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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.23 Canoas jun. 2006

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

A função da história e da cultura na obra de C. G. Jung*

 

The function of history and culture in C. G. Jung’s work

 

 

André Guirland Vieira1

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente trabalho, estudamos a função dos conceitos de história e de cultura na teoria de C. G. Jung. A questão da dimensão histórica e cultural do sujeito psicológico aparece de forma não sistemática no pensamento junguiano. Ela implica a formulação de que o sujeito é constituído historicamente e, consequentemente, moldado em uma relação dialética com um universo simbólico marcado por características histórico-culturais. A singularidade dessa abordagem desvela pontos ainda obscuros e não trabalhados na obra de Jung. O artigo mostra, também, o modo como, a partir desta abordagem, é possível fazer uma crítica junguiana da cultura.

Palavras-chave: Psicologia analítica, C. G. Jung, História, Cultura, Interpretação.


ABSTRACT

Throughout the present work, we have studied the function of the concepts of history and culture in the C. G. Jung’s theory. The issue of historical and cultural dimension of the psychological subject appears in a non-systematic fashion in Jungian’s thought. It implies a formulation wherein the subject is historically constituted, and therefore moulded through a dialectical relation with a symbolic universe marked by historic and cultural characteristics. The uniqueness of such approach uncovers issues that are still obscure and over which Jung did not work. The article also demonstrates how it is possible, from that point of view, to criticize culture in the Jungian way.

Keywords: Analytical Psychology, C. G. Jung, History, Culture, Interpretation.


 

 

As noções de história, cultura e da construção de um sujeito histórico tem um papel fundamental na visão de mundo de C. G. Jung e, conseqüentemente, no seu conceito e sistema de interpretação. Não obstante, tais noções têm sido sistematicamente negligenciadas nos diversos rumos tomados pela difusão do pensamento junguiano. Tal negligência explica-se em parte pelo caráter não sistemático em que estes conceitos aparecem na obra de C. G. Jung, mas também por uma visão de mundo platônica que tem predominado entre os pós ou neo junguianos, a qual tem distanciado a Psicologia Analítica da discussão científica e acadêmica contemporânea. Tanto é assim, que a retomada destas noções provoca uma leitura singular e um recorte da obra de Jung capaz de desvelar aspectos ainda não lapidados de seu pensamento.

A história é um dos fundamentos da obra de Jung, sua importância aparece já em 1909, durante a viagem aos Estados Unidos feita com Freud para as conferências na Clark University. Nesta viagem Jung (1961) teve um sonho,

Eu estava numa casa desconhecida, de dois andares. Era a ‘minha’ casa. Estava no segundo andar onde havia uma espécie de sala de estar, com belos móveis em estilo rococó. As paredes eram ornadas de quadros valiosos. Surpreso de que a casa fosse minha, pensava: ‘nada mau!’ De repente, lembrei-me de que ainda não sabia qual era o aspecto do andar inferior. Desci a escada e cheguei ao andar térreo. Ali, tudo era mais antigo. Essa parte da casa datava do século XV ou XVI. A instalação era medieval e o ladrilho vermelho. Tudo estava mergulhado na penumbra. Eu passava pelos quartos, dizendo: ‘quero explorar a casa inteira!’. Cheguei diante de uma porta pesada e a abri. Deparei com uma escada de pedra que conduzia à adega. Descendo-a, cheguei a uma sala muito antiga, cujo teto era em abóbada. Examinando as paredes descobri que entre as pedras comuns de que eram feitas, havia camadas de tijolo e pedaços de tijolo na argamassa. Reconheci que essas paredes datavam da época romana. Meu interesse chegara ao máximo. Examinei também o piso recoberto de lajes. Numa delas descobri uma argola. Puxei-a. A laje deslocou-se e sob ela vi outra escada de degraus estreitos de pedra, que desci, chegando enfim a uma gruta baixa e rochosa. Na poeira espessa que recobria o solo havia ossadas, restos de vasos, e vestígios de uma civilização primitiva. Descobri dois crânios humanos, provavelmente muito velhos, já meio desintegrados. – Depois, acordei. (p. 143)

Este sonho é interpretado pelo próprio Jung como uma imagem da psique. O primeiro andar é, deste modo, uma representação da consciência, uma sala de estar habitável, apesar do estilo antiquado. No andar térreo já começa o inconsciente, que vai tornando-se mais e mais arcaico até chegar ao mundo do homem primitivo, onde a alma humana aproxima-se da alma animal.

Freitas (1991) toma como contraponto ao pensamento de Jung, dois autores que lhe são afins, Hannah Arendt e Walter Benjamin, e, partindo deles, esclarece e amplia as noções de história e de homem histórico trazidas de forma não sistemática na obra de Jung. Freitas cita a análise de Arendt (1954/1992) de uma parábola de Kafka:

Ele tem dois adversários: o primeiro acossa-o por trás, da origem. O segundo bloqueia-lhe o caminho à frente. Ele luta com ambos. Na verdade, o primeiro ajuda-o na luta contra o segundo, pois quer empurrá-lo para frente, e, do mesmo modo, o segundo o auxilia na luta contra o primeiro, uma vez que o empurra para trás. Mas isso é assim apenas teoricamente. Pois não há ali apenas os dois adversários, mas também ele mesmo, e quem sabe realmente de suas intenções? Seu sonho, porém, é em alguma ocasião, num momento imprevisto – e isso exigiria uma noite mais escura do que jamais o foi uma noite – saltar fora da linha de combate e ser alçado, por conta de sua experiência de luta, à posição sobre os dois adversários que lutam entre si. (p. 33)

Esta parábola mostra que o homem vive sempre no intervalo entre o passado e o futuro, que o tempo não é um continuo, um fluxo de ininterrupta sucessão, mas é partido no meio, no ponto onde o homem está. E “a posição ‘dele’ não é o presente na sua acepção usual, mas antes, uma lacuna no tempo, cuja existência é conservada graças à ‘sua’ luta constante, à sua tomada de posição contra o passado e o futuro” (Arendt, 1954/1992, p. 37). O sonho de Kafka, de ser elevado a uma região acima da linha de combate é, segundo Arendt, o sonho anelado pela Metafísica ocidental de uma esfera intemporal, fora do espaço e supra-sensível como a região mais adequada ao pensamento. Para Arendt, o que falta à descrição kafkiana de um evento-pensamento é uma dimensão espacial em que o pensar se possa exercer sem que seja forçado a saltar completamente para fora do tempo humano. A inserção do homem, interrompendo o contínuo, faz com que as forças se desviem, por mais ligeiramente que seja, de sua direção original. Elas, assim, não mais se entrechocariam face a face, mas se interceptariam em ângulo. A lacuna, portanto, onde o homem se coloca não seria um intervalo simples, mas o que o físico chama de um paralelogramo de forças. Da ação dessas duas forças sobre o lugar onde o “ele” de Kafka se encontra deve resultar uma terceira força: a diagonal resultante que teria origem no ponto em que as forças se chocam e sobre o qual atuam. Essa força diagonal diferiria em um aspecto das duas outras de que é resultado. As duas forças antagônicas são ambas ilimitadas no sentido de suas origens, vindo uma de um passado infinito e outra de um futuro infinito. No entanto, embora não tenham um início conhecido, possui um término, o ponto no qual colidem. A força diagonal, ao contrário, seria limitada no sentido de sua origem, sendo seu ponto de partida o entrechoque das forças antagônicas. Seria, porém, infinita quanto a seu término, visto resultar de duas forças cuja origem é o infinito. “Esta força diagonal, cuja origem é conhecida, cuja direção é determinada pelo passado e pelo futuro, mas cujo eventual término jaz no infinito, é a metáfora perfeita para a atividade do pensamento”(p. 38). Esta força diagonal é, portanto, o espaço próprio ao homem em meio ao combate entre as forças do passado e do futuro, o único caminho dado a ele a seguir de maneira que não seja esmagado pelo antagonismo dessas forças. Mas, “apenas na medida em que pensa, isto é, em que é intemporal, o homem na plena realidade de seu ser concreto vive nessa lacuna temporal entre o passado e o futuro. (...) Ela bem pode ser a região do espírito, ou antes, a trilha plainada pelo pensar, essa pequena picada de não-tempo aberta pela atividade do pensamento através do espaço-tempo de homens mortais e na qual o curso do pensamento, da recordação e da antecipação salvam o que quer que toquem da ruína do tempo histórico e biográfico” (p. 40). Este estreito caminho não pode ser recebido ou herdado do passado, mas apenas indicado, cada nova geração e cada novo ser humano deve descobri-lo e pavimentá-lo de novo.

Segundo Freitas (1991),

As duas forças antagonistas do passado e do futuro são ambas indefinidas quanto a sua origem, vistas pela perspectiva do presente. Uma se origina em um infinito futuro, a outra em um infinito passado. Embora o começo seja desconhecido, o ponto final é conhecido; é o presente, o ponto em que as duas linhas se encontram. Deste ponto P, o presente, surge uma diagonal que tem sua origem conhecida. Seu começo é o encontro entre passado e futuro, portanto por eles condicionado. Seu final é o infinito, pois resulta de forças infinitas. Assim, temos que a direção da diagonal, cuja origem é conhecida (ponto P), é determinada pelo passado e pelo futuro, lançando-se para o infinito. (p. 183)

O ponto P, como ponto do combate entre as forças do passado e do futuro, no qual o homem se vê jogado é o lugar e a situação em que ele se encontra quando da construção da subjetividade. É no confronto de um passado biográfico junto com o passado trazido com toda a história e de um futuro incerto ao qual o impelem as forças da consciência coletiva, que o homem se vê obrigado a construir um caminho próprio ou sucumbir às forças que o arrastariam pela inconsciência e conformidade se por acaso não lutasse. Freitas (1991) aponta que a concepção de Walter Benjamin da história poderia ser ilustrada por este diagrama proposto por H. Arendt. “No ponto P está o anjo. Eterno é o presente quando radicalmente ligado ao passado e ao futuro” (p. 183). O anjo de que nos fala Freitas é o anjo da história de Benjamin (1940/1993):

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar seus fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso. (p. 226)

O que Freitas (1991) toma da concepção de história de Benjamin (1940/1993), e que aparece na metáfora do anjo, é a noção de que o passado não é vazio nem homogêneo, mas repleto de sementes de possíveis futuros. Benjamin critica a noção da historiografia de uma concepção de tempo como cronologia linear, como se a sucessão cronológica fosse sinônimo de uma relação substancial de necessidade histórica. “O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa é só por isso um fato histórico” (Benjamin, 1940/1993, p. 232). A esta concepção de tempo, Benjamin opõe a noção de “agora”, de surgimento do passado no presente. “O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro de ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não tem as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa” (p. 223). Gagnebin (1994) comenta as teses sobre a história de Benjamin,

Se o lembrar do passado não for uma simples enumeração oca, mas a tentativa, sempre retomada, de uma fidelidade àquilo que pedia um outro devir, a estes signos dos quais o futuro se esqueceu em nossa casa como as luvas ou o regalo que uma mulher desconhecida, que nos visitou em nossa ausência, deixou numa cadeira, então a história que se lembra do passado também é sempre escrita no presente e para o presente. A intensidade dessa volta/renovação quebra a continuidade da cronologia tranqüila, imobiliza seu fluxo infinito, instaura o instante e a instância da salvação. (p. 111)

Este resgate do passado rompe com o continuum da historia contada pelos vencedores. Resgatando-se o passado, resgatam-se as sementes de possíveis futuros. “O fruto nutritivo do que é compreendido historicamente contém em seu interior o tempo, como sementes preciosas, mas insípidas” (Benjamin, 1940/1993, p. 231). Daí a tarefa do historiador de escovar a história a contrapelo. As inter-relações traçadas por Freitas (1991) entre o pensamento de H. Arendt, W. Benjamin e C. G. Jung propiciam uma leitura da teoria junguiana capaz de iluminar pontos não antes lapidados ou obscuros, como a noção e a importância da história em Jung e a de sujeito histórico.

Podemos retomar, neste momento, o sonho de Jung. Neste sonho já aparece prefigurada toda a conformação histórica da psique humana. Não é a toa que a consciência aparece representada como uma sala em estilo clássico, o que provavelmente corresponderia bem à mentalidade de um europeu suíço nascido na segunda metade do século XIX e crescido na Basiléia. A partir daí as diversas camadas do inconsciente vão sendo representadas como lugares cada vez mais antigos (e mais recônditos) de uma casa, mas sempre definidos historicamente e quase sempre referindo-se a períodos da história ocidental. Apenas no momento em que nos deparamos com uma gruta onde jazem restos de uma civilização primitiva é que a imagem da casa toca a origem do humano em geral. A idéia de uma psique como um produto da história aparece já na primeira grande obra de Jung, que marca a separação com Freud e o início de seu caminho como teórico da psicologia. No prefácio de Símbolos da transformação, Jung (1912/1986) escreve:

A psicologia não pode prescindir da contribuição das ciências do espírito, sobretudo da história do espírito humano. É, sobretudo, a história que hoje nos permite coordenar a imensa quantidade de material empírico e reconhecer a importância funcional dos conteúdos coletivos do inconsciente. A psique não é uma coisa dada, imutável, mas um produto de sua história em marcha. Assim, não só secreções glandulares alteradas ou relações pessoais difíceis são as causas de conflitos neuróticos; entram em jogo também, em igual proporção, tendências e conteúdos decorrentes da história do espírito. O entendimento psiquiátrico do processo patológico de modo algum possibilita o seu enquadramento no âmbito geral da psique. Da mesma forma, a simples racionalização é um instrumento insuficiente. A história sempre de novo nos ensina que, ao contrário da expectativa racional, fatores assim chamados irracionais exercem o papel principal, e mesmo decisivo, em todos os processos de transformação da alma. (p. XIX)

Seguindo a linha diretriz da construção histórica da psique, Jung (1912/1986) segue o livro refletindo sobre a construção da consciência ocidental a partir do desenvolvimento do pensamento lógico e dirigido. Diz Jung que nossa forma lógica e racional de pensar está calcada em um passado no qual predominava uma forma mítica e simbólica de pensamento. O pensamento dirigido, até onde podemos acompanhar, é construído historicamente a partir do pensamento simbólico. Mostra como o pensamento lógico é construído a partir da linguagem e do conceito lingüístico e como ele se descolou do pensamento mítico apenas muito recentemente, a partir da Escolástica.

O futuro verá que claramente como e onde a Escolástica ainda fornece subsídios vivos à ciência de nossos dias. Em toda sua essência ela é ginástica dialética, que auxiliou o símbolo da linguagem, a palavra, a adquirir um significado praticamente absoluto, de modo a atingir, finalmente, aquela substancialidade que os antigos podiam atribuir a seu logos apenas através da valorização mística. Com o grande feito da Escolástica surgem as bases da função intelectual firmemente estruturada, a conditio sine qua non da ciência e da técnica modernas. (p. 17)

Jung (1912/1986), entretanto, alerta que seríamos demasiadamente arrogantes se nos julgássemos mais inteligentes do que os homens da Antiguidade. “O primitivo não é nem mais lógico nem mais ilógico do que nós. O que é diferente são os pressupostos de que parte. É isso que o distingue de nós” (Jung, 1931/1993, p. 55). A Antiguidade preferia o pensamento que se aproximasse mais do tipo fantástico, no espírito antigo tudo está impregnado de mitologia. O pensamento da Antiguidade é uma forma de pensamento de tipo artístico. “O alvo do interesse não parece ter sido compreender o “como” do mundo real com a maior objetividade e exatidão possíveis, e sim adaptá-lo esteticamente a fantasias e esperanças subjetivas” (Jung 1912/1986, p. 18). Antes de Giordano Bruno e Kepler a Antiguidade via no sol o grande pai do céu e do universo e na lua a mãe fecunda, cada coisa tinha o seu daimon e, assim, tudo era animado. Esta forma de pensamento encontra um paralelo, hoje, nos sonhos e no pensamento da criança. Jung, neste trabalho, se estende até a forma de pensamento da Antiguidade e dos povos primitivos para compreender a forma de pensar das crianças, dos sonhos e do fantasiar. Aqui, a história da evolução do pensamento e da consciência torna-se um método para compreender a linguagem do inconsciente. Este movimento constitui seu método de compreensão, um método comparatista calcado na história, o qual acaba formulando um relativismo do tipo hermenêutico. Assim, para ele, o pensamento primitivo não é menos lógico do que o pensamento do homem contemporâneo, mas calcado em pressupostos diferentes. Tal metodologia aparece, também, no processo de construção da teoria dos arquétipos. Antes da formulação de princípios teóricos há um primeiro momento de observação do dado empírico, no presente caso, a produção de fantasia da humanidade, seguido pela análise do material observado. É somente após todo um trabalho sobre o dado empírico que Jung chega a formulações de hipóteses teóricas.

Observando as formas do pensamento primitivo, da mitologia, bem como dos produtos do inconsciente, na forma de sonhos, fantasias, visões e delírios, Jung (1940/1959) começou a reparar a presença de regularidades, isto é, de situações típicas ou de tipos. Há tipos de situações e figuras que se repetem freqüentemente e que se organizam em torno de um sentido correspondente. Jung passou a designar estas repetições como “motivos”, salientando que não existem apenas sonhos típicos, mas também motivos típicos nos sonhos. A esses motivos típicos, Jung deu o nome de Arquétipos.

Críticos têm se contentado em afirmar que tais arquétipos não existem. Certamente eles não existem, não mais do que existe um sistema botânico na natureza! Mas será que por isso vamos negar a existência de famílias de plantas naturais? Ou será que vamos contestar a ocorrência e contínua repetição de certas semelhanças morfológicas e funcionais? Com as formas típicas do inconsciente, trata-se de algo a princípio muito semelhante. São formas existentes a priori ou normas biológicas da atividade anímica. (p. 183)

Assim, os arquétipos são, em um primeiro momento e de forma análoga ao sistema botânico, uma tipologia, uma observação de regularidades na produção do espírito humano, e entenda-se espírito aqui como toda produção de texto: sonhos, fantasias, delírios, obras de arte, enfim, de toda produção cultural do homem. E é justamente por isso que a compreensão da história se faz tão necessária ao pesquisador e ao psicoterapeuta, sem ela torna-se impossível o entendimento da produção humana, seja ela a produção do artista, do sujeito de pesquisa ou a do paciente. Sem a comparação histórica perde-se a possibilidade de observação desses tipos, que, desta forma, passariam despercebidos por nós, e da reflexão sobre o seu significado, tanto para a humanidade como um todo, como para o indivíduo que o atualiza em sua produção. Mas a constatação da ocorrência de motivos típicos, principalmente em situações em que a transmissão cultural torna-se muito improvável, levou Jung (1935/2000) a postular uma relação entre o arquétipo e o instinto.

O estudo da psicologia dos primitivos, o folclore, a mitologia e a ciência comparada das religiões abre a perspectiva de um horizonte mais amplo da psique humana e nos fornece os meios indispensáveis para a compreensão dos processos inconscientes. Só quando vemos a forma e o papel que assumem no cenário étnico e histórico os símbolos oníricos aparentemente únicos, podemos entender realmente o que eles pretendem indicar. E equipados com este vasto material comparativo, podemos também compreender melhor aquele fator absolutamente decisivo para a vida psíquica, isto é, o arquétipo. Como sabemos, este conceito não é uma “idéia hereditária”, mas um modo hereditário de função psíquica, ou seja, aquele modo inato pelo qual o pintinho sai do ovo, o pássaro constrói seu ninho, um certo tipo de vespa atinge com seu ferrão o gânglio motor da lagarta, a enguia encontra seu caminho para as Bermudas, portanto um “pattern of behaviour” (padrão de comportamento). Este aspecto do arquétipo é biológico; com ele se ocupa a psicologia científica. (p. 91)

O arquétipo está, deste modo, ligado ao instinto. Jung (1919/1984) dirá que enquanto o instinto é uma forma típica de comportamento, o arquétipo pode ser definido como uma forma de apreensão, e, portanto, de representação da realidade. Em relação ao instinto, o arquétipo pode também ser definido como uma percepção do instinto de si mesmo, ou como um auto retrato do instinto. Se o instinto aparece, quando observado de fora, como um padrão de comportamento, por dentro, no âmbito da psique subjetiva, ele aparece como uma representação.

Aqui o arquétipo se apresenta como numinoso, como uma vivência de fundamental importância. Quando se reveste de símbolos correspondentes, o que nem sempre é o caso, então transfere o sujeito para o estado de comoção, cujas conseqüências podem ser imprevisíveis. Eis a razão porque o arquétipo é tão importante para a psicologia da religião: todas as representações religiosas e metafísicas baseiam-se em fundamentos arquetípicos e, na medida em que for possível investigá-los, conseguiremos lançar um olhar, ainda que passageiro, atrás dos bastidores da história mundial, isto é, levantar um pouco o véu que esconde o mistério das idéias metafísicas e seu sentido. A metafísica é uma física ou uma fisiologia do arquétipo, e seus dogmas (= fórmulas doutrinárias) formulam o conhecimento de seus dominadores, isto é dos leitmotivs predominantes e inconscientes do fato psíquico. O arquétipo é “metafísico” porque ele transcende a consciência. (Jung 1935/2000, p. 92)

A psique não consiste apenas de conteúdos conscientes que podem ser derivados de percepções dos sentidos, mas também de idéias baseadas em percepções dos sentidos que foram modificadas de maneira peculiar por formas inconscientes e existentes a priori, isto é, pelos arquétipos. A psique consiste, portanto, da consciência e do inconsciente, uma parte dela se explica por causas recentes, mas outra remonta aos fundamentos da história dos povos. Neste sentido, Jung (1928/1984) dirá que o inconsciente, enquanto totalidade de todos os arquétipos, é o repositório de todas as experiências humanas, desde seus mais remotos princípios. Não um repositório morto, mas de “sistemas vivos de reações e aptidões, que determinam a vida individual por caminhos invisíveis e, por isso mesmo, tão mais eficientes” (p. 162). As representações arquetípicas, por sua vez, apresentam um caráter numinoso e simbólico, tal como o símbolo religioso. O símbolo aparece, em Jung (1928/1984), como aquele elemento psicológico que está em um primeiro momento atrelado ao instinto, mas que, em um segundo momento, é capaz de se distanciar, ou mesmo de se opor ao instinto natural ao dirigir a ação humana para fora da pura instintividade. Jung cita como um exemplo rituais primitivos de fecundação da terra, que antecedem o plantio, mostrando como o instinto sexual desvia-se de seu fim natural em direção à cultura. Mas este exemplo, na verdade muito básico, pode ser enriquecido com a citação acima transcrita, na qual todo o símbolo metafísico e religioso aparece como uma construção sobre uma base instintiva que, portanto, transforma uma energia instintiva em uma energia psicológica produtora da cultura. Neste sentido, Jung dirá que o espírito funciona como um instinto. A cultura é, deste modo, autônoma em relação ao instinto, consequentemente, torna-se impossível interpretá-la à luz do instinto. Ao tipo de entendimento que reduz as funções psicológicas à instintividade, Jung (1917/1981) chama de interpretação causal-redutiva. Para Jung, a interpretação causal-redutiva dá conta apenas de um aspecto do fenômeno simbólico; a ela deve ser acrescentada uma interpretação sintético-construtiva, na qual o símbolo possua um valor próprio, não redutível e só discernível através de uma leitura histórico-cultural. Tal abordagem do símbolo aproxima Jung de E. Cassirer (1944/1994) e de todos os pensadores contemporâneos da cultura que o tem como base.

A idéia da autonomia da cultura em relação ao instinto leva-nos a uma concepção de homem construído não apenas pelo instinto, mas pela história. O homem será, portanto, para Jung (1928/1981), um ser histórico-social. Em consonância com esta idéia, Jung propõe que o desenvolvimento da consciência individual exige sua diferenciação de uma psique coletiva. A psique coletiva deve ser entendida como englobando tanto uma consciência coletiva, como um inconsciente coletivo. Se o último está relacionado aos arquétipos e aos instintos, o primeiro relaciona-se à cultura, mais especificamente, a todas aquelas formas coletivas de agir (o que inclui o sentir e o pensar) que chamamos de senso comum. O termo “consciência coletiva” foi tomado de Durkhein (1893/1984): “O conjunto de crenças e sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida própria; pode-se chamá-lo de consciência coletiva ou consciência comum” (p. 74). A consciência individual é, portanto, “um segmento arbitrário da psique coletiva” (Jung 1928/1981, p. 145). Está, por um lado, pressionada pela consciência coletiva e por outro, pelo inconsciente coletivo. Ser for tragada pela consciência coletiva estará sujeita à determinação da psicologia e a psicopatologia das massas, com a conseqüente massificação do homem e a perda da liberdade. Se for invadida pelo inconsciente coletivo estaremos à beira da psicose. A importância das determinações históricas é tão importante, em Jung (1917/1981), para a psicopatologia que o fez propor que “a neurose está intimamente entrelaçada com o problema do próprio tempo e representa uma tentativa frustrada do indivíduo de resolver dentro de si um problema universal” (p. 12).

A aplicação mais imediata da consideração do aspecto histórico do pensamento de C. G. Jung pode ser encontrado na investigação de Freitas (1991) da psicologia e da psicopatologia do homem moderno e pós-moderno. Neste sentido, e de forma análoga à M. Bakhtin (1927/1980), Freitas toma o Freudismo como paradigma das correntes atuais do pensamento filosófico e psicológico, mas vai além de Bakhtin ao apontar suas raízes históricas e epistemológicas. Assim, Bakhtin critica através de Freud toda a tendência da psicologia de explicar a produção humana a partir da biologia.

Qual é, portanto a mensagem ideológica do freudismo? É a de que nosso destino, o conteúdo integral de nossa vida e de nossa obra (arte, se somos artistas, teorias científicas, se somos estudiosos, programas e atos políticos, se somos homens de política) tudo isto é totalmente determinado pelos avatares de nossa pulsão sexual, e somente por elas, o resto não constitui mais que harmônicos da toda poderosa, da profunda melodia das pulsões sexuais. (p. 88)

Bakhtin propõe que, ao colocar a ênfase no ser biológico, a psicologia rouba do homem o seu aspecto histórico, jogando-o em um conformismo que replica a ideologia burguesa.

O que conta não é mais aquilo que nos determina um lugar e um papel na história (o pertencer a uma classe, a uma nação, a uma época) mas somente nosso sexo e nossa idade; todo o resto não é senão a superestrutura. Nossa consciência não depende mais de nosso ser histórico, mas de nosso ser biológico, essencialmente definido por nossa sexualidade. (p. 88)

Para Bakhtin, este ser biológico e abstrato, o indivíduo biológico não tem, estritamente falando, uma realidade, a não ser como princípio e fim da ideologia moderna. Pois fora de uma sociedade e de condições socioeconômicas objetivas, o homem não tem qualquer existência.

Para entrar na história, não é suficiente nascer fisicamente, a maneira do animal, que não entra na história. É necessário, por assim dizer, um segundo nascimento, um nascimento social. Nós não nascemos um organismo biológico abstrato, mas aristocrata ou camponês, burguês ou proletário, este é o ponto capital. Ao qual se acrescenta o fato de se nascer francês ou russo, de nascer, enfim, em 1800 ou em 1900. E não é senão através dessa localização social e histórica que nós apreendemos nossa realidade e que se define o conteúdo de nossa relação com a vida e com a cultura. (p. 93)

Bakhtin (1927/1980), entretanto, não chega à raiz ideológica do freudismo, o que consegue Freitas (1991) ao mostrar o parentesco entre o pensamento freudiano e aquele que sustenta a construção do estado moderno, particularmente em Hobbes (1651/1988). Para Hobbes o homem é corpo, o homem é um ser que deseja, e não há limite para sua liberdade senão sua capacidade de desejar. E, quando dois homens desejam a mesma coisa, tornam-se inimigos, de forma que, em estado de natureza, o homem está em uma situação de guerra de todos contra todos. É somente a instituição da figura do Estado, em favor da qual, por sua segurança, os homens abdicarão de seus desejos egoístas que esta guerra poderá ser estancada. Um estado que, pelo poder da espada, faça com que as palavras sejam mais do que palavras e os contratos sejam cumpridos. Só o Estado é, desta forma, capaz de garantir, através da coerção, a paz e a liberdade humana. A esta concepção de Hobbes, Freitas traça um paralelo com a seguinte citação de Freud (1927/1953),

Não é verdade que a mente humana não tenha passado por qualquer desenvolvimento desde os tempos primitivos e que, em contraste com os avanços da ciência e da tecnologia, seja hoje a mesma que era nos primórdios da história. Podemos assinalar de imediato um desses progressos mentais. Acha-se em consonância com o curso do desenvolvimento humano que a coerção externa se torne gradativamente internalizada, pois um agente mental especial, o superego do homem, a assume e a inclui em seus mandamentos. Toda a criança nos apresenta esse processo de transformação; é só por esse meio que ela se torna um ser moral e social. Esse fortalecimento do superego constitui uma vantagem cultural muito preciosa no campo psicológico. (p. 14)

Tanto em Hobbes como em Freud, a civilização passa pela coerção da natureza do homem. A figura do superego aparece aqui, segundo Freitas (1991), como uma internalização do Estado hobbesiano.

A psicanálise bem se ocupou dos impulsos naturais do homem com sua teoria dos instintos, já pós-Schopenhauer. E do inconsciente, no qual tudo o que é de ruim na mente humana está contido como predisposição. Impulsos concebidos como nocivos e incompatíveis com a civilização, por definição. Daí a conseqüente necessidade de censura e superego – Estado – para lidar com eles, numa relação de coerção e poder. A lei e a ordem, de fora para dentro, autoridades ex-machinae, porque concebidas como fora do homem, exteriorizando as causas, Estado ou Superego, e os efeitos: a lei e a ordem. (p. 39)

Tal concepção de homem se vê marcada por uma ruptura irreconciliável entre natureza e cultura. A partir de Hobbes, mas também com Freud, o homem é vítima ou algoz da natureza, nunca seu amigo. A conseqüência disso é o estabelecimento do superego e da censura que passa a censurar e distorcer o inconsciente (natureza), cindindo sua expressão em um conteúdo manifesto e um conteúdo latente. Freitas (1991) aponta o caráter ideológico desta proposição.

Como os pressupostos psicanalíticos não têm o poder de transformar a realidade, isto é, o processo natural dos sonhos não vai se desenvolver de acordo com sua cartilha, faz-se necessário libertar o pensamento da experiência como de fato se apresenta nos sonhos. A ideologia psicanalítica arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente lógico que se inicia a partir de uma premissa aceita axiomaticamente – por exemplo, os sonhos são satisfações de desejo e inventariam os possíveis desejos dentro da conflitiva edípica privilegiada por Sigmund –, tudo o mais sendo deduzido dela; e o que aí não se encontra, diz-se que foi subtraído pela censura, e o que se encontra e eventualmente contradiga a interpretação final pode sumir no remanejo das associações, agindo o psicanalista com uma coerência que não se encontra em parte alguma do terreno da realidade. O conceito de censura que cinde um sonho em seu conteúdo manifesto e outro latente é a varinha de condão nas mãos do psicanalista que faz aparecer ou desaparecer aquilo que lhe falta ou lhe sobra na demonstração de suas verdades. São, portanto, ideológicos os trabalhos do sonho e da interpretação. (p. 120)

Este processo ideológico tem seu passado na formação do estado burguês, marcado pela crise da representação posterior a idade média e o ceticismo cartesiano e hobbesiano que vê o homem como máquina ou como animal sedento de poder. Tem também um futuro, ou um presente, no predomínio do modelo biológico das neurociências sobre o psicológico.

Por vezes, a perspectiva psicológica é a do behaviorismo, que só reconhece o que pode ser positivamente mensurado. Por outras, variações de comandos hipnóticos reciclados em linguagem nova apresentam-se como novidades técnicas de cunho científico. Ou então nos perdemos em divagações místicas tomando por realidade objetiva o conteúdo das fantasias. Num outro extremo, o “psicológico” torna-se mero produto do órgão. Ocorre como que uma emancipação tirânica de cada um dos pólos. Cada vez mais as fronteiras entre o orgânico e o psicológico tendem a apagar-se, mas na medida em que isso não apresenta um avanço conjunto, mas sim um avanço quase que exclusivo das neurociências somado ao declínio da psicanálise, método que conquistou a hegemonia da abordagem psicológica, essa derrubada de fronteiras tem servido mais a uma invasão pura e simples do psicológico pelo biológico. Não se trata de negar o substrato orgânico dos processos psíquicos, mas sim de evitar o reducionismo que suprime as diferenças. (Freitas, 1996, p. 193)

O que a perspectiva biológica nega em sua abordagem do fenômeno psicológico (que para ela limita-se ao sintoma e à sua remoção) é a questão do significado e da complexidade do psicológico, que engloba tanto o fenômeno biológico como o histórico e o cultural. Perpetua, ao conceber o corpo como uma máquina e a psique como um produto desta máquina, a ruptura entre natureza e cultura. O oposto disso seria Rousseau? Freitas (1991) aponta, aqui, um outro caminho: talvez uma visão de homem que se contraponha a esta passe por Espinosa, Kant ou Jung.

Se no próprio inconsciente, espaço dos instintos, for concebido um centro ético que mobilize um processo de totalização a partir das contradições com a sociedade, numa mediação com o ego – não se trata de um Kant estático, pois este centro ético não é uma categoria imutável, mas algo que se forma historicamente na dialética que se estabelece entre a sociedade e o indivíduo – bem, aí fecha. Ou espinosamente, uma ação gerada pela necessidade de sua própria essência. (p. 39)

Quando Freitas (1991) fala um centro ético localizado no inconsciente, está referindo-se à noção junguiana de Selbst, também traduzida como Self ou Si-mesmo. Bem diferente do conceito de Self da psicologia contemporânea, que o localiza no eu, Jung (1961) define o Self como o centro do inconsciente e, ao mesmo tempo como a totalidade da personalidade.

O si-mesmo é uma realidade sobre-ordenada ao eu consciente. Abrange a psique consciente e a inconsciente, constituindo por esse fato uma personalidade mais ampla que também somos. (...) Mas não devemos nutrir a esperança de chegar a uma consciência aproximada do si-mesmo; por mais extensas e consideráveis que sejam as paisagens interiores e os setores apreendidos pela consciência, não desaparecerá a massa imprecisa e uma soma desconhecida de inconsciência, que também faz parte da totalidade integrante do si-mesmo. (p. 358)

O Self, enquanto arquétipo, pode ser comparado às categorias kantianas, com a diferença de que o arquétipo não é estático e imutável como as categorias, mas histórico. A relação entre o arquétipo e as categorias kantianas já fora antes apontada por Jung (1936/1959). A novidade, aqui, está não só na proposição do caráter histórico dos arquétipos, como também na relação entre Jung e Espinosa. De maneira semelhante a Jung, Espinosa (1677/1989) descobre uma razão dentro da própria natureza. Assim, corpo e alma não se opõem, nem é o corpo o causador das paixões sofridas pela alma, como queria Descartes (1641/1983), mas são expressões de uma única substância, definida por Espinosa como Natureza ou Deus. A alma é, assim, a força pensante, a idéia do corpo, a expressão da atividade do atributo Pensamento da substância primeira (Natureza ou Deus). O corpo, por sua vez, é a expressão da atividade do atributo Extensão da substância. Não há, portanto, uma relação hierárquica entre corpo e alma, nem uma oposição irreconciliável entre natureza e cultura. O apetite do corpo e sua imagem psiquificada como desejo da alma (que Espinosa chama de conatus) movem a vida, e o desejo realizado aumenta nossa força para existir e pensar, sendo a realização do desejo chamada de alegria e o desejo frustrado de tristeza. As afecções e os afetos exprimem nosso conatus, e sofremos paixão se somos passivos e, portanto somos causa eficiente parcial do que se passa em nós, ou ativos quando somos causa total do que se passa em nós. O estado civil e a cultura não nascem, portanto para Espinosa, contra o estado de natureza. A cultura não nasce de um contrato social no qual o indivíduo abdica do seu desejo em prol do estado, mas “quando os homens, em estado de natureza, descobrem as vantagens de unir forças para a vida em comum, não fazem pactos nem contratos, mas formam a multidão ou a massa como algo novo: o sujeito político” (Chauí, 1995, p. 76). Assim é o arquétipo que, como imagem psiquificada do instinto, dá origem a todas as representações simbólicas que nos distanciam da pura instintividade e nos inserem na cultura. Assim a libido, que Jung (1912/1986), à semelhança do conatus de Espinosa, traduz também como apetite e desejo, é a energia psíquica que move a vida (e enquanto psíquica não puramente instintiva) que se reprimida não gera cultura, mas sofrimento, tristeza e neurose. Da mesma forma a organização social, que surge da necessidade de cooperação entre os homens em favor da sobrevivência, e não de um contrato social.

Segundo Freitas (1991), a tarefa do homem contemporâneo é, portanto, a de buscar sementes no passado que permitam a ele restabelecer uma relação com a natureza, o que não é possível sem a crítica dos cânones da cultura contemporânea.

Se é possível dizer que a cultura surge através de um opus contra naturam, hoje poderíamos acrescentar que o estabelecimento de uma relação saudável com a natureza dos homens passa inevitavelmente por uma opus contra culturam. Dizendo ‘passa por’ digo necessariamente um confronto real, vivências concretas que atravessem a cultura desde dentro. Não se trata de um abandono ingênuo das realidades culturais nem de um compromisso com a barbárie; qualquer dessas duas alternativas redundaria apenas em marginalização ou massacre dos homens alienados de sua cultura e natureza. Pois se a cultura se dá a partir de um esforço contra a natureza, a negação pura e simples da cultura ao invés de nos devolver a uma natureza íntegra forçosamente nos legará uma natureza mutilada, uma vez que é impossível reverter o processo histórico e retornar a uma origem além e aquém da história. Esta fantasia está definitivamente exilada do espaço/tempo. Natureza e cultura encontram-se de tal modo amalgamadas na experiência humana que não são mais separáveis, nem descartáveis em nenhuma de suas polaridades. Para um encontro saudável com a natureza humana, é necessária uma recriação sociocultural do homem que concomitantemente recrie a relação com a natureza. Uma recriação política do humano e uma recriação humana da política. É a recriação da própria natureza humana que opera a recriação sociocultural. E vice versa, sincronisticamente. (...) A confrontação com o inconsciente pela consciência e desta por conteúdos emergentes do inconsciente é um dos locais privilegiados para a recriação da relação natureza/cultura na práxis humana. Por isso compreende-se o efeito destrutivo provocado pelo esmagamento da noção de inconsciente por Freud ao reduzí-lo a uma sexualidade determinista e destruidora, cegueira dos instintos. O bom selvagem e as pestes do id são apenas a mesma coisa ao contrário. Apesar dos sinais opostos, na concepção de ambos natureza e cultura aparecem como realidades mutuamente exclusivas. (...) A integração possível entre dimensões antípodas, num processo a ser constituído pela ação humana colapsa na posição a-dialética de Freud entre um princípio do prazer (natureza) irreconciliável com um princípio de realidade (cultura). É preciso salvar uma dialética que recolha a possibilidade de uma integração construtiva entre natureza e cultura, inconsciente e consciência, sem cair num elogio naturalista ao bom selvagem nem tampouco no cinismo. (p. 138)

Poderíamos encerrar este artigo dizendo que Freitas (1991) procura com seu trabalho empreender a tarefa benjaminiana de ‘pentear a história a contrapelo’ buscando na história da filosofia e da psicologia elementos que nos permitam um distanciamento e, através dele, uma compreensão e uma crítica da cultura. A história aparece aqui como uma metodologia que visa buscar a construção epistemológica das teorias. Pois a história das teorias é a história de seus conceitos constitutivos, de seus construtos, de suas formações e transformações ao longo da história do pensamento e da filosofia. As noções de história e de cultura são também fundamentais na construção epistemológica da obra de C. G. Jung. Daí uma proximidade natural com autores que postulam um entendimento do homem em termos da construção da cultura.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: agv65@ibest.com.br

Recebido em abril de 2005
Aceito em janeiro de 2006

 

 

Autor: 1 André Guirland Vieira – Psicólogo; Mestre e Doutor em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS).
* O presente artigo integra o corpo de tese de Doutorado do autor, defendida em 2003 pelo CPG em Psicologia da UFRGS e escrita com financiamento do CNPq.

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