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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.24 Canoas dez. 2006

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Discurso psicanalítico pós-freudiano sobre a histeria e algumas relações com a literatura

 

Post-Freudian psychoanalytical speech about hysteria and some relationships with the literature

 

 

Janaina Franciele Camargo 1; Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto 2

Universidade Estadual de Maringá – UEM

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho, investigamos relações que autores psicanalíticos fazem entre histeria e literatura. Fizemos um estudo dos artigos destes autores, e o objetivo foi de expor as temáticas abordadas por eles quando reúnem e interpretam juntas histeria, psicanálise e literatura. Historicamente, tanto a histeria quanto a literatura estão nas raízes da psicanálise, o que justifica a sua escolha para o estudo. Nossas considerações nos levaram a perceber que, seja na referência a personagens, seja na análise propriamente dita de obras literárias, aparecem os mesmos movimentos teóricos e interpretativos que se faz da histeria sozinha no discurso analítico pós-Freud. A nosso ver, o movimento mais forte diz respeito a um distanciamento cada vez maior do modelo explicativo da histeria baseado na idéia de não superação de elementos fálico-edipianos ou, mesmo, uma negação desse modelo pelos autores. Mas, evidentemente, esse não é o único movimento, e o modelo fálico-edipiano é preservado.

Palavras-chave: Psicanálise, Histeria, Literatura.


ABSTRACT

In this work we investigated the relations that psychoanalytical authors make between hysteria and literature. We elaborated a study of these authors" articles, and the objective was to expose the themes approached by them when they put together and interpret at the same time hysteria, psychoanalysis and literature. Historically, both hysteria and literature are in the roots of psychoanalysis, what justifies having chosen it for the study. Our considerations led us to realize that either in reference to characters or in reference to the analysis of literature works themselves, in both it appears the same theoretical and interpretative movements that are made to hysteria alone in the analytical discourse post-Freud. In our point of view, the strongest movement is about or the distancing each time greater of the explanatory model of hysteria based on the idea of not overcoming the phallic-Oedipal elements a denial for that model by the authors. But, evidently, this is not the only movement, and the phallic-Oedipal model is preserved.

Keywords: Psychoanalysis, Hysteria, Literature.


 

 

Introdução

O objetivo deste trabalho é o de buscar relações entre literatura e histeria através da análise de artigos de autores psicanalíticos no após-Freud. Essa idéia específica surge no contexto de um projeto maior, cuja finalidade foi a de analisar de forma geral esse discurso.

A princípio, nossa proposta foi a de nos deter na etiologia, sintomatologia e diagnóstico que os autores construiriam a partir de sua discussão psicanalítica de assuntos literários. No entanto, isso acabou sendo impossível. Os autores nem sempre fazem um diagnóstico claro, a etiologia poucas vezes é mencionada e os sintomas, por sua vez, são mais claramente descritos, mas eles interessam pouco em termos psicanalíticos3.

Não obstante, isso não invalidou a proposta, porque o que se encontrou foi também muito rico. Trata-se dos temas com que os autores foram tecendo essas relações entre histeria e literatura. Essa é, então, a proposta deste trabalho: expor esses temas. Os temas gerais que nos pareceram bem úteis para poder expor os textos dos autores são: “o conquistador e a histeria masculina”; “a insatisfação”; “a criança da histérica”; e “o desconhecimento de si”. Note o leitor que cada um desses temas será ilustrado por apenas um artigo, mas note também que eles se interpenetram; “a criança da histérica”, por exemplo, é uma criança insatisfeita.

 

Sobre a histeria em geral

Não é preciso muito para depreender do próprio texto de Freud (1895/1990 e 1914/1990) que o estudo das neuroses, em especial a histeria, foi o ponto de partida para o desenvolvimento da teoria psicanalítica. Freud estagiou com Charcot (Freud, 1925/1990), que pensava que vários sintomas histéricos poderiam ser tratados com o emprego de idéias, isto é, de forma psicológica, pois teriam origem psicogênica (Jones,1979, p. 240). Porém, tais fatores psíquicos não seriam a causa eficiente da histeria, mas “agentes provocadores” da enfermidade. Charcot pensava que a verdadeira causa seria a degeneração atávica (Freud, 1893/1990).

Em Freud, contudo, ficou a idéia de que os fatores psíquicos não seriam meros provocadores da histeria, mas sim a sua causa. Em seu “Charcot” (1893/1990), Freud se coloca no lugar de um “observador ingênuo”, isto é, não médico e distante dos preconceitos médicos, que imagina que na histeria haveria um processo psíquico do qual os fenômenos seriam manifestações.

Em “Comunicação Preliminar” (1893/1990), a idéia da existência de estados anormais de consciência no momento do trauma, comparáveis à hipnose, leva Breuer e Freud, sobretudo Breuer, à suposição de que há uma dissociação da mente num estado normal e outro semelhante à hipnose, este último denominado estado hipnóide. Nessa idéia de dissociação se encontra, a nosso ver, a base para as idéias que Freud desenvolverá de inconsciente mais tarde4 . No artigo “As neuropsicoses de defesa” (1894/1990), Freud afirma que o que provoca a clivagem entre representação e seu afeto é a defesa. De mais interessante está que, nesse artigo, Freud afirma que, no processo de defesa, o afeto dissociado da representação é remetido para alguma parte do corpo, produzindo a histeria de conversão. E interessante ainda está que o fator sexual das representações recalcadas começa a se anunciar. No entanto, ele, nesse artigo, aparece ligado quase que exclusivamente à neurose obsessiva.

Em “Novas observações sobre as neuropsicoses de defesa” (1896/1990), contudo, Freud dirá que a etiologia específica da histeria é um evento traumático psíquico de caráter sexual, uma atividade sexual passiva em épocas ditas “pré-sexuais”. Os sintomas seriam vestígios dessas ocorrências infantis, vestígios que seriam despertados na puberdade, seriam recalcados e, então, provocariam afetos e sintomas. Logo depois, porém, na “Carta a Fliess (69)” (1897/1990), Freud nega essa idéia, pois, segundo ele, seria necessário que houvesse um número muito grande de abusos contra crianças por parte do adulto, sobretudo do pai, para que se produzisse a quantidade de sujeitos neuróticos que se pode encontrar. Freud proporia, então, que a relação de caráter sexual entre a criança e o seu pai/mãe ocorreria no plano do fantasma, na cena que ele viria a denominar Complexo de Édipo. Note-se que essa já é uma cena literária, pois o criador da psicanálise pensa, aí, na peça de Sófocles.

Em “Fragmentos da análise de uma histeria”, Freud fala do tratamento de uma jovem de 18 anos que sofria de crises de afonia e de tosse nervosa: Dora. Analisando um sonho da paciente, mostra que a jovem lança mão da figura do pai para se proteger de seu desejo por um homem mais velho, o Sr. K.. Diz Freud: Dora “convocou o amor infantil pelo pai como proteção contra a tentação atual” (Freud, 1905/1990, p. 79).

A partir de então, Freud não se cansa de repetir que o núcleo das neuroses, e entre elas está obviamente a histeria, é o complexo de Édipo. Vejamos este trecho de “Uma criança é espancada”, de 1919: “cremos que o complexo de Édipo é o verdadeiro núcleo das neuroses e a sexualidade infantil, (...) O que resta dele como seqüela constitui, no adulto, a tendência para o posterior desenvolvimento da neurose” (1919/1990, p. 190).

No entanto, embora isso seja o que é mais conhecido, não é tão simples assim. Em “Sobre a sexualidade feminina”, de 1931, Freud pergunta-se se não seria preciso reformular a idéia de que o Édipo é mesmo central nas neuroses. Isso vem na seqüência da discussão da dependência da mulher em relação à sua mãe e a sua dificuldade de tomar o pai como objeto libidinal. Diz: “a fase pré-edipiana nas mulheres obtém uma importância que até agora não lhe havíamos atribuído” (p. 228). Todavia, o autor não irá trocar a explicação fálico-edipiana por outra pré-edipiana, propõe, sim, ampliar o complexo de Édipo e ver nele uma reunião de todas as relações da criança com os seus genitores. Propõe, ainda, que, na mulher, o complexo de Édipo positivo (heterossexual) só é atingido após vencer o complexo negativo que se exprime na dependência da mãe.

Essa expansão da causação da neurose parece que vai, em anos posteriores, propiciar, em alguns autores, uma certa “dessexualização” da neurose e da psicanálise, sobretudo a partir dos anos 50. Por dessexualização entenda-se, pois, a passagem da explicação pelo edipiano para uma interpretação pelo pré-edipiano e a substituição da pulsão sexual pela idéia de uma necessidade de afeto como mais importante. Damos dois exemplos.

Em 1953, o conhecido didata Judd Marmor publica um importante e muito referido artigo intitulado “Oralidade na personalidade histérica”. Trata-se de Psicologia do Ego, a tendência mais importante da psicanálise norte-americana.

Segundo esse autor, a aproximação que então se fazia da histeria com a esquizofrenia não seria sem sentido. Em ambos os casos haveria uma regressão muito maior do que pensara Freud e Abraham, ao menos na histeria. Não seria uma regressão à fase fálico-genital, mas a algo muito mais primitivo. Esse algo seria o oral e seria o responsável pelos fortes sentimentos de dependência da histérica. Isso de tal maneira que a sua conhecida atitude de sedução sexual não seria propriamente genital, mas um pedido de amor e cuidado: “se me cuidas, te satisfaço”.

Na mesma época, Fairbairn (1954/1997) publica um texto de grande repercussão na chamada psicanálise das relações objetais até hoje. Segundo ele, nas relações com a mãe, haveria algo de insatisfatório para o bebê. Isso provocaria uma dissociação do objeto e do eu em objeto libidinal, objeto anti-libidinal e objeto neutro, assim com em eu libidinal, eu anti-libidinal e eu-ideal. A histeria seria o produto de um desequilíbrio entre essas partes dissociadas. Do mesmo modo, o próprio triângulo edipiano é interpretado por esse modelo, como forma de lidar com essa dissociação. Na histeria, contudo, a dinâmica seria bem primitiva, de matizes fortemente orais e relacionada a relações também muito primitivas com a mãe. Isso de maneira que elementos fálicos, como a inveja do pênis, por exemplo, deveriam ser referidos às relações com o objeto cuidador e oral.

Tanto a proposta de Marmor, como a de Fairbairn terão grande influência nas décadas posteriores, até hoje. Evidentemente não são todas as tendências da psicanálise após Freud que trilham esse caminho. A preservação do triângulo edipiano como núcleo das neuroses é adotada por várias tendências, sobretudo por aquelas que se propõem a fazer um retorno a Freud. É o caso da psicanálise francesa contemporânea, sobretudo lacaniana e pós-lacaniana5.

Quanto a nós, podemos dizer que, por nossa vez, nos aproximamos de Freud (embora não de maneira lacaniana). Aceitamos que o complexo de Édipo, na neurose, compreende as tendências pulsionais anteriores, de maneira que, se superado, superam-se também os elementos pré-edipianos. No entanto, não propomos esta posição como base para o que vai se seguir. Propomos, sim, o contexto todo, isto é, que se entendam os autores a serem estudados sob o pano de fundo dessa polêmica entre os que defendem o edipiano e aqueles que defendem o pré-edipiano na explicação da histeria.

 

Comentário metodológico

O levantamento dos artigos deu-se no âmbito do projeto maior e foi feito por meio de pesquisa no banco de dados eletrônico da American Psychology Association (APA) — PsycInfo. O período considerado foi de 1910 a 20006 , e o material obtido consistiu de 800 títulos, com resumos e referências. Lido, o material foi dividido em temas, artigos foram selecionados e obteve-se cerca de 200 textos completos, que por sua vez, foram distribuídos entre os 14 membros do grupo, encarregados, cada um (ou em duplas), de um tema7. O tema ligado à literatura, que é aqui o foco, contudo, se revelou bastante factível pela pequena quantidade de artigos encontrada. Trata-se de pequena quantidade, mas não sem importância, porque a literatura é constituinte da psicanálise desde a obra de Freud8.

Levantamos sete artigos, dos quais tivemos acesso a apenas cinco e somente quatro deles se mostraram bem adequados aos propósitos. Mesmo assim, esse pequeno corpus de textos nos pareceu bem ilustrativo. Note o leitor que “ilustrativo” não quer dizer comprobatório. Não queremos comprovar nada. Não se trata se pesquisa experimental... São artigos escritos em datas que variam entre os anos de 1986 (o mais antigo) e 2000 (o mais atual). Além disso, a princípio, são textos psicanalíticos que relacionam histeria e psicanálise de maneira geral. Nem todos são especificamente artigos de análise de obra literária. Um deles, escrito por Danielle Quinodoz (1986), sobre Don Juan, não é de fato análise de obra, embora utilize personagem literária para discutir a teoria e a clínica masculina. Desse modo, nem mesmo sabemos que versão da narrativa a autora está lançando mão. No entanto, optamos por considerar o texto, pois, seja como for, está de forma geral relacionando literatura, psicanálise e histeria9 . Além disso, o leitor pode ver no estudo de Quinodoz a psicanálise realmente se construindo através de referência literária. Lembramos que, na Gradiva, o objetivo de Freud não é a análise propriamente da obra, mas mostrar a psicanálise, no que diz respeito ao inconsciente e à clínica.

 

Apresentação dos artigos

Don Juan, um conquistador rejeitado

O primeiro artigo que propomos para estudo intitula-se “Don Juan serait-il hystérique? (Seria Don Juan histérico?)”, que acabamos de mencionar, de Danielle Quinodoz (1986). A autora, aí, se pergunta se os traços histéricos não apareceriam em homens, por vezes, sob a forma das atitudes sedutoras de Don Juan. Supõe, então, que aventuras “donjuanescas” em pacientes, seriam um tipo de repetição teatral de uma cena sempre caracterizada por sedução e abandono, como se o paciente desejasse fazer a mulher, se solteira, viver um papel que outrora fora o dele: o de ser seduzido e abandonado. De outra forma, ao seduzir a mulher comprometida, sentiria a necessidade de reviver uma situação triangular, provocando seu rival até ser repelido por ele.

Quando o paciente revive tais relações de objeto na análise, diz Quinodoz (1986), é perceptível que esta cena ocorre num nível narcísico bastante precoce, embora pareça se desenrolar no plano libidinal edipiano, pois o paciente revela-se na análise como uma criança machucada e rejeitada, sem a afeição da mãe na sua infância precoce. É uma reivindicação narcísica que se esconde sob uma aparência libidinosa pseudogenital.

Para a Quinodoz, são os pais ainda indiferenciados, objetos idealizados das primeiras identificações, que fazem o paciente se sentir seduzido e abandonado. Ele passou por este sentimento de abandono numa idade muito precoce, em que sua angústia ainda não podia ser verbalizada, e para exprimi-la só restava a ele esta possibilidade de suscitar em certas mulheres o mesmo sentimento de sedução e abandono pelo qual passou, além de suscitar em certos homens a exasperação diante do rival.

O paciente pode reproduzir no analista sua relação de objeto com os pais de duas formas: com o analista-mãe ele pode reviver o desejo inconsciente de fazer com que ela se deixe seduzir por este magnífico phallus exibido por ele, que é representado pelo conteúdo que leva às sessões: suas histórias de conquistas. Porém, cada conquista já ocorre com o intuito de um abandono posterior. Com o analista-pai o paciente procura reviver o desejo inconsciente de provocá-lo ao extremo, até que este o rejeite. Nos dois casos, rejeitar o analista-mãe e ser rejeitado pelo analista-pai, há uma busca do mesmo objetivo: proclamar incessantemente sua fraqueza de criança, incapaz de satisfazer sexualmente uma mulher e de ter relevância ao lado do rival, como se ele devesse tranqüilizar a si e a seus pais-analistas, provando que não é perigoso para o casal parental. Ele teria necessidade de reviver no analista isto que ele sempre repete na vida cotidiana inconscientemente: “eu renuncio a desposar mamãe, eu fui vencido pelo meu pai”.

Madame Bovary e o desejo de desejar

O segundo artigo que trazemos é “Freud, Flaubert et le conscrict nostalgique; entre surprise et déception (Freud, Flaubert e o recruta nostálgico; entre surpresa e decepção)” (Bolzinger, 1998). O seu autor dedica uma boa parte do artigo à personagem Emma Bovary, de Flaubert, escolhendo-a para ilustrar um tipo de decepção que ele define como “uma surpresa maléfica e esmagadora. Não se trata essencialmente perda do objeto, luto, empobrecimento, expropriação ou exílio, mas, sobretudo, de fratura íntima” (Bolzinger, 1998, p.24).

O texto não nos aponta muitas idéias a respeito das experiências que teriam levado Emma Bovary aos seus sintomas histéricos. Sobre sua infância, diz apenas que antes mesmo de se casar, Emma Bovary já apresentava fases de exaltação e abatimento, e que as suas melhores lembranças da juventude estavam relacionadas ao convento das Ursulinas, para onde seu pai a havia levado aos treze anos. Foi aí, em meio a “doçuras inesperadas”, que ela foi avisada um dia da morte de sua mãe. No pesar e no luto, sentiu-se como as suas amadas heroínas românticas se sentiam em seu infortúnio. Desse modo, não foi a própria Emma quem sofreu a dor, pois ela se identificou com uma personagem de romance, o que amenizara o seu sofrimento, pois a mantinha longe da realidade decepcionante. Emma agiria como as crianças diante da desilusão, tentando reconstruir a realidade dolorosa a seu modo, tornando-a mais suportável (Emma “brinca” de ser outra pessoa). Depois desse fato, Emma se tornou “rebelde” e, após a morte de seu irmão, seu pai a tirou do internato e a levou de volta para a fazenda em que nascera, de modo que ela passou a assumir o papel de dona de casa e a sentir-se fortemente desiludida.

Segundo Bolzinger (1998), os sintomas de Emma teriam surgido em virtude desta decepção sofrida pela morte da mãe. Já estando casada com Bovary, Emma tossia, perdia o apetite, o ânimo e os remédios prescritos não surtiam efeito. Antes de estar contaminada por esse mal-estar, ela havia tentado lutar contra o tédio da pequena cidade onde seu marido estava estabelecido, mergulhando na leitura de romances.

Emma enganou a si própria porque desejou ir além de sua condição, ela se imaginou outra que ela não era, ela não conseguiu se igualar aos modelos por ela estabelecidos, por isso não poderia estar mais decepcionada. O seguinte trecho, retirado diretamente de “Madame Bovary” (1998) pode fornecer uma ilustração satisfatória:

Não importava. Ela não era feliz, jamais o fora. De onde vinha então aquela insuficiência em sua vida, aquela podridão instantânea das coisas em que ela tocava? Nada, aliás, valia o desgosto de uma busca; tudo era mentira! Cada sorriso escondia um bocejo de aborrecimento; cada alegria, uma maldição; cada prazer, um desgosto; e os melhores beijos não deixavam nos lábios senão um desejo irrealizável de uma volúpia maior. (Flaubert, 1998, p.290)

Em 1920, Jules de Gaultier criou o conceito de bovarismo, presente até hoje nos manuais de psiquiatria, conforme Bolzinger, para definir um tipo de personalidade romântica, que empresta a si uma personalidade fictícia, desempenhado em sua vida um papel que não está de acordo com a sua verdadeira personalidade. O destino de tais pessoas, como foi o de Emma, é a decepção inevitável.

A criança histérica de Zola

“Babes from the cabbage patch: Hysteria as ungendered personality in Zola"s Nana (Bebês do canteiro de repolho: histeria como personalidade sem gênero em Naná de Zola)” (Kingcaid, 2000) trata do romance de Emile Zola, escrito em 1880, “Naná”. A protagonista é uma prostituta que parece um tanto indiferente em relação aos homens. Uma descrição de Naná feita por Zola, que traduzimos livremente, aparece no artigo de Kingcaid (2000), e compara a moça a uma cadela perseguida por uma matilha de cães. Ela não está no cio, e zomba dos cães que a seguem, deixando somente ruínas e cadáveres ao seu redor, ela aniquila, liquida tudo.

Em sua estréia no Théâtre des Variétes ela evidencia sua completa falta de talento para o teatro, pois é isso que se espera dela. Espera-se que ela tenha talento para, “algo mais”, para o sexo, e ela corresponde a essa expectativa. Apesar desse “talento”, Kingcaid (2000) vê Naná como andrógina, numa volta à homossexualidade infantil (Naná é bissexual, tem uma relação com a personagem Satin). Kincaid, ainda, não crê que a sexualidade da personagem seja exagerada, mas sim imatura e indiferenciada, numa fixação na fase fálica.

A personagem apresenta ataques de fúria quando não atendida em suas vontades, humor instável, entedia-se facilmente, não conseguindo se manter numa situação por muito tempo. Por isso sua vida está em constante mudança, troca diversas vezes de “preferido”, e, por um deles, aceita ser espancada diariamente e se prostituir para sustentá-lo, além de se resignar diante de suas traições. Assim, enquanto em alguns momentos mostra-se como uma criança exigente, em outros pode ser extremamente submissa.

Kingcaid (2000) afirma concordar com Nasio ao afirmar que não vê a histeria como específica de um gênero, pois a pessoa histérica nunca aprendeu a pensar nela mesma como um ser de gênero, devido à sua fixação na fase fálica, o que faz dela uma criança. A excitação do histérico em todo o seu corpo, exceto nos genitais, indica o temor do prazer sexual como algo intolerável para sua integridade, porque o seu self nunca foi integrado como um self com gênero. Esta fixação ocorre mediante a visão da mãe castrada, mas o que falta na mãe não é o pênis, mas sim o falo detentor de poder. Então, quando o menino descobre a mãe desprovida do falo, percebe que o mundo é habitado por seres que detêm e seres que não detêm o falo, não importando seu sexo anatômico. Na menina seria a descoberta de sua própria castração que causa a mesma confusão anatômica, ansiedade e inabilidade para apreender os sexos como gênero.

A personagem Georges Hugon é descrita no romance como um "querubim". Ele é muito jovem, vive um romance adolescente com Naná, mas é obrigado a voltar para “debaixo das asas” de sua mãe. Naná seria o falo mítico de que ele tanto carece, pois o “querubim” é uma criatura imatura que é a própria imagem da androginia. No romance há uma cena em que Hugon chega completamente molhado de chuva na casa de Naná; esta pede que ele vista suas roupas. Após um acesso de pudor, ela começa a rir e, comparando aquilo a uma “brincadeira entre amigas”, se entrega a ele como nos romances em que lera, talvez porque ele não fosse detentor daquele falo tão desejado e ameaçador, mas sim uma criatura a qual ela não devesse temer, como teme aos outros homens. Ele não remete a seu pai, não desperta o conflito edipiano; ela o trata como seu “filhinho”. No curto espaço de tempo que essa relação durou, Naná sentia ter voltado aos seus quinze anos, “ressurgia-lhe toda uma virgindade inquieta, entremeada de desejos de que ela se envergonhava” (Zola, s/d, p.101).

Mais tarde, ao ter seu pedido de casamento negado por Naná, Georges se suicida com uma tesoura, sendo isso visto por Kingcaid como um ato histérico por excelência. Seu pedido de casamento demonstra uma tentativa de assumir uma masculinidade construída socialmente e que está ausente nele, mas ele não pode ir além de sua condição de sexualidade indiferenciada, pois só poderia ficar com Naná se permanecesse fixado na porção fálica e maternal dela. Uma outra cena que remete à infantilidade do jovem Georges: o seu irmão vai conversar com Naná a pedido da mãe. Georges pensa que seu irmão está espancando Naná (concepção sádica da relação sexual), e chega a ouvi-la chorando por trás da porta, porém quando se aproxima da porta, ouve risos e gritinhos. Naná o acusa de ter sido desobediente, de ter espiado atrás da porta, como faria uma mãe.

Naná é uma representante da criança psicológica de sexualidade indeterminada. O caráter infantil de Naná pode ser percebido no seu modo de lidar com seu corpo. Há uma cena em que ela parece uma criança descobrindo seu próprio corpo, encantada em seu narcisismo, num exemplo de pulsão auto-erótica.

Um dos prazeres de Naná era despir-se diante do espelho do roupeiro, onde se via inteira. (...) enleava-se em se contemplar. Tinha paixão pelo seu corpo, pela sua pele cetinosa (...). Olhava-se, atenta, séria, absorvida pelo amor de si própria (...). Não era para os outros; era para ela! (Zola, s/d, p. 117)

A autora acrescenta ainda em sua análise o mito do útero errante. Na França do final do século XIX, os maridos faziam a divisão, inscrita no mito da histeria, entre vagina e útero, ou sexo e reprodução. A histeria nesse romance consiste numa crença básica de que bebês provêm dos canteiros de repolho, numa alusão a uma lenda européia que dizia que as meninas nasciam de rosas e os meninos de repolhos azuis.

Naná se permite trocar sexo por dinheiro friamente, pois, como ocorria no mito do útero errante, possui o útero “separado” de suas amarras na pélvis, este leva uma existência autônoma e dissociada. Naná distorce os processos sexuais naturais. Quando questionada por sua tia sobre quem seria o pai de seu filho, Naná hesita por um tempo e finalmente responde: “um cavalheiro”. Naná parece surpresa com sua resposta, e a razão para sua hesitação talvez se devesse ao fato de que ela de repente descobria que seu filho fora gerado por um homem com quem teve relações sexuais, como se não houvesse até então nenhuma conexão entre a vagina e o útero, como se a prostituta Naná pudesse ser de fato, histericamente falando, mãe e donzela ao mesmo tempo, tendo a crença infantil de que encontrou seu bebê num canteiro de repolho. A histeria de Naná a torna incapaz de entender a verdade sobre a atividade sexual e procriação, a saber, que a primeira é causa e, a última, efeito. Isso é representado completamente no romance quando Naná engravida, no auge de sua fama, fato que ela vê como inexplicável e espantoso. Na verdade, o espantoso seria o contrário, o fato de que uma prostituta do século XIX, em plena atividade, não tivesse engravidado mais vezes.

Os seus pavores, a sua tristeza derivavam em parte dessa aventura, que ela ocultava com um pudor de mãe solteira, obrigada a manter em segredo o seu deslize. (...) Pouca sorte, em verdade... A natureza a exasperava, essa maternidade, que se lhe atravessava na vida de prazer, irritava-a. (Zola, s/d, p. 198)

Ao final do romance, após a morte de sua amante, Satin, Naná se cansa de viver no palacete, desaparece de Paris, após ter causado a ruína de tantos:

Enquanto o seu sexo subia e fulgurava numa glória, sobre as vítimas prostradas, como um sol nascente iluminando um campo de carnificina, ela conservava a sua inconsciência de animal soberbo, ignorante da sua missão, sempre boa criatura. (Zola, s/d, p.228)

O desconhecimento de si num caso de histeria

O artigo escrito por Horvitz (1999) intitulado “Hysteria and trauma in Pauline Hopkins"s "Of One Blood, Or, the Hidden Self" (Histeria e trauma em "De um só sangue, ou, o eu oculto" de Pauline Hopkins)”, trata deste romance supondo que a histeria teria sido experienciada pelas mulheres e meninas afro-americanas como resultado do trauma sexual durante e após a escravidão, num contexto de estupro e incesto praticados por homens brancos. A autora afirma que na época em que viveu Hopkins, a literatura médica predicava que somente mulheres brancas de classe média eram diagnosticadas como histéricas. Porém, a personagem do romance — escrito em 1902 – chamada Dianthe, apresenta diversos sintomas de histeria, como amnésia, letargia, passividade e estados dissociados de consciência. O corpo de Dianthe representaria, então, o lugar de convergência do racismo, da violência e misoginia. Ela é abusada sexualmente por Audrey e, anteriormente, o pai dele, que fora o “senhor” branco de sua mãe e de sua avó, havia violentado a ambas, o que levou a uma miscigenação que se evidenciaria na pele mais clara de Dianthe.

Segundo a autora, existem lembranças que a personagem guarda em seu inconsciente, sobre o seu passado relacionado com a África, que se apagam do consciente após sofrer uma amnésia. O espírito da mãe de Dianthe aparece para ela e seu irmão, Reuel, e apela para que eles recuperem suas identidades africanas através de suas memórias “esquecidas”, que formam a base de toda a sua história. Desse modo, o romance enfatizaria que a sobrevivência depende do reconhecimento, revelação ou exposição do que é inconsciente, reprimido e enterrado, assim como na psicanálise. O termo “hidden self” (self oculto) provém de uma teoria de William James, na qual ele lança a hipótese de que toda a mente consciente contém camadas de selves “enterrados” ou “secundários”, cada qual contendo suas próprias memórias e emoções.

Hopkins descreve os estados dissociados de consciência de Dianthe imitando o que se via nos jornais médicos e científicos da época. Em decorrência de um choque sofrido por Dianthe após um acidente de trem, ela acorda sem se lembrar de seu nome nem de seu talento para cantar, e sua pele clara não permite que ela se identifique como negra. A autora chama a atenção para esse fato de consciência/inconsciência como distintivo dos fenômenos histéricos e para a possibilidade da amnésia após um choque ser fenômeno dessa natureza. Mas, mais que isso, para a autora, o fato que tem conseqüências mais terríveis no livro é o acordo entre Reuel e Aubrey para enganar Dianthe, mantendo sua identidade racial um segredo para ela, confundindo seu “hidden self”. Aubrey sadicamente encarcera, estupra e finalmente mata Dianthe. Seus atos repetem o seu trauma original, onde se encontraria a raiz de sua histeria, pois quando ela está cataléptica, ele se aproveita de sua incapacidade e abusa sexualmente dela.

O comportamento submisso, diz-nos Horvitz, pode ser visto como sintoma histérico, geralmente pensado como uma forma de manipulação sexual. Mas, para vítimas de estupro como Dianthe, a conformidade pode demonstrar a defesa da vida. Enquanto ela se deixa à mercê da misericórdia do homem poderoso, seu entorpecimento é uma manifestação residual e pós-traumática de episódios violentos precipitando sua histeria. Sabe-se, acrescenta a autora, que a histérica atribui a sedução a outro, não se sentindo responsável por ela, porém no contexto da escravidão, a possibilidade de que ocorressem abusos sexuais “reais” era diferente daquele contexto das mulheres brancas de classe média.

A representação de Dianthe como histérica sugere que o trauma sexual existe em seu passado, diz-nos a autora. Então, se os significados inconscientes dos sintomas histéricos são revelados somente pela compreensão desse precipitante traumático, pode-se, ainda segundo Horvitz, localizar a histeria de Dianthe na escravidão e estupro. Suas reminiscências de identidade racial, assim como as de abuso sexual, estão contidas na sua personalidade “secundária” reprimida (conceito aparentemente de Horvitz). Concebida durante o estupro de Mira por seu “senhor”, Dianthe vive uma infância misteriosa, e não fica claro o que aconteceu com sua mãe e quem a criou, sabe-se que ela nunca conheceu seu pai ou seus parentes. Em “Of one Blood”, Hopkins, no dizer de Horvitz, considera o trauma de mulheres negras estupradas por seus “senhores” a partir da perspectiva do discurso freudiano no fim do século sobre histeria para sublinhar o fato de que muitas, talvez todas, as vítimas femininas da escravidão que foram estupradas sofreram de uma verdadeira doença clínica durante e em conseqüência deste trauma.

As considerações de Horvitz são, a nosso ver, muito problemáticas, sobretudo porque esse artigo está sob a rubrica de psicanalítico e isso mesmo que a autora não faça referência mais que a um Freud do fim do século XIX. A explicação da histeria pelo trauma, ou melhor, diretamente pelo trauma, fora abandonada por Freud possivelmente em 1897 (Carta a Fliess número 69). É relativamente consensual (Jones, 1979, p. 272) que a passagem para a psicanálise propriamente dita se dá nesse momento, pois Freud tira a sua atenção da pura realidade material para a realidade psíquica, principalmente para a fantasia inconsciente, isto é, o fantasma. O que descobre aí o criador da psicanálise é o sujeito e seu desejo. Isso se expressa alguns anos depois, em “Três ensaios sobre a sexualidade” (1905), quando Freud está interessado em saber qual foi a participação do desejo sexual infantil na formação da neurose. Se esse desejo está aí, o sujeito está aí, na criação da sua patologia.

No que diz respeito à análise de Horvitz, vemos que o trauma é o causador, mais do que disparador. No entanto, não se pode dizer que o fantasma não esteja aí. Isso porque a histeria de Diathe não é causada pelo estupro por que passa, mas pelo estupro que deu origem ao seu nascimento, portanto, há um mito do sujeito. Na verdade, o estupro focal, isto é, o estupro por que passa Dianthe na realidade material, talvez seja uma importante reedição do fantasma, fantasma que no passado pode ter sido realista, mas que já se tornou mito. Isso é a nosso ver. Ora, se se pode inferir essa idéia do texto de Horvitz, o que nele não se desvela é o sujeito e seu desejo embora esteja uma espécie de fantasma. Não que Dianthe ou qualquer outra mulher tenha feito tudo para ser violada sem o saber, essas são teorias grosseiras e o desejo que a psicanálise estuda não é esse. Ferenczi, num conhecido texto, chama a atenção para o fato de que o que é realmente malfazejo para a criança que sofreu violência sexual não é a violência em si, mas a identificação com o agressor e o sentimento de culpa. Além disso há as fantasias desejantes, sobretudo masoquistas, que vão sendo tecidas em torno. Portanto, não há relação direta entre sintoma e trauma sem que o fantasma e o desejo aí se impliquem, mesmo que saibamos que o trauma voltou a ter importância em psicanálise.

 

Considerações finais

Nos textos de Quinodoz, Bolzinger e Kingcaid, percebemos a histeria relacionada a um forte sentimento de insatisfação. De um lado, Don Juan parte para suas conquistas e nunca se satisfaz com nenhuma delas, pois busca viver ativamente a mesma situação de sedução e abandono que viveu passivamente com sua mãe, e não é capaz de amar verdadeiramente. Emma Bovary, por seu lado, estabelece para si e para sua vida ideais tão inatingíveis, que seu sentimento de decepção é algo extremamente forte. Naná é uma criança voraz que destrói tudo o que a atrai, “tinha uma ânsia de possuir tudo para destruir tudo, talvez para continuar sempre insatisfeita, sempre desejando” (Zola, s/d, p.179).

Como foi dito, a histeria de Emma tem ligação com uma decepção vivida no passado, uma expectativa que não se cumpriu. Talvez possamos nos arriscar a dizer que Don Juan também sofreu uma decepção em suas fases mais primitivas, pois ao ser seduzido pela mãe enche-se de expectativas, porém esta o abandona. Além disso, a decepção mais marcante da vida de Emma, aquela ocorrida no convento, também tem relação com o abandono por parte de sua mãe, ou seja, sua morte. Porém, podemos nos perguntar se a morte da mãe não foi somente um disparador da histeria de Emma, visto que antes mesmo deste episódio ela já apresentava uma tendência à ilusão às expectativas exageradas. A verdadeira causa da histeria de Emma, portanto, continuaria para nós uma fonte de especulações.

Podemos ver que tanto Don Juan quanto Emma Bovary, assim como Naná são personagens muito sedutores, que escondem sua fragilidade infantil atrás de personalidades fictícias que criaram para si mesmos, e que não conseguem estabelecer um relacionamento pautado na realidade material, pois o temem, e necessitam viver na fantasia.

Segundo Nasio (1991), a insatisfação e o medo presentes na histeria estão estreitamente relacionados. O autor afirma que a histeria não é uma patologia do indivíduo, mas sim de sua relação doentia, pautada em suas fantasias inconscientes, com outras pessoas. Nesta fantasia o sujeito desempenha o papel de uma vítima infeliz e constantemente insatisfeita. O motivo para que o histérico fantasie e vivencie a insatisfação está no fato de que sente muito medo, e vive no doloroso estado de insatisfação para atenuar sua angústia. Assim, enquanto estiver insatisfeito, sente-se protegido do perigo ameaçador de viver a satisfação de um gozo máximo, que o levaria a seu aniquilamento. Por isso sua luta constante em evitar qualquer experiência próxima de um estado de plena e absoluta satisfação. Desse modo, “para afastar essa ameaça de um gozo maldito e temido, o histérico inventa inconscientemente um cenário fantasístico destinado a provar a si mesmo e ao mundo que só existe gozo insatisfeito.” (Nasio, 1991, p.16, grifos nossos)

Sérgio Scotti (2002), autor brasileiro, num artigo intitulado “A histeria em Freud e Flaubert”, afirma que este gozo da insatisfação remete à castração, à falta de Madame Bovary. A personagem busca no marido e nos amantes o falo potente que a complete, porém, quando estes a decepcionam por não corresponderem às suas expectativas (e jamais haveria alguém que pudesse fazê-lo), depara-se novamente com a castração. O autor acrescenta ainda que, em Madame Bovary, “a insatisfação é aquilo mesmo que se busca, pois mantém, no horizonte, o gozo absoluto” (2002, p. 337). Somente na morte seria encontrada a satisfação completa, que “só é possível no não-desejar” (Scotti, 2002, p.339).

Destarte, para Don Juan, Emma Bovary e Naná, o mundo da neurose é sentido como a única proteção possível contra o perigo absoluto do gozo. Esse gozo talvez possa ser visto, no plano imaginário, como uma volta ao corpo da mãe através do incesto.

Naná e Emma Bovary, na verdade, possuem personalidades bastante parecidas. Além de uma sensualidade exagerada que, contudo, não as leva à satisfação, o descontentamento e o tédio de ambas é muito semelhante. Naná queria sempre ser o centro das atenções e, quando não o era, tinha ataques de fúria. Nenhuma fortuna era grande o suficiente para satisfazer a sua avidez, apontando aí o mesmo traço de insatisfação presente nas duas personagens analisadas anteriormente. A personagem leva à ruína um sem número de homens, que davam toda a fortuna que tinham (e que não tinham) para satisfazer a avidez dos caprichos da personagem. Sua vontade nunca é satisfeita, ela goza em permanecer sempre desejante, tudo o que recebe é imediatamente destruído, aniquilado.

Esta insatisfação toma a forma de um tédio, bastante parecido com aquele apresentado por Emma Bovary.

“Entretanto, no seu luxo, no meio dessa corte, Naná se aborrecia mortalmente. (...) dava-lhe uma sensação de vazio, dum buraco que a fazia bocejar. (...) o dia inteiro deitada, sem fazer um esforço, entorpecida nesse ócio e nessa submissão (...)” (Zola, s/d, p.169).

Além disso, ambas as personagens fizeram tentativas de suicídio. Naná, quando se apaixona por um barítono e é abandonada, tenta se suicidar tomando uma infusão de água com um punhado de fósforos. E mesmo que repetisse que desprezava os “porcos”, que são os homens, não conseguia viver sem um “favorito”. Emma Bovary toma um veneno que a leva a uma morte terrível e dolorosa. O fato de ambas as personagens ingerirem veneno poderia ser visto como uma manifestação da oralidade, a qual também pode aparecer na avidez e insatisfação dessas mulheres. Isso nos faz lembrar das idéias de Marmor (1952), de que falamos acima, sobre a presença de mecanismos e sintomas orais na histeria.

Na verdade, tanto Flaubert quando Zola “matam” suas personagens de modo horrível. A cena final do romance mostra Naná morta pela varíola, decompondo-se, sua beleza transformando-se numa “máscara horrenda e grotesca”. (Zola, s/d, p.236). Isso, evidentemente, tem relação com provocar culpa no leitor, tendo em vista os pecados de Naná. (Aliás, Zola é um mestre disso, de provocar maus sentimentos no leitor!).

Há, ainda, um outro ponto a ser tocado. Percebe-se que o complexo de Édipo aparece nas análises dos autores, mas o conteúdo pré-edipiano, como fonte explicativa principal, também tem aparecido. É o que vemos, por exemplo, no texto de Quinodoz, do qual salta um Don Juan na forma de um falso edipiano, mas um narcísico bem precoce, como foi visto. Lembremos que a idéia da histeria se produzindo, pois, antes do complexo de Édipo surge no próprio Freud a partir de “Sobre a sexualidade Feminina”, de 1931. Mas lembremos também dos autores posteriores que irão potencializar essa idéia. Como já foi dito, a etiologia da histeria aparece, no texto de Quinodoz, ligada ao conflito pré-edipiano em Don Juan. No texto de Horvitz a histeria é atribuída a traumas sexuais na realidade material Temos, aí, a nosso ver, uma problemática dessexualização da histeria e da psicanálise, através de explicações que mantêm o genital-edipiano em segundo plano, seja remetendo-a ao pré-edípico, seja ao um traumático puro.

A tendência que estamos vendo no Don Juan de Quinodoz está, pois, bem de acordo com essas posições, de que já falamos, de autores que supõe o genital como disfarce para o não genital.

No entanto, Laplanche (1974) faz uma observação que, a nosso ver é muito interessante, a de que o oral, é também sexual e, assim, pode também ser pervertido. Isso de tal maneira que a sua perversão abrirá a via para certa vivência do genital. Isso parece ser uma proposta de conciliação às duas tendências explicativas. Na verdade, é mais que isso porque é uma crítica. Não que Laplanche duvide do excesso oral na histeria —ninguém duvida disso. Mas trata-se de mostrar que se pode dessexualizar seja o oral, seja o genital. Sua idéia, pois, é de recolocar o problema da oralidade para bem dentro dos problemas da sexualidade e não, por exemplo, de uma suposta necessidade de afeto.

Laplanche faz é o caminho inverso dos autores: ele sexualiza o pré-genital. Nesse sentido podemos até retomar Marmor e afirmar que o que ele acaba apontando é tanto o lado voraz, como o lado dependente do desejo, Lust, o desejo sexual.

Note-se, enfim, como aqui as interpretações já estão um tanto distantes do modelo freudiano mais conhecido simplesmente fálico-genital da histeria.

De certo ponto de vista, podemos pensar que é um tanto natural que isso ocorra, visto que esta é uma patologia bastante relacionada ao contexto de uma dada época. Assim, mudam as suas formas de manifestação, mudam os seus disfarces, o que demanda estudos que talvez conduzam a compreensões por vezes contraditórias entre si.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: jana1013@yahoo.com.br

Recebido em setembro de 2005
Aceito em abril de 2006

 

 

Autores
1 Janaina Franciele Camargo – Acadêmica do 4º ano do curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá – UEM
2 Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto – Pós-doutor. Professor do Departamento de Psicologia (DPI)
3 Interessariam muito mais a um estudo psiquiátrico. À psicanálise interessam muito mais estruturas e dinâmicas
4 Quanto à idéia de dissociação, Freud (1895-1990) cita Janete o critica, quanto à concepção de que ele seria causada por “fraqueza mental”. Mas a idéia de dissociação existe em Freud, mais que, modernamente, se queira não falar nisso, de maneira a evitar esse parentesco com Janet (a esse respeito, ver Fairbairn, 1997)
5 Mas note-se que essa volta não é uma volta mecânica, mas dialética. A esse respeito vale lembrar o famoso discurso, intitulado “A coisa freudiana”, que Lacan fez em Viena em 1955 (Lacan, 1966)
6 As palavras-chaves utilizadas foram “hysteria AND psychoanalysis (OR psicoanalisis OR psicanálise OR psychanalyse)”
7 Os temas estudados foram: revisões da literatura específica; histeria e corpo; histeria e estados borderline; histeria e transtornos alimentares; histeria e depressão; histeria e transferência; histeria masculina; os casos clínicos de Freud e este, a que nos atemos neste artigo, que é o das relações entre histeria e literatura. Todo o resultado está num relatório de 500 páginas, enviado e aprovado pelo CNPq, em fins de 2005, já que foi pesquisa financiada por este órgão
8 Um ponto que merece, ainda, ser tocado a esse respeito tange o fato de que não encontramos análises de literatura latino-americana nas bases consultadas, que é a nossa literatura. Na verdade, não faltam textos psicanalíticos de nosso continente no PsycInfo. A Revista Argentina de Psicanálise está lá há muitas décadas; a Revista Percurso também pode ser encontrada, assim como a Revista Brasileira de Psicanálise, mas essas duas últimas foram indexadas mais recentemente. O que fizemos foi ater-nos a essas bases, pois eram elas a referência do projeto maior. Mesmo assim, ainda pesquisamos outras bases incluídas no portal da CAPES e não encontramos mais material. Uma coisa é buscar genericamente com operadores “literature AND psychoanalysis” e outra, bem mais difícil, é usar as palavras “psychonalysis AND literature AND hysteria” e os correspondente em espanhol e português
9 Na verdade, o que está aí é a representação social de Don Juan. Uma representação, seja como for, de raiz literária. Podemos também pensar que é um mito, para o qual o texto de Quinodoz é, nele mesmo, uma versão de D. Juan, como se pode pensar que em Freud encontramos também uma versção para o mito de Édipo. Enfim, podemos também pensar que a interpretação que se encontra em Quinodoz serviria sem problemas para a análise de qual seja a versão de Don Juan

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