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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.25 Canoas jun. 2007

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

A psicologia no Programa de Saúde da Família (PSF) em Natal: espaço a ser conquistado ou um limite da prática psicológica?

 

Psychology in Family Health Program (FHP) in Natal: space to be conquered or a limit of psychological practice?

 

 

Isabel Fernandes de OliveiraI,1; Fabiana Lima Silva2; Oswaldo Hajime YamamotoI,3

I Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O Programa de Saúde da Família, implementado em 1994 no Brasil, representou uma estratégia de reorganização da atenção básica com vistas a resgatar os princípios de eqüidade, universalidade e integralidade do SUS e garantir o acesso da população de risco a ações em saúde. Neste contexto, a Psicologia não se insere no Programa, sendo alvo de críticas acerca de sua atuação no sistema público de saúde. Este estudo objetivou analisar o impacto que a implantação do PSF no Distrito Sanitário Norte do município de Natal-RN teve sobre a atuação dos psicólogos, principalmente no tocante à adaptabilidade dos profissionais à nova proposta e às mudanças advindas em virtude do redirecionamento das ações. Para isso foram entrevistados 21 profissionais, sendo 4 psicólogos e técnicos envolvidos no processo. Entre os principais resultados, a perda de postos de trabalho, a permanência fora das equipes, a falta de conhecimento acerca do papel do psicólogo nas equipes e o aumento da demanda reprimida para a Psicologia merecem destaque.

Palavras-chave: Psicologia, Programa de saúde da família, Atuação profissional.


ABSTRACT

The Family Health Program, implemented in 1994 in Brazil, represented a strategy of reorganization of the basic care in order to recover the principles of fairness, universality and completeness of the SUS and to assure the access of the risk population to health actions. In this context, Psychology is not inserted in the Program, being target for criticism about its realization in the public health system. This study had the purpose of analyzing the impact that the implantation of the FHP in the North Sanitary District in Natal-RN had on the performance of the psychologists, mainly in the field of adaptability of the professionals to the new proposal and to the changes that had happened due to the re-orientation of the actions. 21 professionals were interviewed, among these; there are 4 psychologists and technicians who are involved in the process. As main results, the loss of job ranks, the permanence out of the teams, the lack of knowledge concerning the profile of the psychologist in the teams and the increase of the restrained demand for Psychology need to be pointed.

Keywords: Psychology, Family health program, Professional performance.


 

 

Introdução

Os anos de 1980 foram berço no qual se gestaram as principais mudanças em termos de políticas públicas em saúde de toda a história. Se efetivadas ou não, é algo que não se pode aquilatar sem cair nas concepções fragmentárias da dinâmica social. Contudo, os avanços e retrocessos por que passaram as estratégias de implementação de ações em saúde de corte social revelam que o delineamento de um sistema nacional de saúde se fez ao longo dos distintos momentos históricos em decorrência do envolvimento de atores sociais particulares, comprometidos que estavam na defesa de uma saúde mais democrática, ou mais seletiva, ou, ainda, mais eficiente.

O marco das transformações no campo aconteceu na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, na qual, após tanto tempo reprimidos pela ditadura, os movimentos sociais organizados em defesa de um reordenamento das políticas em saúde conclamam a população, dirigentes, representantes, entre outros atores, para discutir novos rumos para o setor, de forma que um novo sistema de saúde se constituísse sob a égide da democracia.

A proposta de criação de um Sistema Único de Saúde (SUS) é levada para a Assembléia Nacional Constituinte e aprovada com algumas mudanças que comprometeram, em parte, a viabilidade do sistema. Vários são os autores que apontam problemas na consolidação do SUS, no seu financiamento, na mudança de concepções necessária para a nova estrutura proposta (Damaso, 1995; Noronha & Levcovitz, 2003; Pereira, 1996). Todos chegam à conclusão de que a proposta do SUS guarda inovações e avanços para o campo, representa uma democratização sem precedentes no acesso e na garantia à saúde para a população brasileira, mas não consegue atingir um de seus principais objetivos: tornar-se acessível para os grupos que dele mais necessitavam, as camadas mais pobres da população.

O SUS provocou mudanças não só no modelo de rede, mas também nos padrões de gestão, controle, avaliação e financiamento das ações em saúde. Foi a etapa final de um processo que se iniciara há quase 10 anos. A estrutura do sistema se organiza em torno da atenção básica e tem como centro as Unidades Básicas de Saúde (UBS). Elas deveriam ser a porta de entrada na rede de assistência, otimizando seu funcionamento estrangulado nos hospitais. Desta forma, os níveis mais complexos de atenção se concentrariam em atender a população que realmente necessitasse de intervenções mais especializadas, tanto no que se refere aos procedimentos diagnósticos como aos de tratamento. Esse modelo tinha como base uma concepção nova de saúde que implicava a restauração de condições que propiciassem saúde (vista como resultante de condições materiais de existência) e não apenas a intervenção em quadros já instalados. Nessa perspectiva, as ações na comunidade (preventivas e educativas), a inclusão de profissionais de áreas afins à médica e o trabalho em equipe passam a fazer parte dos direcionamentos dos níveis centrais.

Para a Psicologia, a implementação do SUS foi um marco importante na consolidação da Saúde Pública como espaço de prática, formação e referência profissional para a categoria. Os psicólogos adentram no SUS sob a bandeira de uma profissão de saúde comprometida socialmente e potencialmente capaz de lidar com a demanda da população pobre. Contudo, embora não haja dúvida quanto à importância do campo para a Psicologia, as permanentes avaliações da prática profissional apontam uma série de críticas quanto às atividades realizadas pelos psicólogos, que merecem uma atenção mais cuidadosa. Entre as principais, estão o desenvolvimento da clínica tradicional como estratégia de trabalho assumida isoladamente pelos profissionais, a dificuldade em delimitar o papel (e a conseqüente ação) do psicólogo na Saúde Pública, a incongruência entre a tradição intervencionista e adaptativa da profissão versus as exigências do SUS por ações multiprofissionais, preventivas e comunitárias, entre outras.

Conquanto legítimos, alguns desses problemas não são privilégios da Psicologia; eles refletem uma evolução das práticas direta ou indiretamente ligadas à Medicina que, por suas características, dificultam a elaboração de uma proposta única de ação no setor. Desta forma, as marcas de um modelo intervencionista, segmentado e assistencialista permaneceram na base das ações do SUS. O próprio Ministério da Saúde (MS) reconheceu que o sistema não atingiu seus principais objetivos, que se resumiam ao acesso democrático e equânime, à justiça distributiva, à ênfase na perspectiva de rede, entre outros.

Tendo em vista atingir o objetivo que parecia mais urgente, o de garantir o acesso ao SUS pelas chamadas camadas de risco, mas não apenas ele, o MS lança, em 1994, o Programa de Saúde da Família (PSF) como mais uma tentativa de racionalização dos gastos em saúde, de implementação das diretrizes que deveriam reger o Sistema Nacional de Saúde, e de levar ações de promoção à saúde às populações de risco. Na esteira de programas bem-sucedidos como o Programa Médico da Família e o Programa dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS), as raízes do PSF repousam, de fato, sobre este último. O PACS tinha como uma de suas principais metas utilizar-se de uma rede social preexistente para, através da eleição de um representante, realizar um perfil epidemiológico das comunidades, enfatizando a promoção de saúde a baixos custos, tendo no agente comunitário de saúde o principal elo entre a população e os serviços de saúde (Araújo, 2000; Bodstein, 2002; Rocha, 2000).

O PSF vai além do PACS ao definir uma nova estrutura de funcionamento da atenção básica, na qual o ponto central das ações de saúde reside na família. Desta maneira, o objetivo do programa seria ir até as comunidades e detectar as necessidades em saúde da população, de forma que se desse início ao modelo de assistência tão defendido à época da constituição. Este, por sua vez, giraria em torno da promoção à saúde, prevenção de doenças, participação da comunidade, entre outros princípios, que configurariam uma centralização de ações na atenção básica (Araújo, 2000; Rocha, 2000).

Seguindo o princípio da descentralização, com efetiva municipalização, o Ministério da Saúde fez uso de incentivos, principalmente financeiros, para que os municípios priorizassem a atenção básica e optassem por adotar os referidos programas. Nesse contexto, entende-se que o PSF, junto a um elenco de medidas de reforma sanitária, configurou-se como uma estratégia de reorganização da atenção básica e racionalização dos custos com as políticas de saúde, priorizando ações de prevenção e promoção da saúde (Cordeiro, 2001; Junqueira, 1997; Marques & Mendes, 2003).

A adoção do PACS/PSF é, então, considerada uma estratégia legítima e efetiva de descentralização da assistência médico-sanitária e de ampliação do direito à saúde. Propõe vincular a população atendida a uma equipe básica de saúde, prestando assistência integral por meio de atividades de informação, orientação e prevenção, e busca adequar as políticas de saúde aos contextos e realidades locais, entre outras ações (Cotta, Mendes & Muniz, 1998).

As principais propostas de mudança na estruturação e oferta dos serviços de saúde a partir da implantação do PSF, dentre outras, são o desenvolvimento de ações inter-setoriais, com alianças entre as áreas da saúde, educação, meio-ambiente, cultura, e a produção de novas práticas, com abertura para o uso de terapias não-convencionais. Além disso, constitui-se numa tentativa de assegurar a efetivação da referência e contra-referência no encaminhamento de usuários, dando continuidade à atenção, promovendo a humanização das práticas em saúde através do estreito relacionamento entre profissionais e usuários.

Para viabilizar tal proposta, o PSF organiza-se em torno de uma Equipe de Saúde da Família (ESF) composta por médico generalista, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e agente comunitário de saúde, podendo, de acordo com necessidades particulares definidas pelos municípios, absorver outras categorias profissionais. As ações devem ser realizadas em conjunto, novidade em termos de organização de equipes profissionais. Ao compor equipes mínimas de saúde, pretende-se estimular a comunicação horizontal entre os membros e abre-se a possibilidade de permanente interação com a comunidade.

O impacto dessa nova configuração no atendimento a população se dá, principalmente, em relação a duas questões: a centralização de todas as ações na ESF, excluindo, num primeiro momento, as demais profissões do campo da saúde; e a necessidade de investimento em formação e capacitação continuada dos recursos humanos envolvidos.

É nesse quadro que situaremos o papel e a participação dos profissionais de Psicologia, especificamente no que se refere ao processo de implantação do Programa Saúde da Família.

Não é novidade que a inserção significativa dos psicólogos no campo da saúde pública se deu em meio à efervescência dos movimentos sociais da década de 1980, associada à crise do modelo de exercício liberal da profissão (Dimenstein, 1998; 2000; Oliveira e colaboradores, 2004; 2005). As reformas no setor da saúde exigiam que novos profissionais fossem incorporados ao sistema de forma que se estruturassem equipes de cuidado com vistas a uma alegada atenção integral aos usuários. Desta forma, abre-se espaço para categorias profissionais que não se inseriam significativamente no sistema até então. Por outro lado, a retração de mercado para a Psicologia, em virtude da crise financeira que assolou a classe média brasileira nesse período, impulsionou os profissionais a buscarem um novo espaço de atuação com novas alternativas de emprego.

Por trás desse movimento de migração para as possibilidades de trabalho numa vertente institucional, havia críticas no seio da profissão especialmente quanto à capacidade de a Psicologia se configurar como uma prática transformadora da realidade social. Se essa era uma de suas metas, permanecer privilegiando seguimentos psicoterápicos dirigidos a uma clientela de alto poder econômico era não só um contra-senso, mas reforçava o caráter adaptativo assumido pela profissão ao longo de sua história.

Apesar das inúmeras tentativas de efetivação de novas práticas e de novos olhares, a verdade é que a Psicologia reproduziu em larga escala os modelos que nortearam a sua constituição e que não se adequavam à realidade da clientela atendida nas instituições de saúde pública. Desta forma, também a prática psicológica não se revelou condizente com os princípios norteadores do SUS, principalmente porque não houve uma mudança paradigmática na concepção das ações, dos programas e do fazer saúde para a grande massa da população brasileira. Há que ressaltar que esse foi um movimento assumido por todas as categorias profissionais que atuavam na rede e que acabou por tornar o SUS um sistema em permanente implantação, com incoerências graves e baixo grau de resolutividade (Oliveira, 2005).

No caso da Psicologia, as características de sua atuação ferem diretrizes importantes tais como o trabalho em equipe, a promoção à saúde, a prevenção de doenças, entre outras. Obviamente, o sistema carece de fundamentos no que se refere às delimitações dos respectivos papéis dos partícipes das ações e, para os psicólogos, a ausência de um conhecimento acerca do que seria sua atuação na atenção básica é um fator adicional na “inadequação” do seu trabalho.

O PSF representa uma tentativa de alteração desse cenário ao instaurar uma nova lógica de funcionamento da rede, e, conseqüentemente, uma nova forma de “saber fazer” dos profissionais envolvidos. As categorias ocupacionais da saúde são convocadas a repensar sua atuação, seu papel e sua inserção no trabalho junto às comunidades.

No caso do município de Natal/RN, a implantação das primeiras equipes de saúde da família (ESF) se iniciou em 1998, mas, até a data do presente estudo, o PSF não havia sido implementado em larga escala.

Dividido em quatro distritos sanitários por região, o Oeste (DSO) foi o escolhido para ser sede das primeiras USF. Em 2002, a Secretaria Municipal de Saúde de Natal dá continuidade ao processo ao expandir o Programa para o Distrito Sanitário Norte (DSN) sem, no entanto, completar a implantação do programa na região anterior. O funcionamento do Programa difere nesses dois distritos, tendo destaque, neste trabalho, o processo de implantação mais recente no DSN.

Anteriormente à implantação do PSF, o DSN estava estruturado com as seguintes unidades: Unidades Básicas de Saúde (UBS) (designadas para prestar atendimento nos níveis primário e secundário), Unidade Mista (que, além das ações das UBS, oferece atendimento de urgência) e Policlínica (para atendimento ambulatorial com alto grau de especialização), com serviço de Psicologia nesses três tipos de unidades de saúde.

A implantação do PSF transformou UBS em Unidades de Saúde da Família (USF), alterando o tipo de serviço oferecido à população nesses locais. As USF se destinam a prestar atendimento realizado por um clínico geral e qualquer necessidade de uma intervenção especializada deve ser encaminhada às unidades de maior complexidade. Cabe às USF, tão-somente, desenvolver ações de promoção da saúde e prevenção, substituindo as UBS e se apresentando como porta de entrada dos serviços de saúde. Num nível imediatamente superior, as Unidades de Suporte (US) oferecem ações mais complexas do que a USF, com atendimentos no nível secundário, clínico, e a Unidade de Referência (UR), para atendimento ambulatorial de especialidades médicas mais variadas e de maior complexidade, como Psiquiatria, Oncologia, Cardiologia, entre outras.

Atualmente os dois modelos de assistência à saúde (Unidades Básicas de Saúde e PSF) funcionam paralelamente, sendo o objetivo da Prefeitura Municipal substituir progressivamente o modelo das UBS pelo PSF. Após três anos de implantação, atualmente o DSN conta com 19 USF, 7 centros de saúde (que funcionam como Unidades de Suporte) e o Centro Clínico Asa Norte, que desempenha a função da Unidade de Referência. Além dessas unidades, dispõe ainda do Pronto-Socorro Geral (plantão 24 horas), do CAPS-AD (Centro de Atenção Psicossocial), serviço alternativo de atenção a dependentes químicos e dois hospitais, sendo um geral e o outro especializado em Pediatria.

O PSF está presente nos sete bairros do DSN, com 59 equipes de saúde de família, o que representa mais de 50% das equipes do programa em toda Natal. Nesse novo modelo de assistência à saúde, a Psicologia não integra a equipe mínima prevista no Programa, saindo das Unidades Básicas de Saúde e ocupando apenas as Unidades de Suporte e as Unidades de Referência.

Tendo como cenário a exclusão de seu espaço de trabalho no novo modelo e a reorganização da rede de assistência à saúde, o objetivo desse trabalho é analisar as alterações decorrentes da implantação do PSF no DSN e o seu impacto no campo de trabalho dos profissionais da Psicologia, tanto no que se refere a perda do espaço de atuação, como também às adaptações realizadas para fins de encaminhamento da demanda destinada aos serviços de Psicologia, destacando-se seus avanços, entraves e limites.

 

Método

Foram realizadas 21 entrevistas semi-estruturadas, com 4 psicólogos atuantes no Distrito Sanitário Norte do município de Natal, lotados em Unidades Básicas de Saúde, Unidade de Referência e Unidades de Suporte e com 17 profissionais envolvidos no processo, quais sejam, diretores/coordenadores de Unidades de Saúde da Família, Unidades de Suporte e Unidades de Referência, e integrantes de duas equipes de saúde da família (médicos, enfermeiros, odontólogos, auxiliares de enfermagem e agentes comunitário de saúde).

As entrevistas foram realizadas a partir de um roteiro básico, contendo questões referentes à implantação do PSF no DSN, estrutura e organização do trabalho dos profissionais, ações desenvolvidas nesse Programa e articulação do PSF com os demais serviços de saúde, com destaque para os serviços de Psicologia. Assim, as entrevistas foram dirigidas aos profissionais com o objetivo de reconstituir aspectos relevantes da implementação do PSF no DSN. Adaptações foram realizadas de forma que as questões se adequassem ao profissional entrevistado, fosse ele membro da ESF, diretor/coordenador de unidade ou psicólogo. Após isso, foram delimitas categorias de análise com base no relato dos entrevistados, de forma que alguns temas fossem abordados. Eles dizem respeito ao processo de implementação do PSF e suas mudanças técnicas e operacionais e o impacto da implantação para os profissionais e em sua atuação, especialmente para a Psicologia. Cada tema tem subdivisões relativas aos seus pontos principais dentre os quais as mudanças nos padrões de atendimento, o impacto do Programa na população, a relação entre membros das equipes, o deslocamento da Psicologia para unidades de referência e a não inserção da Psicologia no programa são os mais importantes.

As entrevistas aconteceram entre abril e julho de 2003 e foram gravadas e transcritas na íntegra, somente após a autorização dos participantes.

O Programa Saúde da Família no município de Natal-RN

O processo de implantação do PSF no município de Natal/RN, em particular no DSN, caracteriza-se por uma sucessão de entraves e dificuldades de ordem variada tanto no tocante ao processo em si como também à receptividade do programa pela população. Falar do impacto desse movimento para a Psicologia, requer, como precondição, um resgate, ainda que superficial, do momento de implementação desse programa no DSN.

Inicialmente desenvolvido em outro distrito do município, o PSF, de fato, se estrutura de maneira mais significativa no DSN e somente a partir de 2002 quando, graças a novos subsídios financeiros e à gestão da SMS, há um direcionamento de políticas para esse fim. Apesar desse novo impulso para a reorganização da atenção básica, até a época de realização desse estudo apenas 38 equipes de saúde da família haviam sido efetivadas e distribuídas em 13 unidades de saúde da família. Em várias regiões do distrito, ainda coexiste o modelo das unidades básicas de saúde e o do PSF, tal como no primeiro distrito em que o Programa foi implantado.

De forma geral, o processo de implantação do PSF em Natal ocorreu de forma desordenada e desarticulada das discussões centrais. A ausência de planejamento e de capacitação dos profissionais, a forma como ocorreu a criação das primeiras equipes e unidades (sem um período de transição) e a clara vinculação do processo à liberação de recursos financeiros são aspectos que marcam esse momento. Essa dinâmica de estruturação do Programa foi determinante na ocupação do espaço da Psicologia após a criação do PSF no DSN. Portanto, exploremos com mais detalhes tais informações.

Uma primeira observação é a queixa generalizada dos profissionais com relação à maneira súbita com que ocorreu o processo de transformação das primeiras unidades básicas de saúde em unidades de saúde de família e a criação das primeiras equipes.

O ponto de partida do PSF, eu achava parecido com um ‘campo de concentração’ (...) era aquela multidão... foi muito desgastante para os profissionais, foi desgastante para a Unidade de Saúde porque teve aquele impacto. (E7)1

Não houve um período de adaptação ou, mesmo, para a transformação das antigas UBS em USF. Muitas delas suspenderam o atendimento ou fecharam temporariamente por falta de condições operacionais e de infra-estrutura; profissionais contratados para o Programa assumiram postos de trabalho em unidades que ainda não funcionavam como USF, o que gerou graves problemas, principalmente no que se refere aos ganhos financeiros dos integrantes do PSF. Os relatos de E4 e E7 ilustram esse momento:

Passou quase um ano sem eles atenderem, porque era uma casa alugada que foi reformada, totalmente sem estrutura para ser uma unidade de saúde. E as pessoas aqui cobrando... (E4)

(...) Era profissional do PSF com profissional que não era do PSF... profissional do PSF com remuneração lá em cima, já recebendo... e sem ter como trabalhar... não existia nenhuma área da equipe definida, nenhuma micro área dos agentes... (E7)

A remuneração diferenciada foi um dos grandes pontos de conflito entre profissionais tanto do Programa quanto entre estes e os demais. A discrepância entre os salários de técnicos que, muitas vezes, executam as mesmas ações, com a diferença de que um está no PSF e o outro não, gerou sérios problemas de cooperação entre unidades, comprometendo a consolidação da rede de cuidados. Unidades que não estavam integradas ao PSF se opunham a receber encaminhamentos, vários profissionais de fora do Programa se recusaram a atender a população encaminhada pelo PSF, entre outros problemas.

A carência de recursos, já freqüente nas UBS, se agravou com o PSF em virtude da diminuição de procedimentos ambulatoriais e de profissionais especializados nas unidades. A falta de medicamentos, em especial, preocupava todos os profissionais, uma vez que é uma das estratégias terapêuticas mais utilizadas. Questionou-se a política de distribuição de medicamentos e de financiamento do Programa e, nesse último caso, responsabilizaram-se os três níveis de gestão por não assumirem seus papéis quanto ao montante destinado ao PSF.

Portanto, a implantação do PSF ocorreu em etapas, com um hiato grande de tempo entre a determinação oficial e a criação da infra-estrutura necessária, que deveria funcionar como uma rede hierarquizada, cuja porta de entrada seriam as USF. Ao se aniquilarem as UBS e ao não se implantarem efetivamente as USF, a população ficou sem referência no atendimento na atenção básica e, por um período de tempo considerável, a demanda por atendimento em nível hospitalar cresceu no Distrito. Unidades como o Centro de Referência do DSN se sobrecarregaram mais ainda, em especial, por causa da extinção das especialidades nas USF sem que tivesse havido tempo hábil para que as ações de prevenção e promoção de saúde, quando executadas, alcançassem o efeito desejado: reduzir a necessidade de atendimento cada vez mais especializado.

Um outro problema diz respeito às relações entre os membros que compunham as novas equipes. Embora o trabalho em conjunto fosse uma prerrogativa importante do PSF, a hierarquia do poder médico continuou a se sobressair, gerando conflitos que impediram um trabalho nos moldes preconizados, conquanto a figura do enfermeiro como condutor das ações nas USF já revelasse um esboço de transferência desse poder. As relações entre técnicos de níveis diferentes, não obstante, permaneceu extremamente hierarquizada, conforme o relato de E6:

Ela achava que ela, como médica... era superior a mim, e eu disse que não, que ela até poderia ser superior, no sentido de cultura... mas nós éramos colegas de trabalho, então, que o meu trabalho era tão importante quanto o dela... ela precisava de mim como eu precisava dela, entendeu?

Da mesma maneira, o individualismo, difundido em anos de formação e prática e a centralização de ações nas mãos de determinadas categorias profissionais, também revelam a fragilidade do trabalho em equipe.

É como se a gente fosse a ‘salvadora da pátria’ aqui sabe? Tanto é que, no dia em que não tem uma enfermeira aqui, é um deus nos acuda; ninguém sabe resolver nada (E4)

Não obstante tais problemas, parece haver uma preocupação com o desenvolvimento do trabalho em equipe partindo do planejamento e avaliação das ações desenvolvidas de forma que elas realmente atendam às necessidades básicas da população. Esse movimento não sinaliza ainda uma mudança substancial no trabalho das equipes, conforme se aponta abaixo, apenas sugere uma certa reflexão por parte dos profissionais acerca de sua própria prática.

O trabalho em equipe ainda está... não é nem por nada, é porque nossa educação... a gente foi educado para ser técnico, para sentar no consultório, isoladamente, chegar o paciente, a gente fazer o trabalho e tal e ir embora. (E7)

Apesar dos percalços organizativos e das dificuldades na transição entre os modelos, alguns avanços são constatados. Um deles se refere à criação de um Centro de Atenção Psicossocial especializado em dependência química no Distrito, somando mais uma instituição na rede de assistência em tal área de abrangência.

Um outro ponto positivo diz respeito às mudanças percebidas por vários integrantes de equipes nas relações entre os profissionais e entre estes e a comunidade. Tal avanço é relatado por E4:

Nas unidades básicas já existia a equipe multiprofissional, só que com um diferencial, e você há de concordar comigo, que quando a gente trabalhava na unidade básica, não tinha esse entrosamento dos profissionais, era ‘cada um por si e Deus por todos’. Eu fazia a minha parte, o psicólogo a dele, quando muito, a gente encaminhava, mas não era aquela coisa de você estar acompanhando ali, entendeu?

Segundo alguns entrevistados, essas mudanças &– reflexo de capacitações realizadas por agências formadoras associadas às secretarias &–, são decisivas para uma renovação nos conhecimentos que norteiam as práticas, possibilitando aos profissionais enxergar possibilidades de realização de ações mais integradas e próximas da realidade da população.

Existiu assim, uma diferença grande de rotina, de prática de PSF, de unidade para unidade. A equipe não estava... faltava compromisso do pessoal. Depois que começou esse ano a capacitação do NESC, com toda a equipe do PSF, aí, sem querer mesmo, naturalmente, ele [o profissional] se compromete, então a coisa melhora, entendeu? Na questão do horário, de humanização, de capacitação mesmo, de competência para fazer o serviço. (E7)

De forma geral, boa parte dos entrevistados acredita que a inserção de outros profissionais, como psicólogos, assistentes sociais e nutricionistas na ESF, poderia favorecer uma atuação mais integral, a adoção de novas formas de trabalho que compartilhassem saberes distintos e de outros campos do conhecimento. Ações básicas mais articuladas e resolutivas, voltadas para o controle de doenças crônicas, para a promoção à saúde e prevenção de doenças seriam outras vantagens possíveis advindas da incorporação de outras categorias profissionais. Contudo, a não incorporação de tais profissionais nas equipes fez com que a atenção permanecesse centralizada em encaminhamentos para tais técnicos, em unidades especializadas que já não possuíam capacidade para atender essa clientela. A principal conseqüência disso é o comprometimento do sistema de referência e contra-referência, como assinala E4:

Coisas que a gente possa resolver aqui, tudo bem, porque está na nossa... mas quando você tem que mandar essa demanda para fora, aí a gente não garante. (...) A questão de resolver coisas que não dependem da gente, aí é que está o problema. Esses encaminhamentos para fora... são muitas coisas que realmente fogem da nossa competência. A gente acaba não dando vencimento...

Em síntese, o processo de implantação do PSF no DSN caminhou com algumas inovações, vários problemas de ordem técnica, estrutural e social que determinaram, em parte, a conformação assumida pelo Programa em tal distrito. A ausência de profissionais que fogem ao modelo tradicional de equipe dificulta a emergência de formas alternativas de atuar que não privilegiem tanto as terapias medicamentosas e os atendimentos individualizados. É nesse contexto que se discutem as implicações desse processo para os profissionais da Psicologia.

A (não)inserção da Psicologia no PSF

Não é possível falar em uma relação direta entre a Psicologia e o PSF no RN. O processo de implementação do Programa é marcado pela ausência deste profissional em todo o estado. Na verdade, o PSF, ao colocar em xeque as concepções que norteiam as práticas em saúde e propor uma nova forma de assistência pautada por noções bastante diferenciadas daquelas sobre as quais se erigiu o conhecimento acerca dos processos de saúde e assistência vigente até então, sinaliza, para a Psicologia, uma fragilidade que a atuação tradicional se esforça por esconder: a ausência de um modelo de atuação, de um conhecimento, de um olhar sobre os sujeitos que não seja decorrente de abordagens individualizantes, anistóricas, que restringem os fenômenos aos aspectos existenciais ou inconscientes. No caso de Natal, algumas peculiaridades relativas às conseqüências da implantação do PSF para a Psicologia servem como pano de fundo para a discussão que, em última instância, se refere ao compromisso social assumido e posto em prática pela profissão.

Inicialmente, o marco, para a Psicologia, da implementação do PSF no DNS em Natal foi a não inserção de psicólogos nas ESF. A interrupção de trabalhos consolidados e a perda de postos de trabalho na atenção básica são os primeiros aspectos a serem considerados. A transformação de UBS em USF eliminou um contingente expressivo de profissionais não previstos para atuarem no PSF, fazendo com que muitos deles migrassem para outros bairros e distritos. Isso acarretou a quebra de várias ações, grupos, programas que vinham sendo desenvolvidos por psicólogos, além do fato de que, da forma como foi feita a transição, muitos profissionais nem tiveram tempo de finalizar adequadamente os respectivos trabalhos. Alguns entrevistados se queixaram do novo desenho da rede, inclusive por causa da ausência do profissional da Psicologia nas novas unidades. É o caso de E13:

... nessas unidades aqui que tem PSF (...), esse profissional (o psicólogo) teve que sair e ficou descoberto o atendimento desse profissional.

Na verdade, não foi apenas a atenção psicológica que deixou de ser oferecida nas unidades. Vários outros serviços foram transferidos para as instituições de maior complexidade. Entretanto, isso não seria um problema se os sistemas de referência estivessem em pleno funcionamento, se as ações preventivas já fizessem diferença no estado de saúde da população, se não houvesse paralelismo de ações, etc. Havendo todos esses problemas, a retirada de profissionais e de serviços das antigas UBS provocou uma baixa na qualidade geral dos serviços prestados à população, um aumento nas filas de espera para a Psicologia, além do crescimento da demanda por atendimento psicológico, como veremos adiante.

Um outro aspecto a ser considerado e que se exacerba em virtude das mudanças provocadas pela implantação do PSF no DSN é a compartimentalização da ciência psicológica. A ausência de identificação, de semelhanças entre abordagens teóricas e linhas de trabalho dificulta uma postura mais atuante na intenção de delimitar um modelo de atuação único para o profissional da Psicologia que possa ser amplamente disseminado e que justifique sua inserção no PSF. O que se vê, como diz a psicóloga P1 é “(...) que os próprios profissionais não se unem por causa de linha teórica”. A velha discussão acerca de qual é o objeto da Psicologia, qual a prática mais adequada e as ‘contra-indicações’ de determinados fazeres, se perdem em meio às tentativas de justificar a presença do psicólogo em um programa, em uma equipe, que não comporta uma atuação nos níveis em que vem se desenvolvendo a psicológica. A psicóloga P2 relata em seu discurso tais dificuldades ao afirmar que

... eu não estou de acordo com essa forma que o psicólogo está atuando na rede (...). Tem alguma coisa errada (...), é a concepção do trabalho do psicólogo.

Embora muitos relatos de pesquisa apontem iniciativas inovadoras que vêm sendo desenvolvidas por psicólogos em UBS, postos de saúde, PSF ou outras instituições da rede de assistência à saúde, tais trabalhos ainda não configuram (se é que o farão em algum momento) um modelo de trabalho a ser implementado no SUS. Na verdade, as ações em saúde pública partem de iniciativas de profissionais, gestores, técnicos (integrados ou não) que conseguem, a partir da integração entre a demanda que chega ao serviço ou que é encontrada na comunidade, articular projetos e ações com vistas a atender tais exortações. Tal aspecto tem marcado a evolução da prática psicológica no SUS, não sem suscitar dúvidas, questionamentos, anseios dos profissionais quanto ao seu papel e expectativas por parte da equipe de saúde e dos gestores do sistema quanto à atuação do psicólogo.

... eu me preocupo muito com o que a Secretaria pensa em implantar, com a nossa função dentro do posto do PSF... (P3)

Uma das psicólogas entrevistadas menciona sua insatisfação quanto à própria atuação ao afirmar que, se houvesse diretrizes quanto à participação da Psicologia no Programa, ela as seguiria de bom grado. Em não havendo, seu trabalho permanece pautado pelas noções trazidas ainda do curso de formação de psicólogos, quais sejam, as da clínica tradicional.

A indefinição de modelos, papéis, população alvo, locais de atuação reflete uma dificuldade para se estabelecer direções de trabalho que culmina com o isolamento do profissional da Psicologia, agravado com sua saída das UBS e centralização nas Unidades de Suporte e, posteriormente, nos Centros de Referência. A distância física dos serviços de Psicologia organizados pós PSF, dificulta a consolidação da estratégia de referência e contra-referência, aumentando uma já reprimida demanda por atenção psicológica e ampliando a desarticulação entre a saúde mental e o PSF.

Dessa forma, os profissionais têm pouca idéia de como relacionar seu saber e prática como proposta do PSF, sentindo dificuldade de desprender-se da relação hierarquizada existente nas unidades de saúde, da priorização de atividades individuais em detrimento de ações conjuntas e em mudar sua postura frente às exigências de uma nova concepção de trabalho.

Outro ponto de destaque é com relação ao aumento considerável da demanda por atendimento psicológico. Se já havia bastante procura, agora existe, além da demanda espontânea (os usuários procuram diretamente o serviço), os encaminhamentos oriundos das ESF. Essa dupla entrada é fruto da implantação incompleta do Programa, possibilitando a coexistência de dois modelos num mesmo distrito sanitário e, conseqüentemente, de duas possibilidades de inserção no sistema.

Parece consenso entre os profissionais entrevistados que essa demanda é constantemente reprimida, seja pela dificuldade do psicólogo atender a maioria das queixas que chega às unidades de saúde, seja pelo aumento da chamada “lista de espera” que mostra a impossibilidade de atendimento nos moldes como estão organizados os serviços psicológicos. O primeiro caso revela a incapacidade da maioria dos profissionais para atender uma demanda que não esteja circunscrita aos problemas existenciais, característicos das abordagens individualistas, predominantes na rede de saúde do município. Já o crescimento da “lista de espera”, aponta a incompatibilidade entre o atendimento individual que privilegia os seguimentos psicoterápicos e a proposta de um Programa que tem, entre suas principais diretrizes, a maior abrangência possível da comunidade atendida.

De uma forma geral, não parece ter havido mudanças significativas no trabalho do psicólogo, mesmo inserido em unidades que dão suporte ao Programa. Não obstante os serviços de Psicologia ocuparem o espaço de colaboradores do PSF, segundo a lógica de organização da rede, a atuação dos profissionais continua centrada no atendimento clínico individual. Tal fato é alvo de críticas, mas há profissionais que questionam mudanças drásticas, já que se perderia um espaço para uma atuação que é parte da identidade profissional dos psicólogos. É o que revela o relato de P3:

(...) como é que nós atuaríamos no PSF? A gente iria fazer um trabalho só familiar, enquanto equipe, e esquecer esse indivíduo que tem as suas questões existenciais?

A despeito disso, profissionais da área reconhecem as limitações de um trabalho centrado nos moldes tradicionais do fazer psicológico.

(...) eu fico triste porque tem uma demanda imensa, e eu tenho uma visão, uma compreensão do trabalho do psicólogo que é diferente... Eu não estou de acordo com essa forma que o psicólogo está atuando na rede, eu acho que tem outra contribuição a dar, porque vai precisar de 20.000 psicólogos só na Zona Norte, para atender individualmente. (P2)

 

Conclusão

Passados três anos de implementação do PSF no DSN, é possível traçar um panorama de como se deu a evolução da estratégia saúde da família no referido distrito e dimensionar o impacto desse programa na prática psicológica e no campo de atuação dos profissionais da Psicologia.

Em síntese, a proposta do PSF visava, à época, reorganizar a atenção básica principalmente através de um mecanismo de discriminação positiva, já que o modelo das UBS não garantiu o acesso aos seguimentos populacionais que mais necessitam do SUS, os chamados grupos de risco. De fato, após o interregno 2003-2006, uma camada crescente da população pobre tem sido coberta pelo Programa não só no DSN, mas em outras regiões da cidade. Vários são os incentivos para o crescimento do número de equipes, mas o financeiro, sem dúvida, é o que mais atrai profissionais para o campo. A articulação do PSF com outros programas da SMS também evoluiu, e estratégias têm sido implementadas para referendá-lo como porta de entrada na rede e base das ações comunitárias.

Apesar dos avanços, no novo desenho da rede, de fato, o psicólogo não se inseriu no Programa e perdeu postos de trabalho por não conseguir justificar sua presença em ações que objetivam prevenção de doenças, promoção de saúde, educação popular, entre outras previstas. Mesmo após essa retração em seu espaço de atuação, os psicólogos permaneceram assumindo como referência um modelo de atuação que tem no atendimento individual com seguimento terapêutico sua principal ferramenta de trabalho.

Por outro lado, é marca do SUS a incoerência entre o discurso oficial e as estratégias efetivamente disponibilizadas aos profissionais para a realização de seus trabalhos. Isso se repetiu no PSF que, apesar de prever ações em saúde mental, até o momento não estabeleceu os parâmetros para a inserção desses profissionais nas equipes. Atualmente, algumas tentativas de acompanhamento das equipes vêm sendo realizadas, através, basicamente, das equipes de apoio matricial e de supervisão institucional, contudo, ainda não se tem a dimensão do impacto que tais estratégias têm provocado.

Os psicólogos que atuam na SMS permaneceram vinculados às UBS e alguns deles têm ocupado posição estratégica em programas que dão apoio ao PSF, tais como os supracitados. Isso pode sinalizar uma nova forma de inserção do psicólogo em ações de suporte e planejamento das ações em saúde, mas não garante um espaço efetivo de atuação profissional.

No caso específico do PSF, a Psicologia ainda defende seu status de profissão de saúde e, como tal, possivelmente assume a posição de que deve, sim, integrar as ESF, mas não há sinais de que sua presença se tornará obrigatória nesses espaços. De fato, da forma como efetivamente acontecem, as ações psicológicas não se adequam à proposta do Programa. Neste sentido, e coerentes com a relação entre planejamento e prática, os psicólogos se encontram exatamente aonde deveriam: em locais de maior complexidade, realizando ações que priorizam um trabalho de intervenção e não de prevenção.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: fernandes.isa@uol.com.br

Recebido em novembro de 2006
Aceito em fevereiro de 2007

 

 

1 Isabel Fernandes de Oliveira é Doutora em Psicologia Clínica (Universidade de São Paulo); professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
2 Fabiana Lima Silva é Mestre em Psicologia &– Programa de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Bolsista CAPES
3 Oswaldo Hajime Yamamoto é Doutor em Educação &– Universidade de São Paulo; professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Os autores agradecem ao CNPq e à CAPES pelo apoio para a realização da pesquisa que deu origem a este trabalho
Os autores agradecem às psicólogas Ana Ludmila Freire Costa e Cândida Maria Bezerra Dantas pela ajuda na elaboração do presente manuscrito

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