos modelos disciplinares?

O visível parece estar povoado por sinais invisíveis e, quando Paul Klee afirma que a arte não reproduz o visível, mas torna visível (Klee, 2001, p.43), define os artistas como pessoas que fazem nascimentos, fazem ver, materializam em algo a imaterialidade do olhar. Contudo, esta prerrogativa não se restringe somente aos artistas. Inventar conceitos, fazer uma teoria, produzir acréscimos nas existentes são atributos dos pensadores, dos intelectuais. A palavra teoria provém do vocábulo grego theorein, sendo que esse provém de oran (ver). A teoria, na sua acepção gramatical, refere-se a um ver que sabe ver, que inventa meios para ver cada vez melhor. Parece que artistas, intelectuais, professores, terapeutas são convocados a serem visionários, exigindo daqueles que aceitam este convite um longo e custoso caminho de descentramento do olhar.

A visão, como foi dito anteriormente, elucida, concretiza, evidencia o invisível, podendo ser uma experiência profética ou profana. Considerando sua concepção profana, podemos localizar fragmentos de experiências visionárias nas situações prosaicas do cotidiano. Para captar e potencializar o que está em vias de vir a ser (devir), dando visibilidade para o invisível, requer-se disposição para transitar pelos enigmas da linguagem. O enigma funciona como corte capaz de produzir um rasgo, um desequilíbrio no discurso habitual. Assim como os poetas precisam pescar o rumor das palavras, para além e aquém destas, prescindindo da existência de sujeito e objeto, habitando a neutralidade, o visionário liberta-se do ego, da consciência para entrar em sintonia com a vertigem, o vazio, o indizível, enfim, com as forças coletivas, cósmicas.

A linguagem, quando utilizada literariamente, permite compreender como o visionário torna-se um sujeito impessoal e singular. A literatura faz a linguagem se colocar mais longe de si mesma, chegar no seu limite, no seu ponto mais exterior. Escavando-se a si própria, em desdobramento permanente para fora de si, num processo de distanciamento, diferenciação, dispersão, a literatura faz aparecer visões e audições que não pertencem a nenhuma língua (Deleuze, 1997). O visionário pertence ao exílio não só por estar expatriado, mas também por se colocar fora de si, isto é, acontece um apagamento das características que o definem como determinada pessoa, personalidade. Por exemplo, Fernando Pessoa, ao se multiplicar nos seus heterônimos, acessa a singularidade ao romper com a unidade do eu.

Na literatura quem fala não é o eu do escritor, tampouco o eu do personagem ou do leitor. Tudo acontece na espessura da própria palavra, num espaço neutro, silencioso e sem referente. Portanto, o desaparecimento do sujeito torna-se condição de aparecimento da literatura. Algo semelhante acontece com o visionário, já que suas ‘visões’ são resultantes de individuações sem sujeito. O visionário tornou vivível uma experiência exterior, isto é, produziu uma diferença ao multiplicar as visões. Contudo, o vê-se não é atributo pessoal, mas produção de diferença e de coletivo. Nesta perspectiva, o coletivo não apaga a individualidade, mas funciona como instância ulterior e complexa de individuações. O coletivo como plano aberto e indiferenciado, no qual a singularidade alcança seu clímax na pluralidade das vozes, das visões (Vidal, 2000). Quando estamos falando de perceptos não estamos nos referindo às inúmeras percepções diárias do nosso repertório subjetivo, pois esses aparecem de encontros e, um encontro envolve a existência de signos a decifrar, construção de sentidos para algo ainda não existente.

O vidente ou visionário, segundo Deleuze, não é aquele que antevê o futuro (...) O vidente apreende o intolerável de uma situação; ele tem visões,entendemos, aí, percepções em devir ou perceptos, que colocam em xeque as condições usuais da percepção, que envolvem uma mutação afetiva. A abertura de um novo campo de possíveis está ligada a estas novas condições de percepção: o exprimível de uma situação irrompe, bruscamente. (Zourabichvili, 2000, p. 340)

O pensamento do Fora e/ou a experiência do Fora recebe três assinaturas distintas, porém convergentes. Blanchot, Foucault e Deleuze, cada um fazendo uso específico do conceito, movimentam o cenário literário e filosófico do século XX. Para os autores respectivamente e resumidamente, o Fora está ligado a discussão da realidade no espaço literário, a despersonalização do sujeito e ao conceito de plano de imanência.

Deleuze, em 1986, publica o livro Foucault, nesse discorre como o pensamento do Fora perpassa o trabalho investigativo de Foucault nas questões do saber, do poder e da subjetivação e como o mesmo conceito responde sua problemática filosófica: como aparece o pensar no pensamento. Portanto, é o pensar, o que significa pensar que instiga, aproxima e faz um intercessor de outro. O saber, o poder e o si são uma tripla raiz de uma problematização do pensamento (Deleuze, 1988, p.125). Como se constitui o pensar no entrelaçamento irredutível entre saber, poder e a subjetivação? Definir o plano do saber, uma das preocupações do modo investigativo arqueológico de Foucault, possibilitou produzir uma análise histórico-filosófica do nascimento das ciências do homem (Machado, 2000).

O saber é composto por duas formas: o ser-luz (visível) e o ser-linguagem (dizível), portanto, tudo depende das combinações do visível e do enunciável de cada estrato, de cada formação histórica.O ver e o falar são formas irredutíveis, não coincidentes que permitem o arqueólogo definir o que cada época histórica faz ver e ouvir. Essa definição, por não ser óbvia, requer um ‘método’, pois os enunciado não são diretamente legíveis nas palavras, tampouco o visível encontra-se diretamente nas coisas. As coisas e as palavras não são coincidentes, portanto, os enunciados não são redutíveis às enunciações. O enunciado bem como o visível possui seu próprio arquivo de efeitos e limites, existindo uma não-relação entre ambos que permite que ocorra simultaneidade ver e falar, embora não se fale do que se vê e não se veja o que se fala. A dissociação entre ver e falar, essa impossibilidade da palavra recobrir totalmente a coisa atinge a representação, o que representa o quê, quando as palavras não dizem as coisas?

Poder e saber, mesmo com proveniências distintas, formam uma não-relação que faz funcionar os diagramas do poder com os arquivos do saber. São as forças informes, virtuais, difusas, indeterminadas do poder que fazem atualizar as exterioridades do dizer e falar em formas, estratos de saber. Seria pertinente não confundir os diagramas de forças com a linha do Fora, uma vez que essa última é espaço não-estratificado, do qual surgem os diagramas. Essa distinção nos permite entender como as resistências decorrentes do exercício do poder podem mudar as configurações de forças, enquanto as forças do poder convertem-se totalmente nos diagramas, as resistências permanecem no lado do de Fora, de onde provém o diagrama (Deleuze, 1988). Enquanto a topologia do saber dá-se no plano das formas, por um agenciamento prático, o poder é formado por um diagrama de forças. A composição das forças são informes, móveis e invisíveis, contudo uma microfísica diagramática explicita seu exercício, pois sua função e matéria são afetar e ser afetada por outras forças. O poder, por ser operatório e reticular, encontra-se espalhado de forma difusa e microscópica por todo o tecido social.

O pensar, assim como o poder, está no domínio das forças, de seu estado de afetar e ser afetada. Nesta perspectiva, o pensar não é uma faculdade inata, uma vez que esse depende da intrusão do lado de Fora para fazer surgir o pensar no pensamento. A linha do de Fora, como foi dito anteriormente, é a máxima potência das forças, sendo demasiada violenta para abrigar uma vida e um pensar. Contudo, a força pode afetar-se a si mesma, desacelerar, fazer aparecer o dentro do lado de Fora, isto é, a subjetivação. Então, o pensar não é algo que nos acontece de forma voluntária, com facilidade, com naturalidade, tampouco é tarefa simples fazer visível o invisível.

Deleuze, maquinando a seu modo os conceitos de Foucault, nos mostrou as possibilidades de ‘dentro’ do nosso mundo produzir um ‘fora’. Produzir um ‘fora’ diz respeito a emergência de um novo campo de possíveis, mas essa emergência só acontece quando ocorre mutações nas condições da percepção. Deleuze, recorrentemente, utiliza o exemplo de maio de 68 com a eclosão de uma nova sensibilidade. Uma nova sensibilidade que redefiniu, da política a sexualidade, as relações do homem com o mundo. Por isso, seria equivocado atribuir um mesmo entendimento entre o possível que se cria e o possível que se realiza. Podemos dizer que uma pessoa ou um grupo pode realizar um possível, tendo uma meta, uma imagem definida daquilo que pretende alcançar. Contudo, o possível que se cria se efetua sem meta ou imagem, de forma irreversível e involuntária.

A supervisora e seus alunos vacilam diante de conceitos tão etéreos, imateriais, sem imagem e forma. No entanto, a concepção involuntarista do pensamento em Deleuze torna-se instigante, provocam inquietudes e movimentos no pensar, fazer.

Eles ainda não sabem operar com os acontecimentos, isto é, ouvir e ver as visões e audições invisíveis e inaudíveis no campo educacional. Eles também não sabem como ultrapassar as individuações, encontrando o reservatório virtual dos traços circunstanciais que engendram ou maquinaram esta ou aquela atualização, pois estão habituados a trabalhar com fatos: problemas de aprendizagem dos alunos, formação de professores, proposta pedagógica, infância e tantos outros. No entanto, buscam ultrapassar a crença de que o mundo melhor seja o possível que se realiza, que suprimindo o que faculta a este mundo, um outro emergirá como melhor. Um acontecimento, uma mutação subjetiva não é decretada, ela se efetua independente das vontades e das opiniões, contudo, não se trata de estar passivo, pois ninguém deixa de reagir ao um intolerável que irrompe bruscamente (Zourabichvilli, 2000).

Todos sabemos que a realidade educacional do país apresenta problemas sérios e crônicos, que muitas escolas públicas e privadas não realizam um ensino eficaz e tampouco alcançam propósitos educacionais louváveis e, pela educação mostrar-se deficitária, o discurso hegemônico reitera permanentemente a construção de projetos que transformam sua realidade. São plausíveis e compreensíveis as causas, porém não atender esta demanda como metas previamente elaboradas de transformação não é aceitar passivamente suas carências. Constatamos em todos os âmbitos, particularmente, na política um esgotamento do possível que se realiza nos termos de projetos, de metas. A escola também se encontra paralisada diante de tantos projetos a realizar e, muitas vezes realizando, não consegue superar as carências, as dificuldades. Para não cairmos em ações que somente ratificam o esgotamento do possível que se realiza, podemos espreitar o aparecimento involuntário dos devires-revolucionários que podem fazer emergir uma abertura do possível. Desta forma, precisamos distinguir os fatos dos acontecimentos, já que o possível que se cria depende do acontecimento. Esse não obedece às leis das causalidades, dos determinismos, mas depende da existência de uma mutação que provoca necessariamente diferenças irreconciliáveis entre o antes e o depois, aparece um desvio que gera uma instabilidade nas atualizações existente, provocando um outro campo de atualizações (possíveis).

A diferença entre o supervisor-vidente e o não vidente é que o primeiro aposta na educação e o segundo no ensino. O educador educa o aluno mostrando suas virtudes e, se o aluno admirar a virtude do professor, erguer-se-á para além de si mesmo para alcançar suas próprias virtudes. Contudo, não se trata de um supervisor modelo, senão o aluno ficaria paralisado como uma estátua na imagem deste. Quando o aluno desenvolve suas próprias virtudes começa a caminhar sozinho, sem mestre e, livre e emancipado da visão do supervisor, torna-se ele próprio maior do que tinha sido até então.

A visão, portanto, é uma das preocupações dos supervisores-videntes, pois não se trata de uma visão resultante das percepções e das emoções (sentimentos). Trata-se, outrossim, de uma visão com “olhos na alma”, resultante do desenvolvimento de virtudes, da escolha de um modo de vida. Em todos os lugares em que acontece a educação, acontece o aparecimento das virtudes e das singularidades, por isso ser necessário a humildade do (super) visor. O depoimento de Borges exemplifica:

Só o que se pode ensinar é o amor por alguma coisa. Não ensinei literatura inglesa, mas o amor por essa literatura. Ou melhor dizendo, já que a literatura é virtualmente infinita: o amor por certos livros, certas páginas, talvez por certos versos. (Borges, 2000, p.5)

Deslocar a visão da inteligência, da percepção, dos sentimentos, abrindo-se para as sensações e para as virtudes resultou problematizações no campo de estágio. Contudo, o importante é como abordamos a forma de ver e não o que se vê efetivamente. Borges e Bavcar, por exemplo, fizeram dessa amputação imposta pela contingência, pelo acaso, uma passagem e, no lugar de cegos amputados, produziram diferenciações, mutações nas suas sensibilidades pessoais. Contudo, a existência de uma mutação coletiva, como foi dito anteriormente, depende da irrupção de um intolerável que reordene de forma irreversível as formas de viver a sexualidade, a política, o conhecimento, os costumes.

A supervisora e seus alunos, freqüentemente, sentem-se paralisados diante dos espaços controlados, das padronizações das condutas, dos códigos instituídos existentes nas escolas, nas universidades. Quando se consegue espreitar a composição de devires e pensamentos inusitados e, ainda, mapear os espaços marginais que estão questionando, denunciando as práticas, os costumes, os projetos, as metas, eles poderão, eventualmente, sentirem-se solitários, não obstante amputados e paralisados.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: naratto@unisc.br

Recebido em dezembro de 2005
Aceito em maio de 2006

 

 

Autores: 1 Nara Lúcia Girotto – Psicóloga, Mestre em Educação, docente do Departamento de Psicologia da UNISC – Universidade de Santa Cruz do Sul.

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