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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.24 Canoas dez. 2006

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

A escrita do caso e a ressignificação da experiência de estágio*

 

The writing of the case and the ressignification of the training experience

 

 

Cleci Maraschin 1; Marta Regina de Leão D"Agord 2; Nair Iracema Silveira dos Santos 3; Regina Orgler Sordi 4

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Essa pesquisa visa investigar as potencialidades de um método de supervisão acadêmica fundado na reflexão a partir da escrita da experiência de estudantes de graduação envolvidos em atividades teórico-práticas e estágios curriculares. Esse método é chamado de “escrita do caso” (onde o caso pode ser um paciente, um grupo ou uma instituição). A metodologia da pesquisa envolve a leitura, em grupo, da produção escrita de cada estudante em encontros semanais de supervisão. A aprendizagem é avaliada com base nas etapas de desenvolvimento do método: descobertas durante a escrita e durante a leitura em grupo do texto escrito, elaborações posteriores do texto e implicações na intervenção.

Palavras-chave: Produção escrita, Aprendizagem, Supervisão acadêmica.


ABSTRACT

This research intends to investigate the potencialities of the method of academic supervision based on the reflexion of the writing of the experience of students involved in theoretical-practical activities and curricular trainings. This method is called the “writing of the case” (where the case can be a patient, a group of an institution). The method of the research involves the reading of the written production of each student to the group during weekly supervisions. The learning is assessed based on the stages of development of the method: findings during the writing, findings during the reading to the group, subsequent improvements of the text and implications for the interventions.

Keywords: Writing production, Learning, Academic supervision.


 

 

Introdução

A estrutura da formação acadêmica do curso de psicologia na universidade que trabalhamos prevê um elenco de disciplinas teóricas no início do curso para, a partir do sexto semestre, iniciar atividades de estágio. Embora muitos estudantes se engajem em atividades de pesquisa na forma de bolsa de iniciação científica, as atividades profissionais estão mais concentradas nos estágios. A pesquisa apresentada a seguir insere-se na prática de supervisão acadêmica de estágios. Essa prática tem como objetivo lançar os estudantes em uma atividade prática orientada e desenvolvida a partir da escrita. A supervisão acadêmica, além do acompanhamento da introdução do aluno no contexto institucional, está centrada no exercício da escrita, cujo resultado deverá culminar na elaboração de um estudo de caso ou de uma monografia.

Espera-se que esse estudo apresente indicadores de que a escrita pode exercer efeitos sobre o pensamento através da formulação e compreensão de textos nos quais o significado emerge da redação. Enriquez (2004) refere que há uma dinâmica na escrita e que, à medida que escrevemos, há associações de palavras que se formam, revelando nossas idéias assim como novas associações, ou seja, permitindo achar outros caminhos para nossas intervenções.

O que temos em mente, o que pensamos é uma coisa, mas escrever nos obriga a precisar e argumentar, o que faz com que exista uma diferença considerável entre o que pensamos antes de escrever e o que pensamos depois ou durante o ato de escrever. (Enriquez, 2004, p.133)

O estudo e a construção de ambientes de conhecimento significativos suportados pela escrita é de fundamental importância no contexto da formação universitária. A tradição oral vigente em muitas das propostas educativas faz com que a escrita seja concebida muito mais como um modo de exposição de aprendizagens já constituídas do que como uma ferramenta da aprendizagem. Refletir sobre esta questão no âmbito educativo requer levar em conta a escrita como uma tecnologia cognitiva que opera na configuração de modos de pensar produzindo um exercício diferenciado de enunciação e de autoria. Neste exercício, concebe-se que entre a escrita e as outras linguagens (sejam produções que apelem ao gestual, ao gráfico, ao musical), existe uma “autonomia semiótica” (Cruz, 1998), que resguarda a própria produção de um apressamento entre, por exemplo, a tradução direta da oralidade à escrita. O ato de escrever possui uma eficácia inerente à sua singularidade e é com essa potência que esta pesquisa pretende trabalhar.

Entre os pesquisadores que vêm se ocupando da relação entre escrita e cognição, Olson (1997) tem mostrado que a escrita pode exercer um efeito sobre o pensamento através da formulação e compreensão de textos nos quais o significado depende da redação. Em nossa pesquisa aplicaremos a hipótese de Olson (1997), segundo a qual o conhecimento metalingüístico é um efeito da escrita e não uma pré-condição desta. Conforme a teoria da escrita metalingüística de Olson, os textos escritos exigem a mudança de um nível ligado ao mundo a outro ligado ao texto, e essa mudança implica avaliar os significados particulares dos termos e das relações gramaticais entre eles. Essa teoria é a fundamentação que vai nos permitir testar a hipótese de que os estudantes convocados a escrever sobre suas práticas precisam se ocupar da forma que irá tomando a sua redação, a qual lhes exigirá a avaliação dos conceitos que lhes estão servindo para refletir sobre a prática. Assim, espera-se que da prática à redação, a teorização possa sofrer mudanças no sentido de uma compreensão mais elaborada da experiência de estágio.

Esta preocupação tem gerado, de nossa parte, uma série de estudos (Maraschin, 1995; Axt & Maraschin, 1997; Maraschin & Axt, 1998; Santos, 1999; Sordi, 1999; D"Agord, 2005) e de práticas5 voltados à interação suportada por diferentes meios (dialógico, escrito, telemático). Esses estudos nos levam a refletir sobre a potencialidade de aproveitamento desses espaços para a construção do conhecimento no âmbito da Educação Formal Institucional.

Nesses estudos, existe a referência ao fato de que escrever uma reflexão sobre as vivências cria condições de ampliação e de complexificação da rede conceitual inicial, possibilitando outras formas diferenciadas de intervenção – que definimos como aprendizagem. Podemos inferir que a ampliação e a complexificação da rede conceitual, aliada a uma ação efetiva, se faz solidariamente por mais de uma via (Axt & Maraschin, 1997): a narrativa, ao expressar um dizer de si, opera como um possibilitador de retroalimentação, favorecendo voltar sobre o percorrido e, no movimento de recursão, inovar o caminho fazendo-o diferente; pois, se há repetição do movimento, não se pode dizer o mesmo com referência ao caminho. O trajeto percorrido é irreversível, pois irreversível é o tempo e o contexto – e se o caminho é, de algum modo, diferente, é esta diferença que acaba por abrir novas possibilidades.

A escrita possibilita ao pensamento reverter sobre si mesmo, retroalimentar-se e retroagir sobre si. Uma nova recursão é possível tomando as marcas que permanecem. Mas, se por um lado, o texto escrito permite retornar ao caminho, por outro, sua leitura não mais enforma o pensamento exatamente no mesmo molde – é como se algo sobrasse ou faltasse, ou então, é como se, sendo o mesmo, ainda assim é um pouco outro.

A leitura do texto do outro instaura novos sentidos – na medida em que um texto é sempre um eco a um texto outro –, a partir dos mesmos movimentos de retroação e proação, de repetição e de abertura ao diferente e às outras possibilidades.

Nessa pesquisa trabalhamos com os textos dos estagiários, ou seja, a escrita da sua experiência junto aos sujeitos, grupos e instituições aos quais o estágio os vincula. O desafio é analisar como acontece a aprendizagem a partir deste método de escrita e leitura da escrita. Este método é chamado de “escrita do caso” (D"Agord, 2004), isto é, uma escrita que narra um caso no sentido do que aconteceu.

O objetivo geral desta investigação é a análise do potencial de aprendizagem de um modo de supervisão acadêmica de práticas curriculares chamado de “escrita do caso”.

Para avaliar o potencial de aprendizagem estabelecemos os seguintes critérios:

“A escrita do caso”, sua leitura e releitura em grupo promovem a ampliação e a complexificação da rede conceitual, bem como a ressignificação da experiência?

 

Método

O trabalho de pesquisa aqui relatado foi desenvolvido ao longo dos dois semestres letivos de 2004 nas supervisões acadêmicas dos estágios de Psicopatologia, Psicologia Social, Psicopedagogia Clínica e Psicologia Escolar e em uma atividade prática referente às disciplinas de Psicologia Escolar I e Psicologia Social II. As supervisões ocorreram semanalmente, congregando um grupo de estagiários e seus supervisores. Os encontros foram organizados de forma a trabalhar os textos dos estudantes através da escrita da experiência de estágio. Os textos trazidos para leitura e discussão eram produzidos com base nos seus diários de campo, elaborados sob orientações específicas de cada supervisor, observando-se os referenciais que sustentam as práticas nas áreas estudadas.

Descrição do procedimento

O processo da “escrita do caso” acontece em três níveis:

Primeiro momento: o aluno faz um registro, na forma de diário de campo atividades práticas. O diário de campo é um instrumento utilizado em pesquisas qualitativas, sobretudo nos estudos de base sócio-antropológica. O diário da pesquisa de campo tem por função reconstituir a história subjetiva do pesquisador (Lourau, 1995). Em nossas experiências, alguns estudantes não faziam registros diários, escolhendo e produzindo formas próprias de escrita.

Segundo momento: o aluno escreve, com base em seu diário, um texto que é lido na reunião semanal de supervisão acadêmica. Para desenvolvimento da escrita, nossos estudantes eram orientados na utilização de referenciais que permitissem análise da experiência e elaborações conceituais.

Terceiro momento: na reunião semanal de supervisão acadêmica, o aluno leva várias cópias impressas do segmento que irá apresentar de forma a que cada participante da reunião de supervisão disponha de sua própria cópia para acompanhar a leitura que será realizada. Um ou mais estudantes, sucessivamente, lêem em voz alta o segmento apresentado. Essa técnica visa testar a legibilidade do texto. O autor do texto apresentado escuta a leitura que os colegas e supervisor realizam do seu texto. Ao final da leitura, cada participante faz observações sobre a forma do texto e sobre a experiência em análise.

Nos diários de campo há registros do cotidiano da experiência de estágio bem como impressões pessoais do estagiário. O método de “escrita do caso” utiliza um dos aspectos fundamentais do método da antropologia estrutural, a saber, o levantamento de elementos que se repetem diacronicamente possibilitando a estruturação de uma sincronia.

Os textos escritos constituem o material empírico através do qual foi possível identificar se houve uma transformação na rede conceitual e de intervenção pela sua sucessiva comparação. Para analisar esse material foram utilizados os seguintes critérios: descobertas durante a escrita e durante a leitura em grupo do texto escrito, elaborações posteriores do texto.

Análise dos dados

A análise dos dados ocorreu em três etapas:

- em um primeiro momento, cada supervisor selecionou aleatoriamente alguns relatos, procedendo a leitura e análise destes, conforme objetivos do projeto;

- em um segundo momento, as análises parciais foram discutidas pela equipe de pesquisa, que definiu pontos para releitura e ampliação da análise;

- em um terceiro momento, o texto final foi elaborado, a partir de uma escrita coletiva e de várias releituras do texto.

 

Resultados

Verificamos nos processos de escrita dos estudantes três níveis argumentativos, que se articulavam conforme ampliação e complexificação das análises no grupo: exercícios descritivos, narrativos e reflexivos.

Descrições na escrita

As primeiras escritas submetidas à leitura nos grupos eram descritivas, onde o observador aparecia como um sujeito da ação sem muitas possibilidades de análise dessa mesma ação. O extrato abaixo exemplifica esse tipo de escrita:

Tivemos dificuldade em encontrar a escola e nos perdemos. Porém, com a ajuda de informações dos moradores, encontramos enfim a escola. Muito bela, a escola é feita de tijolo à vista e tem detalhes em amarelo. Entramos na escola e procuramos a sala da direção, que fica bem próximo à entrada. Lá, fomos recebidos pela vice-diretora e por uma coordenadora. Inicialmente, a receptividade não foi muito grande, mas, ao longo do tempo em que fomos conversando e explicando nossos propósitos e o porquê daquela visita surpresa, as senhoras foram mudando suas posturas e a se portar mais colaboradoras. Disseram que queriam estar preparadas para nos receber. Todavia, dispuseram de um significativo tempo, juntamente com a pedagoga do turno da tarde conosco na sala para nos explicar o funcionamento da escola e tudo aquilo que quiséssemos questionar. (Escrita 1 – A.M)

No momento da leitura, um dos participantes do grupo questionou o cuidado ou a cerimônia da recepção aos estudantes. Esse cuidado deveria ser tomado no sentido positivo de disponibilidade para receber a visita, mas também poderia ser interpretado no sentido disciplinar, ou seja, na escola cada coisa ou ação tem seu devido lugar. Essa questão foi retomada nas discussões posteriores. O exercício de expressão escrita produz uma escuta que repercute na expressão escrita, recorrência que produz efeitos de retomada da reflexão, ampliando, como no exemplo citado as possibilidades de construção de hipóteses.

Narratividade na escrita

Além das descrições, os relatos escritos propiciaram uma narratividade da ação do sujeito observador com a inclusão de pequenos comentários que revelavam os objetivos ou propósitos de ações futuras:

Explicaram, de modo geral, o funcionamento da escola e de seus projetos de inserção na comunidade. Ao longo das visitas, queremos conhecer os projetos melhor. Existe um projeto no qual em diferentes dias durante a semana, com horário fixo para cada faixa etária de alunos, vão à escola em horário extra-classe para praticar atividades físicas, sob a orientação de universitários da área. Seguindo esta linha de projetos, a professora citou também que alguns alunos mais velhos costumam ser “recrutados” para participar das aulas de educação física dos menores a fim de evitar confusões e brigas. (Escrita 1 – A.M – sublinhado nosso)

Essas inclusões permitiam que fossem sendo expressos objetivos da ação que orientavam as próximas visitas, tal como o desejo de conhecer os projetos da escola.

Desde o início, foi possível flagrar o movimento de expressão de opiniões que oportunizavam o debate em grupo:

Naquele dia, coincidentemente, tivemos a oportunidade de assistir à uma das palestras, que os alunos do “terceiro ciclo parte 3”, que seria a oitava série, estavam tendo. Eram adolescentes de 13 a 16 anos. A palestrante contou com um filme e instrumentos ilustrativos do corpo humano e de métodos contraceptivos para orientar os alunos a uma vida sexual mais saudável e responsável. O filme parecia ser um pouco fora da realidade daqueles adolescentes, já que mostrava problemas e vivências da classe média, mas a aparelhagem que a orientadora trouxe, como camisinha e DIU, foi capaz de levantar dúvidas e questionamento dos alunos, que pareciam inicialmente dispersos. Por sinal, aqueles alunos demonstraram um conhecimento enorme em relação às DSTs e métodos anticoncepcionais, levando-me a questionar se é falta de informação, realmente, o grande problema. (Escrita 1 – A.M)

O comentário de A.M. abriu a possibilidade de questionar se o fato de que algumas estudantes adolescentes da escola engravidassem se devia exclusivamente a uma desinformação. A escrita de suas impressões e opiniões possibilitou a discussão deste e de outros temas. A partir da leitura o grupo pode colocar em questão concepções corriqueiras, tais como a questão de para quem a gravidez na adolescência é um problema? Será um problema para a adolescente? Para sua família? Para a escola? Para o sistema de saúde?

Outra operação verificada pela escrita foi o registro dos estranhamentos que ao serem compartilhados no grupo abriam possibilidades de construção de hipóteses a serem posteriormente checadas. Novamente um movimento recursivo da escrita sobre a ação futura.

A sala onde funcionava a biblioteca não era das mais “instigantes à leitura” por assim dizer. Era escura e realmente parecia abandonada, sem nenhum aluno ou funcionário. Tinha um número razoável de livros, mas o mais chamativo era o número de mini-dicionários. Qual seria o porquê de tantos dicionários? (Escrita 2 – I.F)

Pelos extratos acima é possível evidenciar que a descrição dá lugar a momentos de narrativa onde o sujeito que escreve passa a escrever sua ação, tanto de seu percurso físico como reflexivo. Uma das ações diante da escrita é o estranhamento de algumas práticas, esse mesmo estranhamento pode dar ocasião à reflexão.

Das reflexões na escrita

As primeiras reflexões frente às opiniões e aos estranhamentos foram feitas tomando como recurso vivências anteriores. A busca de explicação da experiência atual foi feita com a experiência anterior e não tanto com os conceitos teóricos de psicologia já estudados. A reflexão inicia muito próxima à própria experiência muito “colada” ao pensamento dos interlocutores:

A exploração (da escola) iniciou, portanto, pelo quarto andar. Em todo o caminho que nos levou até lá, pudemos observar que as paredes são repletas de cartazes, confeccionados pelos próprios alunos. São belos cartazes, preciso admitir. Idéias geniais, de muito criatividade. Porém, erros de gramática acentuados, até mesmo em cartazes dos adolescentes mais velhos. Acredito, todavia, que seja natural que os alunos errem, não sendo um “privilégio” das escolas municipais. Digo isso porque é costume apontar os erros e problemas do sistema público de educação para mostrar como é desqualificado, sem parar para analisar se o mesmo não acontece na rede particular. Fica a dúvida. (Escrita 2 – A.M.)

A estudante contrasta a experiência atual com sua vivência em uma escola particular. A reflexão em grupo das condições explicativas da experiência gerou bastante discussão e um certo desconforto. Os estudantes vivenciaram que transformar conceitos em ferramentas de pensamento requer algo mais que o estudo e o entendimento das teorias. Mas convoca uma operatoriedade só possível de ser exercida em uma posição ativa frente à aprendizagem. A experiência começou a colocar em foco a psicologia e seus fazeres:

V. falou um pouco sobre a história do paciente que iríamos visitar. Ele tinha sofrido um derrame, estava acamado, utilizando sondas e fraldas. Além disso, sua fala estava parcialmente comprometida e ele se alimentava por uma sonda. A filha adolescente é quem cuidava dele durante a tarde. V. contou também que ele era motorista de caminhão e seguidamente se emocionava quando recordava os tempos em que viajava e os lugares que conhecia. Chegando no prédio, a filha dele estava no pátio nos esperando. Entramos e V. me apresentou como psicóloga para o paciente e para a filha dele. Fiquei pensando no lugar em que nos colocam durante esse trabalho, uma vez que ora chamam de psicóloga, ora de estagiária de psicologia, ora de estudante de psicologia, sem falar num certo constrangimento de ser tratada por um título que ainda não se tem. (Escrita 3 – E.V.)

E.V., em sua escrita, revela o desconforto de ser tratada como psicóloga embora não tenha ainda sido diplomada. Essa situação tornou possível pensar que em algumas situações somos convocados como representantes de um determinado campo de saber e não de uma forma legal. Tais idéias os levaram a pensar na condição da educação, como se fosse uma promessa para um tempo posterior: estudar para ser alguém, estudar para ser psicólogo, mas o que se é quando se estuda?

Continuando com o relato de E.V.:

Antes de sairmos, a médica perguntou se eu gostaria de falar alguma coisa com ele. Como eu não estava preparada para tal solicitação, até porque a proposta do trabalho não era essa, eu acabei não falando nada, o que foi um pouco angustiante, mas não me ocorreu nada de interessante para perguntar no momento. Diante da minha "paralisia", a médica pediu que ele contasse como era no tempo em que ele viajava, o que acabou gerando – como ela antecipara no percurso até a casa – choro do paciente (Escrita 3 – E.V.)

A atitude da médica relatada no texto de E.V. produziu uma grande discussão. Para os estudantes o doente era mais um caso, que embora muito enfermo ainda apresentava emoções. Nas próximas escritas, a aluna pode problematizar a situação em outro texto:

Como é essa visita domiciliar? Fiquei pensando ao terminar a atividade na diferença dessa VD (visita domiciliar) em relação outras que já acompanhei, a saber, àquelas praticadas por agentes comunitárias, que faziam parte de uma equipe de PSF (Programa de Saúde da Família). Nessas VDs, o trabalho da agente era bastante ligado a um conceito mais amplo de saúde, pois elas não iam visitar um paciente, e sim toda a família, sem falar no enfoque que elas davam às questões de saneamento básico, escola, trabalho, por exemplo. Já a VD da médica tinha um enfoque bastante clínico. Na saída do prédio, por exemplo, a médica e a agente comentaram que a filha não parecia muito dedicada nos cuidados ao seu pai. Pensei na situação da filha adolescente ter de estar cuidando do pai, que até pouco atrás estava saudável, e que esse "aparente" descuidado é apenas considerado como tal, sem evidenciar a situação dela como mais um sujeito da família. Outra questão é a postura da agente durante a VD. Ela apenas assistiu, sem manifestar-se em qualquer momento, e a médica também não abriu essa possibilidade como fez para mim. Creio que passa por aqui a questão dos saberes e forma como eles hierarquizam as relações de trabalho. Exercícios de autoria no trabalho. (Escrita 3 – E.V.)

Essa discussão repercutiu no texto de I.F. que escreve sobre as possibilidades da Psicologia na escola:

O papel do psicólogo na escola é muito amplo, mas podemos reuni-lo em duas vertentes de pensamento. Uma delas se refere à crença de que o psicólogo atua como clínico dentro da escola, outra diz respeito à função original do psicólogo atuante dentro da escola (...) O psicólogo escolar deve estar preparado para mexer no todo da estrutura (toda a turma) e não somente uma das partes (um aluno). (Escrita 6 – I.F.)

A leitura desse trecho foi bastante debatida e confrontada com a visita domiciliar relatada por E.V. Para os alunos a atuação clínica observada estaria muito mais referida a uma idéia de atenção individual descontextualizada das questões institucionais.

A escrita também revela quanto um processo reflexivo se faz, como propõe Bachelard (1996), contra o senso-comum e o preconceito. O que muitas vezes se constitui em uma tarefa difícil ao estudante. Como evidencia o texto de A.M.:

O diretor deu continuidade à reunião, com vários responsáveis já “resmungando” (calor, demora, crianças chorando, um caos), dando avisos aos pais da ordem de cuidar da higiene de seus filhos, verificar o material escolar, acompanhar os temas de casa, e, o mais surpreendente, orientando os pais em sua criação dentro de casa, incentivando-os a dar dicas sobre o que assistir na televisão, companhias, ensino de respeito aos outros, amizades baseadas em diálogo e harmonia. Ainda deu, no findar da assembléia, conselhos como “sejam firmes na educação de seus filhos, sabendo repreendê-los e fazê-los refletir acerca de seus erros” (orientando a não humilhá-los ou constrangê-los), “valorize o progresso de seu filho, elogiando-o” e “o exemplo é o melhor professor, a criança aprende a respeitar se é respeitada”. Fiquei encantada com este tipo de orientação que, sinceramente, não acontece (pelo menos nunca vi acontecer) em escolas particulares, talvez pelo fato de serem valores já intrínsecos da criação da classe média. O grupo de professores se mostra para mim cada vez mais engajado, preocupado com a verdadeira educação. (Escrita 2 – A.M)

Diferentemente da posição de E.V. que faz uma reflexão na qual questiona as modalidades de intervenção dos profissionais da equipe, tal como a postura da médica, A.M. se descreve “encantada” com a postura do diretor. Não problematiza de nenhum modo sua intervenção, talvez por concordar com a posição através da qual a escola classifica a maioria das famílias de seus alunos: não zelosas, não higiênicas, pouco cuidadosas. Apresenta uma idéia de que isso possa estar referido a uma diferença de classe, mas não aprofunda a argumentação.

Na escrita de I.F. encontram-se indícios dessa aceitação não crítica do discurso sobre as diferenças e uma adesão ao senso comum:

De certo modo estávamos preocupados com essa incursão, já que éramos quatro estranhos de carro no local. Alguns pedidos de informação à frente e chegamos até a escola. Esta está localizada no final de uma rua estreita. A preocupação com a segurança do carro se desfez ao avistarmos um guarda na frente da escola. (Escrita 1 – I.F.)

A possibilidade de produzir uma reflexão crítica envolve um exercício de autoria expresso de modo escrito. No trecho abaixo, novamente E.V. problematiza a intervenção de um profissional da equipe.

Ainda a respeito da característica do grupo e da intervenção profissional, o médico comentou sobre a problemática de não poder planejar atividades variadas para cada encontro (com o grupo da terceira idade), por falta de recursos humanos – por exemplo, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional- e espaço – a única sala disponível é a de reuniões. Ele aponta também que as pessoas novas que vêm, não aderem por falta de uma proposta, sendo que algumas falam: “Vocês vêm aqui só conversar?” É interessante pensar a relação entre a demanda e a oferta diante dessa situação. Mesmo que o grupo esteja satisfeito que os encontros sejam, predominantemente, para conversar, isso gera uma certa angústia dos profissionais que imaginam outras atividades possíveis de trabalho. (Escrita 4 – E.V.)

As recursões reflexivas escritas permitem ampliar os modos de análise incluindo uma discussão conjuntural. E.V. comentando uma prática da equipe do posto no sentido de estimular a participação da comunidade nas ações de saúde desenvolvidas no posto escreve:

O eixo do controle social previsto no SUS parece abrir a possibilidade de que as pessoas da comunidade sejam sujeitos, de forma que tomem esse espaço de direito e de dever, através do qual podem participar das políticas de saúde de forma ativa. Penso no que a inversão dessa proposta de reanimar a participação popular, embora seja de boa intenção a preocupação com essa questão. Tenho receio do resultado que se obterá. Será possível a profissionais reanimarem a comunidade, mesmo que a implicação com a questão filie-se a mais uma atividade do seu trabalho? Novamente fiquei me perguntando pelo nome, pois a comunidade está colocada como desanimada. Mas como são recebidas as demandas da comunidade? A animação não seria no próprio trabalho?? Que demanda cada comunidade possui que não se organizar para a organização do CLS? Que sentido tem o CLS para cada comunidade? Por que para a construção da Unidade L. organizou-se uma associação de usuários? É possível "reanimar" uma comunidade assim como se reanima um o coração de um paciente? (a comunidade não entra aqui como agente, mas como paciente?). São algumas questões que me fazem pensar, mas que também não parecem contribuir nesse processo de forma propositiva. Talvez uma possível forma de fazer diferente, seria uma intervenção na comunidade (posto, escola, mercado...) com questões problematizadoras, de forma que chamassem a atenção e alertassem a comunidade para essa possibilidade de participação. E também no próprio cotidiano do trabalho, as pessoas são vistas como usuários agentes ou usuários pacientes? No entanto, teria que avaliar a viabilidade de tal ação, e acho que não caberia a um trabalho como esse. Também seria difícil colocar uma questão sobre isso para a equipe, uma vez que parece uma proposição que "mina" a caminhada de quem esta envolvido no grupo de trabalho e na oficina. Quem sabe falar de um certo estranhamento do termo reanimar? (Escrita 5 – E.V.)

A leitura, no grupo, da escrita 5 de E.V. e os debates que se seguiram a esta leitura possibilitaram a E.V. a seguinte reflexão:

Ouvimos a diretora e a coordenadora dizer que “fazer educação é difícil. Os problemas vão aparecendo e, às vezes, é preciso ir empurrando do jeito que dá” afirmou. Pergunto-me se seria esse um discurso pronto de quem é da área do ensino?(...) Nessa visita ficamos com a impressão de que a escola se defendia do externo a ela. (Escrita 7 – E.V.)

Com o desenvolvimento das escritas e suas leituras, argumentos teóricos foram, aos poucos, sendo convocados aos textos dos estudantes, permitindo compreensões e reelaborações conceituais. E.V. escreve sobre essa necessidade de retomar os textos trabalhados no semestre:

Enquanto pensava no que escrever neste texto, passei a olhar os textos que trabalhamos ao longo do semestre. Detive-me a reler Lorau (1995) sobre o diário institucional. . . . Machado (2004) discute a formação acadêmica que, na maioria das vezes, não propicia o exercício de autoria e de compreensão crítica que o estudante poderia desenvolver, quando recebe o conhecimento pronto, quase como uma doutrinação. Creio que essa atividade nos exigiu um posicionamento, o que foi um grande desafio. (Escrita 9 – E.V.)

Na experiência de estágio em Psicopedagogia Clínica, um dos estudantes expressa, em seus escritos, os avanços frente aos desafios para deslocamentos teóricos que lhe permitissem discutir a questão tomada para análise no trabalho monográfico. Tendo como principal referencial a Psicanálise, em sua primeira escrita, a ênfase do trabalho recaiu na teoria conhecida e a escrita do caso envolveu uma série de conceitos psicanalíticos. Este foi o deslocamento provocado pela primeira escrita da monografia: o desafio de ir apropriando-se de uma experiência psicopedagógica e a necessidade de, simultaneamente, apropriar-se de uma teoria que acompanhasse e iluminasse essa experiência. A escrita da monografia, analisada em vários momentos, ao longo de cinco meses, sofreu alterações importantes, complexificou-se, permitiu o esclarecimento de idéias e foi compondo um texto argumentativo, onde a experiência clínica e a experiência da escrita foram nutrindo uma a outra.

Se, de um lado ocorre a desnaturalização da experiência, há também ressignificação do instrumental teórico. Por exemplo, o “jogar” em psicanálise, como principal técnica no trabalho clínico com crianças, tem um sentido mais voltado a observar as associações produzidas no jogo, fantasias e angústias que podem emergir desta atividade. Em Psicopedagogia, o “jogar” permite observar a forma como a criança relaciona-se com o objeto de conhecimento, sua modalidade de aproximação, bem como, criar intervenções terapêuticas que facilitem uma aproximação mais criativa e autoral com o conhecimento. O estudante LV iniciou uma incursão mais aprofundada nos conceitos de “jogar”, “autorizar-se”, “aprender com a experiência”, “construir conhecimento”, que permitiram abrir um caminho mais autônomo no campo psicopedagógico.

A ressignificação da percepção, enquanto primeira e segunda impressão que se obtém de uma experiência é tema das escritas mais ao final da experiência:

Esse exercício de desnaturalizar, de “olhar com outros olhos”, creio que sirva para não nos acostumarmos com o aspecto natural, por exemplo, que uma criança pedindo na sinaleira pode representar e, que por vezes pode conferir um status de imutabilidade ao que é visto, afinal de contas já é natural. (Escrita 9 – LV)

Ressignificação da experiência

A ressignificação da escrita e ressignificação da experiência de estágio aparecem articuladas, nas experiências analisadas, enquanto potencializadoras e operadoras do processo de aprendizagem.

No trecho seguinte, aparece a reflexão crítica das próprias intervenções por parte de T.A., que fazia a experiência de estágio em psicopatologia:

Levou algum tempo até que eu pudesse explorar a riqueza dessas histórias que insistiam em querer se mostrar. Pude refletir melhor sobre esse aspecto em uma conversa com o paciente J, na qual me surpreendi questionado e confrontando o que ele estava me contando com as informações obtidas no prontuário ou com familiares. Sabia que algo estava errado, que não era esse o lugar que eu deveria ocupar. Lá estava eu, ignorando a história desse paciente, fixada no real da Instituição e deixando escapar a história dele sob a sua perspectiva, a mais importante para meu trabalho. (Escrita 3 – T.A.)

A escrita de T.A. testemunha o que Marques (2003) apresenta a seguir:

Ao escrever estou sob a mirada de muitas leituras. Acho-me numa interlocução de muitas vozes que me agitam, conduzem, animam, perturbam. É isso que faz de meu escrever uma interlocução de muitas vozes, uma amplificação de perspectivas, abertura de novos horizontes, construção de saberes novos (...) Construção de novos saberes, a partir de saberes anteriores; na verdade, uma reconstrução deles, no sentido de desmontagem e recuperação de modo novo (...) Os meus saberes se fundem e se transformam, reformulam-se. De maneira muito especial, meus saberes anteriores se configuram agora outros. A isso chamamos de aprendizagem. (Marques, 2003, p. 26)

A aprendizagem também se expressa nas reelaborações conceituais, nas estratégias de ação e nas análises do próprio processo, como M.I. e L.I. descrevem:

Pensando a partir dessa naturalização das práticas por parte da psicóloga local, temo entrar também neste caminho, prendendo-me às tarefas impostas ao estagiário pela instituição. Mas creio que o presente trabalho e o desenvolvimento escrito até então, tem me ajudado a pensar minha posição, o que posso fazer diferente, desnaturalizando as práticas pré-estabelecidas e promovendo uma certa distância instrumental que me permita ver a instituição e seus efeitos no cotidiano das pessoas. (Escrita de M.I.)

Quem assistirá a minha produção? Para quem a faço? Não será para a academia exclusivamente; é para mim também, é para o estágio. É escrevendo que nos ouvimos: não só quando falamos ou relatamos, mas quando também escrevemos o que pensamos a respeito de um acontecimento. O mesmo tende a ocorrer quando lemos o que escrevemos para os outros: nos ouvimos mais uma vez. Se na fala nos censuramos pelo olhar ou interrupção dos outros, na escrita temos o apaga-recorta-cola-desloca. Mesmo assim, está posto, está registrado. A censura, a crítica que dê sua opinião sobre a obra. É a partir dela também (além do exercício da escrita) que estarei pensando sobre, que estarei analisando os papéis e lugares ocupados por mim, pela psicologia, pelas instituições. (Escrita de L.I.)

A escrita e análise desta a partir da leitura para e com outros, permite tanto autoria no ato de escrever quanto no planejamento das atividades de estágio. É assim que C.L. analisa sua mudança de estratégia:

Tomo, portanto, minha forma de agir no estágio, inicialmente, como algo da ordem do instituído, que se tornou passível de flexibilização mediante uma problematização. Em outras palavras, é possível pensar, com Baremblitt (1994) que meu movimento de ruptura situa-se na ordem de uma força instituinte, na medida em que foi possível modificar a direção de uma prática instituída naquele campo de estágio: observar, relatar e analisar os grupos de maneira impessoal e distanciada.... Quebrando com esta forma cristalizada de compreender minha atuação no sub-projeto, mediante uma reflexão mais aprofundada de meu desejo em relação ao estágio – que decididamente, ia muito além de um simples relato formal pontuado por reflexões esporádicas –, pude encontrar novos horizontes de atuação. (Escrita de C.L.)

Tal como afirma Lourau (1995), o diário seria um analisador construído das práticas e das instituições em jogo. O diário nos permite o conhecimento da vivência cotidiana de campo (não o “como fazer” das normas, mas o “como foi feito” da prática) e através do exercício do registro escrito, produzirmos análise de nossas implicações, análise dos vínculos afetivos, profissionais e políticos com todo o sistema institucional presente em nossas práticas; análise dos diferentes lugares que ocupamos nas diversas produções e reproduções da ordem social.

Talvez o diário (e outros dispositivos inventados ou a inventar) possa auxiliar a produzir outro tipo de intelectual: não mais orgânico (ou de partido), de Gramsci; nem o engajado, de Sartre (que muitas vezes, parece esquecer de analisar as implicações de seu “engajamento”); mas o implicado (cujo projeto político inclui transformar a si e a seu lugar social, a partir de estratégias de coletivização das experiências e análises). (Lourau, 1995, p.85)

 

Comentários finais

Essa investigação pode contribuir para a produção de conhecimentos acerca das metodologias de supervisão de práticas e estágios. A prática no campo produz um conjunto de vivências, impressões, percepções, relações. Quando o sujeito transpõe essas impressões para a forma escrita, algumas operações que adquirem peculiaridades no ato de escrever (observação das regras da língua escrita; necessidade de maior contextualização para aproximar o leitor do universo da experiência; polifonia dos termos e expressões) podem ocupar função de reorganização entre o que foi vivido e o que é possível elaborar sobre esse vivido. A leitura de um texto em grupo opera como uma espécie de teste das idéias, revelando a suficiência ou insuficiência dos conceitos que o sujeito dispõe para analisar a experiência.

O método de supervisão acadêmica que é objeto desta investigação funda-se, portanto, sobre a potencialidade da cisão entre o escrito e o sujeito do escrito. Essa cisão foi tematizada por Foucault (2000) enquanto cisão entre o sujeito da escrita e a função autor, a função que produz a escrita e que gera um autor. A função autor efetua-se na própria cisão – na divisão e distância entre o que é o sujeito e o que é a sua escrita. No caso deste estudo, trata-se da cisão entre a vivência no campo de estágio e a escrita sobre essa vivência. Assim, o sujeito que não está no escrito, mas no lugar da leitura do que ele mesmo escreveu, pode vir a encontrar no escrito um distanciamento, um efeito autor. Se o escrito supõe reflexividade, é porque faz um corte, uma cisão.

Ao escrever sobre a minha experiência, submeto-me ao efeito da escrita, isto é, minha experiência e minha escrita são de ordens diferentes. Enquanto a primeira é regida pela percepção, a segunda é regida pelo acoplamento tecnológico, que prevê regras e criação. Esse acoplamento potencializa a reflexão e a criticidade ao produzir uma experiência outra em relação à primeira experiência vivida. Esse efeito recursivo é um efeito de autor.

Submetido a que ordenação discursiva estou quando analiso a minha experiência (seja ela prática ou estágio)? O acoplamento aponta para a constituição de posições de observador na própria seqüência da escrita. Essas posições indicam lugares discursivos. Isto é, como estou situado neste ensaio de prática profissional que é a experiência de estágio? O processo de passagem da experiência do campo para a experiência da escrita permite a conservação da série histórica de vivências, impressões, reflexões. Dizemos que ela possibilita a ressignificação da experiência principalmente por conservar os registros dos movimentos, pois o ato de retornar aos registros da experiência de campo é como observar a própria experiência. Este estudo do método da escrita e da leitura do caso não propõe uma comparação entre métodos, mas aponta efeitos importantes para a aprendizagem quando se pode manter presente os vários momentos registrados em um mesmo plano: o da escrita.

A análise do processo de escrita dos estudantes mostra que houve uma transformação da percepção. O que pôde ser constatado na análise, pelo resgate dos movimentos na escrita, é que os estudantes enfocaram, em um primeiro momento, o que testemunhavam nos locais de estágio. A posição discursiva de descrever o que acontecia foi cedendo espaço para a narrativa dos processos de aprendizagem que eles próprios estavam vivendo naquele momento de sua formação como psicólogos. Esse movimento na escrita revelava uma ruptura com a posição de exterioridade (descritiva) em relação à experiência. A posição discursiva de narrativa revelava uma implicação do estudante na sua experiência de aprendizagem.

Essa implicação aparecia como uma transformação da percepção do campo de estágio. Essa transformação foi identificada através de etapas de escrita do caso: uma primeira etapa descritiva, caracterizada pela posição de observador externo; uma segunda etapa implicativa, caracterizada pela exigência de testemunhar os próprios processos subjetivos; e, enfim, uma terceira etapa, na qual as teorias dialogaram com o testemunho pessoal, possibilitando que as teorias se transformassem em conceitos instrumentais para novas experiências.

Embora se possa demonstrar, neste estudo, a evolução e a transformação da percepção dos estudantes, nosso intuito não é produzir uma generalização antecipada dos efeitos do método da escrita do caso, mas sim sugerir que outros estudos possam verificar os possíveis deslocamentos produzidos quando se toma a escrita não como representação da vivência ou das idéias, mas como uma outra experiência, capaz de, no ato mesmo da escrita e da leitura em um coletivo, constituir-se em ferramenta de aprendizagem.

Observa-se ainda que, em alguns casos, para a superação da escrita descritiva e não crítica, foi importante o estranhamento que o texto produzia nos colegas. A capacidade de estranhamento do texto do outro pode, seguramente, não ser diretamente decorrente do método de supervisão empregado. O que o método de escrita do caso certamente auxilia é na produção de um espaço articulado, conversacional, no qual o produtor do texto pode ser confrontado com diferentes formas de recepção de seu escrito. Com relação a esse aspecto, em geral (mas não necessariamente) os colegas de grupo iniciaram colocando-se como observadores do outro. Mas, em ocupando essa posição, já estava criada a possibilidade de uma primeira ruptura; esta chegou a se concretizar mediante o deslizamento da posição do observador de fora do campo da observação para o seu interior, implicando-se a si próprio na observação. A observação da própria ação, do próprio trabalho, apareceu, nesse contexto, como a construção de narrativas na qual o sujeito se implicava.

Em uma terceira etapa ocorreu a necessidade de uma retomada teórica. Nesse momento, mais ao final da experiência, os estudantes começavam a buscar a teoria como instância explicativa, embora ainda de forma inicial. Esse momento, contudo, marca uma transformação no modo de escrita, pois era como se, no âmbito da interlocução, ingressasse um terceiro, uma outra voz. Esse outro passava a mediar a relação de interlocução e de reflexão conjunta; nesse sentido, pode-se dizer que se instalou um modo de operar com conceitos teóricos como um ferramental de análise, possibilitando o movimento reflexivo.

Nossa principal proposição final é que o uso da metodologia de escrita do caso na constituição de ambientes de conhecimento, principalmente a interação escrita entre os participantes, atuou como facilitador dos resultados apontados na análise anterior.

É possível que a escrita e a prática de leitura crítica em um coletivo tenham possibilitado um exercício de pensamento que repercutiu na própria intervenção suportada pela reflexão que se transformava e se auto-organizava, através das novas análises possibilitadas pelo processo interativo de trocas entre seus integrantes. Esse processo de metamorfose produziu um contínuo estado de “excitação”, impulsionando os participantes em novas direções de pensamento.

Embora se possa falar na constituição de uma metodologia coletiva, cabe ressaltar que essa configuração cognitiva sempre preserva a singularidade de seus componentes, ressaltando processos singulares de reflexão. A heterogeneidade dos níveis dos participantes, como demonstram os resultados anteriores, evidencia que uma metodologia de intervenção docente, apesar de constituída pela participação de todos os integrantes, não se constitui numa relação de causa-efeito em cada um deles em particular. As relações todo-parte são de uma ordem mais complexa, já que um participante pode compor esse coletivo, mas nem por isso se deixar formatar inteiramente por ele, mantendo sua diferenciação e caminho singular. É nesse sentido que a tecnologia da escrita não propicia, por si só, a constituição de novas aprendizagens, visto que, para tal, faz-se necessário uma interação crítico-criativa entre professores, estudantes e campo empírico.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail:clecimar@orion.ufrgs.br

Recebido em março de 2006
Aceito em julho de 2006

 

 

Autoras
1 Cleci Maraschin – Psicóloga e Doutora em Educação (UFRGS); Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional – UFRGS
2 Marta Regina de Leão D"Agord – Psicóloga e Doutora em Educação (UFRGS); Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional – UFRGS
3 Nair Iracema Silveira dos Santos – Psicóloga e Doutora em Educação (UFRGS); Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional – UFRGS
4 Regina Orgler Sordi – Psicóloga e Doutora em Educação (UFRGS); Professora e Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional – UFRGS
5 No Laboratório de Psicanálise e Aprendizagem (UFRGS), essa prática foi realizada com alunos de Pós-Graduação na redação das dissertações e teses de 1994 a 2003 pelo Prof. Dr. José Luiz Caon, prática que contou com a participação de uma das autoras
* Pesquisa realizada com apoio do CNPq

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