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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.24 Canoas Dec. 2006

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Adoção por homossexuais – uma nova configuração familiar sob os olhares da psicologia e do direito

 

Adoption by homosexuals – a new family configuration under the eyes of psychology and law

 

 

Regina Silva Futino 1; Simone Martins 2, I

I Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Pós-graduação em Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Por séculos, na sociedade ocidental, a filiação esteve ligada à idéia do patriarcado onde o pai era o chefe da família constituída por sua esposa e prole. A família na atualidade só pode ser considerada sob configurações que compreendem desde a monoparentalidade até um casal do mesmo sexo. No que diz respeito a homossexuais, a ciência proporcionou a perpetuação de estigmas acerca de uma suposta personalidade pervertida e apenas nas últimas décadas presenciamos alterações de discursos que apontam para papéis construídos e não mais instintivos, como a paternidade sócio-afetiva que não responsabiliza apenas motivações biológicas para a construção do afeto. Dentro das discussões que debatem o direito dos homossexuais à adoção, o pressuposto de que o homossexual não pode e não quer ter filhos vem perdendo sua força. No Brasil é legalmente possível um homossexual adotar uma criança, o que demonstra que os impedimentos são morais – reflexo de uma sociedade que embora esteja mudando seus conceitos, o faz lentamente.

Palavras-chave: Adoção, Criança, Homoparentalidade, Homossexualidade.


ABSTRACT

For centuries, in western society, affiliation was linked to the thought of the patriarchate, where the father was the head of the family constituted by his wife and offspring. The family, in the present time, can only be considered under configurations that extend from single parenthood to same sex couples. As to homosexuals, science has provided the perpetuation of stigmas concerning a supposed perverted personality, and only in the last decades we have seen speech alterations pointing to constructed roles, and not instinctive ones anymore, like the social-affective paternity, that gives responsibility not only to biological motivations for the construction of affection. In the discussions that debate the homosexuals" right to adoption, the conjecture that the homosexual cannot and does not want to have children has been losing ground. In Brazil it is legally possible for a homosexual to adopt a child, which demonstrates the impediments are moral – reflections of a society that, even though it is changing its concepts, it is doing so slowly.

Keywords: Adoption, Children, Homoparentality, Homosexuality.


 

 

Introdução

As teorias a respeito do tema “homossexualidade” são diversas. Ao longo da modernidade, diferentes saberes embasaram explicações que vão desde causas biológicas, como hereditariedade, defeitos congênitos, hormonais, dentre outros; decorrências do meio físico e social em que se encontram; ou ainda como o resultado de uma combinação de fatores biológicos e sociais. Não pretendemos discutir neste artigo questões a respeito da homossexualidade, mas questões a partir dela – neste caso, a adoção. Baseados nas leis brasileiras e em algumas teorias psicológicas como contraponto, buscamos explicitar as possibilidades de adoções por homossexuais no país.

Para situar o leitor a respeito da nomenclatura utilizada neste artigo, devemos citar a evolução de teorias e conceitos. Um dos mais difundidos ainda é o de Fry e MacRae (1983), apontando a homossexualidade como uma diversidade de variações sobre as relações sexuais e afetivas entre pessoas do mesmo sexo, não existindo nenhuma verdade absoluta sobre o que é homossexualidade. As releituras sofridas pelo termo – como o enunciado “homoerotismo” 3 – não suprimiram sua utilização, senão convivem no espaço acadêmico. Aqui, optou-se pelo termo “homoafetividade”, exposto por Dias (2004) como um relacionamento visto a partir da diversidade do sexo de um casal em que o vínculo afetivo não é distinguido pelo exercício da sexualidade ou identidade sexual dos parceiros em questão. Sob o foco afetivo existente pode-se falar em relações homoafetivas e heteroafetivas.

Dentre a gama de termos utilizados, vale ressaltar que um dos mais difundidos foi teoricamente banido do vocabulário atual: o “homossexualismo”. O sufixo “ismo”, que designa “doença” na cultura médica, foi substituído por “dade”, relacionado a “modo de ser”, durante a década de 70 pela Associação Americana de Psiquiatria e pela Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) – que no ano de 1990 retirou a homossexualidade da sua lista de doenças mentais, declarando que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão” (Wikipédia, 2006). Os estudiosos concluíram que os transtornos dos homossexuais são decorrentes principalmente da discriminação e repressão social das quais são vítimas (Pinto, 2003). Seguindo por esta diretriz, Fry e MacRae (1983) colocam que, ao longo dos anos, um número crescente de médicos e psicoterapeutas eliminaram o processo de “cura” de seus pacientes homossexuais. Esta tendência reflete-se em resoluções como a de nº001/99 do Conselho Federal de Psicologia que determina que o psicólogo não deve exercer ações que favoreçam a patologizacão de comportamentos ou práticas homoafetivas tampouco orientar pacientes para tratamentos não solicitados ou que proponham a cura da homoafetividade. O projeto de lei nº717/2003, do Deputado Estadual Edino Fonseca, contrariou esta resolução ao propor a criação de programas de auxílio às pessoas que voluntariamente pretendessem uma mudança da homoafetividade para a heteroafetividade, mas após votação na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro o projeto não foi aprovado, contando 30 votos contra e 6 a favor.

No que diz respeito a Constituição Federal Brasileira, o capítulo dos direitos e deveres individuais e coletivos traz no caput do artigo 5° que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Isso deveria ser refletido na prática com a indiferenciação das pessoas por suas orientações sexuais em casos de adoção, embora nem sempre esta seja a realidade encontrada. Apresenta-se como necessária uma mudança na visão da sociedade e da própria ciência que vem buscando aprimorar esta questão.

Ao tratar da adoção como procedimento jurídico, encontramos a busca de vínculos familiares através de leis pelas quais o adotante passa a ser pai ou mãe do adotado como se assim o fosse biologicamente, com todas as responsabilidades e direitos que a paternidade exige (Ferreira, 1999). A competência para julgamento cabe à Justiça da Infância e Adolescência, no entanto há algumas pré-condições que devem ser cumpridas para a legitimidade da adoção inscritas no Código Civil Brasileiro de 2002 e no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990. O adotante deve ter mais de dezoito anos e ser pelo menos dezesseis anos mais velho que o adotado 4.

Os direitos dos pais biológicos ou representantes legais são assegurados quando seu consentimento a respeito da adoção é referenciado e revogável até a publicação da sentença; sendo que o consentimento será dispensado quando os pais forem desconhecidos ou destituídos do poder familiar 5 . O poder familiar (o pátrio poder do Código Civil Brasileiro de 1916) é exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe e sujeita os filhos a ele enquanto menores 6. As relações de filiação determinadas pelo poder familiar não se alteram com o divórcio, tampouco com o falecimento de um dos cônjuges ou contração de novas núpcias 7 . Desta forma, alguns são os deveres dos pais em relação à pessoa dos filhos menores: dirigir sua criação e educação; tê-los em sua companhia e guarda; nomear tutor por testamento ou documento autêntico se um dos pais não sobreviver ou o sobrevivo não puder exercitar o poder familiar; representá-los até os 16 anos em sua vida civil e assisti-los após esta idade nos atos em que forem partes; administrar legalmente os bens dos filhos que se achem sob o seu poder 8 . A suspensão ou extinção do poder familiar decorre das seguintes situações: morte dos pais ou do filho; emancipação ou maioridade deste; abuso do poder por parte dos pais, bem como não cumprimento de seus deveres ou utilização indevida dos bens dos filhos; condenação por sentença irrecorrível; por castigos imoderados; por abandono; por praticar atos contrários à moral e aos bons costumes por parte dos pais; ou reincidência nas faltas previstas anteriormente 9 . A falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a destituição do poder familiar, sendo a criança ou adolescente mantidos em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio 10 .

No Brasil, a adoção por duas pessoas só pode ocorrer quando estas estabelecerem matrimônio ou união estável sendo esta reconhecida como entidade familiar “entre homem e mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”11 . Ao mesmo tempo em que o Código Civil brasileiro não faz menção a respeito da orientação sexual do adotante, o faz sobre a união estável. Muitos casais do mesmo sexo vivem em uniões estáveis e duradouras, porém estas não são reconhecidas por nossas leis.

Em 1995, a então Deputada Federal Marta Suplicy, propôs um projeto de lei (n.° 1.151/95) que visa regulamentar a união estável entre pessoas do mesmo sexo, que embora nada mencione sobre a adoção por parte dos homossexuais colocaria o Código Civil do lado desta possibilidade. Tal projeto foi tirado de pauta em 2001 e assim permanece até o presente momento. Em alguns países já existe a regulamentação da união entre pessoas do mesmo sexo, como Suécia, Noruega, Holanda, Espanha e Inglaterra, dentre outros.

Uma alternativa para os homossexuais, então, seria a adoção por uma só pessoa, formando uma família monoparental, onde a heteroafetividade teoricamente não é requisito. Não há nenhuma objeção legal quanto à orientação sexual ou qualquer restrição quanto ao sexo ou estado civil do adotante12 . Desta forma, o pedido de adoção por homossexuais recai a uma ordem moral e não legal.

Ao contrário do processo legal de adoção, onde se faz necessária a burocracia e são comuns as longas filas de espera, uma prática comum entre casais hetero e homoafetivos – e vale aqui ressaltar ser um procedimento não exclusivo de homossexuais – é a “adoção à brasileira”. Assim é denominado o procedimento em que um indivíduo ou casal registra diretamente em cartório um recém-nascido como se fosse um filho biológico. Ainda que haja o consentimento verbal dos pais do bebê, legalmente estes não perderam seu poder familiar e têm direito de reaver a criança até sua maioridade legal. A “adoção à brasileira” é considerada “adoção simulada” prevista no Código Penal como sendo “dar parto alheio como próprio” – cuja pena é de reclusão ou detenção variando em cada caso13 . Em tese, este procedimento é crime. Alguns juizes aceitam esta forma de adoção ao caracterizarem-na como mais propícia para a criança, mas adotar “à brasileira” é correr o risco de futuramente ser processado.

Como conseqüência do procedimento judicial da adoção, há a atribuição de condição de filho ao adotado com os mesmos direitos e deveres – inclusive sucessórios – e desligamento dos vínculos jurídicos com os pais (que não podem readquirir o poder familiar do filho em questão) e parentes consangüíneos exceto em situação de casamento14 que deve ser impedido quando, por exemplo, ocorrer entre irmãos biológicos que desconhecem esta condição. Os efeitos da adoção têm início a partir do trânsito em julgado da sentença, que é inscrita no registro civil com o nome dos adotantes como pais. Desta forma, o registro original do adotado é cancelado, não sendo feita nenhuma observação sobre a origem do ato na certidão de registro – que confere ao adotado o sobrenome do adotante bem como laços de parentesco com descendentes do adotado e parentes do adotante15 .

O processo de adoção não envolve apenas operadores do Direito, mas também psicólogos e assistentes sociais numa atuação multiprofissional que pode ocorrer antes (em situação de destituição do poder familiar), durante (por meio de avaliações que subsidiem a decisão judicial) ou após a sentença proferida (com o acompanhamento da família durante o período de adaptação à nova configuração). Após preencherem todos os pré-requisitos legais para a adoção, tanto os candidatos a pais quanto a criança devem ser encaminhados à avaliação cujo foco deve direcionar-se ao bem-estar da criança e não à satisfação das necessidades dos futuros pais (Chaves, 2001).

Ter um filho – seja por nascimento ou adoção – modifica a dinâmica familiar e a avaliação dos candidatos a pais investiga a motivação e a disponibilidade para a filiação. Tabajaski, Gaiger e Rodrigues (1998) referem-se a entrevistas sistemáticas cuja freqüência varia conforme o que for levantado nas sessões, mas onde se possibilita pensar e rever aspectos relativos à história pessoal e familiar, bem como a construção imaginária a respeito do filho esperado. Esta seleção do adotante é indispensável, como coloca Marcelli (1998), pois é através dela que se pode avaliar se a motivação para realizar a adoção está fundada em bases sólidas ou se é parte de um momento de reação temporária a alguma situação vivenciada, bem como se a noção de uma relação concreta com crianças existe ou se o imaginário se afasta demais da realidade. Os motivos que levam indivíduos ou casais às filas para adoção podem oscilar, mas não há espaço para candidatos que não desejem realmente um filho ou não estejam minimamente preparados para a relação com um. Dentre os quesitos investigados nas avaliações psicológicas realizadas com os candidatos a pais, a orientação sexual não deve ser o diferenciador das vantagens ou desvantagens de concretizar a adoção.

No que diz respeito à avaliação realizada com a criança, autores como Chaves (2001) e Tabajaski, Gaiger e Rodrigues (1998) a definem como a reunião de informações sobre sua saúde, seu histórico familiar, processual e institucional e os depoimentos de seus cuidadores. As técnicas utilizadas são variadas, mas as mais freqüentes consistem em técnicas de entrevistas, horas de jogo diagnósticas, observação da conduta e uso de técnicas projetivas gráficas e testes psicométricos – ainda que a testagem seja efetuada em menor número. Independente das técnicas utilizadas, um dos principais aspectos enfatizados durante a avaliação psicológica é o desejo da criança de estabelecer novos laços familiares (Chaves, 2001).

O Código Civil e o Estatuto da Criança e do Adolescente também apontam cuidados a serem tomados para o bem-estar do adotado, como indicar que a adoção só será deferida quando apresentar reais vantagens para ele, sendo estes benefícios de ordem pessoal, moral e afetiva16 . A análise torna-se extremamente subjetiva, ficando a critério do juiz estabelecer qual é a melhor família substituta para o adotado desde que o ambiente familiar seja adequado17 . O que levanta a questão: adequado na visão de quem – do adotado, do juiz, do perito ou da sociedade?

Buscando essa adequação por meio de uma melhor adaptação da criança à nova família, nossos códigos determinam que a adoção seja precedida de estágio de convivência pelo prazo que a autoridade judiciária fixar, observadas as peculiaridades do caso. Este estágio pode ser dispensado se a criança não tiver mais de um ano de idade ou se já estiver na companhia do adotante durante tempo suficiente para se poder avaliar a possibilidade de deferimento da solicitação de adoção18 . A adaptação ao novo lar e à nova família é o objetivo deste estágio que propõe a criação de vínculo afetivo entre adotante e adotado. A dispensabilidade do estágio para crianças com até um ano de idade se dá porque os candidatos à adoção, que geralmente permanecem em listas de espera, estão dispostos a ter essa mudança na vida familiar – situação esta na qual um bebê pode se adaptar mais facilmente em relação a uma criança de mais idade que já apresente uma história institucional (Ferreira, 1999).

Após o deferimento da adoção, esta se torna irrevogável mesmo com a morte dos adotantes – o que não restabelece o poder familiar dos pais biológicos19 . Do mesmo modo que não se pode renunciar a um filho “de sangue”, não se pode fazê-lo em situação de adoção. Ela torna-se irrevogável graças a este efeito constitutivo e um pai ou mãe adotivo só poderá ser destituído dessa posição com a perda do poder familiar, o que assegura os direitos citados para a melhor adaptação do adotado à sociedade, buscando evitar o mínimo de discriminações possíveis.

A partir da convivência da criança com seus (novos) pais, surge uma outra importante e subjetiva questão: o afeto, cada vez mais exaltado pelos operadores do Direito. Não precisamos regressar muitos séculos para constatar que nem sempre a criança teve posição de destaque e preocupação numa família. As amas-de-leite, as “rodas dos expostos” e os colégios internos marcaram presença em nossa História. As “roda dos expostos”, apontadas por Chaves (2001) e Maldonado (1989), eram locais no período colonial brasileiro onde mães colocavam seus filhos para adoção, nas Santas Casas ou demais instituições – assim era administrada a colocação de filhos ilegítimos em famílias, entre outros motivos, como forma de esconder o pecado e manter a noção de honra das famílias tradicionais. Em meados do século XIX nossa sociedade patriarcal delegou à mulher a função de educadora, responsabilidade reforçada por teorias como a Psicanálise no séc. XX – que reforçou uma tendência a culpabilizar as mães pelos problemas psicológicos dos filhos (Maldonado, 1989). Com o advento do controle da natalidade, do capitalismo, do feminismo e das alterações das atribuições de gênero, a organização familiar sofreu modificações. A parentalidade deixou de ser uma obrigação para se tornar uma opção. Numa nova tendência e realidade social, o chamado instinto materno e a filiação biológica são colocados em xeque pela paternidade sócio-afetiva.

O mais importante nesta análise histórica é o aspecto de que o vínculo com o filho não se desenvolve a partir de um instinto materno nem mesmo depende da biologia, dos laços de sangue. O convívio e a disponibilidade para cuidar de uma criança e acompanhar o seu desenvolvimento são os aspectos cruciais na construção do amor e do vínculo com o filho. (Maldonado, 1989, p. 14-15)

O foco na afetividade, que já era estudado na Psicologia, surge no Direito como uma preocupação recente. Carbonera (1998) aponta para uma mudança nas relações familiares marcadas anteriormente por finalidades econômicas, políticas, culturais e religiosas para atualmente apresentar-se como um grupo de companheirismo com a afetividade como seu elemento formador – afeto este que proporcionou alterações nas legislações e jurisprudências para abarcar a pluralidade de famílias do mundo contemporâneo. Não é possível falar em modelo ideal de família, pois a busca por esta categorização não se encontra numa idéia de saúde e bem-estar a serem seguidos, mas sim à tentativa de definições de parâmetros relacionais (Dias & Souza, 2001). De acordo com os três autores da área jurídica aqui citados, alguns aspectos são relevantes ao considerar a paternidade sócio-afetiva: a motivação para a formação da família, o afeto voluntário e não advindo do dever, o respeito à dignidade e à liberdade do sujeito e a coabitação como opção e desejo de permanecer junto.

O aspecto sócio-afetivo do estabelecimento da filiação, baseado no comportamento das pessoas que a integram, revela que talvez o aspecto aparentemente mais incerto, o afeto, em muitos casos é o mais hábil para revelar quem efetivamente são os pais. (...) Ademais, a verdadeira paternidade decorre mais de amar e servir do que de fornecer material genético. (Carbonera, 1998, p. 504-505)

Embora ainda existam, do ponto de vista jurídico, divergências quanto ao reconhecimento de uma paternidade que não é intrínseca aos fatores biológicos e não decorre de sentenças judiciais, paulatinamente esta tendência de vanguarda ganha espaço, apontando como pai aquele que constrói um cotidiano “sólido e duradouro” com a criança, estreitando laços que vão muito além do empréstimo do nome da família e que superam o nascimento biológico com o “nascimento emocional” (Welter, 2000). O que está em questão no caso da paternidade sócio-afetiva não é o gênero, tampouco a orientação sexual dos pais, mas a capacidade de vinculação dos envolvidos na situação de adoção.

Entende-se pela expressão “vinculação” ou “formação do vínculo” o estabelecimento de uma ligação específica, única e duradoura entre duas pessoas (Klaus, 2000). A vinculação refere-se ao investimento do cuidador em seu filho, marcada por experiências diversas. A partir desta relação forma-se o elo, chamado apego: uma relação que se dá entre a criança e aquele que cuida. “É a partir dessa conexão emocional que os bebês podem começar a desenvolver um sentido do que eles são, e a partir do que uma criança pode evoluir e ser capaz e aventurar-se no mundo” (Klaus, 2000, p. 167).

As teorias psicológicas mais difundidas acerca do vínculo e do apego e sua importância como constituidor da criança no seio familiar tiveram impulso na segunda metade do século passado, onde vários pesquisadores se destacaram nos estudos da primeira infância e da relação cuidador-bebê. Um destes estudos foi realizado por Spitz citado por Klaus (2000) com crianças institucionalizadas, onde descreveu a importância da formação do vínculo com os pais ao investigar as conseqüências de sua ausência. O autor observou bebês em condições adequadas de alimentação e moradia em orfanatos, mas que não recebiam colo, atenção e carinho. Estas crianças viriam a desenvolver o que ele chamou de “hospitalismo” – desenvolvimento lento, perda de apetite e de peso, diminuição das interações e, freqüentemente, a morte.

Por sua vez, Bowlby, sob um enfoque etológico, descreveu a existência nos bebês de necessidades além das fisiológicas, também inatas, de contato com outros seres humanos (Ramires, 2003). Bowlby utilizou o termo apego posteriormente em seus estudos, sendo o primeiro a observar que as experiências da infância afetam o modo do indivíduo se relacionar com o mundo. Para ele, o modo como a criança foi cuidada auxilia na formação de um modelo de si mesmo, que servirá como base em diversos momentos de sua vida (Klaus, 2000).

Alexandre e Vieira (2004) descrevem o apego como a situação em que uma criança está disposta a buscar proximidade com alguém, em específico quando ameaçada (por cansaço, doença, etc.). Bee (1996), também aponta para a necessidade da presença do outro e, em decorrência, para um acréscimo na sensação de segurança, denotando o apego como uma variação do vínculo. No apego, o outro é visto como uma base segura a partir da qual o indivíduo pode explorar o mundo e experimentar outras relações.

O emprego desta ótica, do apego e da formação dos laços afetivos baseados na convivência, trouxe a noção de que o ambiente familiar deve ser acolhedor e propenso a favorecer o bem-estar daqueles que nele coexistem. A homoafetividade não é apontada nem pelas teorias jurídicas da paternidade sócio-afetiva, nem pelas teorias psicológicas do apego, como um fator impeditivo para o estabelecimento do afeto com uma criança. O foco do julgamento da adoção volta-se, então, para o ambiente familiar como um todo – não determinado pela sexualidade. Dolto (1998) afirma que no processo de adoção devem ser levadas em conta as afinidades da família com a criança, no sentido de que essa propicie um ambiente adequado para o seu desenvolvimento mental e emocional. Salienta que a família deve servir como referência e proporcionar a felicidade da criança em questão – “como ela mesma tem vontade de ser” (Dolto, 1998, p. 96).

Especificamente, ter um filho adotivo implica desconhecer uma parte de sua vida. Se ainda é recém-nascida, a criança estará mais próxima da construção de uma identidade com quem a está adotando (...) no caso de crianças que possuem a vivência de uma instituição para crianças abandonadas, estas terão construído uma trajetória da qual quem adota não participa. (Tabajaski, 1992, citado por Tabajaski, Gaiger & Rodrigues, 1998, p. 12)

Uma tendência dos candidatos a pais adotivos é a de evitar crianças maiores de quatro anos. Mais do que simples preconceito, indica Ebrahim (2001) a partir de seus estudos acerca dos conceitos dos adotantes em relação à adoção de crianças mais velhas, é encontrada uma dificuldade na educação das mesmas devido aos “maus-hábitos” aprendidos na instituição em que permaneceram anteriormente. Somadas as preferências na hora da escolha da criança à demora do processo burocrático, tem-se uma concentração de crianças com idades avançadas nas instituições governamentais. Paradoxalmente ao discurso pela busca do bem-estar da criança, a lentidão da Justiça brasileira priva crianças de um convívio familiar. Ballone (2002) destaca a negligência precoce da qual sofrem as crianças institucionalizadas como sendo mais do que falta de nutrição e higiene. Trata-se da falta de contato afetivo e de estímulo que ocasiona atraso no desenvolvimento de alguns sistemas cerebrais. O autor relaciona como sintomas de negligência precoce: o choro e busca freqüente pelos pais, retraimento emocional, desinteresse por atividades, perda de hábitos adquiridos em seu desenvolvimento familiar anterior, indiferença às recordações dos pais e/ou sensibilidade excessiva ao entrar em contato com lembranças relacionadas a eles. Este quadro de abandono é incoerente quando comparado ao grande número de candidatos que esperam longos períodos para efetivar o processo de adoção, entre eles homossexuais que têm suas solicitações negadas por alguns juízes fundamentados em valores estritamente pessoais.

João Baptista Villela, citado por Pinto (2003), questiona a dificuldade dos juristas olharem para a adoção por homossexuais apontando para a codificação brasileira que não veta a colocação de uma criança em lar substituto cujo titular seja homossexual – demonstrando que o esperado é uma base convivencial estável para dar suporte ao desenvolvimento infantil. Por lei, o poder familiar não é perdido quando os pais biológicos são homossexuais – o que traz à tona a questão: em que se diferencia esta família daquela em que a criança é adotada?

Embora os trabalhos a respeito da criança criada por pai ou casal homoafetivo sejam recentes, dentre eles encontram-se pesquisas empíricas como a de González (2005) e Tarnovski (2002) com estas famílias, cujos resultados apresentam semelhanças no que diz respeito ao desenvolvimento criadas por heterossexuais. A Associação Americana de Psicólogos, a Academia Americana de Pediatras, a Associação Psicanalítica Americana e a Associação Americana de Psiquiatras já se pronunciaram a respeito do tema, afirmando que pais homossexuais são capazes de proporcionar ambientes saudáveis e protetores aos seus filhos – cujo desenvolvimento é similar ao de crianças criadas por heterossexuais nos âmbitos emocional, cognitivo, social e sexual (Fernández & Vilar, 2004).

González (2005) e Tarnovski (2002) pesquisaram famílias compostas por pais homossexuais respectivamente na Espanha e no Brasil, e ambos apontam que pais homossexuais são tão capazes de proporcionar um desenvolvimento saudável quanto pais heterossexuais. Os autores também indicam como facilitador na criação e adequação da criança à sociedade: a vasta rede social e de apoio com a qual mantém relações de parentesco e amizade freqüentes tanto com hetero quanto homossexuais – alguns deles também com filhos.

Um dos argumentos utilizados para o indeferimento da adoção por homossexuais relaciona-se ao estabelecimento de papéis, ou seja, a importância do modelo pai/mãe no desenvolvimento da criança – como tendo a mãe a função cuidadora e o pai a normatizadora. Isto é um equívoco, visto que as atribuições de gênero em nossa sociedade são socialmente construídas. Fernández e Vilar (2004) levantam questões acerca deste modelo referencial comparando monoparentalidade à homoparentalidade – se é necessário um casal heterossexual para a construção da identidade sexual dos filhos pode-se dizer que um filho do sexo masculino criado apenas por sua mãe necessariamente apresentaria dificuldades com sua sexualidade. O modelo do “pai durão” e alienado da educação dos filhos está ultrapassado. Atualmente o cuidado com o filho não traz mais o estigma que o contrapõe à “virilidade masculina”. Há uma tendência nos casais homoafetivos de que as decisões acerca das tarefas domésticas e da criação dos filhos sejam igualitárias – tal qual a afetividade oferecida (González, 2005). A abertura para o diálogo diminui os conflitos, o que favorece um desenvolvimento infantil saudável.

Este modelo educativo democrático possibilita o entrelaçamento de disciplina, exigências de responsabilidades e afeto; proporcionando o desenvolvimento de crianças com auto-estima, responsabilidade, iniciativa, código moral autônomo, habilidades sociais, flexibilidade de atribuições de gênero e aceitação da homoafetividade sem estereótipos e tipificações (González, 2005). Características estas de crianças que apresentam uma vida cotidiana com a rotina da escola e com a variedade do lazer similares aos colegas de mesma idade.

As expectativas de pais homossexuais em relação ao futuro compreendem desde o desejo de felicidade e aprendizado da tolerância (González, 2005) até a heteroafetividade do filho (Tarnovski, 2002). Estas pesquisas afirmam que a média de filhos homossexuais de pais com a mesma orientação sexual segue os padrões gerais, o que coloca a preocupação dos pais não no desenvolvimento do filho, mas no preconceito da sociedade.

 

Considerações finais

Historicamente, tanto as crianças quanto os homossexuais ocuparam papéis secundários em nossa sociedade. A elevação das crianças de futuros para pequenos cidadãos culminou com o Estatuto da Criança e do Adolescente, tardiamente em 1990, e sua preocupação com a proteção integral da criança. A destituição do poder familiar possibilita à criança uma libertação de famílias muitas vezes disseminadoras de violência mas se esquece da violência psicológica que é colocá-la sob responsabilidade do Estado. A estada em instituições deveria ser passageira, mas não são incomuns os adolescentes que cresceram nestes locais. Estes recebem tratamento de funcionários que, mesmo que dedicados, acabam se limitando a cumprir apenas a função de abrigar, oferecendo serviços pouco individualizados e submetendo os abrigados à carência material e emocional. Mesmo instituições que proporcionem um ambiente físico minimamente adequado têm dificuldade em oferecer um importante e desejado elemento: o afeto. A adoção torna-se a melhor oportunidade para que a proteção integral da criança se cumpra, recolocando-a em um espaço propício ao seu desenvolvimento físico e psíquico.

No tocante aos cidadãos homossexuais, estes nem Estatuto têm – embora muito se discuta a necessidade e a viabilidade de uma codificação específica. Não defendemos aqui uma mudança tão drástica em nossos Códigos, visto que os obstáculos encontram-se nas limitações impostas por eles. Munidos da determinação de união estável entre homem e mulher, juizes encontram brechas no Código Civil para apontar casais homoafetivos como estando fora da padronização da sociedade. O embasamento de que os possíveis transtornos de homossexuais são decorrentes da discriminação e repressão sociais, e não de fatores intrínsecos, ainda não foi capaz de eliminar o preconceito.

A adoção é um procedimento repleto de burocracias que alimentam filas de espera que não diminuem, em contra-partida o que aumentam são as exigências direcionadas aos adotantes. A preocupação em assegurar o cumprimento dos requisitos é válida e necessária mas nem sempre convincente, como demonstrada nos casos dos homossexuais que desejam adotar. Constata-se que tais solicitações legais de homossexuais recaem em uma ordem moral, o que para alguns membros da sociedade torna inadmissível o deferimento da adoção. Os argumentos utilizados por juizes, quando para impossibilitar ao homossexual o direito a filiação, foram historicamente construídos em nossa sociedade e cada dia mais caem por terra quando confrontados com teorias como da paternidade sócio-afeitva e do apego. Os códigos brasileiros não distingüem hetero de homoafetividade no que diz respeito à adoção. Diante da inexistência de vedação legal, os aspectos morais e educacionais da criação das crianças são os pontos-chave da argumentação contrária à adoção dentro do que os juizes consideram o melhor para o desenvolvimento psicológico e social do adotado. Resta-nos questionar as competências de alguns juizes e peritos envolvidos nestas avaliações.

Se o receio do deferimento de uma adoção por homossexual, oficialmente registrada como uma família monoparental, é um possível relacionamento homoafetivo, esta união deve ser avaliada pela respeitabilidade e estabilidade, bem como pela oferta de um ambiente familiar adequado à educação da criança. Se o fundamental é atender às necessidades da criança e sendo o adotante cumpridor de seus deveres, sua orientação sexual não pode ser utilizada como condição de veto. O chamado “comportamento desajustado” do candidato a pai deve ser o impeditivo e não sua homoafetividade – comportamento desajustado este que pode ser apresentado por todo e qualquer heterossexual.

Atualmente os juristas que defendem a adoção por homossexuais o fazem por meio do discurso de que terá melhores condições de desenvolvimento a criança adotada por uma família, mesmo que chefiada por homossexual, do que permanecer como mais um dos milhões sem perspectivas de um futuro melhor. Esta é uma visão válida pois não há dúvidas das vantagens de uma criança em desenvolvimento dentro de uma família em comparação às criadas em instituições, mas estas adoções não devem ser vistas apenas como o “menos pior”, mas como uma possibilidade tão válida quanto à adoção por heterossexuais.

A comprovação vem por meio das recentes pesquisas, como as aqui citadas, que apontam que crianças cujos pais são do mesmo sexo são tão ajustadas quanto às crianças com pais de sexos diferentes. Nada há de incomum quanto ao desenvolvimento das atribuições sexuais dessas crianças, o que derruba outro receio dos juristas: homossexuais deverão ter filhos com a mesma orientação sexual. A aceitação pelo grupo de amigos, ou dos pais destes, tende a gerar mais dificuldades sociais do que a aceitação por parte da criança a seus pais adotivos. Considerando ainda que estas questões devam ser trabalhadas por meio de acompanhamento psicológico e/ou educação fornecida pela família – indicação esta para toda criança adotada em fase de adaptação e, por vezes, posteriormente a este estágio.

As mudanças que o recente Código Civil Brasileiro proporcionaram já estão ultrapassadas e os legisladores são questionados acerca das novas necessidades da população. Esquece-se que o projeto do Código Civil é de 1975 e que acompanhava a sociedade brasileira desta década – não surpreendendo que a maior novidade tenha sido a oficialização da união estável; realidade então presente. Quando promulgado, em 2003, a realidade da família e suas configurações já eram outras. Atualmente a reinvindicação da união estável homoafetiva e de sua filiação tende a passar inicialmente por jurisprudências e aceitação de maior parcela da população para que haja mudanças efetivas na codificação. Estas são indicações de que a mudança de pensamento ser responsabilidade de toda a sociedade, que acompanha o desenvolvimento de uma criança que tende a sofrer mais no espaço público do que no privado graças ao preconceito ainda vigente na sociedade.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: reginafutino@gmail.com

Recebido em abril de 2006
Aceito em setembro de 2006

 

 

Autoras
1 Regina Silva Futino– Psicóloga
2 Simone Martins– Psicóloga e mestranda do programa de pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina
3 Para mais detalhes,ver Costa, J. F. (1992). A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará
4 Art. 1.618 e 1.619 do Código Civil Brasileiro (2002)
5 Art. 1.621 do Código Civil Brasileiro (2002)
6 Art. 1.630 do Código Civil Brasileiro (2002) e Art. 21 do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990)
7 Art. 1.632 e 1.636 do Código Civil Brasileiro (2002)
8Art. 1.634 do Código Civil Brasileiro (2002)
9 Art. 1.635 a 1.638 do Código Civil Brasileiro (2002)
10 Art. 23 do Estatuto da Criança e Adolescente (1990)
11 Art. 1.622 e 1.723 do Código Civil Brasileiro (2002)
12 Art. 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990)
13 Art. 242 do Código Penal Brasileiro (1940)
14 Art. 1.626 do Código Civil Brasileiro (2002)
15 Art. 1.627 e 1.628 do Código Civil Brasileiro (2002) e Art. 47 do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990)
16 Art. 1.625 do Código Civil Brasileiro (2002) e Art. 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990)
17 Art. 29 do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990)
18 Art. 46 do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990)
19 Art. 48 e 49 do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990)

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