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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.24 Canoas dez. 2006

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Violências: lembrando alguns conceitos

 

Violence: remembering some concepts

 

 

Lívia de Tartari e Sacramento1; Manuel Morgado Rezende2

Universidade Metodista de São Paulo (UMESP)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo mostra que a violência é um problema social e de saúde pública. É um fenômeno complexo e seu estudo requer atenção de várias áreas do conhecimento. Existem discussões, mas as mesmas não dão conta de explicar as violências. Muitas são de difícil acesso por ocorrer na privacidade do “lar doce lar”. As estatísticas apontam sua ocorrência, mas não existem políticas públicas e métodos de prevenção instituídos para as violências. Por este motivo, são necessários estudos que mostrem a existência das violências almejando compreender a magnitude da violência no mundo científico. A violência pode ter um ciclo, mas nós não sabemos onde é o começo ou final desse círculo. Assim, o ciclo é mantido, com justificativas e explicações diferentes, mas a ocorrência é contínua. Até que, um dia, a promoção de saúde possa delinear para a população o que é a violência, como esta começa e assim determinar meios que possam educar e prevenir sua ocorrência.

Palavras-chave: Violência, Violência doméstica, Promoção de saúde, Prevenção da violência.


ABSTRACT

This article shows that violence is a social and public health problem. This is a complex phenomenon and its investigation requires the attention of several areas of knowledge. Debate exists, but it isn"t enough to explain the different types of violence. Many acts are difficult to be accessed, for they occur in the privacy of “home sweet home”. Statistics point out the events, but there are no public policies or established prevention methods for the different types of violence. For this reason studies are necessary to prove their existence. Longing to understand the magnitude of violence in the scientific world. Violence may have a cycle, but where this cycle begins or ends is not known. Therefore, the cycle is maintained, with different justifications and explanations, but the incident is continuous. Thus it will be, until one day, health promotion can outline to the population what violence is and how it begins, then find means to educate and prevent its occurrence.

Keywords: Violence, Domestic violence, Health promotion, Violence prevention.


 

 

Introdução

Historicamente a violência atinge todos os setores da sociedade, sendo um fenômeno multideterminado e, como tal, complexo. Por isso, achamos relevante avançar na discussão sobre esse tema. Abordaremos, neste trabalho, os diversos matizes das violências que foram pesquisados em livros, dissertações e artigos publicados no período de 1991 a 2005.

Objetivamos fazer uma revisão bibliográfica sobre o tema violência, a partir de artigos da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS): http://www.bireme.br/, publicados no período de 1991 a 2005. Além desta revisão, usamos dissertações e livros. Na busca feita no dia 16 de Fevereiro de 2005 colocamos o descritor violência e encontramos 65 artigos. Com a leitura dos resumos destes artigos fizemos uma seleção de oito estudos que abordam a violência relacionada à saúde da mulher, no âmbito doméstico.

O termo violência, de natureza polissêmica, é utilizado em muitos contextos sociais. Como exemplo, podemos pensar que o termo violência pode ser empregado tanto para um homicídio quanto para maus – tratos emocionais, verbais e psicológicos. Na esfera conjugal manifesta-se com freqüência através dos maus – tratos; ao submeter à mulher a práticas sexuais contra a sua vontade; maus – tratos físicos, isolamento social; ao proibir o uso de meios de comunicação; o acesso aos cuidados de saúde;a intimidação. No ambiente profissional observa-se a presença de assédio moral.

A violência foi definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) como o “uso intencional da força ou poder em uma forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa ou grupo ou comunidade, que ocasiona ou tem grandes probabilidades de ocasionar lesão, morte, dano psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações”.

A violência é uma questão social e, portanto, não é objeto próprio de nenhum setor específico. Segundo Minayo (2004), ela se torna um tema mais ligado à saúde por estar associada à qualidade de vida; pelas lesões físicas, psíquicas e morais que acarreta e pelas exigências de atenção e cuidados dos serviços médico-hospitalares e também, pela concepção ampliada do conceito de saúde. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), saúde seria o completo bem – estar físico, mental, social e espiritual dos indivíduos.

De acordo com Schraiber e D"oliveira (1999), mesmo nos dias atuais, em que, de fato, estamos nos voltando para a violência como grande problema social, esta não encontra um adequado e profícuo canal de publicidade: não existe ainda um lugar social e um campo de intervenção e saberes que a reconheça como objeto próprio: como seu alvo de estudos e de atuação. Sem reconhecimento e definição de seu lugar no mundo da ciência se torna difícil o relato e a exposição de seus detalhamentos. Ainda de acordo com Schraiber e D"oliveira (1999), é por este motivo que muitos que estudam o fenômeno apontam para sua invisibilidade social. Ou seja, esta impossibilidade de ter um lugar no discurso da ciência e nas práticas sociais, bem como não haver uma linguagem apropriada para nomeá-la e lidar com suas questões internas – dos seus determinantes, antecedentes, das suas conseqüências, no âmbito da vida e da saúde da população.

Tendo em vista as especificidades da violência, teremos algumas subdivisões que serão importantes para o desenrolar da discussão. O termo violência contra a mulher foi dado pelo movimento social feminista há pouco mais de vinte anos. A expressão refere-se a situações diversas quanto aos atos e comportamentos cometidos: violência física, assassinatos, violência sexual e psicológica cometida por parceiros (íntimos ou não), estupro, abuso sexual de meninas, assédio sexual e moral (no trabalho ou não), abusos emocionais, espancamentos, compelir a pânico, aterrorizar, prostituição forçada, coerção à pornografia, o tráfico de mulheres, o turismo sexual, a violência étnica e racial, a violência cometida pelo Estado, por ação ou omissão, a mutilação genital, a violência e os assassinatos ligados ao dote, violação conjugal, violência tolerada perpetrada pelo Estado, etc. A violência contra a mulher violência inclui, ainda, por referência ao âmbito da vida familiar, além das agressões e abusos já discriminados, impedimentos ao trabalho ou estudo, recusa de apoio financeiro para a lida doméstica, controle dos bens do casal e/ou dos bens da mulher exclusivamente pelos homens da casa, ameaças de expulsão da casa e perda de bens, como forma de “educar” ou punir por comportamentos que a mulher tenha adotado.

A violência parece estar ligada à criminalidade e ser usada para expressar o que ocorre no espaço público, quando é cometida por desconhecidos. Quando os problemas ocorrem com vizinhos, colegas de trabalho e escola, não são reconhecidos como violência. O termo violência também indica que a situação é grave, o que, culturalmente, parece significar que a violência doméstica, embora concretamente severa, não é representada como tal. Dentre os tipos de violência, a do tipo sexual é a mais associada ao conceito de violência.

Muitas vezes a violência pode ocorrer nos relacionamentos amorosos. Especialmente a violência cometida por pessoas íntimas, que envolve, também, filhos, pais, sogros e outros parentes ou pessoas que vivam na mesma casa. A esse tipo de violência costumamos chamar de violência doméstica.

A violência doméstica está de tal maneira arraigada na vida social de determinadas famílias que passa a ser percebida como uma situação normal.

Entende-se por violência intrafamiliar:

(...) toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de um membro da família. Pode ser cometida dentro e fora de casa, por qualquer integrante da família que esteja em relação de poder com a pessoa agredida. Inclui também as pessoas que estão exercendo a função de pai ou mãe, mesmo sem laços de sangue. (Day & colaboradores, 2003)

Já o termo doméstico inclui pessoas que convivem no ambiente familiar, como empregados, agregados e visitantes esporádicos. A violência doméstica emerge como questão social importante mediante estudos dos conflitos familiares, sendo mais conhecida por referência aos abusos e maus-tratos sofridos pelas crianças, mulheres e idosos.

Tal fato é possível de ser visto nas agressões físicas e nos maus-tratos de ordem psicológica, remanescentes da cultura que entendeu os castigos ou punições corporais e a desqualificação moral ou a humilhação da pessoa como recursos de socialização e práticas educativas. Deste modo, as dimensões físicas, sexuais e psicológicas mostram-se extremamente interligadas à violência doméstica.

De outro lado, sofrer agressões e abusos por pessoas íntimas torna a violência contra a mulher situação próxima àquela das crianças e dos idosos: são as questões de gênero, vinculadas às desigualdades, que revestem as agressões e os abusos perpetrados contra as mulheres e as meninas que tornam a violência contra a mulher um evento específico.

Neste caso, mais que em qualquer outro, vamos encontrar as delimitações das esferas psicológica, física e sexual entremeadas uma pelas outras, exatamente por estarem envolvidas e resignificadas pelas questões de gênero.

Consideramos que a violência psicológica é mais comum e menos visível.

(...) De fato, embora alguns autores acreditem que a violência psicológica subjaz a toda e qualquer forma de abuso (Guerra, 1998), ela é quase sempre a modalidade de menor incidência tanto em outros países como nos diversos serviços brasileiros que apresentam essas estatísticas, no Brasil. (Guerra, 1998, p.299).

No tocante aos tipos de violência, a física atinge o topo da estatística da pesquisa realizada pelo Centro de Referência às Vítimas de Violência (CNRVV) do Instituto Sedes Sapientae. Esta foi realizada de 1994 a 1998, tendo como base 64 casos atendidos pelo CNRVV. Mostra a prevalência do núcleo familiar como cenário da vitimização (76% dos casos) e a predominância da violência física (84,21%), associada ou não à violência sexual (40,60%) e, logo depois, o abandono (15,04%) e a negligência (13,53%) e a violência psicológica (12,03%). Se somarmos a negligência e o abandono (podem ser entendidos como abuso emocional) com a violência psicológica, teremos um número bastante significativo (40,60%). Ou seja, a mesma porcentagem da violência sexual tão alardeada.

A violência sexual faz parte de uma grande margem da violência contra a mulher e necessita ser relatada, pois foi ela que abriu campo para o estudo dos outros tipos. A agressão sexual por um desconhecido é bastante diversa da mesma agressão cometida por uma pessoa íntima, que se ama (ou amou) e com quem se escolheu conviver, ainda que esta opção seja, algumas vezes, mais próxima do constrangimento. O assédio, tal qual a violência na esfera psicológica, que é a forma de muitas pessoas chamarem as humilhações, ameaças ou desqualificações e, por vezes, as agressões a pessoas ou bens queridos, nada mais é do que um componente da violência que depende muito dos contextos culturais das práticas amorosas ou dos relacionamentos entre homens e mulheres para ser “diagnosticado” como uma forma de violência.

Desta forma, o termo violência contra a mulher diz respeito a sofrimentos e agressões dirigidos especificamente às mulheres pelo fato de serem mulheres. Como termo genérico usado para referir à situação experimentada pelas mulheres quer remeter também a uma construção de gênero, isto é, se por um lado este termo evidencia uma dada ocorrência sobre as mulheres, também quer significar a diferença de estatuto social da condição feminina. Esta diferença faz com que situações de violência experimentadas pelas mulheres, especialmente a violência que se dá por agressores conhecidos, próximos e de relacionamento íntimo, sejam vistas como experiências de vida usuais.

Há uma lei, Lei nº 10.778/03, que estabelece a notificação compulsória da violência contra a mulher atendida nos serviços de saúde, sejam eles públicos ou privados. Este fato também é previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990). E antes pela Constituição Federal de 1988 (Art. 227), sendo obrigatória a notificação de casos suspeitos ou confirmados, prevendo penas para quem não o fizer.

Para evitar mais distorções, a Conferência de Direitos Humanos de 1993 gerou uma definição oficial das Nações Unidas sobre a violência contra a mulher: “todo ato de violência de gênero que resulte em, ou possa resultar em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico da mulher, incluindo a ameaça de tais atos, a coerção ou a privação arbitrária da liberdade, tanto na vida pública como na vida privada” (p. 3).

Definiremos também a violência psicológica. No trecho abaixo ela foi utilizada para as crianças, mas pode ser estendida para qualquer raça, gênero, etnia.

Constitui toda forma de rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, cobranças exageradas, punições humilhantes e utilização da criança ou do adolescente para atender às necessidades psíquicas dos adultos. Todas essas formas de maus – tratos psicológicos causam danos ao desenvolvimento e ao crescimento biopsicossocial da criança ou do adolescente, podendo provocar efeitos muito deletérios na formação de sua personalidade e na sua forma de encarar a vida. Pela falta de materialidade do ato que atinge, sobretudo, o campo emocional e espiritual da vítima e pela falta de evidências imediatas de maus – tratos, esse tipo de violência é dos mais difíceis de serem identificados (Brasil, 2002, citado por Signorini & Brandão, 2004, p.298-299)

A violência conjugal está bastante ligada à violência contra as mulheres ou à violência de gênero. Esta passou a ter visibilidade nos primeiros anos da década de 80 com o surgimento do movimento feminista e com o levantamento das situações de violência ocorridas dentro dos lares. As feministas pediam que estes crimes, cometidos por pessoas conhecidas, tivessem o mesmo tratamento dado aos crimes de violência cometidos por desconhecidos. Assim foi anunciado o problema da violência conjugal, uma situação que outrora era privada estava se tornando pública e demandava soluções. Segundo Day e colaboradores (2003), 40 a 70% dos homicídios femininos, no mundo, são cometidos por parceiros íntimos.

Segundo Gonçalves (2003), o lar é gerido por um conjunto de regras e padrões, que são as Leis Domésticas. Em sua maioria, tais leis são subentendidas, ou seja, são informais. Dessa maneira, não estão escritas, assim como não foi assinado um contrato de cumprimento das mesmas.

A lei doméstica, portanto, fundamenta a desigualdade existente entre os membros da família. Estas leis parecem operar com base numa postura de retórica e de violência. A retórica se exemplifica na assimetria dos papéis e do peso recebido pelos componentes do núcleo familiar. A violência está explicita através de atos, palavras, ações, gestos... Tais situações parecem combinar bastante, fazendo da unilateralidade das decisões uma constante na vida familiar: na não possibilidade de argumentação pelos membros, na imposição de comportamentos e do silêncio, entre outras coisas.

Estudos apontam que a violência nas relações familiares envolve atos, palavras e pensamentos que depreciam a imagem da pessoa diante de si e dos outros. Os sentimentos que vão se formando afetam a vida psíquica da vítima. O desenvolvimento de feridas emocionais, criadas a partir dos relacionamentos agressivos, onde a pessoa é vítima de violência pode ficar registrado em seu psiquismo como marcas traumáticas. Muitas situações ocorridas nesses lares não são objeto de boletins de ocorrência, pois são assuntos de família e, segundo as Leis Domésticas, só devem ser abordados na intimidade da mesma.

Uma pessoa que tenha sofrido uma agressão é uma vítima, pois seu psiquismo é alterado de maneira mais ou menos duradoura. Mesmo quando sua maneira de reagir à agressão contribui para estabelecer com o agressor uma relação auto – alimentada e que dá a impressão de ser "simétrica", não devemos esquecer que essa pessoa sofre ou sofreu uma situação pela qual, na maioria das vezes, não é responsável. Embora as vítimas se queixem de seu parceiro ou daqueles com quem convivem, é raro terem a consciência de que existe esta temível violência subterrânea e que ousem queixar-se dela.

Implicações da violência para a saúde da vítima

Com o desenrolar do presente estudo foi percebido que o silêncio e a invisibilidade são temas associados à violência. Experimentar situações de violência, especialmente quando esta é de natureza doméstica, conjugal e/ou sexual, tem-se mostrado vivência de difícil revelação, quer na esfera da pesquisa científica, quer no âmbito de práticas sociais de assistência. Tal fato pode ser visto nas pesquisas e relatos sobre o tema. Estudos consultados trazem a violência, em geral, e a violência contra a mulher, em particular, como temas culturalmente investidos de uma aura de silêncio, o que torna sua abordagem mais complexa, exigindo que se subdivida em contornos particulares: locais, regionais, nacionais, de acordo, com a cultura em questão. A violência de natureza doméstica, por sua vez, amplia tal característica, ao situar-se no âmbito da vida privada e das relações familiares.

Falando sobre violência e, mais especificamente, sobre a violência contra mulheres, percebemos que a noção de gênero muitas vezes é confundida com a idéia de sexo feminino, quando, na verdade, surgiu exatamente para destacar tal distinção. Enquanto sexo indica uma diferença anatômica corporal, gênero indica a construção social, material e simbólica dos seres humanos.

Segundo Griesse (1993), esta dicotomia influencia a vidas das pessoas. Estas são diferenças culturais determinantes entre o feminino e o masculino. A identificação do sexo, normalmente, determina o comportamento social e as características pessoais. As pessoas são divididas em dois grupos exclusivos nos quais os interesses, as aspirações e habilidades são assumidos e bem definidos (o que corresponde aos estereótipos dos papéis sexuais).

Dentro dos lares, essas posturas também são assumidas e exigidas, apesar de vários grupos, a partir dos anos 60, as caracterizarem como rígidas e disfuncionais. Os papéis acabam por restringir os comportamentos dos indivíduos a determinadas atividades consideradas apropriadas para o seu sexo.

Desta forma, os homens, especialmente os homens jovens, estariam muito mais sujeitos do que as mulheres à violência no espaço público e ao homicídio, cometido por estranhos ou conhecidos. Já as mulheres estão mais sujeitas a serem agredidas por pessoas conhecidas e íntimas. Este fato pode significar violência repetida e continuada o que, muitas vezes, se perpetua cronicamente por muitos anos ou até vidas inteiras.

Em nosso país, por exemplo, dados do PNAD/88 (Pesquisa Nacional de Amostragem Domiciliar, IBGE, de 1988) apontam que o lugar de maior perigo para as mulheres é a própria casa (55% das mulheres agredidas na região sudeste foram atacadas dentro de casa e 67% das agressões foram feitas por parentes ou conhecidos). Dados atualizados em 1995 apontam que cerca de 39% dos homicídios de mulheres, cuja autoria era conhecida, foram cometidos dentro das relações familiares. O número de vítimas da violência no universo da infância e adolescência vem aumentando significativamente, segundo os dados do PNAD/IBGE. Entre 1993 e 1996, o agente agressor encontrava-se em 35,6% dos casos entre pessoas conhecidas e 19% dos casos entre parentes. (Marin, 2002, p.29).

A violência pode se correlacionar aos maiores índices de suicídio, abuso de drogas, álcool e sofrimento psíquico. O uso e/ou abuso do álcool e das drogas e as situações de estresse também podem, conforme Griesse (1991), ser entendidos como fatores precipitantes da violência no âmbito familiar. Ainda com base em tal autora, os dados indicam que mulheres espancadas e/ou violentadas psicologicamente têm companheiros com maior tendência a beber freqüentemente, mesmo que eles não sejam sempre violentos quando bebem. 71% dos companheiros das mulheres de classe baixa bebiam com um alto grau de freqüência; 19% foi a média dos companheiros da classe média que bebiam com freqüência e 38% dos companheiros era da classe média alta.

A pesquisa de Schraiber e colaboradores (2003) também nos mostra dados interessantes foram entrevistadas 322 mulheres, usuárias de um serviço da rede pública do município de São Paulo. Estas apresentaram como principais características sócio-demográficas na época da pesquisa: serem jovens (47,2% têm entre 15 e 24 anos); 47,8% se auto-definiram como de cor branca; e 59% moravam com o companheiro. Quanto ao nível de instrução: 5,6% eram analfabetas; 32,3% tinham até quatro anos de estudo; 33,8% até oito anos (fundamental completo); 19,6% tinham completado o ensino médio; e 8,7% tinham 12 anos ou mais de estudo. Quanto à ocupação: 36% declararam-se do lar; 41,9% estavam empregadas em trabalho regular (16,1% como empregadas domésticas); 4,3% em trabalho não regular; 4,3% declararam-se estudantes e 13% estavam desempregadas. Filhos: na época da pesquisa, 24,5% das entrevistadas estavam grávidas e 24% não faziam nenhum tipo de contracepção; 61,5% (198 mulheres) das entrevistadas tinham filhos, sendo que destas 72,2% tinham até dois filhos; 19,2% tinham até quatro filhos; 8,6% tinham cinco filhos ou mais.

Do total de mulheres entrevistadas nesta pesquisa, 44,4% (143 mulheres) responderam ter sofrido pelo menos um episódio de agressão física na vida adulta, sendo que 76,9% desses casos foram perpetrados por companheiros ou familiares; 11,5% (37 mulheres) disseram ter sido forçadas a ter relações sexuais pelo menos uma vez na vida adulta, sendo 62,2% desses casos cometidos por companheiros e familiares. Quando questionadas sobre a humilhação, maus-tratos ou agressão verbal (violência psicológica) cometidos por alguém próximo, pelo menos alguma vez na vida, 55,6% (179 mulheres) responderam que já haviam vivido este tipo de situação e, destas, 40,3% consideraram haver sofrido violência na vida. Os dados revelam, ainda, que 69,6% das entrevistadas (224 mulheres) afirmaram ter passado por algum tipo de humilhação, desrespeito ou agressão física ou sexual na vida adulta.

Os dados são relevantes e mostram que as violências ocorrem e têm elevado grau de incidência. Os dados mostram que precisa ser dada maior atenção às mesmas, para que possamos atuar na promoção da saúde e na garantia de direitos, tanto do ponto de vista ético da assistência, como também, pelo que mostra a literatura, para que nossas ações sejam, de fato, mais resolutivas.

Nesta mesma pesquisa, uma parcela das mulheres (39,7%) lembrou das dimensões da coerção e dominação e muitas insistiram na importância desta forma de violência, ao apontarem para a dimensão psicológica como sendo situações até de maior constrangimento que a da violência física, por deixarem “feridas que não cicatrizam”.

Cabe, no entanto, ressaltar que a nomeação de vítima permanece bastante associada à mulher até por suas raízes históricas. A ordem social de tradição patriarcal por muito tempo não deu visibilidade à violência contra mulheres. Tendo o homem o papel ativo na relação social e sexual entre os sexos, a mulher coube o papel de passividade e de reprodução. Salienta-se, também, que no campo jurídico todas as pessoas em conflito, sejam homens ou mulheres, serão denominados réus ou vítimas, por isso, usamos tais termos.

A partir do movimento feminista ocorreram transformações sociais, tais como a inserção da mulher no mercado de trabalho que, em geral, foi acompanhada pela dificuldade do que chamamos de “dupla jornada”. Esta expressão remete à concepção de que mulher que trabalha fora ao chegar em casa deve tomar conta dos filhos, do marido, da comida, entre outras atividades. Se o homem sempre teve o poder, agora a mulher tenta mostrar o contrapoder, manifestando seus desejos, suas recusas, suas vontades e exigindo os seus direitos.

Para Ricotta (2002), muitas vezes a vítima parece complementar a atitude do agressor, pois ela assume efetivamente a posição de vítima, fazendo com que existam as duas posições – vítima e agressor. Se a vítima não assumisse tal posição o agressor também não teria esta posição. O ciclo, então, se repete, pois ele é reforçado no momento em que o agressor ataca e a vítima responde com submissão. Sem saber ela promove um novo ataque e este se torna o complemento oportuno para a manutenção do comportamento do agressor.

Ricotta (2002) refere uma relação existente entre vítima e agressor, dominador e dominado. Esta relação realmente deve existir, todavia não acreditamos que seja tão fácil definir quem é o desencadeador da mesma. Pensamos que é um ciclo e como tal não podemos saber, exatamente, onde começa e onde termina. Sabemos somente que agressor e vítima fazem parte da relação.

Como já apontado, a violência conjugal passou a ter visibilidade nos primeiros anos da década de 80 com o surgimento do movimento feminista e o levantamento das situações de violência ocorridas dentro dos lares. Vários grupos de apoio a mulheres foram criados nessa época e conseguiram dar visibilidade à violência conjugal, tornando-a pública. Esses grupos fizeram parcerias com o Estado para implementar políticas públicas e assim surgiram outros grupos, como o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher em 1983 e a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), em 1985.

A Delegacia de Defesa da Mulher foi o primeiro e grande recurso no combate público à violência contra a mulher e especialmente à violência conjugal no país. Seu caráter é basicamente policial: detectar transgressões à lei, averiguar sua procedência e criminalizar a violência doméstica. Desta maneira, a violência doméstica é tida como um desvio da norma e como tal é considerado um crime passível de responsabilização e punição.

Como já referido, os crimes têm diferentes formas de serem tratados. Mesmo que seja igual quando praticado por desconhecidos ou por marido e mulher assumem significados diferentes e, muitas vezes, a violência conjugal é de difícil caracterização enquanto violência e se forem levadas em conta às relações e contratos já existentes entre o casal.

Lembrando que o ambiente violento reproduz a violência, os membros passam a ser reprodutores de condutas agressivas e levam essa conduta aos outros ambientes dos quais participam. Muitas vezes, conseguem disfarçar, mas em algum momento irão mostrar o que realmente são: pessoas violentas.

 

Considerações finais

A violência parece estar ligada à criminalidade e ser usada para expressar o que ocorre no espaço público, quando é cometida por desconhecidos. Quando os problemas ocorrem entre conhecidos não são intitulados como violência. O termo em questão também indica a gravidade da situação, o que, culturalmente, parece significar que a violência doméstica, embora severa, não seja representada como tal. Dentre os tipos de violência, a do tipo sexual parece ser a mais associada ao conceito de violência.

Pelos artigos levantados foi visto que no Brasil, desde os anos 80, vários estudos abordam a questão da violência doméstica e conjugal, com base no trabalho das instituições policiais e jurídicas, principalmente através das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres (DEAMs). Existe uma diferença na nomenclatura de um estado para outro podendo ser chamada de DEAM ou DDM (Delegacia de Defesa das Mulheres). Grande parte destes trabalhos foi fortemente influenciada pelo movimento feminista, que privilegiou o direito da mulher à sua segurança na “privacidade” do lar e estimulou as denúncias contra os maridos agressores.

Mesmo assim, ainda estamos carentes de estudos populacionais sobre a violência baseada em gênero no país, bem como de pesquisas operacionais nos serviços. Sem estes estudos ficamos impossibilitados de ter um melhor conhecimento sobre este fenômeno e suas conseqüências. Este tipo de violência ainda é pouco investigado pelos profissionais de saúde, o que deve colaborar para que seja subestimado em dados oficiais. Os autores pesquisados também mostram que o número de ações preventivas ou de ações de acompanhamento das vítimas é escasso, talvez isto ocorra pela complexidade do fenômeno em questão.

Os dados encontrados mostram que as violências ocorrem, sim, e muitas vezes não são visíveis. Existe uma maior ocorrência e visibilidade para as violências físicas, tipificadas criminalmente por lesões corporais. Porém, essas violências são seguidas de perto pelas violências psicológicas, principalmente ameaça, difamação e injúria. A violência sexual, especialmente a coerção e/ou violência sexual praticada por parceiro íntimo no âmbito privado, está pouco evidenciada ou inexistente nas estatísticas disponíveis, muitas vezes, porque é dito que o marido tem esse direito sobre a mulher e isto passa a não ser tipificado como crime. Isto mostra que precisa ser dada maior relevância ao enfrentamento das violências, para que nós profissionais possamos atuar na promoção da saúde e na garantia de direitos.

Percebemos que ao falarmos de violência e de vitimização, falamos de um perigo exterior, da ausência de saúde por parte de quem pratica a violência e que pode comprometer a saúde física e mental das vítimas; podendo trazer conseqüências de ordem psicológica, um estado de privação, que faz com que a vítima utilize o acting out, se tornando passiva, atemorizada, podendo desenvolver transtornos afetivos e de ansiedade.

Ouvir as demandas relacionadas às violências significa ouvir as vítimas e isto é bastante complexo. E também é estar consciente da existência do problema e poder perguntar sobre ele, no momento apropriado e sem constrangimentos. Uma situação que afeta de 20 a 50% das mulheres não pode ser objeto de estigmatização ou vergonha e o receio dos profissionais em abordar o assunto, muitas vezes, expressa um julgamento moral próprio e não um constrangimento em expor a situação por parte das vítimas.

Porém, devemos entender que a violência não será igualmente percebida ou vivida por todos. Ou seja, poderá se associar ao gênero, a outros elementos como idade, condições familiares, sociais, econômicas e culturais, sem existir um caráter genérico de como é entendida e assimilada por cada pessoa.

Por outro lado, para que nós profissionais possamos avaliar ou identificar as formas de violência conjugal, precisamos de instrumentos diagnósticos. No Brasil estes instrumentos são raros, não tendo tradução e nem adaptação para a nossa cultura. Mas eles são essenciais para que possamos reconhecer os fenômenos pertinentes à violência, suas interações e conseqüências.

Foi visto que ao contrário do que parece ao senso comum, uma boa parte das pessoas que vivem em situações de violência tentaram por diversas vezes romper com a mesma. Mas muitas vezes tais pessoas não foram bem sucedidas pelas fragilidades psicossociais, bem como pelas limitações das instituições às quais recorreram. Este caminho truncado de busca de alternativas foi nomeado como rota crítica por pesquisadores da Organização Panamericana de Saúde e está repleto de desencontros, desestímulos e falta de acesso na tentativa de uso de Delegacias, advogados e outras instituições. Sendo o destino da maioria das mulheres, que por um motivo ou outro o utilizam, os serviços de saúde deveriam constituir-se como um local de acolhimento e elaboração de projetos de apoio. Não deviam, pois, serem mais um obstáculo na tentativa empreendida pelas mulheres de transformação de sua situação. Fica aqui a certeza de que com um serviço básico de saúde bem implementado de profissionais competentes para tal atendimento o fenômeno da violência poderia ser melhor visualizado, podendo ser delimitado e, posteriormente, prevenido e tratado.

É necessário que a situação de violência enunciada seja acolhida, qualificada e tratada com respeito, ética e sigilo. Sendo a violência um problema com sérias conseqüências para a saúde, ela é uma situação que extrapola em muito esta esfera e continua sendo uma situação de vida, com toda a complexidade que isto implica. A pressa dos profissionais de saúde em tratar o problema pode ser prejudicial ao paciente. Essa pode ser diagnosticada como uma outra violência, já que é capaz de desrespeitar e cronificar a trajetória de sofrimento da pessoa. Qualificar a violência como algo indesejado e inaceitável abre possibilidades de transformação pela consciência do processo a que está submetida. Então, resta ao profissional possuir a qualificação necessária para saber em que casos agir e como deverá ser essa ação.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: liviats@directnet.com.br

Recebido em março de 2006
Aceito em julho de 2006

 

 

Autores
1 Lívia de Tartari e Sacramento– Psicóloga; Especialista Psicologia Jurídica (Instituto Sedes Sapientae);. Mestranda em Psicologia da Saúde pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP)
2 Manuel Morgado Rezende– Doutor em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Professor da Graduação e do Programa de Pós – Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP)

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